Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
96/14.8TVLSB.L1-8
Relator: RUI MANUEL PINHEIRO DE OLIVEIRA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
ACTO MÉDICO
FACTO ILÍCITO
RESPONSABILIDADE CIVIL
CONSENTIMENTO INFORMADO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Constitui motivo de rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão de facto a falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640.º, n.º 1 al. a) do CPC), por tal ser essencial para delimitar o objecto do recurso;
II – Na impugnação da decisão de facto, é ao impugnante que cumpre convencer o tribunal de recurso que a primeira instância violou as regras de direito probatório aquando da apreciação dos meios de prova, procedendo, ele próprio, a uma análise crítica da apreciação do tribunal a quo, demonstrando em que pontos o mesmo se afastou do juízo imposto pelos princípios e pelas regras legais, da racionalidade, da lógica ou da experiência comum, não bastando uma mera contraposição de meios de prova;
III – A alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados;
IV – Em abstrato, a prova por declarações deve merecer a mesma credibilidade das demais provas legalmente admissíveis e ser valorada nos termos previstos no art. 466.º, n.º 3, do CPC, isto é, deve ser, concretamente, apreciada pelo tribunal de forma livre;
V – Como elemento constitutivo do direito invocado pelo paciente, é a ele que cabe a demonstração da ilicitude, enquanto falta de cumprimento, por parte de quem demanda como civilmente responsável, das leges artis ajustadas à sua situação de doença, ou seja, do incumprimento dos deveres tuteladores do seu direito de saúde;
VI – A responsabilidade civil emergente da realização de acto médico, ainda que se prove a inexistência de erro ou má prática médica, pode radicar-se na violação do dever de informação do paciente relativamente aos riscos e aos danos eventualmente decorrentes da realização do acto médico e na violação do dever de recolha do seu consentimento;
VII – Recai sobre a instituição prestadora de cuidados de saúde e sobre o médico o ónus de provarem a existência de consentimento informado, por ser facto impeditivo do direito do paciente, com excepção dos casos urgentes, em que a não intervenção criaria riscos comprovados para o próprio paciente, nos quais o consentimento se pode ter por presumido.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes na 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
         
I – RELATÓRIO
1.1.  A [ Heinz ….]  intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra B , e C [ S….] , pedindo a sua condenação a «pagar solidariamente ao autor a quantia global de € 309.011,87, correspondendo €200.000,00 a compensação por danos não patrimoniais e o restante a danos patrimoniais presentes e futuros bem como a lucros cessantes ou perda de capacidade de ganho».
Pretendia efectivar a responsabilidade civil contratual dos RR. por danos decorrentes de erro médico e violação das leges artis no âmbito da intervenção cirúrgica à coluna lombar a que se submeteu, bem como da falta de informação e consentimento.
1.2. Os RR. contestaram conjuntamente, pronunciando-se pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido, por não estarem preenchidos os pressupostos legais da responsabilidade civil, já que foram cumpridos todos os deveres profissionais, tendo o 2.º R. actuado de acordo com os procedimentos que lhe eram exigíveis e as leges artis.
Requereram a intervenção principal provocada das respetivas seguradoras, Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., e AGEAS Seguros – Companhia de Seguros, S.A.,
1.3. As referidas seguradoras foram admitidas a intervir no autos e contestaram,  ambas pugnando pela improcedência da acção e pela sua consequente absolvição do pedido.
1.4. Foi realizada a audiência prévia, onde foi saneada a causa, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova e, após realização de perícia médico-legal, procedeu-se à audiência final e foi proferida sentença, que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu os RR. e as Intervenientes do pedido e condenou o A. nas custas da acção.
1.5. Inconformado apelou o A., pedindo que tal sentença seja revogada e considerada procedente a sua pretensão e os valores indemnizatórios pedidos, formulando, para tanto, as seguintes conclusões:
«1ª. Esta acção entrou em Juízo no dia 16 de Janeiro de 2014. A audiência de discussão e julgamento iniciou-se no dia 02 de Outubro de 2019, ou seja, 5 anos e 9 meses depois. A penúltima sessão da audiência decorreu no dia 12 de Novembro de 2019. A última sessão foi em 29 de Setembro de 2023, ou seja, decorreram 3 anos e 10 meses entre a penúltima e a última sessões. Com o propósito de salvaguardar a administração da Justiça, e os interesses em presença, o autor decidiu expor a situação ao Senhor Presidente do Tribunal da Comarca de Lisboa e, meses depois, ao Conselho Superior da Magistratura. Decorridos poucos dias foi o mandatário do autor notificado de um despacho que reproduzimos atrás (em I-Ponto Prévio) subtilmente inteligente – em nosso entender - do Senhor vogal Tiago da Silva Moura Pires Pereira o qual, mencionando como já marcada a última sessão da audiência, previu que a sentença seria proferida ainda em Outubro. Na verdade, a sentença que agora se impugna foi proferida em 7 dias após a última sessão de julgamento, e notificada às partes em 10 dias, segundo o Citius.
2ª. A sentença tem vários erros omissãos e contradições. Anteriormente analisámo-los com algum pormenor, pelo que nestas conclusões daremos nota apenas de alguns. Assim, logo no ponto 1 afirma-se que a consulta de neurocirurgia foi no dia 2 de Agosto de 2011, quando foi no dia 06 desse mês. No dia 2 o autor fez a Ressonância Magnética que mostrou ao médico durante a única consulta que houve e que decorreu no Hospital Particular do Algarve. A Ressonância fora requerida pela Drª M ….. DOC e foi feita em Albufeira ( A R de Albufeira) e não pelo cirurgião e 2º réu. O autor mostrou essa Ressonância Magnética ao 2º réu e este fez 4 fotografias com o telemóvel. Foi com estas fotografias que a 1ª cirurgia foi realizada. Os réus confessariam na 6ª sessão da audiência que não tinham a Ressonância Magnética e requereram a junção dessas fotografias recuperadas do telemóvel do 2º réu. Dizem-no também na Contestação. Nessa única consulta do dia 06 de Agosto, o 2º réu manuscreveria ( doc 2 junto à PI) os actos a praticar na cirurgia à coluna lombar que marcou logo para dia 9 de Agosto,( três dias depois ) no Hospital (...). Os actos seriam Foraminectomia. Discectomia e Recalibração do Canal Lombar em L3-L4 e L4-L5. Puro jargão médico, como se vê. Dessa folha consta também que o internamento seria dia 9 de Agosto, a hora do internamento seria às 12h00 e a cirurgia às 17h00. Em Alemão, pode ver-se a pesquisa em dicionário por parte do autor, no intuito de tentar compreender as termos utlizados. A sentença segue literal e erradamente aquilo que o 2º réu disse categoricamente nas declarações de parte e não os vários documentos juntos aos autos e até a Contestação, quando afirma que o internamento foi no dia 8 de Agosto. Não foi.
3ª. Por não ter entendido a parca informação prestada, o autor, quando verificou que no orçamento apresentado no momento do internamento (11h52 do dia 9/08/2011) constavam actos médicos diferentes daqueles que o médico manuscrevera, a saber, realinhamento do canal estreito e extirpação de hérnia lombar manifestou a sua estranheza e foi tranquilizado pela recepcionista. (A sentença considera isto como não provado). A cirurgia parece ter começado apenas às 18h30 e teria terminado às 21h30. Foi feita com raquianestesia-( e não cirurgia geral) como expressamente se diz na sentença. O que não conseguimos entender é o facto de a sentença omitir as horas da cirurgia do dia 10 efectuada com anestesia geral, de acordo com vários documentos juntos ao processo. Esta cirurgia decorreu entre as 20h25 ( anestesia) e as 22h25 ( saída do bloco). Este facto é relevantíssimo, como veremos.
4ª. Como é óbvio, a 2ª cirurgia ( dia 10/8/2011) teve o propósito de corrigir erros da 1ª do dia anterior (9/8/2011). Como consta abundantemente do processo, em peritagens e relatórios médicos, designadamente, o autor nunca recuperou do bloqueio anestésico, isto é, perdeu a sensibilidade e o movimento dos membros inferiores bem como o controlo dos esfíncteres. Pelo que a Senhora enfermeira anotou no Turno da Noite, a situação determinou que o Dr. C ( 2º réu) fosse contactado telefonicamente “ que informou que a assistente virá observar o doente. A assistente foi a Drª C… que depôs como testemunha (!). Na verdade ela visitaria o doente apenas às 12h00 do dia 10 e, de acordo com o mesmo diário hospitalar, a Senhora enfermeira N …. escreveria às 12h04 que o doente mantém alterações da sensibilidade, mais especificamente ao nível do terço dos membros inferiores. Ás 14h56 escreveria: “ “teve vm do Dr. C que o observou. Ausentou-se para realizar RMN.” Tinham já decorrido 16 horas após o final da 1ª cirurgia. Mas, como já vimos, entre o final da 1ª cirurgia e o início da 2ª decorreram 23 horas.
5ª. Esse foi um dos principais erros terapêuticos que causaram o infortúnio do autor. De acordo com o Clinical Report assinado pelo 2º réu no dia 13 de Agosto, para acompanhar o autor na viagem para Frankfurt no dia 14, a fim de ser internado no BGU, a Ressonância Magnática realizada na tarde do dia 10 revelaria possível pequeno hematoma em L3-L4, eventual compressão associada através de bolhas de ar e incompleta descompressão ao nível de L4-L5. Claro que o 2º réu tenta sempre minimizar a sitação clínica. O mesmo faz a sua equipa, obviamente. Mas, o 2º réu também escreveu, por exigência da Lufthansa, numa “Information Sheet For Passengers Requiring Medical Clearance: subordinado a Diagnosis, manuscreveu: Lumbar Caudal Syndrome post Discal Lumbar surgery; e, subordinado a Current Symptoms and Severity, manuscreveu: “Severe Distal Paraparesis, Sphincter impairment”. Dia 14 de Agosto de 2011. ( Este documento cuja junção se requer por não figurar no processo e só agora o autor conseguiu obter a diligências do BGU de Frankfurt). Mas ainda assim, segundo a própria sentença (pg 26) a enfermeira instrumentista Ana …., revelou em audiência ter participado nas duas intervenções cirúrgicas relatadas nos presentes autos, em 9 e 10 de Agosto de 2011 sinalizando recordar-se das mesmas por, precisamente, serem raras as situações em que se justifica a realização da 2ª operação; (...); em todo o caso, a testemunha assumiu a existência / verificação de um pequeno hematoma... acarretando a necessidade da 2ªcirurgia.
6ª O hematoma não era assim tão pequeno para outros médicos cujos relatórios a sentença também transcreve. Num relatório extraordinário quanto à forma, estrutura e conteúdo, e que está nos autos, da autoria do Prof de anestesiologia H….. pode ler-se: “ do ponto de vista do perito anestesista, o facto de o diagnóstico e a terapia do hematoma espinhal terem acontecido com grande atraso, ultrapassando o intervalo máximo de 6-8 horas, foi claramente um erro de tratamento.” Trata-se de uma realidade cientificamente conhecida. O nosso INML, cujo relatório é citado no acórdão do TRL de 16.12.2015,( proc nº 1490/09.ITAPTM.L1.3), relatado pelo Senhor Desembargador Rui Gonçalves diz, segundo o acórdao: “ A perícia do INML é clara ao afirmar que, quanto mais tempo decorre entre o diagnóstico e o tratamento, maior é a probabilidade de lesões neurológicas. E vai mais longe ao indicar que a remoção do hematoma deverá ocorrer num intervalo inferior a 6-8 horas.” ( Sumário do acórdão, ponto XXXIX).
