Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
709/21.5SXLSB.L2-3
Relator: ALFREDO GAMEIRO COSTA
Descritores: ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA DO CUMPRIMENTO DA DECISÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Sumário: 1. O recorrente tem a obrigação de apresentar provas que justifiquem uma decisão diferente daquela que foi objecto de recurso.
2. A reciprocidade das agressões só é relevante quando a polaridade agressor-vítima é desfeita durante os episódios, demonstrando uma intenção de dominação e humilhação por parte de um dos envolvidos.
3. A decisão de suspender a execução da pena de prisão não contradiz a necessidade de impor uma pena acessória para prevenir a reincidência em casos de violência doméstica, embora envolva riscos que devem ser avaliados.
4. A imposição de vigilância como medida que interfere na esfera privada dos afectados não ocorre automaticamente, mas depende da protecção da vítima e do consentimento do condenado, da vítima e de terceiros afectados, excepto em casos excepcionais em que o juiz pode dispensar esse consentimento com uma fundamentação adequada, após ponderar os interesses em conflito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
1.1. Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - JL Criminal - Juiz 6, em que é arguido AA foi decidido: (transcrição)
(…)
- condenar o arguido AA pela prática, como autor, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea b) e 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal, na pena de três anos de prisão, suspensa na execução pelo período de quatro anos e seis meses, com regime de prova;
- aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contactos com a ofendida pelo período de quatro anos e seis meses, incluindo o afastamento da residência e do local de trabalho da mesma, pena cujo cumprimento será fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância;
- aplicar ainda ao arguido a pena acessória de imposição da obrigação de frequência de programa específico de prevenção da violência doméstica;
- condenar o arguido demandado a pagar ao Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, EPE, o valor de 204,30€ (duzentos e quatro euros e trinta cêntimos), montante a que acrescem juros contabilizados desde a notificação do demandado para contestar até integral pagamento;
- condenar também o arguido, nos termos do artigo 82.º A do Código de Processo Penal, a pagar à ofendida o valor de 1.300€ (mil e trezentos euros). (…)
*
1.2. O arguido interpôs recurso desta sentença, tendo, para esse efeito, formulado as seguintes conclusões: (transcrição)
(…)
I - O Recorrente discorda da sentença prolatada pelo Tribunal a quo, por acreditar que a mesma se baseia numa deficiente apreciação da matéria de facto tida por provada e por não provada, e que, em consequência, acarretou uma errada aplicação do Direito.
II - Ser-vos-á assim pedido que revisiteis o percurso seguido pelo Tribunal a quo para determinação desta pena e se achardes suficiente bondade no recurso ora interposto, que seja o acórdão em crise revogado.
III - O aresto condenatório recorrido fundou a sua convicção, nuclearmente, nas declarações prestadas pela Ofendida, as quais foram consideradas como circunstanciadas e emotivas - tendo, assim, obtido credibilidade (cfr. 1.º parágrafo da motivação da sentença) -, e, ainda, nos depoimentos das testemunhas BB e CC (relativos ao episódio ocorrido em 19-09-2021) e da testemunha DD, actual namorado da Ofendida (relativo ao episódio ocorrido em 29-11-2021).
IV - Por outra parte, o Tribunal a quo não atribui credibilidade às declarações prestadas pelo Arguido, segundo as quais ele próprio foi vítima de comportamentos agressivos de natureza de física e psicológica, perpetrados pela Ofendida, considerando que tais declarações foram incoerentes e não concretamente circunstanciadas e, porque, contraditórias pelos meios de prova produzidos a favor do declarado pela Ofendida,
V - Considerou também que as imagens e vídeos apresentados pelo Arguido «não permitiram ao Tribunal (a quo) concluir que a Ofendida, alguma vez, tenha agredido o arguido, excepto no contexto de agressões sofridas pela mesma, ou que a ofendida o tenha fechado em alguma divisão da casa, impedindo-lhe o acesso ao exterior. Na verdade, não foi produzida prova adminicular circunstanciada que sustentasse tais factos alegados pelo arguido. Especificamente no que ao sofrimento psicológico diz respeito, não ficou demonstrado que fosse atribuível a agressões da ofendida ou privações da liberdade encetadas pela mesma, sendo o mesmo compatível com a circunstância de a relação afectiva ter sofrido vários momentos de tensão e ruptura ou quase ruptura.» (cfr. 6.º parágrafo da motivação da sentença).
VI - Foram também, no essencial, desatendidas, para formação da convicção do Tribunal a quo, as declarações prestadas pelas testemunhas de defesa, entendendo-se, em síntese, que «(…) o Tribunal não ficou convencido da objectividade da narrativa apresentada, não aderindo à perspectiva destas testemunhas quanto à posição do arguido como vítima.».
VII - Ora, a motivação adoptada na sentença apropriou-se do vício de erro de julgamento que o Tribunal a quo incorreu.
VIII - E, em consequência, o Tribunal a quo incorreu em erro na aplicação do Direito ao considerar que estavam preenchidos os elementos objectivos do tipo do crime pelo qual o Arguido vinha acusado.
Concretizando,
IX - Entende o Recorrente que a sentença em apreço enferma de erro de julgamento – pelo que expressamente se impugna nos termos do Art.º 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal (doravante designada abreviadamente por CPP) – nas seguintes vertente:
a) ausência de prova sobre factos dados por provados; e,
b) factos dados como não provados que deveriam ter sido dados como provados.
X - Com efeito, o Tribunal a quo incorreu no antedito vício, na vertente de “ausência de prova sobre factos dados por provados”, relativamente aos factos dados como provados nos pontos 2., 3., 4., 10., 11., 20. e 23. (da matéria assente).
XI - No que concerne ao facto dado como provado no ponto 2., e cuja prova é realizada exclusivamente com base nas declarações da Ofendida, é a própria que afirma, ao minuto 3 e 40 segundos das suas declarações, que nunca viveu com o Arguido como casados (conforme se constata através dos pontos 13. e 14. das presentes alegações, e paras as quais se remete para não incorrermos em vício de repetição). Tal é reiterado pela Ofendida aos minutos 6 e 58 segundos das suas declarações.
XII - O Arguido e a Ofendida nunca partilharam uma residência comum, nem viveram economia comum, aliás, como a Ofendida declara expressamente que não tinha qualquer “pertence” na casa do Arguido.
XIII - A própria Ofendida nunca considerou que o domicílio do Arguido fosse também o seu domicílio, desde logo, porque o seu filho nunca lá pernoito sequer, e, segundo as palavras daquelas, «não fazia sentido nenhum eu viver para algum lado sem o meu filho».
XIV - E patente, pois, que o Tribunal a quo incorre em erro de julgamento ao dar como provado o facto elencado no ponto 2. na sentença, devendo, em consequência, ser a mesma modificada nos termos do disposto no Art.º 431.º, al. b) do CPP.
XV - No que respeita ao ponto 3., a Ofendida em nenhum momento das suas declarações que prestou em sede de audiência de julgamento afirmou que no último ano da relação era agredida pelo Arguido, com pancadas desferidas com as mãos fechadas e puxões de cabelo, com frequência de, pelo menos, uma vez por semana. O Tribunal a quo incorporou este facto da acusação pública na matéria assente, sem sustentação de qualquer prova, inclusive das declarações da Ofendida. Em nenhum momento a Ofendida declarou directa ou indirectamente que o Arguido a agrediu com frequência semanal durante o último ano da relação. Verifica-se, pois, uma total ausência de prova quanto a este facto, pelo que estava vedado o Tribunal a quo de o dar como provado, devendo, assim, ser tal facto dado como não provado.
XVI - No que concerne ao facto dado como provado no ponto 10. da sentença, tal facto é contraditado pela demais prova junta aos autos pelo Arguido, conforme melhor se exporá nos pontos 42. e seguintes da presente motivação de recurso, e para os quais se remetemos. Porém, e adiantando, desde já, o entendimento do Recorrente, a prova produzida em sede de julgamento é clara no sentido que a Ofendida por diversas vezes agrediu o Arguido num quando não defensivo, com o propósito, conseguido e reiterado, de o humilhar e maltratar, provocando-lhe lesões físicas e dor.
XVII - No que se refere ao facto dado como provado no ponto 11. da sentença, inexiste qualquer prova de que o Arguido, com frequência de diária, tenha comparecido junto da residência e/ou local de trabalho da Ofendida com vista a causar-lhe temor ou inquietação, conforme melhor se constata através dos pontos 26; 27, 29 e 30 das presentes alegações).
XVIII - Ora, face às declarações prestadas pela Ofendida, atinentes com os factos que aquela denominou como “pressão de perseguição” são os mesmos anteriores a Outubro de 2021, ou seja, antes da relação amorosa ter terminado, pelo que o Tribunal a quo erra, de forma flagrante, no julgamento da matéria destes factos em função da prova produzida.
XIX - Assim, também quanto aos factos dados com provados no ponto 11., a sentença recorrida enferma de vício de erro de julgamento, impondo-se, pois, a sua modificação.
XX - Também os factos dados como provados no ponto 20. não tem sustentação na prova produzida, conforme resulta do ponto 35. das presentes alegações.
XXI - Com efeito, inexiste qualquer prova de que o Arguido, após Novembro de 2021, tenha, sequer por uma vez, e por qualquer meio, rogado à Ofendida para que esta reatasse o relacionamento de ambos, devendo, assim, com a douta intervenção de V. Exas, ser a sentença modificada, no sentido de dar como não provado os facto descrito em 20.