7ª. Excelentíssimos Desembargadores: este caso, de grande importância na perspectiva dos valores da Justiça, move-se no centro de um dos maiores problemas do nosso Serviço Nacional de Saúde e que raramente tem sido referido com coragem e clareza. O senhor Dr. C, ( 2º réu) é médico no Serviço Nacional de Saúde, Hospital Egas Moniz, mais concretamente. Mas, como vimos, dá consultas e opera em vários hospitais privados. Os quais pagam à peça, como é sabido. Neste caso, as cirurgias decorreram com toda a sua equipa do Egas Moniz: a médica assistente C …., a médica anestesista IM … e a enfermeira instrumentista Ana …. a qual, segundo a própria sentença não negou trabalhar para o Dr. C em vários hospitais privados. Daqui decorre uma evidência. O 2º réu teve outros compromissos noutro qualquer Hospital, quiçá no seu empregador, o Egas Moniz. Daí ter respondido ao contacto telefónico do enfermeiro na noite do dia 9 que a médica assistente visitaria o doente na manhã seguinte. Daí também só ter tido tempo para visitar o doente às 14h56, do dia seguinte, isto é, passadas 16 horas sobre o final da 1ª cirurgia. E só então foi realizada a Ressonâcia Magnética e detectado o hematoma e as demais anomalias ou complicações, como lhe chama a sentença.
8ª. O autor teve alta a seu pedido do Hospital (...) ( 1º réu) no dia 14 e seguiu em estado muito grave para Frankfurt, Hospital BGU onde esteve internado até 19 de Novembro de 2011, isto é, 3 meses e 5 dias. Os relatórios juntos aos autos, designadamente do Dr. K... Shoppe referem que a força de vontade, a coragem e o desempenho excepcional do autor foram muito importantes naquilo que conseguiu ecuperar. Ainda assim, em Maio de 2012, A Região de Saúde do Algarve atribuiu ao autor uma incapacidade de 86%. ( nº 20 dos factos Provados). Anos depois, a pedido do Tribunal, a mesma Região de Saúde ordenaria que se fizesse exame neurológico ao autor, tendo sido formalizado um relatório médico-forense do qual a sentença reproduz alguns trechos nos nº 30,31 e 32 dos Factos Provados. Estávamos em 2017, seis anos após as cirurgias..No nº 30 dos factos provados diz a sentença que “Em 12 de Outubro de 2018 o autor apresentava marcha claudicante com recurso a ajudas técnicas”…A conclusão da análise médico-forense de avaliação do dano, como de outos relatórios médicos é a seguinte: conclusão: lesão de nervos periféricos / plexo lombo sagrado bilateralmente / predomínio esquerdo). Este relatório, assinado pelo ortopedista CP:::, contém também uma análise do nexo de causalidade de um rigor e de uma exposição e assertividade extaraordinárias, A sentença reproduz esta parte do relatório (pg 9) apesar de, noutro lugar, a minimizar pelo facto de o médico ser ortopedista! Em todo o caso, o nº 19 dos Factos Provados refere expressamente que “ Ao longo do tempo, existiu alguma melhoria da sua força muscular, mas o Autor manteve défice motor e sensitivo, e incontinência urinária e fecal, bem como impotência sexual, apesar dos tratamentos realizados.”
9ª. Em Agosto de 2011, o autor tinha 62 anos de idade e era um homem de constituição robusta, apesar das queixas que o levaram a procurar ajuda médica, como se escreve nos nºs 24 e 25 dos Factos Provados. Hoje, tem 75 anos de idade. Mas não é pela idade que a sua marcha é claudicante mesmo com a ajuda de canadianas; a sua força muscular é diminuta, continua a usar fraldas e é impotente sexualmente. Tudo isto, como vimos, aconteceu em virtude da 1ª cirurgia e assim se mantém, apesar de ter havido alguma recuperação em virtude da sua grande coragem e força de vontade, bem como dos tratamentos de fisioterapia que fez no Hospital ou Clínica BGU em Frankfurt. Como consequência disso o “ Autor sente revolta, tristeza e frustração e a sua autoestima e capacidade de relacionamento social são hoje muito inferiores ao que já foram” ( nºs 33 e 34 dos Factos Provados).
10ª. A sentença dá estes e outros factos como provados em 34 números. A partir do nº 35 enumera os factos provados dos articulados dos réus e das seguradoras intervenientes. Como poderá verificar-se, muitos deles estão em frontal contradição com os do autor ( ?). Mas é nos Factos não Provados ( de I a XXIX ) que as contradições e incoerências são particularmente evidentes.
No que à matéria de facto diz respeito, o grande erro da sentença verifica-se no propósito de tentar cotejar, em bloco, as provas testemunhais do autor e dos réus, como sucede a páginas 16, último parágrafo e noutros momentos. A sentença aprecia de forma extraordinariamente positiva as declarações de parte do 2º réu, seguindo até os erros manifestos em que ele incorre, como na data do internamento ( dia 9 e não dia 8), data da única consulta ( uns dez dias antes diz o 2º réu). Na verdade foi três dias antes do internamento, como resulta do seu próprio manuscrito e até da sua Contestação, como anteriormente ficou demonstrado.
11ª. No entanto, lê-se no 3º parágrafo da página 34 que em relação a factos que são favoráveis à procedência da acção, o juiz não pode ficar convencido apenas com o depoimento desse mesmo depoente…. A única parte que depôs foi o 2º réu e não o autor. Com vimos e é notório em muitos outros pontos, as declarações de parte deste réu “ robustas, convincentes e muito elucidativas”( pagina 32 alinea g)) convenceram efectivamente o Juíz até no absurdo de aceitar, contra todas as evidências, que o autor de nacionalidade alemã, tinha o domínio da língua portuguesa ( página 35, último parágrafo), mas sobretudo ao aceitar de braços abertos que a causa para a paresia do autor, após a 1º cirurgia, deveu-se a “neurotoxidade da raquianestesia” como o 2º réu defendeu, por exclusão de partes ( página 36 ) e que, num discurso qualificado e coerente, transmitindo uma provável causa com suporte firme junto da ciência médica. Não há no processo um único documento que demonstre que uma eventual neurotoxicidade da raquianestesia possa causar uma lesão de nervos periféricos do complexo lombo / sagrado. Não há um único estudo médico que o afirme. Não consta do processo e não existe na verdade. Uma lesão permanente, como se comprova e até a sentença reconhece de que o autor sofre, é impossível ser causada por uma reacção neurotóxica às drogas usadas na raquianestesia. Pode aceitar-se uma eventual reacção ocasional e passageira, mas não uma lesão permanente. Seria uma verdadeira novidade médica que esta sentença consagraria. Terminaremos, acrescentando que as declarações de parte do 2º réu ocorreram na última sessão da audiência do dia 29 de Setembro de 2023. Transcrevem-se, anteriormente, pequenos trechos.
12ª As principais testemunhas dos réus, especialmente do 2º réu, fazem parte da sua equipa no Hospital Egas Moniz. A testemunha C…, médica assistente em ambas as cirurgias, a testemunha médica anestesista IM… de que já falámos e a enfermeira instrumentista Ana … cujo depoimento foi transcrito parcialmente, de acordo com os termos da própria sentença. Apesar de não serem parte no processo, é evidente que têm um interesse no desfecho da causa muito semelhante ao do 2º réu. É a sua actuação que aqui também se discute. Com referência à médica anestesista IM… é o próprio 2º réu que a implica com a sua causa provável ou por exclusão de partes, como também afirma até no Clinical Report. Assim sendo, é verdadeiramente espantoso que os seus depoimentos mereçam tanto apreço por parte do Meritíssimo Juiz.
13ª. O ponto III da sentença intitula-se Fundamentação de direito e subsunção jurídica. A sentença, depois de variadíssimas citações designadamente de obras que tratam especificamente desta matéria, acaba por aceitar que a presunção estabelecida no nº 1 do artº 799º do Código Civil também é aplicável à responsabilidade contratual. Das muitas citações que a sentença transcreve, parece-nos muito elucidativa e adequada ao caso presente a do acórdão do STJ de 17.12.2002, relatada pelo Senhor Conselheiro Afonso de Melo ( www.dgsi.pt ):
“ O médico, e é esta actividade profissional que importa considerar aqui, põe à disposição do cliente a sua técnica e experiência destinada a obter um resultado que se afigura provável.
Para isso compromete-se a proceder com a diligência devida.
Esta conduta diligente é assim objecto da obrigação de meios que assume. Quando o cliente se queixa que o médico procedeu sem a diligência devida, isto é, com culpa, está a imputar-lhe um cumprimento defeituoso.
Não se vê assim qualquer razão para não fazer incidir sobre o médico a presunção de culpa estabelecida no artº 799º nº 1 do Código Civil.”
O que é equitativo pois a facilidade de prova neste domínio está do lado do médico”
14ª. Por esta transcrição e outras anteriores e também pelo texto da sentença que se segue imediatamente, parece que desta vez, estaríamos de acordo. Mas não. Logo a seguir, num só parágrafo se confirma e desmente o que ficara escrito. Assim:
“ Por conseguinte, surge-nos como adquirido que o ónus de prova da diligência recairá sobre o médico, nos termos gerais de direito. ( cfr citado artigo 799º); mas que apenas relevará caso o lesado logre produzir prova sobre a existência do vínculo contratual e dos factos demonstrativos do incumprimento ou do cumprimento defeituoso por parte do médico (ilicitude) nos termos gerais e para efeitos do preceituado no artigo 342º nº 1 do Código Civil”.
Como se vê, num só parágrafo, afirma-se a doutrina do acórdão (… o ónus da prova da diligência recairá sobre o médico… ) e, logo a seguir “revoga-se” a presunção do artigo 799º, nº 1 do Código Civil. O médico terá de provar que agiu com a diligência devida no cumprimento da sua obrigação.
Agir com a diligência legalmente exigível é agir de acordo com as leges artis, de acordo com a expressão comum. Como pode o doente provar que o médico não agiu de acordo com as leges artis? Para além de esbarrarmos num facto negativo, que conhecimentos tem o doente das chamadas leges artis para demonstrar que não foram cumpridas? Ora a sentença imputa ao doente a prova desse facto negativo também na página seguinte (43, 4º parágrafo):
“Caberia ao Autor alegar e provar a objectiva desconformidade entre os actos praticados e as leges artis …
E logo no parágrafo seguinte se acrescenta:
“ assim como lhe incumbia demonstrar o nexo de causalidade entre esses actos e os danos para além desses mesmos danos. Já quanto à culpa (…), haverá que considerar a presunção de culpa resultante do nº 1 do Código Civil ( “incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua”).
15. Para o acórdão como para a lei, a culpa integra-se e manifesta-se no incumprimento ou no cumprimento defeituoso. Para o Senhor Juiz, é uma entidade etérea que só pode ser invocada após o doente demonstrar o incumprimento ou o cumprimento defeituoso, ou seja, que não foram cumpridas as leges artis.
No caso presente, o objecto do contrato entre o autor e o réu era a realização de uma cirurgia à coluna. Mas houve duas. Porque a primeira deixou o autor com paresia severa dos membros inferiores, bem como incapacidade para controlar os esfíncteres em virtude de um hematoma e de bolhas de ar e descompressão incompleta em L4-L5 segundo o próprio 2º réu afirma no seu Clinical Report bem como em todos os outros relatórios médicos e peritagens. A 2ª cirurgia, como vimos, foi muito tarde, por indisponibilidade do médico, que só a levou a cabo passadas 23 horas quando a remoção do hematoma deve ser feita no prazo máximo de 6-8 horas, como vimos. Tudo isto está perfeitamente demonstrado no processo e até é considerado provado pela sentença. Essa demora determinou que a lesão dos nervos periféricos / plexo lombar sagrado tenha tornando definitiva a incapacidade do autor, reconhecida oficialmente e graduada em 86%, em 2012 pela Região de Saúde do Algarve.
16. O autor tinha 62 anos à data das cirurgias e era um homem de constituição robusta apesar das queixas que o levaram a procurar ajuda médica ( nºs 24 e 25 dos Factos Provados). Entrou pelo seu pé nas instalações do 1º réu Hospital (...) no dia 9 de Agosto de 2011, às 11h52 para ser operado à coluna lombar às 17h00, como lhe disse e escreveu o 2º réu no manuscrito do dia 6 de Agosto, na consulta (única) que ocorreu no Hospital Particular do Algarve. O 2º réu, pelo que escreveu e pelo que marcou de imediato “ vendeu” uma cirurgia à coluna para 3 dias depois. Que nos seja relevada a expressão, mas corresponde à realidade no caso presente. Pelo que já ficou dito e ainda pelo que se dá como provado no nº 19 ou seja, “ Ao longo do tempo, existiu alguma melhoria da sua força muscular, mas o Autor manteve défice motor e sensitivo, e incontinência urinária e fecal, bem como impotência sexual, apesar dos tratamentos realizados”, poderá subsistir alguma dúvida sobre o nexo de causalidade entre a 1ª cirurgia e os danos?
17. Mas continuemos a indagar, seguindo a própria sentença, tentando evitar longas citações. O nº 32 dos Factos Provados transcreve, do relatório, assinado pelo Dr. CP::: do gabinete Médico-Legal e Forense do Barlavento Algarvio: “
1. Os elementos disponíveis e constantes do processo permitem admitir a existência de nexo de causalidade entre o traumatismo ( cirurgia da coluna) e o dano ( dano neurológico do plexo lombo sagrado) atendendo a que se confirmam os critérios necessários para o seu estabelecimento: existe a adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões é adequado a uma etiologia traumática, o tipo de traumatismo é adequado a produzir este tipo de lesões, se exclui a existência de uma causa estranha relativamente ao traumatismo e se exclui a pré-existência do dano corporal”. (…)
O Senhor Juíz procede à citação, como dissemos, mas desvaloriza-a mais á frente, pelo facto de o seu autor ser um médico ortopedista Mas a sentença também cita o Professor Galvão Teles (pag. 58). Diz-nos, como é sabido, que importa considerar antes de tudo, toda e qualquer condição do prejuízo.(…) Mas uma condição deixará de ser uma causa adequada tornando-se, pois, juridicamente indiferente, desde que seja irrelevante para a produção do dano, segundo as regras da experiência.
(…).
Parece-nos, com todo o respeito, que a formulação do Dr. CP::: está perfeitamente de acordo com a posição do saudoso Professor Inocência Galvão Teles.
Por isso nada mais diremos sobre o nexo de causalidade face ao que o processo demonstra.
18. Consideramos evidente que, no caso presente não houve consentimento informado relevante, nem poderia ter havido. A sentença entende, uma vez mais, que competia ao autor provar esse facto negativo ou seja a falta de informação, como se afirma na página 61, 5º parágrafo:
“ Na situação debatida ficou por demonstrar a falta de informação ao paciente por banda do 2º réu (…).
Há hoje muita doutrina e Jurisprudência sobre este assunto. Importante parece-nos o acórdão do STJ de 2-6-2015 ( proc nº 1263/06.3TVPRT.P1.S1.) relatado pela Senhora Conselheira Maria Clara Sottomayor, cujo sumário ficou transcrito anteriormente e cujo ponto ponto VI diz: “ O ónus da prova do consentimento hipotético, doutrina oriunda da jurisprudência alemã, pertence ao médico e obedece aos seguintes requisitos: (…).
Trata-se, no caso do acórdão, do consentimento hipotético, como a Senhora Conselheira esclarece. A informação que o médico deve fornecer ao doente para poder obter um consentimento informado vem detalhadamente exposta em múltiplos diplomas e lugares. A própria sentença transcreve a alínea a) da Lei de bases da Saúde ( Lei 48/90 de 24 de Agosto, 2ª versão, como refere. Não é a 2ª versão porque a Lei 27/2002 não tocou nesta questão apesar de ter alterado a Lei de Bases da Saúde, entretanto já revogada. A base XIV estabelecia: “os doentes têm o direito de serem informados sobre a sua situação, as alternativas possíveis de tratamento e a evolução provável do seu estado. Também é transcrito o arº 157º do Código Penal e ainda um trecho do Relatório Final da Entidade Reguladora da Saúde de Maio de 2009, onde se afirma que a linguagem utilizada na informação deve ser acessível, e não técnica, com todos os dados para o paciente concreto. Exactamente o contrário do que aconteceu neste caso, como vimos. Como é sabido a Lei de Bases actualmente em vigor á a Lei 95/2019 de 4 de Setembro. Os elementos indispensáveis que a informação deve conter vêm descritos também na chamada Convenção de Oviedo ou Convenção sobre os Direitos do Homem e da Biomedicina ( CEDHBioMed), de 1997, na Carta Dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada em 2007 ( 7 de Dezembro) e até na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos ( artº 6º nº 1). A norma nº 15/2013 de 3 de Outubro) dispunha no seu nº 1: O consentimento informado deve ser inscrito no formulário disponível no sítio desta Direcção Geral. ( Anexo I). Esta norma - dir-se-á- é posterior aos actos cirúrgicos aqui em questão. É verdade. Mas já na Circular Informativa DGS 15/DSPS de 23/3/98 se recomendava a utilização de formulários escritos quando estejam em curso intervenções médicas que impliquem um risco sério para o doente.”
19. O Código Deontológico da Ordem dos Médicos (CDOM) foi aprovado pelo regulamento nº 14/2009 de 13 de Janeiro. A informação que o médico deve prestar ao doente está bem clara no artº 44º e o Consentimento no artigo seguinte, 45º. O doente tem o direito a receber e o médico o dever de prestar o esclarecimento sobre o diagnóstico, a terapêutica e o prognóstico da sua doença diz o nº 1 do artº 44º. E os 4 números seguintes são lineares sobre o modo, a amplitude, o tempo, e a forma do esclarecimento. E o artº 45º determina até que entre o esclarecimento e o consentimento deverá existir um intervalo de tempo que permita ao doente reflectir e aconselhar-se ( nº 2). Enfim, diremos apenas que o esclarecimento ou informação é um dever do médico e faz parte integrante de todo o processo que levará à prática do acto médico: cirurgia com muitos riscos no caso presente, É óbvio que deve ser o médico a provar que este seu dever foi cumprido de forma e modo adequados, com linguagem acessível e clara e com tempo para que o doente possa reflectir e aconselhar-se.
Por isso não é o doente que deverá demonstar que não houve essa informação adequada, mas sim o médico que deve provar que cumpriu bem esse dever.
No caso presente, como vimos, não houve o cumprimento desse dever pelo médico, nem poderia ter havido. Só houve uma consulta ( dia 6 de Agosto) no Algarve, onde foram logo marcados o internamento e a cirurgia (num manuscrito de puro jargão médico sobre os actos médicos a executar) para o 3º dia posterior ( dia 9), sendo que entre o internamento ( 11h52) e a cirurgia mediariam 5 horas. Terá sido um pouco mais ao que decorre dos documentos. Mas o doente nunca mais viu o médico a não ser no bloco operatório. Não houve consulta de anestesiologia nem de cardiologia, tendo o 2º réu dito que tudo desapareceu com um ataque informático. Como também declarou não saber quem foi o cardiologista que viu o autor nesse intervalo, concluímos nós que o ataque informático também eliminou pessoas.
21. Os danos, no valor global de 309.011,87 compreendem 109.011,87 de danos patrimoniais presentes e futuros e €200,000,00 de danos de natureza não patrimonial. Os patrimoniais estão demonstrados documentalmente, ao que pensamos. Os danos não patrimoniais constituem uma compensação equitativa mas modesta para aquilo que o autor sofreu e sofre em virtude da incúria, da negligencia e da imperícia dos réus.
Por tudo quanto ficou exposto, considerando as inúmeros contradições factuais e jurídicas e sobretudo a oposição entre os fundamentos e a decisão, esta sentença é nula. Em todo o caso, é de elementar justiça que ela seja revogada, considerando-se procedente a pretensão do autor e os valores da indemnização pedida».
1.6. Já após as alegações, mas ainda dentro do para legal das mesmas, o A. apresentou requerimento avulso, com o seguinte teor:
«1- As alegações apresentadas no passado dia 9 de Novembro seguiram sem que, por lapso, se tenham enunciado, no pedido, as normas jurídicas violadas, apesar de constarem em diversos números do texto e das conclusões.
2- Neste sentido requer-se que seja aditado o seguinte: a norma que determina a nulidade é a línea c) do artº 615º do Código do Processo Civil, e as normas jurídicas que a sentença viola são, entre outras, a presunção do artº 799º, nº 1, 342º, 1 e 2 , 344º, nº 1 e 513º do Código Civil».
1.7. Os RR contra-alegaram, defendendo que «não existindo quaisquer contradições factuais e jurídicas nem oposição entre os fundamentos e a decisão, antes pelo contrário se revelando a sentença proferida pelo tribunal de 1ª instância conforme os factos provados e o direito, deverá ser julgado improcedente o recurso sub judice e confirmada a sentença sob recurso», sem, no entanto, formularem conclusões.
1.8. A interveniente Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., também apresentou contra-alegações, pronunciando-se no sentido de ser confirmada a sentença recorrida, alinhando as seguintes conclusões:
«A. Cingindo-se o objecto do recurso às conclusões formuladas pelo Apelante – que, no caso, não contemplam todos os fundamentos de discordância com a Sentença ora recorrida enunciadas nas suas alegações – este versará apenas sobre estas, excluindo-se tudo o mais alegado pelo Apelante nas suas alegações, ao qual não se irá responder.
B. Embora não o faça expressamente, é possível retirar das conclusões formuladas pelo Apelante, uma verdadeira impugnação da decisão da matéria de facto (provada e não provada).
C. O Apelante, para além de não incluir a total impugnação da decisão da matéria de facto nas suas conclusões, também não especifica (i) quais os concretos pontos de facto que considerada incorrectamente julgados (ii) quais os concretos meios probatórios constantes do processo que impunham decisão diversa sobre esses pontos de facto e ainda (iii) qual o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação, pelo que não cumpre os requisitos legalmente previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, e, como tal, será de rejeitar liminarmente esta parte do seu recurso.
D. Deve ser julgada inadmissível, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 651.º do Código de Processo Civil, a junção do novo documento pelo Apelante às suas alegações e, consequentemente, ordenado o seu desentranhamento, uma vez que aquele não justifica porque é que a sua junção se tornou necessária em virtude da douta Sentença.
E. Resulta claro que na Sentença ora recorrida é feita uma apreciação da verificação dos pressupostos da responsabilidade civil alegada pelo Apelante, concluindo o Tribunal a quo, atendendo à prova produzida nos autos, e à matéria dada como provada, pela não verificação de um facto ilícito que possa ser imputado aos Apelados, decidindo (e bem) pela total improcedência do peticionado pelo Apelante.
F. Não se verifica, assim, qualquer oposição entre os fundamentos da sentença e a sua decisão que possa determinar a sua nulidade, nos termos do disposto na alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do Código de Processo Civil, sendo certo que nos parece que o próprio Apelante não o alega, defendendo apenas uma oposição entre a prova produzida e a decisão da matéria de facto e uma oposição na própria fundamentação da sentença – o que não recai ao abrigo da disposição supra referida.
G. Para que se constitua a obrigação de indemnização, cabia ao Apelante demonstrar o preenchimento dos pressupostos de que depende a responsabilidade civil, a saber:  (i) o facto, (ii) a ilicitude, (iii) a culpa, (iv) o dano e (v) o nexo de causalidade.
H. Em sede de responsabilidade contratual, para que possa operar a presunção de culpa prevista no n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil, é imprescindível que se prove uma falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso, i.e. que se prove a verificação da prática de um facto ilícito.
I. A ilicitude e a culpa são dois pressupostos distintos que não se confundem.
J. Enquanto o pressuposto da culpa beneficia de uma presunção (que poderá, ou não, ser afastada considerando o caso em apreço), o mesmo nunca se verifica quanto à ilicitude,
K. Cuja prova compete ao Apelante, por se tratar de um facto constitutivo do direito que alega, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil, sendo este entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência.
L. O facto de, no caso em apreço, a ilicitude consistir na demonstração que o médico não realizou o acto de acordo com a leges artis, e/ou na demonstração de que houve violação da protecção específica das normas que regulam especial algumas intervenções médicas (designadamente, da violação do dever de informação), i.e. de prova de eventuais factos negativos, não determina qualquer inversão do ónus da prova.