XXII - Por último, e no que releva quanto ao facto vertido no ponto 23., o Tribunal a quo reitera como provado os factos que o Arguido maltratou a Ofendida no “domicílio comum, e bem assim de persistir com tal conduta mesmo após a cessação do relacionamento entre ambos. Ora, como já o vimos, o Arguido e Ofendida nunca coabitaram num domicílio comum, e o Arguido nunca praticou qualquer facto contra o Ofendida após o fim do respectivo relacionamento. Deve, assim, ser este facto dado como não provado.
XXIII - Como já se afirmou, o Tribunal a quo deu igualmente como não provados factos, que face à prova produzida se impunha que fossem dados como provados, tendo, assim, incorrido (novamente) em erro de julgamento.
XXIV - Através da sentença recorrida é dado como não provado que «a Ofendida tenha ameaçado o Arguido, fazendo-o sentir medo; que tenha trancado o arguido em casa, impedindo a sua liberdade de movimentos; que a ofendida tenha agredido fisicamente o Arguido.».
XXV - Também não foi dado como provado que a Ofendida dirigiu ao Arguido expressões ofensivas e humilhantes de forma não reactiva a supostas agressões do perpetradas por aquele.
XXVI - Ao não terem sido dados como provados tais factos, tal como se impunha, à luz das regras da experiência comum e da normalidade, o Tribunal a quo incorreu num desvio da realidade factual ou jurídica efectivamente ocorrida, tendo tal erro tido influência directa e decisiva na formação da convicção do Tribunal tal como transparece da correspectiva motivação oferecida onde se escreveu que «(…) a própria ofendida não negou que, durante o relacionamento, tenha assumido comportamentos injuriosos ou humilhantes, assumindo inclusive a autoria de mensagens, que o arguido carreou para os autos, que partilham tais características. Tal foi essencial para dar como provados os factos correspondentes. Tais factos, porém, não tiveram a virtualidade de alterar a imagem da relação, em que a ofendida surge como vítima – reactiva e não impassível – de várias e reiteradas agressões do arguido, nos termos analisados supra.» (destaque nosso).
XXVII - Na verdade os referidos factos deviam necessariamente ter sido dados como provados, ou seja, deveria ter sido dado como provado que a Ofendida proferiu expressões humilhantes e atentatórias da dignidade do Arguido, que o agredi, por diversas vezes, fisicamente o Arguido, tudo fora do quadro de defesa ou de reacção, face à prova documental junto aos autos referidas nos pontos 42. a 70. Das presentes alegações.
XXVIII - Importa, desde já, mencionar que a Ofendida, aos minutos 19 e 50 segundos e 24 e 10 segundos, das declarações prestadas na segunda sessão de julgamento, confirma peremptoriamente à Mma. Sra. Juíza que é autora das transcritas mensagens, confirmando igualmente o teor das mesmas.
XXIX - Perante esta “confissão” da Ofendida, impunha-se, pois, face ao teor das referidas mensagens, que o Tribunal a quo tivesse dado como provado que aquela ameaçou o Arguido, pretendendo-lhe causar medo, temor e inquietação; humilhou-o e injuriou-o, fora de um hipotético quadro de defesa ou reacção.
XXX - De facto, nem com esforço se compreende, como é que as mensagens ora transcritas nos pontos 58., 68. e 69. das presentes alegações, foram apreciadas e entendidas com reacções de defesa de uma (suposta) vítima de violência doméstica.
XXXI - É por demais evidente que aquelas mensagens – e em boa verdade todas as demais – não foram proferidas no âmbito de uma reacção de uma vítima, outrossim, são mensagens que se consubstanciam em ameaças, humilhações (muitas de caris sexual) e injúrias ao Arguido, sendo adequadas e suficientes para atingir a dignidade deste.
XXXII - Atente-se que a Ofendida declarou, aos minutos 10 e 5 segundos (na primeira sessão de julgamento, a instâncias da Mma. Sra. Juíza) que no primeiro ano do relacionamento – sensivelmente entre Setembro de 2018 e Setembro de 2019 – o mesmo se desenvolveu sem quaisquer conflitos. Ora, as mensagens transcritas em 42. a 44. das presentes alegações, foram dirigidas ao Arguido dentro daquele período, pelo que o Tribunal a quo, efectou uma falsa representação da realidade quando fundamenta que a sua convicção foi formada no sentido de que as mensagens remetidas ao Arguido foram de cariz estrictamente reactivo, afirmando que que Ofendida adoptou uma conduta não impassível.
XXXIII - Para além do mais, repete-se, o teor das remanescentes mensagens dirigidas ao Arguido não se compactua com uma natureza reactiva a eventuais maus-tratos infligidos por aquele, consubstanciamse, outrossim, em verdadeiras humilhações, provocações, ameaças que se traduziram em reais ofensas à integridade e saúde psíquica do Arguido - o que, aliás, a Ofendida veio efectivamente a conseguir -.
XXXIV - Face ao exposto, deverá este Venerando Tribunal modificar a sentença recorrida, e dar como provados os factos acima referidos.
XXXV - Acresce que o Tribunal a quo deveria ter dado igualmente como provados os factos constantes dos pontos 79. a 92. das presentes alegações.
XXXVI - Ora, o Arguido aos minutos 2 e 20 segundos a 26 e 50 segundos (das segundas declarações prestadas em sede de audiência de julgamento) concretizou e circunstanciou as agressões físicas descritas agora em 77.; 78; 80; 83 e 84, tendo ainda referido que todas as lesões físicas constantes nos videogramas e fotogramas (juntos aos autos) foram infligidas pela Ofendida.
XXXVII - Acresce que os relatos de agressões físicas e psíquicas infligidas pela Ofendida ao Arguido foram corroborados pelas declarações prestadas pelas testemunhas EE, FF, GG e HH.
XXXVIII - Aos minutos 5 e 30 segundos a testemunha EE (prima do Arguido) relata que o Arguido lhe confidenciou que a Ofendida, por diversas vezes, «lhe batia».
XXXIX - Aos minutos 4 e 20 segundos a testemunha FF (prima do Arguido) relata que visionava vídeos que o Arguido lhe enviava com marcas físicas das agressões infligidas pela Ofendida, e que este lhe confidenciou que a Ofendida o agredia fisicamente. E aos minutos 7 e 01 segundos relata que durante uma chamada telefónica tida com o Arguido ouviu, em fundo, a Ofendida a dizer «esta tua família são todas umas putas».
XL - Aos minutos 4 e 50 segundos a testemunha XX (pessoa sem qualquer vínculo familiar com o Arguido) relata que presenciou uma discussão entre o Arguido e a Ofendida em frente a um café que frequentavam, e viu e ouviu a Ofendida, em público, a dirigir as seguintes expressões ao Arguido «(é)s um porco. Vai para a puta da tua mãe. Não vales nada. E mais coisas dentro deste género.».
Relata ainda, aos minutos 7 e 10 segundos que presenciou mais dois ou três episódios tal como o descrito.
XLI - Aos minutos 5 e 30 segundos a testemunha II (tia do Arguido) relata que o Arguido lhe confidenciou que a Ofendida era muito ciumenta e que o agredia, e, ainda, que por diversas vezes o Arguido lhe ligou a chorar por causa do relacionamento com a Ofendida.
XLII - Aos minutos 2 e 37 segundos a testemunha HH (amigo do Arguido) relata que o Arguido, por diversas vezes, lhe ligava para pedir apoio por causa dos conflitos com a Ofendida. E aos minutos 3 e e 42 segundos a testemunha relata que, por cinco ou seis vezes, sempre em espaços públicos (rua e cafés que frequentavam), assistiu a Ofendia a dirigir ao Arguido as seguintes expressões «(é)s um filho da puta. (…). Cabrão, e essas coisas assim!». Aos minutos 7 e 3 segundos a testemunha relata que o Arguido lhe confidenciou, por diversas vezes, que a Ofendida o agredia, tendo numa ocasião visto uma marca no pescoço do Arguido em resultado de uma agressão sofrida por aquela (reportava-se a testemunha ao facto descrito no ponto 91. das presentes alegações).
XLIII - Importa referir que os depoimentos ora mencionados, inclusive das testemunhas com vínculos familiares ao Arguido, foram absolutamente isentos e credíveis, bem assim concretizados e circunstanciados, pelo menos na mesma medida que as declarações prestadas pela Ofendida, as quais o Tribunal reportou de credíveis (vide 1.º parágrafo da motivação).
XLIV - Assim, e ao não ter dado como provados tais factos, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, e, em consequência, tal erro veio influir directa e decisivamente na motivação oferecida pelo Tribunal na sentença recorrida.
XLV - Termos em que, se roga a V. Exas, que modifiquem a sentença recorrida no sentido de dar como provados os factos antecedentemente transcritos, porque os mesmos decorrem, sem contradições, da prova documental, testemunhal e das declarações do Arguido produzidas em sede de audiência de julgamento.
XLVI - O Tribunal a quo ao incorrer em vício de erro de julgamento (por error facti) incorreu, em consequência, em erro na aplicação do Direito (error juris).