M. Não merece qualquer censura a Sentença em causa quando defende que cabia ao Apelante provar (i) que o Apelante C não agir de acordo com a leges artis e (ii) que não foi cumprido o dever de informação antes da realização da cirurgia.
N. Nos presentes autos, o Apelante não logrou provar, conforme lhe competia, que a actividade médica desenvolvida pelo Apelante C, durante a 1.ª cirurgia, foi prestada em desconformidade com a leges artis, nem que se verificou qualquer violação do dever de informação que impedia sobre aquele antes da realização da cirurgia ou a ausência de consentimento do Apelante para a sujeição a qualquer das intervenções cirúrgicas em causa.
O. Pelo contrário, resulta demonstrado não ter havido qualquer conduta negligente ou descuidada, mas sim o cumprimento rigoroso de todos os procedimentos e regras a observar.
P. Não tendo o Apelante logrado provar todos os requisitos da responsabilidade civil, designadamente da ilicitude, não pode ser assacada qualquer responsabilidade aos Apelados CUF e C e, consequentemente à ora Apelada Fidelidade».
1.9. O recurso foi admitido com subida imediata e efeito meramente devolutivo  e, quanto às nulidades invocadas, foi, pelo tribunal a quo, proferido o seguinte despacho:
«Alega o autor recorrente que a decisão ora impugnada padece de inúmeras contradições factuais e jurídicas e sobretudo verifica-se a oposição entre os fundamentos e a decisão. No entanto, não qualifica expressamente qual a nulidade/nulidades de que padece a sentença. No entanto sempre se dirá que a sentença recorrida não padece de qualquer dos vícios referidos no art. 615º do CPC e designadamente, não se vislumbra contradição entre os fundamentos de facto ou de direito e a decisão proferida».
1.10. Colhidos os vistos, importa decidir.
II – QUESTÕES PRÉVIAS
No final das suas alegações de recurso, o recorrente requereu «a junção de um documento (Information Sheet) por só agora o autor ter podido obtê-lo e também por se ter tornado necessário em função da sentença».
Na conclusão 5.ª, o recorrente referiu que «…o 2º réu também escreveu, por exigência da Lufthansa, numa “Information Sheet For Passengers Requiring Medical Clearance: subordinado a Diagnosis, manuscreveu: Lumbar Caudal Syndrome post Discal Lumbar surgery; e, subordinado a Current Symptoms and Severity, manuscreveu: “Severe Distal Paraparesis, Sphincter impairment”. Dia 14 de Agosto de 2011. ( Este documento cuja junção se requer por não figurar no processo e só agora o autor conseguiu obter a diligências do BGU de Frankfurt)».
Os RR. e a interveniente principal, nas contra-alegações, pronunciaram-se no sentido de ser indeferida a junção, por não ter cabimento no disposto no art. 425.º do CC.
Antes de mais, importa dizer que o documento em causa não se mostra acompanhado de tradução, como deveria, por tal ser fundamental para apreciação da pertinência da sua junção, que depende da exacta apreensão e compreensão do seu teor.
Seja como for, de acordo com o disposto no art. 651.º, n.º 1 do CPC, «as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância».
Por sua vez, o art. 425.º do CPC estatui que «depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento».
Ora, desde logo, e tal como salienta Rui Pinto, in Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, p. 265, «Os documentos apresentados referem-se a factos já trazidos ao processo, nos articulados normais ou nos articulados supervenientes (cf. artigos 588º e ss.). Portanto, a regra é a de que os documentos supervenientes não trazem ao processo factos supervenientes».
No que respeita à impossibilidade de apresentação anterior, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra Editora, 2001, p. 426, consideram que «Constituem exemplos de impossibilidade de apresentação o de o documento se encontrar em poder de terceiro, que só posteriormente o disponibiliza, de a certidão de documento arquivado em notário ou outra repartição pública, atempadamente requerida, só posteriormente ser emitida [superveniência objetiva] ou de a parte só posteriormente ter conhecimento da existência do documento [superveniência subjetiva]. Nos dois primeiros casos, será necessário que se tenham esgotado anteriormente os meios dos arts. 531 a 537 [atuais Artigos 432º a 437º do Código de Processo Civil]».
Rui Pinto, Ob. Cit., p. 314, refere que, no «tocante à superveniência subjectiva não basta invocar que só se teve conhecimento da existência do documento depois do encerramento da discussão em 1.ª instância, já que isso abria de par em par a porta a todas as incúrias e imprevidências das partes: a parte deve alegar – e provar – a impossibilidade da sua junção naquele momento e, portanto, que o desconhecimento da existência do documento não deriva de culpa sua. Realmente, a superveniência subjectiva pressupõe o desconhecimento não culposo da existência do documento».
Quanto à necessidade da junção em virtude do julgamento da primeira instância (art. 651.º, n.º 1, do CPC), Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, p. 184, afirma que «podem ainda ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, máxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo. A jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado».
Do exposto, decorre, pois, que o regime consagrado no n.º 1 do art. 651.º do CPC  não permite a junção à alegação de documento potencialmente útil à causa ab initio e que poderia e deveria ter sido apresentado em 1.ª instância.
No caso vertente, o recorrente não explicita qual o facto que pretende ver provado ou não provado com base no documento cuja junção requerer, o que, desde logo, inviabiliza qualquer juízo sobre a respectiva pertinência.
Admitindo, contudo, que tal documento visa demonstrar a existência de “erros terapêuticos” (por desse assunto tratar a conclusão 5.ª), sempre teríamos que o mesmo deveria ter sido junto com a petição inicial, onde foram alegados os factos integradores da causa de pedir e dos alegados “erros terapêuticos”.
Significa tal que a pertinência e a necessidade de junção decorre do alegado na petição inicial (ou, quanto muito, da impugnação dos factos deduzida nas contestações apresentadas) e não, obviamente, da sentença, como afirma o recorrente.
Acresce que o recorrente não alegou que desconhecesse, então, a existência desse documento, nem invocou qualquer impossibilidade de junção em momento anterior ao recurso.
Na verdade, o recorrente limita-se a dizer que só agora conseguiu obter o documento, sem alegar qualquer circunstância que demonstre que não houve falta de diligência, desleixo ou incúria da sua parte nessa obtenção, o que é insuficiente para justificar a junção tardia, que, desta forma, se tem de haver por a si imputável.
Nestes termos, impõe-se não admitir o documento junto com as alegações de recurso e determinar o seu desentranhamento e subsequente entrega ao recorrente, que suportará as custas do incidente respectivo (art. 534.º do CPC), cuja taxa de justiça se fixará em uma UC (art. 7.º, n.º 8 do RCP).
III – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Decorre do disposto nos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do CPC, que as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, atendendo às conclusões supra transcritas, são as seguintes as questões essenciais a decidir:
a) das nulidades da sentença;
b) da rejeição do recurso de facto e/ou das alterações à matéria de facto provada;
c) dos pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente, o ilícito perpetrado (erro médico e/ou falta de consentimento informado).
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
4.1. A sentença sob recurso considerou provada a seguinte matéria de facto:
«1. Após a realização de vários exames auxiliares de diagnóstico e consulta de neurocirurgia no Hospital Particular do Algarve, efetivada no dia 2 de agosto de 2011, o 2.º Réu – médico neurocirurgião – propôs ao Autor o internamento no Hospital (...), sito em Lisboa, pertença do 1.º Réu, bem como a realização de uma cirurgia à coluna lombar (cfr. documentos de fls. 19 a 22);
2. A cirurgia consistiria, segundo o dito médico, numa “Foraminectomia, Discectomia e Recalibração do Canal Lombar em 2 níveis (L3-L4 e L4-L5)” (cfr. documento de fls. 21 e 22);
3. O Autor consentiu em ser internado nas instalações do Hospital (...), no dia 8 de agosto de 2011, como aconselhado pelo 2.º Réu;
4. No momento da admissão, o hospital pediu ao Autor uma caução no montante de € 2 500,00;
5. No orçamento então expressamente pedido pelo Autor, o hospital previu uma diária de € 634,00, despesas do bloco operatório no valor de € 1 108,00 e € 576,12 para “outras despesas”, no total de € 2 318,12 (cfr. documento de fls. 24);
6. E dele constam, como atos cirúrgicos, o “Realinhamento de canal estreito” e a “Extirpação de hérnia discal lombar” (cfr. documento de fls. 24);
7. A cirurgia teve início às 19h00 de 9 de agosto de 2011 e terminou pelas 21h30;
8. Foi efetuada com procedimento raquianestésico (e não anestesia geral);
9. O Autor nada teve a ver com a escolha da médica anestesista e apenas conhecia, da equipa médica, o ora 2.º Réu;
10. No dia 9 de agosto de 2011, após a cirurgia, o Autor sentia a parte inferior do corpo “paralisada”;
11. Quando acordou no dia seguinte (no dia 10), o Autor sentia que continuava “paralisado” do umbigo para baixo, não controlando os esfíncteres, com a “(…) emissão involuntária de fezes (…)” (cfr. documentos de fls. 41 a 43, aqui dados como integrados);
12. Em face do acima descrito, o Autor submeteu-se a uma segunda cirurgia que ocorreu, desta vez, com anestesia geral;
13. Durante a primeira sessão de fisioterapia, em 11 de agosto de 2011, o Autor defecou involuntariamente, por força da referida incontinência;
14. No dia 14 de agosto de 2011, uma brigada dos Bombeiros Voluntários Lisbonenses transportou o Autor para um avião da companhia Lufthansa, com destino ao Hospital BGU (Berufsgenossenschaftliche Unfallklinik), em Frankfurt, Alemanha (cfr. documentos de fls. 25, 26 e 27);
15. No hospital em Frankfurt permaneceu até dia 19 de novembro de 2011, submetendo-se a vários tratamentos para debelar a situação sequencial à primeira cirurgia (cfr. documentos de fls. 31 a 36);
16. Segundo o relatório escrito assinado pelo médico ortopedista K... …., a intervenção cirúrgica, “tendo lesado a dura causou pós-operativamente uma paraplegia que felizmente retraiu-se consideravelmente também pelo desempenho fora de série do paciente” (cfr. documentos de fls. 37 a 40);
17. No dia 13 de agosto de 2011, o 2.º Réu, em relatório clínico que acompanhou o Autor na viagem para a Alemanha (cfr. documentos de fls. 41 a 43, aqui dados como integrados), referiu a verificação de “(…) um hematoma L3-L4 pequeno, com efeito compressivo duvidoso. (…)”;
18. Entendeu o 2.º Réu que era urgente a realização de uma segunda cirurgia descompressiva, atribuindo à “toxicidade do anestésico” a principal causa dos efeitos do ato cirúrgico (“a nossa melhor hipótese do que aconteceu” – cfr. documentos de fls. 41 a 43);
19. Ao longo do tempo, existiu alguma melhoria da sua força muscular, mas o Autor manteve défice motor e sensitivo, e incontinência urinária e fecal, bem como impotência sexual, apesar dos tratamentos realizados (cfr. consulta técnico-científica de fls. 619 a 621);
20. Ao Autor foi atribuída uma incapacidade permanente de 86 % em 8 de maio de 2012, por parte da Junta Médica do Barlavento, Região de Saúde do Algarve (cfr. documento de fls. 44);
21. O 1.º Réu apresentou ao Autor uma conta de despesas hospitalares no valor de € 8 187,65, sem prejuízo da caução a deduzir (cfr. documento de fls. 45 a 51);
22. Pelo transporte ao aeroporto, em ambulância, o Autor pagou a quantia de € 55,00 (cfr. documento de fls. 54);
23. O voo na companhia Lufthansa, em 14 de agosto de 2011, custou ao Autor a quantia de € 586,23 (cfr. documento de fls. 55 a 57);
24. O Autor nasceu a 24 de abril de 1949, tendo 62 anos de idade à data da cirurgia;
25. Era um homem de constituição robusta, apesar das queixas que o levaram a procurar ajuda médica;
26. O Autor é doutorado e foi professor universitário na Alemanha e vários outros países, designadamente no Brasil, Estados Unidos da América, Paquistão, Eslováquia, Marrocos, Argélia, Tunísia, Síria, Israel, Irão, Hungria e Turquia;
27. Enquanto professor universitário, auferia na Alemanha a quantia de € 5 735,55 (cfr. documento de fls. 59 e 60);
28. O Autor está reformado da carreira universitária desde maio de 2009, com a pensão de € 2 576,19 mensais então fixada, recebendo atualmente a quantia de € 2 931,80 (cfr. documentos de fls. 64 a 70);
29. Em 2011, o Autor declarou rendimentos no valor de € 33 589,90, sendo que € 30 914,25 correspondem à reforma que recebe da Alemanha (cfr. documentos de fls. 64 e 65);
30. Em 12 de outubro de 2018, o Autor apresentava “(…) marcha claudicante, com recurso a ajudas técnicas” (canadiana), bem como as sequelas seguintes:“Ráquis: cicatriz operatória com 12 cm vertical com contratura lombar e diminuição da força muscular e da sensibilidade dos membros inferiores bem como dos ROT bilateralmente e incontinência parcial de esfíncteres” (cfr. relatório pericial de fls. 602 a 604v);
31. Após exame neurológico realizado a 15 de fevereiro de 2017, ele apresentava:
“Funções superiores, nervos cranianos e membros superiores normais.