XLVII - Como já se o afirmou o Tribunal a quo apenas deu como provado que «(n)a sequência das discussões e desentendimentos que pautaram o relacionamento entre arguido e ofendida e ao longo da relação entre ambos, a ofendida, por várias vezes, dirigiu ao arguido expressões ofensivas e humilhantes» (vide ponto 26. da factualidade assente). E, por conseguinte, entendeu o Tribunal a quo que «(s)alienta-se, porém, que a própria ofendida não negou que, durante o relacionamento, tenha assumido comportamentos injuriosos ou humilhantes, assumindo inclusive a autoria de mensagens, que o arguido carreou para os autos, que partilham tais características. Tal foi essencial para dar como provados os factos correspondentes. Tais factos, porém, não tiveram a virtualidade de alterar a imagem da relação, em que a ofendida surge como vítima – reactiva e não impassível – de várias e reiteradas agressões do arguido, nos termos analisados supra.».
XLVIII - Com efeito, caso o Tribunal a quo não tivesse incorrido em erro de julgamento, jamais poderia ter motivado a sentença naqueles termos.
XLIX - Dito doutra forma, caso o Tribunal a quo tivesse dado como provados os anteditos factos, não poderia certamente pugnar que as aludidas condutas da Ofendida se consubstanciavam em actos meramente reactivos aos comportamentos adoptados pelo Arguido.
L - Tal tese falece face à prova documental juntos aos autos - ante o teor das mensagens, fotogramas e videogramas -, das declarações das testemunhas acima referidas e das declarações do Arguido.
LI - É patente, pois, que a Ofendida ameaçou o Arguido, fazendo sentir medo; humilhou-o e injuriou-o, tanto em privado como em sítios públicos; e, ainda, na presença de amigos e familiares; controlava a vida social do mesmo, designadamente acedendo ao seu telemóvel, sem conhecimento e/ou permissão daquele, e ainda através das redes sociais; trancou o Arguido em casa, pelo menos por duas vezes, impedindo a liberdade de movimentação daquele; e exerceu violência física por diversas vezes, tendo nomeadamente esmurrado, pontapeado e infligido cortes com objectos, provocando-lhe, assim, dores.
LII - Como é sabido consigna o Art.º 152.º, n.º 1 al. a) do Código Penal que “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.”
LIII - Com efeito, o bem jurídico protegido por esta incriminação legal é a saúde, enquanto manifestação do princípio, constitucionalmente consagrado logo no seu artigo 1.º, da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. Ou seja, o tipo legal da violência doméstica visa, acima de tudo, proteger a dignidade humana, tutelando, não só, a integridade física da pessoa individual, mas também a integridade psíquica, protegendo a saúde do agente passivo, tomada no seu sentido mais amplo de ambiente propício a um salutar e digno modo de vida.
LIV - Dentro das situações previstas no tipo legal em apreço, uma das que surge com mais frequência é, precisamente, e a que aqui releva, os maus tratos físicos e psíquicos a pessoa com quem o agente tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges.
LV - Segundo Américo Taipa de Carvalho, «(a) “ratio” deste artigo 152.º vai muito além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos (p. ex., humilhações, provocações, ameaças, curtas privações da liberdade de movimentos, etc.), a sujeição a trabalhos desproporcionados à idade ou à saúde (física, psíquica e mental) do subordinado, bem como a sujeição a atividades perigosas, desumanas ou proibidas. Portanto, deve dizer-se que o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afetado por toda a multiplicidade de comportamentos (...).».
LVI - O sujeito passivo do ilícito penal previsto no n.º 1, al. a) e no n.º 2 do artigo 152º do Código Penal, tem necessariamente que ser uma pessoa que se encontre numa relação de coabitação conjugal ou análoga com o sujeito ativo do delito.
LVII - Assim, em face da letra da lei e da interpretação que a jurisprudência mais recente vem fazendo das condutas típicas subsumíveis ao tipo legal da violência doméstica, entende-se, actualmente, que a pedra de toque quanto ao preenchimento do elemento objetivo incide sobre os factos praticados, isolados ou reiterados, apreciados à luz da intimidade do lar e da repercussão que eles possam ter para a vida comum, sejam suscetíveis de colocar a vítima na situação de, mais ou menos permanentemente, sofrer um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade no seio da sociedade conjugal.
LVIII - Neste sentido pronunciaram-se, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto de 29 de Fevereiro de 2012, e o Acórdão da Relação de Guimarães de 02 de Novembro de 2015 (ambos disponíveis em www.dgsi.pt), onde se escreveu que: “I - Os maus-tratos previsto pelo crime de Violência doméstica, do art.º 152.º do Cód. Penal, têm subjacente um tratamento degradante ou humilhante de uma pessoa, capaz de eliminar ou limitar claramente a sua condição e dignidade humanas. II - Com a Reforma de 1995, os maus tratos psíquicos passaram a estar contemplados com um leque mais alargado de condutas, como humilhações, provocações, ameaças (de natureza física ou verbal), insultos, privações ou limitações arbitrárias da liberdade de movimentos, ou seja, condutas que revelam desprezo pela condição humana do parceiro, podendo provocar sentimentos de culpa ou de fraqueza, mas não, necessariamente, um sofrimento psicológico. III - O relevante é que os maus tratos psíquicos estejam associados à posição de controlo ou de dominação que o agressor pretenda exercer sobre a vítima, de que decorre uma maior vulnerabilidade desta.”. Escreveu-se ainda que: “I - O tipo legal do art.º 152º, do CP previne e pune condutas perpetradas por quem afirme e atue, dos mais diversos modos, um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação. II - Este é, o verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual. (…)”.
LIX - Em síntese, e sufragando o perfilhado por Carlos Casimiro Nunes e Maria Raquel Mota, a prática de maus tratos consubstancia a perpetração de qualquer ato de violência que afete, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional da vítima, diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade “familiar” (conceito de família genérica) igualitária. A violência doméstica é, pois, exercida de múltiplas formas. Uma delas consiste na violência física, mas também na violência emocional e psicológica, consistindo em desprezar, menosprezar, criticar, insultar ou humilhar a vítima, em privado ou em público, por palavras e/ou comportamentos. Outra dessas formas é a intimidação, que é exercida através da coação e da ameaça. Surge intrinsecamente associada à violência emocional-psicológica, consiste em manter a vítima sempre com medo daquilo que o agressor possa fazer contra si e contra os seus familiares. Para tal o agressor pode recorrer a palavras, olhares e expressões faciais, gestos mais ou menos explícitos, (...).Pode ainda ameaçar, causar lesões ou a morte à companheira/esposa aos filhos ou a familiares daquela, pode ameaçar que se suicida caso a vítima o abandone ou recorrer à utilização dos filhos para a imposição de poder sobre a vítima (...).” (cfr. Carlos Casimiro Nunes e Maria Raquel Mota, Revista do Ministério Público, ano 31, n.º 122, pág. 133 e ss.).
LX - Relativamente ao tipo subjetivo, o crime de violência doméstica exige o dolo.
LXI - Assim, no caso de maus tratos físicos ou psíquicos, o dolo estende-se ao próprio resultado danoso da integridade física ou psíquica. É sempre necessário o conhecimento da relação de proteção – subordinação.
LXII - Munidos das considerações ora tecidas, sobre os elementos constitutivos do tipo, e descendo ao caso dos presentes autos, e ante a prova produzida em audiência de julgamento, inexiste (não foi provada) uma subjugação, sobre a pessoa da vítima (a Ofendida), sobre a sua vida ou (e) sobre a sua honra ou (e) sobre a sua liberdade, sobretudo atendendo às condutas adoptadas pela Ofendida contra o Arguido durante o período que durou a relação amorosa entre ambos.
LXIII - Com efeito, o teor das mensagens da autoria da Ofendida não de coadunam com a posição que se encontrava subjugada pelo seu namorado (o Arguido).
LXIV - Elas, em si mesmo, detêm o cariz de verdadeiras ofensas à integridade psíquica do Arguido, bem assim à sua honra e dignidade.
LXV - Tanto assim o é que a Ofendida não se coibia de injuriar humilhar em público o Arguido, perante conhecidos e amigos. Ora, como decorre das regras da experiência uma pessoa que é subjugada por um agressor jamais ousaria praticar tais actos em público (ou mesmo em lugar privado).
LXVI - Acresce que a Ofendida agrediu, por diversas vezes (cfr. 76. a 89. das presentes alegações), o Arguido, em datas distintas daquelas que sustentou ter sido vítima de agressões físicas perpetradas pelo Arguido.
LXVII - De facto, a Ofendida não foi vítima, no sentido em que sofreu um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade durante a relação que teve com o Arguido.
LXVIII - Não foi subjugada pelo Arguido na sua honra ou na sua liberdade e que tenha reconduzido a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação.
LXIX - Certo é que em muitos momentos a própria Ofendida assumiu o papel de agressor, quer física, quer psiquicamente.
LXX - E como se escreveu no citado acórdão este é o verdadeiro traço distintivo deste crime relativamente aos demais (onde igualmente se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual) é a existência de um a vítima profundamente dominada e subjugada pelo seu agressor.
LXXI - Face percursos fundamentador oferecido na sentença recorrida é inculcada a ideia de que o Tribunal a quo - por razões que não alcançamos - não concebe a possibilidade de Arguido e Ofendida se terem mutuamente agredido física e psicologicamente, tendo ocorrido dominação e subjugação recíproca.