Membro inferior esquerdo: Atrofia proximal e sobretudo distal, tónus flácido, Paresia distal grau II, e proximal grau IV com ROT rotulianos fraco, aquiliano abolido, RCP em flexão e hipoestesia álgica em meia e propriocetiva.
Membro inferior direito: Discreta atrofia distal, tónus flácido paresia distal grau II + e proximal grau IV ROT rotuliano normal e aquiliano abolido, CP em flexão com hipoestesia em todo o pé exceto calcanhar com proprioceção normal.
Conclusão: Lesão de nervos periféricos / plexo lombo sagrado bilateralmente (predomínio esquerdo)” (cfr. relatório pericial de fls. 602 a 604v);
32. Consta, ainda, do mencionado relatório pericial final, datado de 12 de outubro de 2018, em sede de “Discussão”, o seguinte (cfr. fls. 604):
“1. Os elementos disponíveis e constantes do processo permitem admitir a existência de nexo de causalidade entre o traumatismo (cirurgia da coluna) e o dano (dano neurológico do plexo lombo sagrado) atendendo a que se confirmam os critérios necessários para o seu estabelecimento: existe a adequação entre a sede do traumatismo e a sede do dano corporal resultante, existe continuidade sintomatológica e adequação temporal entre o traumatismo e o dano corporal resultante, o tipo de lesões é adequado a uma etiologia traumática, o tipo de traumatismo é adequado a produzir este tipo de lesões, se exclui a existência de uma causa estranha relativamente ao traumatismo e se exclui a pré-existência do dano corporal.
2. (…).
3. (…).
4. A mencionada cirurgia ortopédica decorreu sem incidentes ou acidentes no entanto no dia seguinte surgiram sinais de paresia proximal dos membros inferiores de predomínio direito e incapacidade na mobilização dos pés com compromisso Anal e genital sendo considerado como resultado de prolongamento do efeito anestésico. No entanto efetuou RNM que terá revelado sinais de pequeno hematoma a nível L3-L4 e bolhas de ar e descompressão incompleta de L4-L5. Iniciou corticoterapia sendo efetuada reintervenção cirúrgica no mesmo dia sob anestesia geral sendo identificado pequeno hematoma L3-L4 com efeito compressivo duvidoso, pelo que foi efetuada uma revisão cirúrgica geral e drenagem durante 24 horas.
5. Efetuou tratamentos de fisioterapia permanecendo paresia residual esquerda com fenestração da lâmina L4 esquerda com fibrose considerável da dura.
6. Manteve tratamentos até meados de setembro de 2012 com evolução parcialmente favorável clínica e imagiologicamente.
7. Atualmente apresenta quadro clínico de Lesão de nervos periféricos / plexo lombo sagrado bilateralmente (predomínio esquerdo) com incontinência parcial dos esfíncteres”;
33. Em consequência do acima descrito, o Autor sente revolta, tristeza e frustração;
34. A sua autoestima e a sua capacidade de relacionamento social são hoje muito inferiores ao que já foram;
35. A cirurgia a que o Autor se submeteu no dia 9 de agosto de 2011 ocorreu com abordagem unilateral esquerda da coluna lombar, tendo sido realizadas foraminectomia e discectomia L2‐L3 esquerdas e recalibração do canal lombar mais discectomia em L3‐4 e L4‐5 à esquerda, sob visão de microscópio e raquianestesia;
36. A aludida cirurgia aconteceu sem intercorrências, tendo sido gravada/filmada em vídeo;
37. A anestesia – raquianestesia – também decorreu sem intercorrências e foi realizada ao nível de L1‐L2, com uma agulha Quinke calibre 25, para administrar 3cc à concentração de 5mg/1ml de levobupivacaína isobárica e 0,5 cc de sufentanil;
38. O midazolam foi administrado numa dose total de 3 mg IV e o propofol foi dado on demand (conforme a necessidade);
39. Foi aplicada drenagem da ferida;
40. Não se registaram nem verificaram, durante a mencionada intervenção, quaisquer lesões de estruturas nervosas;
41. No âmbito da mesma intervenção de 9 de agosto de 2011, a punção para a raquianestesia não atingiu, nem traumatizou, o cone medular;
42. Na manhã seguinte (dia 10), o Autor foi observado pela médica C….. que, ao confirmar o não desaparecimento do bloqueio anestésico induzido pela raquianestesia, entrou de imediato em contacto com o 2.º Réu, tendo este recomendado e pressionado a requisição de ressonância magnética de urgência;
43. A segunda intervenção cirúrgica visou e permitiu excluir a causa mais provável das queixas do doente – suspeita de hematoma – e explorar outras causas possíveis para a explicação do sucedido;
44. Os achados cirúrgicos desta segunda intervenção cingiram-se a um hematoma de pequena dimensão, com efeito compressivo;
45. A razão principal para a suspeita de hematoma teve a ver com a circunstância de o Autor ter arritmia cardíaca, com a possibilidade de formação de trombos e/ou êmbolos, em especial durante cirurgias;
46. Por isso, fora-lhe administrado medicamento anticoagulante – enoxaparina – para prevenir estes eventos; o risco desta medicação é, por vezes, sucederem hematomas pós-operatórios (conforme descrito na nota de alta – cfr. documentos de fls. 41 a 43);
47. O diário/resumo de enfermagem não regista quaisquer queixas do Autor em relação ao tratamento que teve no hospital, o qual se despediu de todo o pessoal auxiliar e enfermeiros mostrando-se agradecido pelos cuidados (cfr. documento de fls. 341 a 353);
48. A explicação possível para as queixas do Autor deveu-se a neurotoxicidade da raquianestesia, inesperada e imprevisível, resultante de uma relação idiossincrática entre o Autor e as drogas administradas: ele continuou, após o tempo esperado para a reversão da anestesia, a apresentar marcada disfunção das raízes nervosas da “cauda equina”;
49. O relatório escrito assinado pelo médico ortopedista K... .….. também refere “Paresia residual esq. com fenestração da lâmina L4 esq. com uma fibrose considerável da dura” (cfr. documentos de fls. 37 a 40);
50. A fenestração é o mero alargamento do espaço interlaminar – procedimento habitual para ganhar acesso às estruturas nervosas subjacentes e, também, para aumentar o espaço disponível a essas mesmas estruturas (recalibração/alargamento do canal);
51. A fibrose dural constitui situação habitual pós-cirurgia lombar e não indica quaisquer traumas induzidos à dura, representando apenas a existência de uma cicatriz (interna);
52. Perante as queixas do Autor, era previsível a necessidade de fisioterapia no período de seis meses a um ano, o que justificou a alta médica e a sua transferência para um centro hospitalar na Alemanha, a pedido do paciente;
53. (…) Centro de onde o Autor saiu com a indicação (razão da saída) de “011 Tratamento foi terminado regularmente, capaz de trabalhar” (cfr. documentos de fls. 31 a 36);
54. O Autor era doente do 2.º Réu, com quem contratou diretamente a intervenção cirúrgica, tendo este (e a sua equipa) atuado com autonomia laboral em relação ao 1.º Réu;
55. O 1.º Réu limitou-se a fornecer – contra pagamento – o aluguer do bloco operatório, os serviços de enfermaria e fisioterapia, bem como as diárias do Autor;
56. O 1.º Réu celebrou com a 1.ª Interveniente um seguro de responsabilidade civil geral e profissional, titulado pela apólice número RC54002460, cujas condições gerais, especiais e particulares, aqui dadas por integradas, se encontram documentadas nos autos de fls. 225 a 261;
57. O referido contrato de seguro tem por fim a cobertura da responsabilidade civil extracontratual imputável ao segurado, aqui 1.º Réu, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de lesões corporais e/ou materiais causadas a terceiros pela exploração do Hospital CUF, garantindo, ainda, a responsabilidade profissional do pessoal médico, paramédico e de enfermagem, que compõe o quadro próprio do referido estabelecimento de saúde, enquanto ao serviço deste (cfr. documentos de fls. 225 a 261);
58. O contrato de seguro em apreço prevê as franquias seguintes:
- Responsabilidade civil de exploração: 10 % do valor do sinistro, no mínimo de € 500,00;
- Responsabilidade civil profissional: 15 % do valor do sinistro, no mínimo de € 1 500,00 e no máximo de € 5 000,00 (cfr. documento de fls. 251 a 261);
59. Estabelece que o capital seguro é de € 550 000,00, por anuidade, limitado a € 125 000,00, por sinistro (cfr. documento de fls. 251 a 261);
60. Consagra a cláusula 2.3. das condições particulares do contrato em apreço que estão excluídas do mesmo a “Responsabilidade resultante de actos dolosos do pessoal médico, paramédico e de enfermagem, assim como aquela em que este possa incorrer por recusa de prestação de serviços próprios da sua profissão” (cfr. fls. 252);
61. E consagra, ainda, o artigo 6.º, n.º 1, das condições gerais do mesmo contrato que “O presente contrato nunca garante os danos: a) Decorrentes de actos ou omissões dolosos do Segurado ou de pessoas por quem este seja civilmente responsável” (cfr. fls. 227);
62. O 2.º Réu celebrou com a 2.ª Interveniente, em 17 de março de 1994, um contrato de seguro do ramo Responsabilidade Civil, alterado em 1 de janeiro de 2006, visando transferir a responsabilidade civil profissional decorrente da sua atividade médica, na especialidade de neurocirurgia, titulado pela apólice número 0084.05.945508, cujas condições gerais e especiais, aqui dadas por integradas, se encontram documentadas nos autos de fls. 275 a 292;
63. De acordo com o estipulado, à data dos factos a que se reportam os autos (agosto de 2011), a 2.ª Interveniente garantia a responsabilidade civil profissional em que pudesse incorrer o tomador do seguro – 2.º Réu – em virtude da sua atividade médica; o capital seguro quanto à responsabilidade civil profissional do 2.º Réu era de € 600 000,00 por anuidade e limitado, em cada sinistro, a € 300 000,00 (cfr. documento de fls. 275 e 276);
64. (…) Sendo aplicada a cada sinistro, relativamente a “danos resultantes de lesões materiais”, uma franquia de 10 % do valor reclamado, com um mínimo de € 125,00 (cfr. documento de fls. 275 e 276);
65. E estabelece, ainda, o artigo 4.º das condições gerais do mesmo contrato que “Ficam sempre excluídos da garantia de cobertura desta apólice os seguintes danos: a) decorrentes de actos ou omissões dolosas do Tomador do seguro, do Segurado ou de pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis” (cfr. fls. 280)».
4.2. A sentença sob recurso considerou não provada a seguinte matéria de facto:
«I. Aos receios advindos do Autor, respondeu o 2.º Réu, garantindo que a cirurgia era “relativamente simples”, apenas exigindo o internamento de um dia após o recobro;
II. No hospital, o Autor questionou a circunstância de os atos cirúrgicos constantes do orçamento não coincidirem com aqueles que haviam sido manuscritos pelo 2.º Réu no dia 2 de agosto de 2011 (nos documentos de fls. 19 a 22), perguntando se não haveria uma eventual informação incorreta ou insuficiente;
III. A receção e serviços do referido hospital tranquilizaram-no, repetindo que “estava tudo correto e previsto, e tudo iria correr bem”;
IV. O Autor sempre manifestou o desejo de que a cirurgia (de 9 de agosto de 2011) ocorresse mediante anestesia geral;
V. Pôde o Autor aperceber-se, antes da operação e da administração da anestesia, das dúvidas da médica anestesista, que questionou alguém pelo telefone sobre a dose correspondente, atendendo ao facto de o Autor ser um homem com 1,91 metro de altura;
VI. O Autor adormeceu durante a dita cirurgia;
VII. Quando acordou na sala de recobro, sentiu, de imediato, picadas e dormência por todo o corpo, particularmente na face;
VIII. O enfermeiro de serviço na sala dos cuidados intensivos tentou, com insistência, tranquilizar o Autor, dizendo que “era ainda o efeito da anestesia”;
IX. Pelas 12 horas do dia 10 de agosto de 2011, o 2.º Réu deslocou-se ao quarto (de três camas) onde estava o Autor, lamentando o “estado em que este se encontrava” e gritando com as enfermeiras pelo facto de ainda não ter sido feita a ressonância magnética;
X. Foi só após a saída do cirurgião que o Autor soube, através de uma enfermeira, que aquele marcara uma segunda operação/intervenção para as 17h00 desse dia 10 de agosto de 2011;
XI. Uma vez mais, não foi prestada ao Autor qualquer informação ou pedido qualquer consentimento para o efeito;
XII. Na manhã do dia 11 de agosto de 2011, o Autor acordou sujo (fezes e urina);
XIII. A senhora auxiliar TP… maltratou o Autor por esse facto, limpou-o agastada pelo nojo com insultos, que pressupunham ter o Autor agido voluntariamente, e deu-lhe uma “arrastadeira” para que ele pudesse defecar e urinar na cama;
XIV. O Autor sentia que a arrastadeira o magoava muito na ferida da cirurgia e comunicou tal facto a enfermeiros e auxiliares, sem que fosse atendido;
XV. Os tratamentos de fisioterapia foram iniciados sem que ao Autor tivesse sido dada qualquer explicação prévia;
XVI. Apesar do descrito no ponto 13 supra, a fisioterapeuta V….. não chamou ninguém e continuou a sessão de fisioterapia;
XVII. (…) Inclusive com o mal-estar e o nojo dos restantes pacientes;
XVIII. Durante o dia 12 de agosto de 2011, o Autor foi física e psicologicamente maltratado pelas auxiliares, e particularmente pela senhora C…, a propósito das deslocações à casa de banho, da utilização de meios de limpeza e de higiene, mesmo contra as indicações do médico cirurgião;
XIX. Em virtude de tudo o que se passava e de ninguém controlar a forma como estava a ser maltratado (e até ultrajado), o Autor pediu ao 2.º Réu que lhe desse alta e o deixasse seguir para a Alemanha;
XX. O Autor desloca-se hoje, em curtas distâncias, com o auxílio de canadianas;
XXI. O Autor pagou ao hospital BGU a quantia de € 31 382,79, correspondente a tratamentos de fisioterapia e estada entre 14 de agosto de 2011 e 19 de novembro de 2011;
XXII. Com as despesas com cadeiras de rodas, canadianas e outros meios técnicos, o Autor gastou um total de € 40 211,87;
XXIII. A sua incapacidade impediu-o, até agora, de voltar a trabalhar;
XXIV. Ao pedir a reforma na Alemanha, tencionava o Autor viver e trabalhar em Portugal como professor convidado da Universidade de Lisboa, administrando cursos, proferindo palestras e dirigindo seminários e pós-graduações em diversas instituições para as quais havia sido convidado;
XXV. Dos convites que ele tinha para participar em cursos, seminários e palestras, poderia vir a auferir € 10 000,00 anuais, pelo menos;
XXVI. (…) Expetativas estas que se goraram em resultado da incapacidade resultante da atuação médica do 2.º Réu;
XXVII. O Autor é hoje um homem profundamente abalado e que vive com grande mágoa, por todas as humilhações e vexames que sofreu, e ainda sofre, em consequência da conduta do 2.º Réu e dos serviços que recebeu no hospital pertença do 1.º Réu;
XXVIII. A paraplegia que o Autor sofreu foi provocada por lesão na dura;
XXIX. A “lesão a nível de L4” explica a situação clínica do Autor após a intervenção cirúrgica de 9 de agosto de 2011».
V – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
5.1. Comecemos pelas nulidades da sentença.
No final das suas alegações, o recorrente referiu que «…considerando as inúmeros contradições factuais e jurídicas e sobretudo a oposição entre os fundamentos e a decisão, esta sentença é nula», tendo, posteriormente, por requerimento avulso, esclarecido que «…a norma que determina a nulidade é a alínea c) do artº 615º do Código do Processo Civil».
Nas suas contra-alegações, a interveniente principal defende que «…não se verifica qualquer oposição entre os fundamentos da sentença e a sua decisão que possa determinar a sua nulidade, nos termos do disposto na alínea c), do n.º 1, do artigo 615.º do Código de Processo Civil. Aliás, parece que o próprio Apelante não coloca em causa uma oposição entre os fundamentos da sentença e a decisão, mas sim entre a prova produzida e a decisão da matéria de facto e ainda na sua própria fundamentação, designadamente quando: a) Coloca em causa a decisão sobre a matéria de facto do Tribunal a quo atendendo à prova produzida nos autos e à valorização que é feita das declarações de parte do Apelado C e a outras testemunhas; e b) Quando, na douta Sentença, apesar do Tribunal concluir pela aplicação da presunção de culpa prevista no n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil, imputa ao Apelante o ónus do incumprimento ou do cumprimento defeituoso dos Apelados. Em bom rigor, nenhuma destas "contradições" se traduz numa oposição da fundamentação com a decisão que é proferida pelo Tribunal a quo, pelo que não recairá ao abrigo da disposição supra transcrita e, como tal, não consiste em qualquer nulidade que possa ser imputada à douta Sentença».
O tribunal a quo considerou não se verificar a nulidade apontada.
Vejamos.
O art. 615.º, nº 1, al. c) do CPC dispõe que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Como é evidente, a fundamentação da decisão deve ser clara e lógica para que o destinatário perceba as razões de facto e de direito que estiveram na sua origem, em função de critérios lógicos, objectivos e racionais.
Para tanto, os fundamentos de facto e de direito que fundamentam ou justificam a decisão deverão ser expostos de forma estruturada e obedecer ao silogismo judiciário, de tal modo que a decisão decorra, logicamente, das premissas argumentativas.
É, precisamente, quando os fundamentos conduzem, logicamente, a uma conclusão oposta ou diferente da adoptada, que se verificará a nulidade da sentença supra referida. Trata-se, assim, de um vício lógico, de uma contradição entre a fundamentação deduzida e o sentido decisório: a fundamentação aponta, de forma inequívoca, num sentido e a decisão acaba por ser a ele contrária, ou, por outra via, os fundamentos invocados pelo juiz conduzem a resultado oposto ao expresso na decisão.
De acordo com os ensinamentos de Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.ª edição, p. 689 e 690, o que está em causa é a «contradição real entre os fundamentos e a decisão e não as hipóteses de contradição aparente, resultantes de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão», tratando-se, pois, de «um vício real no raciocínio do julgador (e não um simples lapsus calami do autor da sentença): a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente».
Também Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, V, Coimbra, 1984, p. 141, defendia que «quando os fundamentos estão em oposição com a decisão, a sentença enferma de vício lógico que a compromete. A lei quer que o juiz justifique a sua decisão. Como pode considerar-se justificada uma decisão que colide com os fundamentos em que ostensivamente se apoia?».
O mesmo afirmam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado”, I, 2.ª ed, p. 763, escrevendo que a sentença é nula, nos termos da referida disposição legal, «(…) quando existe incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final. Situação que, sendo violadora do chamado silogismo judiciário, em que as premissas devem condizer com a conclusão, também não se confunde com um eventual erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que lhe impõe uma solução jurídica diferente».
A jurisprudência, de que constitui exemplo o acórdão do STJ de 03.03.2021, in www.dgsi.pt., acompanha esta linha de pensamento: «A nulidade da sentença contemplada nesse preceito pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la. Ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto».
No que concerne à obscuridade e ambiguidade, a sentença será obscura quando contenha algum passo cujo sentido seja ininteligível e será ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes.
Seguindo, mais uma vez, Alberto dos Reis, Ob. Cit., p. 151, «Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz».
Importa, todavia, ter em conta que as causas de nulidade, taxativamente, enumeradas no art. 615.º do CPC, não visam o chamado erro de julgamento, nem a injustiça da decisão ou tão pouco a não conformidade dela com o direito aplicável.
Tal como se escreveu no acórdão do STJ supra citado, «Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual -nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma- ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma».
No caso dos autos, o recorrente não explicita quais as contradições, obscuridades ou ambiguidades de que padece a sentença recorrida e que, no seu entender, determinem a sua nulidade. Limita-se a imputar-lhe esse vício de forma genérica e vaga, o que, desde logo, impossibilita a exacta compreensão da sua pretensão e, por conseguinte, uma análise mais concreta a detalhada do apontado vício.
Seja como for, a sentença recorrida concluiu pela improcedência da acção, por ter considerado indemonstrado, em face da factualidade provada e não provada, um dos pressupostos da responsabilidade civil: a ilicitude, consistente, in casu, no alegado incumprimento dos deveres decorrentes do(s) contrato(s) de prestação de serviços médicos celebrado(s) entre o A. e os RR.
Temos, pois, que a conclusão (o sentido decisório) é coerente com as premissas argumentativas, isto é, com a fundamentação (quer de facto, quer de direito).
De igual forma, a conclusão que a sentença extraiu relativamente à falta de preenchimento do referido pressuposto da ilicitude tem suporte e, por conseguinte, mostra-se conforme à fundamentação de facto dela constante.
A discordância do recorrente quanto ao entendimento perfilhado na sentença segundo o qual competia-lhe a si o ónus da prova dos factos demonstrativos do incumprimento contratual ou do cumprimento defeituoso (entendendo o recorrente que cabia aos réus demonstrar terem agido de acordo com a leges artis e, bem assim, que o A. prestou consentimento informado) é fundamento de recurso de direito, baseado na errónea aplicação ou interpretação do regime jurídico aplicável. 
Finalmente, os “vários erros, omissões e contradições” que o recorrente aponta à decisão de facto e à apreciação e valoração das provas, constitui matéria concernente ao mérito do recurso relativo à decisão de facto.
Inexiste, assim, qualquer raciocínio ilógico na decisão: a absolvição do pedido encontra fundamento nos fundamentos que lhe serviram de suporte.
O que sucede é que o recorrente não concorda com a fundamentação de facto e de direito da sentença, pretendendo alterá-la por via do presente recurso. Mas isso, como se viu, não consubstancia uma contradição lógica entre os fundamentos de facto e de direito considerados pelo tribunal a quo e, muito menos, uma ambiguidade ou obscuridade da sentença, mas, quanto muito, um erro de julgamento («error in iudicando»), que interfere, não com a  conformidade lógico-formal da decisão em crise, mas com o seu mérito.
Enfim, analisadas as alegações de recurso, conclui-se que as questões suscitadas pelo recorrente nada têm que ver com a validade da sentença, mas sim com a sua fundamentação fáctico-jurídica, com a qual o recorrente não concorda, mas que se prende, quer com o mérito do recurso sobre a decisão de facto, quer com o mérito do recurso relativo à decisão de direito (o que será apreciado mais à frente), confundindo o recorrente os vícios que determinam a nulidade da sentença por alegada contradição com o inconformismo quanto ao seu teor.