LXXII - De facto, prefigura-se, face ao discurso fundamentador adoptado, que o Tribunal a quo apenas admite como possível que exista apenas um agressor e uma vítima, in casu que só o Arguido pudesse agredir física e psicologicamente a Ofendida.
LXXIII - Ora, é sobejamente sabido que existe um maior número de casos de violência (doméstica) cometidos por homens contra mulheres, no âmbito de relações amorosas.
LXXIV - Mas isso não exclui a possibilidade de existirem casos, no âmbito da violência doméstica, em que os homens são vítimas e as mulheres as agressoras.
LXXV - Bem como, não exclui a possibilidade de em certos relacionamentos amorosos existirem agressões físicas e psicológicas praticadas reciprocamente.
LXXVI - Afigura-se, porém, que o Tribunal a quo nem sequer equaciona ou afasta tal possibilidade no caso vertente.
LXXVII - Se o Tribunal tivesse realizado uma apreciação equidistante da prova produzida (sem uma préconcepção da realidade fáctica), seria esta a conclusão a que chegaria, porquanto é aquela, que face à realidade fáctica ocorrida (espalhada na prova produzida) a mais verossímil das hipóteses.
LXXVIII - Dizem-nos as regras da experiência que o fenómeno de agressões mútuas entre os membros dos casais ocorre (infelizmente) com elevada frequência.
LXXIX - Na verdade, e apreciando a prova produzida, verifica-se, in casu a existência de dois agressores – o Arguido e a Ofendida -.
LXXX - O crime de violência doméstica não pode ser cometido reciprocamente (cfr. neste sentido o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, prolatado em 16-03-2022, no âmbito do Proc. n.º 1052/20.2GBVNG.P1 (disponível em www.dgsi.pt).
LXXXI - Significa, portanto, se num dado relacionamento ambos os membros do casal se comportam como agressores, não se pode considerar, face ao acima exposto, preenchidos os elementos objectivos constitutivos do tipo do crime de violência doméstica.
LXXXII - E era isso, caso não tivesse incorrido em erro de julgamento, que o Tribunal a quo deveria ter concluído, isto é, que no caso vertente, maxime face às condutas da Ofendida, não se encontravam preenchidos os elementos objectivos constitutivos do tipo,
LXXXIII - E, eventualmente, alterar a qualificação jurídica, noutros tipos de crime.
LXXXIV - Assim, a decisão recorrida, fez errada aplicação do Direito, ao considerar preenchido o crime previsto no Art.º 152.º, n.º 1, al. b) do CP.
LXXXV - Incorreu também em erro de Direito ao condenar o Arguido na forma agravada do crime – por preenchimento da circunstância agravante de ter praticado agressões no domicílio comum (Art.º 152.º, n.º 2, al. a) do CP) – uma vez que, como supra se demonstrou, o Arguido e a Ofendida nunca partilharam uma residência comum – aliás, como a Ofendida reiterada e esclarecidamente reconheceu e afirmou em sede de julgamento -.
LXXXVI - E assim, não pode subsistir a condenação do Arguido quanto à prática do crime de violência doméstica, e, por maioria de razão, não pode subsistir a condenação nas sanções acessórias a que foi condenado, bem como na indemnização fixada nos termos do Art.º 82.º-A do CPP, rogando-se a V. Exas., que fazeis Justiça em nome do Povo, que revoguem a sentença recorrida.
LXXXVII - Ainda que tal assim não se entenda, o Tribunal a quo não observa, relativamente à determinação da pena acessória de proibição de contactos com a Ofendida com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, os critérios que presidem à determinação das penas, designadamente ao equilíbrio entre a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, conforme consagrado nos Art.º 70.º e seguintes do Código Penal. A suspensão da execução da pena, com proibição de contactos é suficiente para a prevenção especial que o caso exige, sendo, desnecessário, desadequado e desproporcional sujeitar o Arguido a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, durante 4 anos e seis meses, de tal proibição. O Arguido tem desenvolvido actividade profissional no Reino de Espanha, sendo que fiscalização por meios técnicos de controlo à distância tem dificultado de sobremaneira as deslocações do Arguido àquele país.
(…)
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1.3. Admitido o recurso, o M. P. apresentou resposta onde rebateu os argumentos aduzidos pelo arguido e concluiu pela improcedência do recurso e a manutenção da sentença nos seus precisos termos.
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1.4. Remetido o processo a este Tribunal da Relação, na vista a que se refere o art.º 416º do CPP, o Sr. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer pugnando pelo não provimento do recurso, sustentando-se na posição assumida pelo MP da 1ª Instância.
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1.5. Cumprido o preceituado no art.º 417º nº 2 do CPP, não foi deduzida resposta ao parecer.
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1.6. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Do âmbito do recurso e das questões a decidir:
De acordo com o preceituado nos art.ºs 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos art.ºs 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito1.
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior2.
Seguindo esta ordem lógica, no caso concreto e seguindo a ordem indicada pelo recorrente, as questões a apreciar são:
a. Erro de julgamento da matéria de facto;
b. Erro na aplicação do direito;
c. Pena acessória de proibição de contactos excessiva.
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2.2. Fundamentação de facto
2.2.1. Da matéria de facto provada/não provada, e motivação da decisão de facto: (transcrição)
(…)
1.1. Factos provados
Consideram-se demonstrados, com relevo para a decisão da causa, os factos seguintes:
1. O arguido e a ofendida JJ mantiveram um relacionamento amoroso de namoro no período compreendido entre Setembro de 2018 e Outubro de 2021, findo por vontade da ofendida.
2. Arguido e ofendida coabitaram, como se casados um com o outro fossem, no decurso do ano de 2021 até ao fim do relacionamento.
3. No último ano da relação, com frequência de, pelo menos, uma vez por semana, o arguido atingiu a ofendida com pancadas desferidas com as mãos fechadas e puxões de cabelos, assim lhe causando dores.
4. No dia 31 de Dezembro de 2019, à noite, arguido e ofendida, no interior de um veículo automóvel, percorriam a via pública, em local não apurado.
Nessas circunstâncias, o arguido desferiu várias pancadas com as mãos fechadas na ofendida, atingindo-a no corpo, e puxou-lhe os cabelos, empregando força muscular.
A ofendida logrou então projetar-se do veículo para a rua, assim fugindo ao arguido.
5. Como consequência de tal conduta do arguido, a ofendida necessitou de assistência hospitalar, sofrendo dores e bem assim contusão do ombro direito e fractura da clavícula direita.
6. Em data não apurada, compreendida no ano de 2021, quando arguido e ofendida se encontravam no domicílio comum, na altura sito na Reboleira, o arguido, depois de ter tentado impedir a ofendida de sair de casa, finalmente disse que a mesma poderia sair. Porém, quando esta se aprestava a sair, o arguido puxou-lhe os cabelos, para a impedir de o fazer, tendo igualmente agredido a mesma com pontapés, socos e empurrões. Em consequência, a ofendida sofreu dores e, especificamente em consequência dos empurrões, a ofendida bateu numa parede e sofreu um corte no cotovelo.
7. No dia 22 de Junho de 2021, à tarde, na sequência de uma discussão, o arguido desferiu uma pancada com a mão no peito da ofendida.
Como consequência de tal conduta do arguido, a ofendida sofreu dores e bem assim trauma do esterno, com edema e rubor, o que determinou assistência hospitalar.
8. No dia 19 de Setembro de 2021, à noite, junto ao posto de abastecimento de combustível Repsol, sito na Avenida dos Bombeiros Voluntários de Algés, em Algés, arguido e ofendida encontravam-se no interior de um veículo ali aparcado.
Então, no contexto de discussão, o arguido agarrou a ofendida pela cabeça, encostando-a à janela adjacente ao banco dianteiro direito, em que a mesma estava sentada, e desferiu várias pancadas com as mãos fechadas na cabeça da ofendida, assim lhe causando dores.
O arguido só cessou tal conduta aquando da intervenção de BB e KK, que também se encontravam no local e que se aproximaram para socorrer a ofendida.
9. Em Outubro de 2021, a ofendida deu por terminado o relacionamento com o arguido, decisão com que este não se conformou.
10. Na sequência das várias agressões sofridas pela ofendida, esta frequentemente tentou repelir o arguido, dando-lhe pontapés, pancadas no corpo e empurrando-o.
11. A partir da cessação do relacionamento amoroso, ocorrida em Outubro de 2021, com frequência diária, o arguido passou a comparecer tanto junto à residência da ofendida, sita na Rua Cerrado do Zambujeiro, número 5, 1º frente, na Amadora, como junto ao local de trabalho da ofendida, quando sabia que a esta se encontrava nesses locais, fazendo questão de que esta ficasse ciente de tais condutas, pese embora bem soubesse que a ofendida não pretendia tais contactos e que os mesmos, na medida em que revelavam que o arguido estava ciente das rotinas da ofendida, eram idóneos e adequados a causar-lhe temor e inquietação, resultado que o arguido quis e conseguiu.
12. Assim, no dia 29 de Novembro de 2021, à noite, a ofendida saiu do seu local de trabalho, no Hospital da Luz, sito na Avenida Lusíada, em Lisboa.
A ofendida constatou então que o arguido ali também se encontrava, no interior de um veículo ligeiro, com o propósito de a interpelar.
13. Querendo evitar o contacto com o arguido, a ofendida encaminhou-se para o veículo de seu namorado DD, que a aguardava também naquele local.
A ofendida introduziu-se então no veículo de DD, momento em que este iniciou a marcha do veículo, para sair do local.
14. Nessa altura, o arguido conduziu o respectivo veículo até junto do veículo tripulado por DD e disse a este para sair do carro, o que o mesmo não fez.
15. O arguido colocou, então, uma das mãos entre o banco e a porta dianteira esquerda do seu veículo, daí retirando objeto de natureza não apurada, após o que saiu do veículo e encaminhou-se para o carro tripulado por DD.
16. Volvidos alguns instantes, quando DD se encontrava já no exterior do seu veículo, o arguido agrediu-o, com uma pancada na zona do ouvido esquerdo.
17. Nessas circunstâncias, de viva voz e com foros de seriedade, o arguido declarou “Eu vou-te matar. Vou-te dar dois tiros”, enquanto colocava a mão na cintura, como se se aprestasse a daí tirar uma arma de fogo.
18. DD agarrou então o arguido, para obviar a que este lançasse mão de eventual arma de fogo que trouxesse à cintura, tendo ambos caído, nesse contexto, no solo.
Nessas circunstâncias, de forma não concretamente apurada, o arguido sofreu fractura do complexo OBZ direito, alinhada, com fractura da arcada zigomática, tendo sido transportado ao serviço de urgência do Hospital de Santa Maria e sofrendo dores.
19. Volvidos alguns instantes após a descrita queda no solo, a ofendida e DD encetaram fuga do local.
20. Após Novembro de 2021, o arguido, em múltiplas ocasiões, dirigiu mensagens à ofendida, rogando que esta reatasse o relacionamento entre ambos, pese embora bem soubesse que a ofendida não pretendia qualquer contacto com o mesmo.
21. Igualmente lhe enviou mensagens demonstrando saber a matrícula do veículo do namorado e dizendo “isto não vai ficar assim”.
22. Em data não apurada, após Novembro de 2021, o arguido, via telefónica, remeteu uma mensagem vídeo à ofendida, em que lhe declarou “Levem-me à esquadra, porque tu estás-me a fazer bué de mal, ouve o que te estou a dizer, vai à esquadra, porque eu não tou bem.”, bem sabendo que o comportamento descrito em 21. e 22. era idóneo e adequado a perturbar e atemorizar a ofendida, o que quis e conseguiu.
23. Ao agir da forma descrita, teve o arguido o propósito conseguido e reiterado de humilhar e maltratar a ofendida JJ, apesar de saber que lhe devia particular respeito e consideração, na qualidade de sua companheira, não se coibindo de assim proceder no domicílio comum, e bem assim de persistir com tal conduta mesmo após a cessação do relacionamento entre ambos.
24. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
25. O Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, EPE, prestou cuidados de saúde a JJ, na sequência das agressões sofridas pela mesma e descritas em 4. 5. e 7., nos dias 31/12/2019 e 22/06/2021.
Tais cuidados ascenderam ao valor de 204,30€ (duzentos e quatro euros e trinta cêntimos).
26. Na sequência das discussões e desentendimentos que pautaram o relacionamento entre arguido e ofendida e ao longo da relação entre ambos, a ofendida, por várias vezes, dirigiu ao arguido expressões ofensivas e humilhantes.
27. AA é natural da África do Sul, país onde viveu apenas durante os primeiros meses de vida, tendo vindo para Portugal com a avó materna, juntando-se aos mesmos, passado pouco tempo, a progenitora, a qual, entretanto, se tinha separado do progenitor do arguido.
No nosso país, a mãe iniciou nova relação marital da qual nasceram dois filhos. O padrasto do arguido passou a substituir a figura paterna.
AA só veio a conhecer o progenitor aos 15 anos de idade, sendo que estabeleceu com ele uma relação que passou a ser pontual e sem grande vínculo afectivo.
O progenitor faleceu há mais de 4 anos.
O ambiente familiar do arguido era afectivo e assente em laços de interajuda, existindo contudo, alguma dificuldade na supervisão e controlo parental.
O arguido consumiu haxixe, durante a adolescência, junto dos amigos da zona de residência.
O percurso escolar levou o arguido a concluir apenas o 8.º ano de escolaridade.
Com 16 anos de idade, AA iniciou-se laboralmente, através de uma empresa de trabalho temporário, como limpador de vidros, actividade que foi mantendo até ao presente, oscilando entre períodos de ocupação laboral e períodos de inactividade.
Em termos afectivos significativos, AA teve uma relação de namoro que perdurou cerca de 5 anos, seguida da relação com JJ, aqui ofendida, com início em Setembro de 2018.
Inicialmente, o arguido e a ofendida integraram o agregado da avó materna do arguido até se autonomizarem.
A relação terminou em Outubro de 2021.
AA, presentemente, trabalha numa empresa de manutenção de edifícios, com as funções de limpador de vidros, recebendo cerca de 500€ mensais.
Vive sozinho em casa própria, suportando uma prestação mensal de cerca de 250€ por força do empréstimo bancário contraído para aquisição de habitação.
Em termos afectivos, o arguido tem uma nova relação amorosa, residindo a namorada na Suiça.
No que diz respeito às actividades de lazer organizadas, AA frequenta o ginásio com regularidade, passando os tempos livres essencialmente com a actual namorada, quando a mesma se encontra no país, ou em casa a jogar Playstation.
28. O arguido já foi condenado por um crime de roubo na forma tentada, praticado em Setembro de 2010, numa pena de prisão de um ano suspensa na execução por igual período, por decisão transitada em julgado em Julho de 2012; por um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, datando os factos de Setembro de 2014, numa pena de um ano e dez meses de prisão suspensa por igual período, por decisão transitada em julgado em Outubro de 2016.
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1.2. Não se provou, com relevância para a decisão:
- que o arguido tenha agredido fisicamente a ofendida de outras formas, para além das que foram dadas como assentes;
- outros comportamentos vitimando a ofendida, além dos que foram dadas como assentes;
- que a ofendida tenha ameaçado o arguido, fazendo-o sentir medo; que controlasse a vida social do arguido, acedendo ao telemóvel do mesmo sem permissão; que tenha trancado o arguido em casa, impedindo a sua liberdade de movimentos; que a ofendida tenha agredido fisicamente o arguido, para além do que foi dado como assente;
- que o arguido tenha sido agredido com um soco na face, desferido com uma soqueira, no dia 29/11/2021;
- que a ofendida e o seu namorado tenham pontapeado o arguido, nesse dia, quando ele se encontrava no chão,
- que as expressões “vou-te matar; vou-te dar dois tiros” fossem dirigidas à ofendida.
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Consigna-se que foram excluídos, do elenco dos factos não provados, os factos cuja classificação como não provados resulta naturalisticamente da prova de factos contrários ou com eles incompatíveis.
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1.3. Motivação
O Tribunal baseou-se, para concluir pelo juízo de provado associado aos factos dados como assentes, nas declarações da ofendida, que descreveu o relacionamento existente entre a mesma e o arguido, nomeadamente as agressões de que foi vítima, num discurso circunstanciado e emotivo, que obteve credibilidade.
A ofendida explicou que o início do relacionamento afectivo ocorreu em Setembro de 2018, tendo decorrido com normalidade durante o primeiro ano.
Mais esclareceu que, inicialmente, o arguido vivia com a avó, tendo, depois, arrendado uma casa, onde o casal permaneceu durante alguns meses. Apesar de reconhecer que, na maior parte das vezes, pernoitava com o arguido e partilhava com o mesmo refeições, a ofendida verbalizou não viver com o arguido, explicando que tinha um filho e que, por isso, vivia com o mesmo em casa da mãe dela. Tal circunstância – que implicava deslocações frequentes a casa da mãe e manutenção da maior parte dos pertences nesse local – não foi obstativa a que o Tribunal considerasse que arguido e ofendida viveram juntos, como se marido e esposa fossem, compreendendo-se que a verbalização da negação de tal facto pela ofendida seja sobretudo determinada pela necessidade de a mesma afirmar, no contexto do cumprimento dos seus deveres de mãe, que vivia com o seu filho não descurando a assistência prestada ao mesmo.
Note-se que o próprio arguido reconheceu que o mesmo viveu com a ofendida, como se fossem casados, durante período não inferior a um ano, quer em casa arrendada para o efeito, quer na casa da mãe dele e da avó dele.
O depoimento da ofendida foi corroborado, relativamente a episódios específicos, por BB e CC, que socorreram a ofendida, no dia 19 de Setembro de 2021; por DD, namorado da ofendida que a acompanhava no dia 29 de Novembro de 2021.
BB – testemunha sem qualquer ligação apurada ao arguido ou à ofendida – descreveu as circunstâncias em que visualizou a agressão do arguido à ofendida, junto ao posto de abastecimento de combustível da Repsol, em Setembro de 2021, tendo o seu depoimento sido corroborado pela pessoa que a acompanhava CC – testemunha igualmente sem qualquer ligação apurada ao arguido ou à ofendida, ambos afirmando que foram apresentar participação à esquadra, o que é corroborado pelo auto de fls. 4 e 5 do processo originariamente com o n.º 1274/21.9PBOER que foi apensado a estes autos.
DD, namorado da ofendida, descreveu a ocorrência do dia 29 de Novembro de 2021, em termos globalmente coincidentes com os apresentados por JJ.