A sentença recorrida, a nosso ver, não enferma da apontada contradição, sendo claramente perceptível o seu sentido e o caminho traçado para o alcançar, pelo que se conclui pela não verificação da apontada nulidade da sentença recorrida, improcedendo o recurso nesta parte.
5.2. Passemos, agora, à impugnação da matéria de facto.
O recorrente coloca em causa a decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, que acusa de conter “omissões, erros e contradições”, bem como a apreciação crítica das provas feitas pelo tribunal recorrido.
Os RR., nas suas contra-alegações, defendem que o A. não impugna a decisão nos termos do art. 640.º do CPC, nem invoca qualquer situação subsumível no art. 662.º do CPC, tendo em conta as conclusões do recurso, que delimitam o seu objecto.
Também a interveniente, nas suas contra-alegações, considera que deve ser rejeitado  liminarmente o recurso nesta parte, defendendo que «Nas suas alegações, e para além de não o fazer especificamente, o Apelante procede a uma verdadeira impugnação da matéria de facto. Apesar de não encontrarmos toda essa impugnação reproduzida, ainda que sumariamente, nas suas conclusões (conforme já salientado supra), ainda assim é possível retirar daí uma verdadeira impugnação da decisão da matéria de facto. (…) Ora, resulta claro da mera leitura das alegações do Apelante que, para além de não incluir a total impugnação da decisão da matéria de facto nas suas conclusões, também não especifica (i) quais os concretos pontos de facto que considerada incorrectamente julgados (ii) quais os concretos meios probatórios constantes do processo que impunham decisão diversa sobre esses pontos de facto e ainda (iii) qual o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
Vejamos, então, se o recorrente incumpriu os ónus de impugnação previsto no n.º 1 do artigo 640.º do CPC.
5.2.1. De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 639.º, do CPC, «o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão».
No que concerne ao recurso relativo à decisão sobre a matéria de direito, prescreve o n.º 2 do artigo referido, que o recorrente deve indicar nas respectivas conclusões os seguintes aspectos:
- as normas jurídicas violadas (sejam de direito adjectivo ou de direito material);
- o sentido que deve ser atribuído às normas cuja aplicação e interpretação determinou o resultado que pretende impugnar;
- perante eventual erro na determinação das normas aplicáveis, as que deveriam ter sido aplicadas.
O art. 637.º, n.º 2 do CPC, relativo ao modo de interposição do recurso, exige que o requerimento de interposição contenha, obrigatoriamente, a alegação do recorrente, em cujas conclusões devem ser indicados os fundamentos específicos de recorribilidade que no caso se justifiquem.
A importância de apresentação de conclusões emerge também do art. 635.º, n.º 4, do CPC, na medida em que, mais do que o teor das alegações, é através daquelas que se delimita o objecto do recurso, assumindo função idêntica à do pedido formulado na petição inicial.
A lei exige, assim, que o recorrente condense em conclusões os fundamentos por que pede a revogação, a modificação ou a anulação da decisão, nelas enunciando, de forma clara e rigorosa, aquilo que se pretende obter do tribunal superior, em contraposição com o que foi decidido pelo tribunal a quo.
Se não foram apresentadas conclusões, a lei comina tal falta com a rejeição imediata do recurso (cfr. art. 641º, nº 2, al. b), do CPC).
Contudo, se as alegações apresentadas se revelarem deficientes, obscuras, complexas ou se não contiverem as especificações referidas no n.º 2 do art. 639.º, ainda é facultada a possibilidade de superação de tais irregularidades, através de despacho de convite ao aperfeiçoamento (art. 639.º, n.º 3, do CPC).
Versando o recurso sobre a decisão relativa à matéria de facto, o art. 640.º do CPC estabelece que o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
Em face desta norma, tem-se entendido que o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões) e, fundando-se a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos, devendo, ainda, consignar, na motivação do recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos (cfr. Abrantes Geraldes, Ob. Cit., p. 197 e 198).
Incumprindo o recorrente tal ónus, o recurso tem ser rejeitado, sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento.
Com efeito, e ao contrário do que sucede com o recurso relativo à decisão sobre a matéria de direito, previsto no art. 639.º, nºs 2 e 3 do CPC, no recurso relativo à matéria de facto (art. 640.º do NCPC) não se admite despacho de aperfeiçoamento.
Conforme refere Abrantes Geraldes, in Ob. Cit., p. 128) «Esta solução é inteiramente compreensível e tem a sustentá-la a enorme pressão (geradora da correspondente responsabilidade) que durante décadas foi feita para que se modificasse o regime de impugnação da decisão da matéria de facto e se ampliassem os poderes da Relação a esse respeito, a pretexto dos erros de julgamento que o sistema anterior não permitiria corrigir. Além disso, pretendendo o recorrente a modificação da decisão da 1ª instância e dirigindo uma tal pretensão a um tribunal que nem sequer intermediou a produção de prova, é compreensível uma maior exigência no que concerne à impugnação da matéria de facto, impondo, sem possibilidade de paliativos, regras muito precisas. Enfim, a comparação com o disposto no art. 639.º não deixa margem para dúvidas quanto à intenção do legislador de reservar o convite ao aperfeiçoamento para os recursos da matéria de direito».
Este autor considera, assim, que é motivo de rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão de facto a falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640.º, n.º 1 al. a) do CPC), por tal ser essencial para delimitar o objecto do recurso. E explicita este autor que «as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo» (cfr. Ob. Cit., p. 200).
O Supremo Tribunal de Justiça tem adoptado o mesmo entendimento, como disso constituem exemplos os acórdãos de 16.05.2018 («Sendo as conclusões não apenas a súmula dos fundamentos aduzidos nas alegações stricto sensu, mas também e sobretudo as definidoras do objeto do recurso e balizadoras do âmbito do conhecimento do tribunal, no caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente indicar nelas, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença, aqueles cuja alteração pretende e o sentido e termos dessa alteração. Por menor exigência formal que se adote relativamente ao cumprimento dos ónus do art. 640º do CPC e em especial dos estabelecidos nas suas alíneas a) e c) do nº 1, sempre se imporá que seja feito de forma a não obrigar o tribunal ad quem a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso») e de 19.01.2023 («Entre os corolários do ónus de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consagrado no n.º 1 do art. 640.º do Código de Processo Civil, está o de que o recorrente deve sempre indicar nas conclusões do recurso de apelação os concretos pontos de facto que julgou incorrectamente julgados»), ambos in www.dgsi.pt.
Este entendimento era, aliás, generalizadamente, aceite no âmbito do similar art. 690.º-A do anterior CPC, de 1961 (cfr. Lopes do Rego, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª ed., p. 203).
A jurisprudência nacional tem firmado alguns entendimentos quanto ao cumprimento dos ónus prescritos no aludido art. 640.º, sumariados no ac. da RG de 18.12.2017, in www.dgsi.pt:
- os aspectos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal (cfr. acs. do STJ, de 28.04.2014, de 08.02.2018, de 08.02.2018, de 06.06.2018, de 12.07.2018, de 13.11.2018 e de 03.10.2019, todos disponíveis in www.dgsi.pt);
- dever-se-á usar de maior rigor na apreciação do cumprimento do ónus previsto no n.º 1 do art. 640.º (primário ou fundamental, de delimitação do objecto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus previsto no seu n.º 2 (secundário, destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) – cfr. ac. do STJ, de 29.10.2015, in www.dgsi.pt;
- a exigência de especificação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, só se satisfaz se essa concretização for feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respectivos meios de prova (cfr. ac. do STJ, de 19.02.2015, in www.dgsi.pt);
- o ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação com exactidão das passagens da gravação onde se funda o recurso só será idónea a fundamentar a rejeição liminar do mesmo se dificultar, de forma substancial, o exercício do contraditório ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. acs. do STJ, de 26.05.2015, de 22.09.2015, de 29.10.2015 e de 19.01.2016, in www.dgsi.pt);
- o ónus do art. 640.º, n.º 2 do CPC mostra-se cumprido sempre que não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento, como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento, tal indicação é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso (cfr. acs. do STJ, de 29.10.2015 e de 15.02.2018, in www.dgsi.pt); ou quando o recorrente identificou as testemunhas EE, FF e GG, assim como a matéria sobre a qual foram ouvidas, referenciou as datas em que tais depoimentos foram prestados e o CD onde se encontra a respectiva gravação, indicando o seu tempo de duração, e, para além disso, transcreveu e destacou a negrito as passagens da gravação tidas por relevantes e que, em seu entender, relevavam para a alteração do decidido (cfr. ac. do STJ, de 18.02.2016, in www.dgsi.pt);
- a apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (cfr. ac. do STJ, de 19.02.2015, in www.dgsi.pt); nem o faz o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem uma única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. ac. do STJ, de 28.05.2015, in www.dgsi.pt); e igualmente não cumpre a exigência legal a simples indicação do momento do início e do fim da gravação de um certo depoimento (cfr. acs. do STJ, de 05.09.2018, de 18.09.2018 e de 03.10.2019, in www.dgsi.pt);
- servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação, mas bastando quanto aos demais requisitos que constem de forma explícita na motivação do recurso (cfr. acs. do STJ, de 19.02.2015, de 04.03.2015, de 01.10.2015, de 03.12.2015, de 11.02.2016, de 03.03.2016, de 21.04.2016, de 28.04.2016, de 31.05.2016, de 09.06.2016, de 13.10.2016, de 16.05.2018, de 06.06.2018, de 06.06.2018, de 12.07.2018, de 31.10.2018, de 13.11.2018, de 03.10.2019, e de 19.01.2023 todos disponíveis in www.dgsi);
- não deve ser rejeitado o recurso se o recorrente seguiu um determinado entendimento jurisprudencial acerca do preenchimento do ónus de alegação quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, nos termos do art. 640.º do CPC (cfr. ac. do STJ, de 09.06.2016, in www.dgsi.pt);
- a insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (cfr. ac. do STJ, de 19.02.2015, in www.dgsi.pt).
Recentemente, o STJ, através do acórdão uniformizador de 17.10.2023, fixou a seguinte jurisprudência: «nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações».
Entendeu-se no referido acórdão que a decisão alternativa proposta, «não podendo deixar de ser vertida no corpo das alegações, se o for de forma inequívoca, isto é, de maneira a que não haja dúvidas quanto ao seu sentido, para não ser só exercido cabalmente o contraditório, mas também apreendidos em termos claros pelo julgador, chamando à colação os princípios da proporcionalidade e razoabilidade instrumentais em relação a cada situação concreta, a sua não inclusão nas conclusões não determina a rejeição do recurso».
No que respeita, no entanto, aos ónus de indicação da decisão que se pretende sindicar, escreveu-se no referido acórdão que os mesmos não detêm «…uma mera natureza formal, na medida que se mostram ajustadas, garantindo a adequada inteligibilidade e objeto do recurso, facultando à contraparte a possibilidade do exercício do contraditório», sendo que «da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso» (sublinhados nossos).
Concluiu nesse acórdão que «…decorre do art.º 640, n.º1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada».
Podemos, pois, concluir com segurança que a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se sempre que ocorra alguma das seguintes situações:
a) falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos (cfr. Abrantes Geraldes, Ob. Cit., p. 128 e 129).
5.2.2. No caso que nos ocupa, o recurso interposto pelo A., relativo à impugnação da matéria de facto, e ressalvadas as  excepções que infra se assinalarão, não cumpre o referido dever, posto que nas conclusões, o recorrente não concretizou os pontos de facto que, no seu entender, foram incorrectamente julgados.
Efectivamente, no que respeita à decisão de facto, o recorrente limita-se a referir, nas conclusões, que «a sentença tem vários erros omissãos e contradições. Anteriormente analisámo-los com algum pormenor, pelo que nestas conclusões daremos nota apenas de alguns» (conclusão 2.ª) e que a sentença «a partir do nº 35 enumera os factos provados dos articulados dos réus e das seguradoras intervenientes. Como poderá verificar-se, muitos deles estão em frontal contradição com os do autor ( ?). Mas é nos Factos não Provados (de I a XXIX) que as contradições e incoerências são particularmente evidentes» (conclusão 10.ª).