Foi ainda importante a análise dos elementos clínicos juntos aos autos de fls. 58 e seguintes, especificamente referentes à assistência prestada à ofendida nos dias 22/06/2021 e 1/01/2020, bem como o documento junto pelo Hospital demandante com o pedido de indemnização civil. De tais documentos resulta que, em 22/06/2021, a ofendida apresentava tumefacção no hemitorax anterior, dolorosa, o que se mostra concordante com a descrição de uma agressão perpetrada pelo arguido nessa zona do corpo, feita pela ofendida; na madrugada de 1/01/2020, a ofendida apresentava contusão do ombro direito e fractura da clavícula direita, tendo sido admitida na urgência na véspera, o que se mostra concordante com a descrição que a ofendida faz do episódio de agressões que sofreu, perpetradas pelo arguido, no interior de um veículo, na sequência do qual a ofendida se projectou do veículo para a rua, para poder fugir. Os valores despendidos pelo Hospital com os tratamentos são descritos no documento de fls. 237 verso, apresentando-se coerentes com as observações clínicas e diagnósticos já analisados.
O arguido negou os factos que lhe são imputados, procurando convencer o Tribunal de que a vítima de comportamentos agressivos era ele próprio, sendo a ofendida a agressora.
O seu depoimento, porém, não logrou obter credibilidade, por ser incoerente e não concretamente circunstanciado e, sobretudo, por ser infirmado pelos meios de prova supra aludidos.
As imagens e vídeos apresentados pelo arguido, consubstanciados nos documentos de 1. a 40. referidos na contestação, ostentando lesões físicas e manifestações de sofrimento, não permitiram ao Tribunal concluir que a ofendida, alguma vez, tenha agredido o arguido, excepto no contexto de agressões sofridas pela mesma, ou que a ofendida o tenha fechado em alguma divisão da casa, impedindo-lhe o acesso ao exterior. Na verdade, não foi produzida prova adminicular circunstanciada que sustentasse tais factos alegados pelo arguido.
Especificamente no que ao sofrimento psicológico diz respeito, não ficou demonstrado que fosse atribuível a agressões da ofendida ou privações da liberdade encetadas pela mesma, sendo o mesmo compatível com a circunstância de a relação afectiva ter sofrido vários momentos de tensão e ruptura ou quase ruptura.
Na verdade, os referidos documentos digitais correspondem a fotografias, em que o arguido exibe lesões – não sendo possível ligar as mesmas a qualquer conduta da ofendida –, bem como vídeos, em que o arguido manifesta sofrimento e exibe lesões – mais uma vez não sendo possível atribuir as mesmas a acções da ofendida. Igualmente são fotografadas mensagens com insultos dirigidos ao arguido, sendo que a ofendida reconheceu ter, de facto, enviado mensagens insultuosas ao arguido e tratado o mesmo mal verbalmente, no contexto de desentendimentos e, sobretudo, nas alturas de ruptura, para conseguir que ele parasse de a contactar, contextualizando tais atitudes no âmbito das várias tentativas que fez para cessar a relação, que encontraram resistência obstinada por parte do arguido.
Do depoimento das testemunhas de defesa EE, FF, LL, resulta que o arguido desabafava sobre o sofrimento de que padecia no contexto da relação com a ofendida, o que se coaduna com a circunstância de tal relação ter sido pautada por elevada conflituosidade e por várias situações de crise e desencontro de vontades quanto à sua manutenção. Sendo as confidências do arguido necessariamente imbuídas da subjectividade com que o mesmo avaliava os factos e representando uma versão unilateral dos acontecimentos, compreende-se que estas testemunhas, com quem o arguido desabava e que se encontravam afectivamente ligadas ao mesmo, tivessem apresentado um discurso enviesado pela perspectiva do arguido como vítima no contexto relacional com a ofendida, não logrando, nessa parte, credibilidade.
Especificamente quanto aos episódios descritos por EE, FF, GG, HH, em que JJ assumia um comportamento incorrecto para com o arguido, foram os mesmos apresentados de forma pouco circunstanciada, o que deixou dúvidas ao Tribunal sobre o respectivo contexto, nomeadamente sobre a existência de algum comportamento prévio do arguido que contribuísse para a explicação da respectiva ocorrência. Deste modo, o Tribunal não ficou convencido da objectividade da narrativa apresentada, não aderindo à perspectiva destas testemunhas quanto à posição do arguido como vítima.
Reitera-se, porém, que a própria ofendida não negou que, durante o relacionamento, tenha assumido comportamentos injuriosos ou humilhantes, assumindo inclusive a autoria de mensagens, que o arguido carreou para os autos – e que não foi possível datar com precisão - que partilham tais características. Tal foi essencial para dar como provados os factos correspondentes.
Tais factos, porém, não tiveram a virtualidade de alterar a imagem da relação, em que a ofendida surge como vítima – reactiva e não impassível – de várias e reiteradas agressões do arguido, nos termos analisados supra. De facto, como já referido, a ofendida explicou que tentou, por várias vezes, terminar a relação, sobretudo ao longo de todo o ano de 2021, sendo que, perante as insistências do arguido, o tratou de forma incorrecta, para tentar que ele parasse de a contactar e procurar, exprimindo, desta forma, a sua revolta por não conseguir que a relação cessasse.
Quanto aos elementos subjectivos do crime, o Tribunal baseou-se em presunção natural extraída da aplicação das regras de experiência comum ao comportamento objectivo assumido pelo arguido e apurado nos termos supra.
Relativamente à situação sócio-económica do arguido, foram valoradas as suas declarações prestadas em audiência de julgamento, em conjugação com o relatório social.
Foi ainda analisado o certificado de registo criminal do arguido.
Quanto aos factos não provados, o juízo de não prova baseou-se na ausência de prova positiva aos mesmos atinente
(…)
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2.3. Do invocado erro de julgamento da matéria de facto
Entende o ora arguido/recorrente que o Tribunal a quo deveria ter dado como não provados os factos que fazem parte dos elencados na matéria de facto provada sob os itens 2., 3., 4., 10., 11., 20. e 23, porquanto não foi produzida prova suficiente desses factos em audiência, e no que tange aos factos não provados: “que a ofendida tenha ameaçado o arguido, fazendo-o sentir medo; que controlasse a vida social do arguido, acedendo ao telemóvel do mesmo sem permissão; que tenha trancado o arguido em casa, impedindo a sua liberdade de movimentos; que a ofendida tenha agredido fisicamente o arguido, para além do que foi dado como assente.”; “que o arguido tenha sido agredido com um soco na face, desferido com uma soqueira, no dia 29/11/2021”; e, “que a ofendida e o seu namorado tenham pontapeado o arguido, nesse dia, quando ele se encontrava no chão”, deveriam ter sido dado como provados.
O arguido/recorrente entende que foi mal julgada a matéria de facto.
Para tanto, invoca a existência de erro na avaliação das declarações da ofendida, do arguido e depoimentos das testemunhas BB e CC (relativos ao episódio ocorrido em 19-09-2021) e da testemunha DD, actual namorado da ofendida (relativo ao episódio ocorrido em 29-11-2021), e testemunhas de defesa EE, FF, GG, HH, EE, FF, XX e II.
Invoca, ainda, erro na interpretação das mensagens e videogramas juntos aos autos.
Ora, como é sabido, a garantia do duplo grau de jurisdição não pode pôr em causa o princípio da livre apreciação da prova do julgador.
Preceitua o art.º 127º do CPP que “... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Não obstante, o Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão na matéria factual3 fixada na 1ª instância, não pode pôr em causa a valoração efectuada nem estabelecer qualquer censura por ter dado prevalência a um elemento de prova em detrimento de outro, salvo se apurar um erro de julgamento no quadro de a prova produzida impuser uma factologia diferente.
Por outras palavras, trata-se, em suma, de colocar à apreciação do tribunal de recurso a aferição da conformidade ou desconformidade da decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados com a prova efectivamente produzida no processo, de acordo com as regras da experiência e da lógica, com os conhecimentos científicos, bem como com as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, com os princípios da prova proibida, da livre apreciação da prova e do in dúbio pro reo, assim como, com as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos.
Se dessa comparação resultar que o Tribunal a quo não podia ter concluído, como concluiu na consideração daqueles factos como provados ou como não provados, haverá erro de julgamento e, consequentemente, modificação da matéria de facto, em conformidade com o desacerto detectado.
Porém, se a convicção ainda puder ser objectivável de acordo com essas mesmas regras e a versão que o recorrente apresentar for meramente alternativa e igualmente possível, então, deverá manter-se a opção do julgador, porquanto tem o respaldo dos princípios da oralidade e da imediação da prova, da qual já não beneficia o Tribunal de recurso. Neste caso, já não haverá, nem erro de julgamento, nem possibilidade de alteração factual.
Dito de outro modo, é de relevar que, em Processo Penal, só o julgamento realizado na 1ª instância está em condições privilegiadas para fixar os factos, por beneficiar em pleno dos princípios da oralidade e imediação. Assim, e por princípio, o Tribunal da Relação só deve alterar os factos quando se aperceber de qualquer erro nítido de julgamento, ilogicidade ou utilização de provas proibidas que ali tenha ocorrido. Não se trata, pois, de um segundo julgamento para sopesar argumentos, quanto à solução ideal que decorreu do julgamento. Com efeito, só a 1ª instância analisa com imediação e oralidade os factos em julgamento – linguagem não verbal, reacções corporais, expressões e tantos outros fenómenos que escapam a uma simples gravação – pelo que, em princípio é esse o Tribunal mais apto, a bem conhecer dos factos.
Por outro lado, como referido, importa considerar que o recorrente tem o ónus de fazer referência às provas que impõem decisão diversa da recorrida (art.º 412º/3, b), C.P.P.), o que é bem diferente de se referir a provas que podem conduzir a uma decisão diferente.4
Dito de outro modo, a questão da mera opinião ante as provas produzidas não faz parte da dupla jurisdição em matéria de facto, pois o Tribunal de recurso não beneficia dos mesmos princípios da imediação e oralidade, de que beneficiou o Tribunal da 1ª instância, nem pode pôr questões ao arguido/ofendido/testemunhas sobre dúvidas que se lhe suscitem.
Ora, a questão nos autos é a de se optar por uma ou outra das versões dos factos, com base no princípio da livre apreciação da prova – art.º 127º C.P.P.
No caso dos autos, após audição das declarações e depoimentos em causa, não temos dúvidas em sufragar a posição da sentença sob censura.
Acresce dizer, ainda, que da leitura da sentença recorrida não resultam raciocínios ilógicos, com base em provas proibidas ou nitidamente errados, pelo que até é discutível se, neste espaço, o Tribunal da Relação deve ainda verificar do juízo feito em 1ª instância.
É que, na verdade, o que está em causa passa a ser tão-só a observância do princípio da livre apreciação da prova (art.º 127º C.P.P.). E, o juízo probatório feito na 1ª instância, só pode ser afastado perante provas que, forçosamente imponham decisão diversa (art.º 412º/3, b), C.P.P.).
In casu, é de considerar que os depoimentos das testemunhas referidas, das declarações da ofendida e do arguido, do que disseram, ou não disseram, e que o ora recorrente enuncia nas conclusões são meramente pontuais, lacónicas e genéricas.
E mais não é preciso desenvolver tal a evidência dos elementos probatórios dos autos. Basta apenas interpreta-los com a devida correcção.
No fundo, o recorrente limita-se a fazer a sua leitura subjectiva da valoração da prova, segundo o interesse que no âmbito do processo lhe mais convém, não atentado, numa perspectiva isenta e imparcial, naquilo que foi a prova produzida em audiência.
Deste modo, torna-se evidente e manifesto que a sua interpretação daquilo que deveria ter sido a valoração da prova pelo tribunal a quo não está em consonância com as regras processuais atinentes à descoberta da verdade material que deve nortear o Tribunal, sempre balizada pelo princípio da livre apreciação da prova.
Tanto assim é que olhando a fundamentação sobre a matéria de facto que acima se deixou transcrita constatamos que o tribunal a quo, analisando criticamente a prova na sua globalidade concluiu fundadamente, de acordo com as regras de experiência comum, em dar toda a credibilidade e coerência, às declarações da ofendida.
Em suma, resulta da leitura da sentença sob escrutínio não ser visível que o tribunal a quo se tenha afastado do cumprimento das regras e princípios de prova, particularmente dos relativos à apreciação da prova, ou seja, que tenha decidido de facto infundadamente.
A livre apreciação da prova significa ausência de critérios legais prefixados e, simultaneamente, “liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e susceptíveis de motivação e controlo5. Não se trata de uma convicção puramente subjectiva ou emocional, mas sim de uma convicção pessoal necessariamente objectivável e motivável. E essa objectivação encontra-se na motivação da matéria de facto, formada e exteriorizada de um modo que se mantém aceitável, sem desdouro para o esforço argumentativo do arguido/recorrente por entendimento contrário.
Termos em que se considera que o recurso não pode proceder nesta parte.
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2.4. Erro na aplicação do direito
No que tange a esta temática, no quadro das conclusões insertas na peça recursória, constata-se que o vício ora suscitado na sentença prolatada está dependente na procedência da impugnação de facto.
Basta atentar, no nº 109 do recurso ao expender: “109. O Tribunal a quo ao incorrer em vício de erro de julgamento (por error facti) incorreu, em consequência, em erro na aplicação do Direito (error juris).”.
Por consequência, improcedendo a impugnação de facto, como foi, necessariamente terá de improceder também nesta parte o erro na aplicação do direito.
Não obstante sempre se dirá o seguinte:
A argumentação do arguido/recorrente de que “o crime de violência doméstica não pode ser cometido reciprocamente” não é bem assim na nossa perspectiva.
Efectivamente, admitindo, embora, que tal entendimento do arguido/recorrente possa valer para aquelas situações em que se esteja perante actos agressivos recíprocos na mesma ocasião e com igual ou idêntica gravidade, e, não por serem recíprocos, mas, por o fundamento do ilícito penal (o bem jurídico) protegido com o crime de violência doméstica não estar a ser afectado, por não se se poder considerar estar a ser afectada a dignidade humana de um perante o outro, ambos capazes e portadores da mesma (in)dignidade, poder justificar que o direito não deva nesse confronto proteger qualquer dignidade, a verdade é que tal asserção não encontra essa razão de ser no complexo fáctico que se fixou na sentença recorrida.
A reciprocidade das agressões como forma de desconsideração da tipicidade, só serão de atender quando no curso dos episódios se desfaz a polaridade agressor-vítima, e assim a intenção de domínio e de humilhação de um deles sobre o outro”.6
Termos em que, também, não procede o recurso nesta parte.
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2.5. Pena acessória de proibição de contactos excessiva
No que tange a esta temática, argumenta o arguido/recorrente:
Aliás, quanto à pena acessória de proibição de contactos com a Ofendida, fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, tal pena é brutalmente desproporcional, porquanto desde 29-11-2021 (antes da instauração dos presentes autos), o Arguido nunca contactou, ou tentou contactar, a Ofendida. Acresce que a medida de coação proibição de contactos fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância veio a cessar em 03-10-2023 (por ter decorrido o prazo máximo), e o Arguido, ao longo destes meses, não contactou, nem tentou contactar a Ofendida. Por outra parte, o Arguido, por razões profissionais, tem que se deslocar ao Reino de Espanha, sendo-lhe comunicado pela sua entidade empregadora sem a antecedência para obter a necessária autorização pelo Tribunal e comunicação aos serviços de fiscalização, o que tem obrigado o Arguido a recusar tais deslocações com o “desagrado” da sua empregadora. Afigura-se, pois, que a fiscalização com meios à distância é absolutamente desproporcional.
Assim, o que se pretende apreciar é se a pena acessória de proibição de contactos com a ofendida, com recurso a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, é excessiva, não devendo, por isso, aplicar-se, ou, pelo menos, se se mantiver a sua aplicação, a execução da mesma não deverá ser com o recurso a meios técnicos de controlo à distância.
Vejamos:
Os n.ºs 4 e 5 do artigo 152.º do Código Penal preceituam:
4- Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5- A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.”.
A Lei n.º 129/2015, de 3 de Setembro aditou ao regime da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, o artigo 34.º- B, que preceitua:
1- A suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio.
2- O disposto no número anterior sobre as medidas de protecção é aplicável aos menores, nos casos previstos no n.º 2 do artigo 152.º do Código Penal.”
Com base na Lei n.º 129/2015, de 3 de Setembro, o Código Penal prevê a aplicação de penas acessórias como medidas de protecção à vítima, no contexto de suspensão da execução da pena de prisão. Ao aplicar as penas acessórias, o juiz deve considerar os mesmos critérios utilizados para determinar a sanção penal principal, levando em conta a gravidade da infracção e a culpa do agente. A aplicação das penas acessórias não é automática, mas baseia-se em critérios legais de necessidade, adequação e proporcionalidade.
A decisão de suspender a execução da pena de prisão, embora envolva riscos a serem ponderados, não contradiz a necessidade imperiosa de aplicação de uma pena acessória para evitar a recorrência de comportamentos que levaram à condenação por violência doméstica. Concordamos com a posição adoptada pelo Tribunal recorrido, considerando a pena acessória de proibição de contacto com a vítima como necessária, adequada e proporcional, não havendo qualquer excesso na sua aplicação. Portanto, o recurso é improcedente nesse aspecto.
Já no que tange à questão do controlo por meios técnicos afigura-se-nos que a situação é diferente.
Vejamos:
Após decidir pela aplicação da pena acessória de proibição de contacto com a vítima, é necessário agora avaliar a viabilidade de fiscalização dessa pena através do uso de meios técnicos de controle à distância.
Para tanto, é importante considerar o enquadramento legal em que se insere a questão da utilização de meios electrónicos para fiscalizar o cumprimento de penas acessórias aplicadas no contexto de violência doméstica.
Assim:
A Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro, com a redacção dada pela Lei nº 57/2021 de 16 de Agosto, nos seus artigos 35º e 36º dispõe:
«Artigo 35.º
Meios técnicos de controlo à distância
1 - O tribunal, com vista à aplicação das medidas e penas previstas nos artigos 52.º e 152.º do Código Penal, no artigo 281.º do Código de Processo Penal e no artigo 31.º da presente lei, deve, sempre que tal se mostre imprescindível para a proteção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
2 - O controlo à distância é efetuado, no respeito pela dignidade pessoal do arguido, por monitorização telemática posicional, ou outra tecnologia idónea, de acordo com os sistemas tecnológicos adequados.
3 - O controlo à distância cabe aos serviços de reinserção social e é executado em estreita articulação com os serviços de apoio à vítima, sem prejuízo do uso dos sistemas complementares de teleassistência referidos no n.º 6 do artigo 20.º
4 - Para efeitos do disposto no n.º 1, o juiz solicita prévia informação aos serviços encarregados do controlo à distância sobre a situação pessoal, familiar, laboral e social do arguido ou do agente.
5 - À revogação, alteração e extinção das medidas de afastamento fiscalizadas por meios técnicos de controlo à distância aplicam-se as regras previstas nos artigos 55.º a 57.º do Código Penal e nos artigos 212.º e 282.º do Código de Processo Penal.»
«Artigo 36.º
Consentimento
1 - A utilização dos meios técnicos de controlo à distância depende do consentimento do arguido ou do agente e, nos casos em que a sua utilização abranja a participação da vítima, depende igualmente do consentimento desta.
2 - A utilização dos meios técnicos de controlo à distância depende ainda do consentimento das pessoas que o devam prestar, nomeadamente das pessoas que vivam com o arguido ou o agente e das que possam ser afetadas pela permanência obrigatória do arguido ou do agente em determinado local.
3 - O consentimento do arguido ou do agente é prestado pessoalmente perante o juiz, na presença do defensor, e reduzido a auto.
4 - Sempre que a utilização dos meios técnicos de controlo à distância for requerida pelo arguido ou pelo agente, o consentimento considera-se prestado por simples declaração deste no requerimento.
5 - As vítimas e as pessoas referidas no n.º 2 prestam o seu consentimento aos serviços encarregados da execução dos meios técnicos de controlo à distância por simples declaração escrita, que o enviam posteriormente ao juiz.
6 - Os consentimentos previstos neste artigo são revogáveis a todo o tempo.
7 - Não se aplica o disposto nos números anteriores sempre que o juiz, de forma fundamentada, determine que a utilização de meios técnicos de controlo à distância é imprescindível para a proteção dos direitos da vítima.»
Por sua vez, a Lei nº 33/2010 de 02 de Setembro, na redacção dada pela Lei nº 94/2017 de 23 de Agosto, art.º 1º dispõe:
«Âmbito
A presente lei regula a utilização de meios técnicos de controlo à distância, adiante designados por vigilância electrónica, para fiscalização:
(…)
e) Da aplicação das medidas e penas previstas no artigo 35.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.».
E o seu art.º 7º:
«Decisão
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 213.º do Código de Processo Penal, a utilização de meios de vigilância electrónica é decidida por despacho do juiz, a requerimento do Ministério Público ou do arguido, durante a fase do inquérito, e oficiosamente ou a requerimento do arguido ou condenado, depois do inquérito.
2 - O juiz solicita prévia informação aos serviços de reinserção social sobre a situação pessoal, familiar, laboral e social do arguido ou condenado, e da sua compatibilidade com as exigências da vigilância electrónica e os sistemas tecnológicos a utilizar.
3 - A decisão prevista no n.º 1 é sempre precedida de audição do Ministério Público, do arguido ou condenado.
4 - A decisão especifica os locais e os períodos de tempo em que a vigilância electrónica é exercida e o modo como é efetuada, levando em conta, nomeadamente, o tempo de permanência na habitação e as autorizações de ausência estabelecidas na decisão de aplicação da medida ou da pena.
5 - A decisão que fixa a vigilância electrónica pode determinar que os serviços de reinserção social, quando suspeitem que uma ocorrência anómala seja passível de colocar em risco a vítima ou o queixoso do procedimento criminal, os informem de imediato.
6 - A decisão é comunicada ao arguido ou condenado e seu defensor, aos serviços de reinserção social e, quando aplicável, ao estabelecimento prisional onde aqueles se encontrem, bem como aos órgãos de polícia criminal competentes, para os efeitos previstos no n.º 3 do artigo 8.º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 12.º»
Por último, e no seu art.º 26º:
«Execução
1 - Para aplicação das medidas e penas referidas na alínea e) do artigo 1.º, a informação mencionada no n.º 2 do artigo 7.º da presente lei e no n.º 4 do artigo 35.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, deve ainda atender à compatibilidade da condição pessoal, familiar, laboral ou social da vítima com as exigências da vigilância electrónica.
2 - À utilização de meios técnicos de controlo à distância para fiscalização das medidas de afastamento é aplicável o regime previsto no artigo 36.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.
3 - A execução da medida ou pena inicia-se quando instalados todos os meios de vigilância electrónica junto da vítima e do arguido ou condenado.».
A aplicação da vigilância electrónica está rodeada por uma série de condições destinadas a assegurar o efectivo cumprimento das medidas aplicadas, sem negligenciar a necessidade de garantir o cumprimento de princípios constitucionais essenciais, tais como o respeito pela dignidade da pessoa humana e pelos direitos fundamentais do condenado, da vítima e de terceiros afectados pela vigilância em questão.
Neste quadro, o legislador não abdica da exigência de que a decisão de aplicação da vigilância electrónica seja fundamentada e proferida por um juiz, após a recolha das informações pertinentes ao caso concreto e a audição dos sujeitos por ela afectados, neste caso a ofendida e arguido.
Dito de outro modo, a aplicação dessa vigilância, enquanto medida que representa uma interferência na esfera privada daqueles afectados por ela, não ocorre de forma automática. Ela está sujeita, por um lado, à necessidade de protecção da vítima e, por outro lado, ao consentimento do condenado, da vítima e de terceiros afectados, excepto em casos excepcionais em que o juiz pode dispensar esse consentimento, desde que devidamente fundamentado, após um juízo de ponderação entre os interesses em conflito.
A utilização da vigilância electrónica, nos termos do quadro legal acima elencado, não é considerada o regime regra e tampouco é uma imposição.
Em todo o caso, permanece a exigência de um juízo positivo quanto à necessidade de utilização desses meios para a protecção da vítima, conforme claramente expresso no artigo 35º, n.º 1 da Lei nº 112/2009.
Portanto, é crucial analisar se os pressupostos necessários para a utilização de meios técnicos de controle à distância para a fiscalização do cumprimento da pena acessória de proibição de contactos com a vítima estão presentes in casu.
O Tribunal a quo fundamentou a aplicação da pena acessória de proibição de contacto com a ofendida, com vigilância electrónica, nos seguintes termos:
Relativamente às penas acessórias previstas no n.º 4 do artigo 152.º do Código Penal, uma vez que o crime teve uma componente de reiterada imposição de presença nos locais frequentados pela ofendida, considera-se necessário aplicar ao arguido a proibição de contactos com a ofendida pelo período de quatro anos e seis meses, de modo a garantir o efectivo distanciamento do arguido e a não repetição de actos de imposição da sua presença, causando perturbação da tranquilidade da ofendida.
A proibição de contactos com a ofendida inclui o afastamento da residência e do local de trabalho da mesma, mais se determinando que o seu cumprimento seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.”.
Da sua leitura facilmente se descortina que a decisão não se encontra devidamente fundamentada, in concreto, no que tange a à necessária imprescindibilidade de aplicação dos meios técnicos de controlo à distância, pois limita-se a referir a sua aplicação.
Mas mais:
Compulsados os autos, constata-se que não foi levada a cabo, pelo Tribunal recorrido, qualquer diligência para obtenção do consentimento do arguido e da vítima, relativamente à fiscalização da pena acessória de proibição de contactos com a ofendida, mediante meios técnicos de controlo à distância, conforme o exige o artigo 36.º, nºs 1, 3, 4 e 5 da Lei 112/2009, de 16 de Setembro.
Desde logo, quanto ao consentimento do condenado, não vemos, em nenhum momento da audiência que o mesmo tenha sido prestado.
Por outro lado, limita o legislador a casos especiais, a possibilidade de o juiz dispensar o consentimento (imprescindibilidade para protecção dos direitos da vítima), mas sempre mediante decisão fundamentada (a envolver, necessariamente, um juízo de ponderação entre os interesses em conflito), o que igualmente não vemos que, in casu, tenha ocorrido.
Assim, fica claro que não houve consentimento para a fiscalização através de meios técnicos de controle à distância, nem por parte do arguido, nem por parte da vítima, e tampouco foi proferida uma decisão pelo tribunal a quo devidamente fundamentada de dispensa do consentimento.
Pelo exposto, não é admissível manter-se a imposição dos meios electrónicos para a fiscalização do cumprimento da pena acessória ao arguido, sendo de proceder o recurso nesta parte.
*
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido, revogando-se a decisão do Tribunal a quo, no que concerne à imposição àquele dos meios electrónicos para fiscalização do cumprimento da pena acessória, mantendo-se, em tudo o demais, a sentença recorrida.
Sem custas.
Notifique nos termos legais.
*
Tribunal da Relação de Lisboa, 20 de Março de 2024
Processado por computador e revisto pelo primeiro signatário (art.º 94º, n.º 2 do C.P.P.)
(O Relator escreve de acordo com a antiga ortografia)
Alfredo Costa
Francisco Henriques
Ana Paula Grandvaux
_______________________________________________________
1. Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005
2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061
3. cfr. art.ºs 428º e 431º /b) do Código Processo Penal.
4. Neste sentido cfr. Ac. TRC datado de 12/9/2 012, proc.º 245/09, in www.dgsi.pt
5. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 2004, p. 202-3
6. Ac. do TRP, de 16.03.2022, in www.dgsi.pt