Temos, assim, desde logo, que os erros, omissões e contradições invocadas no corpo das alegações (vulgo, na motivação) que não constam, ainda que sumariamente, das conclusões, não podem ser considerados, nos termos da doutrina e jurisprudência supra mencionadas, impondo-se rejeitar o recurso nessa parte.
Ora, os pontos de facto que são objecto de impugnação e os únicos que estão, concretamente, indicados nas conclusões do recurso são os seguintes:
- n.º 1 dos factos provados, quanto à data da consulta de neurocirurgia, que o recorrente defende não ter sido no dia 02.08.2011, mas no dia 06.08.2011 (conclusão 2.ª);
- n.º 3 dos factos provados, quanto à data do internamento, que o recorrente diz não ter sido no dia 08.08.2021, mas no dia 09.08.2011 (conclusão 2.ª);
- n.º 48 dos factos provados, que o recorrente defende, ainda que implicitamente, dever ser dado como não provado (conclusão 11.ª)
- ponto II dos factos não provados, que o recorrente considera ter ficado provado (conclusão 3.ª);
- omissão das horas de início e termo da cirurgia do dia 10.08.2011, pretendendo o recorrente que se dê por provado que «a cirurgia do dia 10 decorreu entre as 20h25 (anestesia) e as 22h25 (saída do bloco)», o que considera um facto relevantíssimo (conclusão 3.ª).
Estes pontos serão analisados de seguida (ponto 5.2.3).
No mais, o recorrente insurge-se contra o facto de a sentença recorrida ter apreciado «de forma extraordinariamente positiva as declarações de parte do 2º réu, seguindo até os erros manifestos em que ele incorre...» (conclusão 10.ª) e, bem assim, contra o facto de os depoimentos das principais testemunhas dos réus terem merecido «…tanto apreço por parte do Meritíssimo Juiz», pois que «têm um interesse no desfecho da causa muito semelhante ao do 2º réu. É a sua actuação que aqui também se discute» (conclusão 12.ª), mas não procede, nem requer a sua reapreciação, nem retira qualquer consequência, ao nível da decisão de facto, dessa pretensa errónea apreciação.
Na verdade, o recorrente não identifica os concretos factos que a decisão recorrida julgou, erradamente, provados e não provados com base naqueles meios de prova, e que, no seu entender, mereciam decisão diversa.
Ora, tal como se decidiu no acórdão da RE de 12.07.2018, in www.dgsi.pt «ao tribunal da Relação não incumbe ir identificar de entre aqueles pontos de facto, provados e não provados, onde previsivelmente se poderia encontrar o dissentimento do Recorrente relativamente à matéria de facto que vem fixada da primeira instância. De facto, não só isso significaria obrigar o tribunal ad quem a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso, como se nos afigura que a tal sempre obstaria o princípio do pedido que enforma todo o processo civil e não pode deixar de ser aplicado na fase de recurso, sob pena de potencial violação de outros princípios processuais como seja o princípio da igualdade das partes».
E, assim, inexistindo, em face do disposto nos art. 639.º, n.º 3 e 652.º, n.º 1 al. a) do CPVC (cfr. Abrantes Geraldes, Ob. Cit., p. 199), despacho de aperfeiçoamento no recurso relativo à decisão de facto, nada mais resta do que rejeitar o recurso, com excepção dos aspectos infra analisados no ponto 5.2.3.
5.2.3. Vejamos, então, cada um dos pontos de facto, validamente, impugnados.
a) Pretende o recorrente que o n.º 1 dos factos provados seja alterado, quanto à data da consulta de neurocirurgia, que defende não ter sido no dia 02.08.2011, mas no dia 06.08.2011 (conclusão 2.ª).
Assenta a sua pretensão no documento n.º 2 junto com a petição inicial.
Na petição inicial (art. 1.º), o A. havia alegado que a consulta em causa ocorreu no dia 08.08.2011, sendo que os RR. afirmaram ter ocorrido no dia 06.11.2011.
Do documento referido, que foi subscrito pelo 2.º R. e que não foi impugnado, consta a data de 06.08.2011.
Assim sendo, sem necessidade de maiores considerações, procede o recurso nesta parte, passando o n.º 1 dos factos provados a ter a seguinte redacção:
«1. Após a realização de vários exames auxiliares de diagnóstico e consulta de neurocirurgia no Hospital Particular do Algarve, efetivada no dia 6 de agosto de 2011, o 2.º Réu – médico neurocirurgião – propôs ao Autor o internamento no Hospital (...), sito em Lisboa, pertença do 1.º Réu, bem como a realização de uma cirurgia à coluna lombar (cfr. documentos de fls. 19 a 22)».
b) Advoga, também, o recorrente que o n.º 3 dos factos provados deve ser alterado, quanto à data do internamento, que diz ter sido no dia 09.08.2021 e não no dia 08.08.2011 (conclusão 2.ª).
Sustenta a sua pretensão no documento n.º 2 junto com a petição inicial e nos documentos n.ºs 32, 34 e 36 juntos com a contestação.
E, de facto, assim é: dos referidos documentos, nomeadamente, da documentação clínica junta pelos RR., consta, inequivocamente, que o internamento do A. ocorreu no dia 09.08.2011, pelas 11h52m, sendo, aliás, o que também decorre da factura emitida pelo 1.º R. e junta com a petição inicial sob o n.º 14.
Deste modo, procede, também, o recurso nesta parte, passando o n.º 3 dos factos provados a ter a seguinte redacção:
«3. O Autor consentiu em ser internado nas instalações do Hospital (...), no dia 9 de agosto de 2011, pelas 11h52m, como aconselhado pelo 2.º Réu».
c) Prossegue o recorrente, defendendo (ainda que implicitamente) que o facto vertido no n.º 48 dos factos provados deve ser considerado não provado (conclusão 11.ª).
Argumenta para tanto que o tribunal a quo baseou-se, apenas, nas declarações do 2.º R., não havendo nos autos um único documento ou estudo que confirme o facto em causa.
Ora, é certo que se afirmou na sentença recorrida que  «No tocante ao tema da prova 15, o 2.º Réu falou com seriedade (e humildade) sobre o assunto em apreço, também não nos dando qualquer tipo de certeza absoluta quanto à origem das queixas do aqui demandante; ou seja, à provável causa para essas queixas (neurotoxicidade da raquianestesia) chegou “por exclusão de partes”, já que não havia uma compressão relevante que pudesse justificar o estado do Autor em 10 de agosto de 2011 (cfr. tema da prova 3). Reconheceu o 2.º Réu que, após estudos realizados sobre a matéria, seria possível uma situação descrita como a que consta do tema 15, posto que a operação realizada no dia 9 de agosto não se deu ao nível do umbigo, mas bastante mais abaixo (cerca de 10 centímetros abaixo). O 2.º Réu mostrou-se convicto num discurso qualificado e coerente, transmitindo uma provável causa com suporte firme junto da ciência médica» (era o seguinte o tema da prova “As queixas do Autor deveram-se a neurotoxicidade da raquianestesia, o que foi inesperado e imprevisível”).
Já não é, contudo, verdade que a sentença recorrida se tenha louvado, apenas, das declarações do 2.º R, como, de resto, consta da extensa motivação nela deduzida.
Analisando essa motivação, não vislumbramos que o tribunal a quo tenha violado qualquer regra de direito probatório aquando da apreciação dos meios de prova, antes tendo procedido a uma análise conjugada, crítica e exaustiva de toda a prova produzida, observando e aplicando as normas legais, os princípios e as regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum que se impunham.
O recorrente é que não logrou rebater a  motivação da decisão recorrida, com a qual concordamos, pela sua assertividade, e que se insere-se numa linha coerente de julgamento.
Na verdade, o recorrente, nas suas alegações, não demonstra em que pontos o Tribunal se afastou do juízo imposto pelas regras legais, dos princípios, das regras da racionalidade e da lógica ou da experiência comum, sendo certo que não identifica qualquer meio de prova que permita colocar essa apreciação em dúvida.
Não podemos esquecer-nos que, de acordo com o disposto no art. 607.º, n.º 5 do CPC o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, com exclusão, apenas, dos factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, bem como daqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
O princípio da livre apreciação da prova impõe que o julgador proceda a uma valoração de cada meio de prova produzido, interligando-o com os demais elementos probatórios que constem dos autos, socorrendo-se dos conhecimentos científicos adquiridos e das regras de experiência comum da vida (cfr. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, Coimbra, 1996, p. 157 e segs., e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II, p. 209).
A prova é, assim, apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, com recurso às regras da experiência e critérios de lógica. Neste sentido, escreve Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, p. 384, que «segundo o princípio da livre apreciação da prova o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas».
A prova idónea a alcançar um tal resultado é a prova suficiente, isto é, a que conduz a um juízo de certeza jurídica (e não uma certeza absoluta): a prova visa, apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto.
Tal não significa que a livre apreciação da prova se reconduza a arbitrária apreciação da prova. Na verdade, o julgador tem que identificar os concretos meios probatórios em que baseou a sua convicção, explicitando as razões justificativas da sua opção em face, nomeadamente, dos meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto (referindo, por exemplo, por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra; por que razão se convenceu mais da veracidade da versão relatada por uma parte em detrimento da outra; por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos, etc.). E, a este respeito, por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece ou não, o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que teve ou não teve, à naturalidade e tranquilidade que teve ou não (vide Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325).
É, por isso, comumente aceite que o juiz da 1ª Instância, perante o qual a prova é produzida, está em posição privilegiada para proceder à sua avaliação, e, designadamente, detectar no comportamento das testemunhas e das partes elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos, o que, frequentemente, não transparece da respectiva gravação.
Daí que Ana Luísa Geraldes, Impugnação e Reapreciação da Decisão sobre a Matéria de Facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, I, p. 609, defenda que «em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».
Desta forma, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando este possa concluir, com a necessária segurança, que a prova produzida aponta em sentido diverso e impõe uma decisão diferente da que foi proferida pelo tribunal a quo, isto é, quando tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto.
No caso dos autos,  conforme decorre da motivação aduzida na sentença recorrida, o tribunal a quo procedeu à ponderação de toda a prova documental, pericial, testemunhal e por declarações de parte produzida, que analisou criticamente e de forma conjugada, apelando à regras da normalidade da experiência.
O único argumento do recorrente, estribado na insuficiência das declarações do 2.º R., não só não corresponde ao que decorre da motivação do tribunal a quo (que teve, claramente, em conta os demais meios de prova, mormente, pericial), como não encontra apoio legal.
Como é sabido, têm-se perspectivado diversas posições relativamente ao valor dessas declarações, sumariadas, de forma esclarecedora, no acórdão desta Relação de 26.04.2017, relatado por Luís Filipe Pires de Sousa e acessível in www.dgsi.pt:
«I.–No que tange à função e valoração das declarações de parte existem três teses essenciais: (i) tese do caráter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos; (ii) tese do princípio de prova e (iii) tese da autossuficiência das declarações de parte.
II.–Para a primeira tese, as declarações de parte têm uma função eminentemente integrativa e subsidiária dos demais meios de prova, tendo particular relevo em situações em que apenas as partes protagonizaram e tiveram conhecimento dos factos em discussão.
III.–A tese do princípio de prova defende que as declarações de parte não são suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova.
IV.–Para a terceira tese, pese embora as especificidades das declarações de parte, as mesmas podem estribar a convicção do juiz de forma autossuficiente».
Ao contrário do que o R. defende, entendemos, na esteira do acórdão citado, que «É infundada e incorreta a postura que degrada – prematuramente - o valor probatório das declarações de parte só pelo facto de haver interesse da parte na sorte do litígio. O julgador tem que valorar, em primeiro lugar, a declaração de parte e, só depois, a pessoa da parte porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações e incorrer no viés confirmatório».
Neste mesmo sentido, Elizabeth Fernandez, in Nemo Debet Essse Testis in Propria Causa? Sobre a (in)Coerência do Sistema Processual a Este Propósito, in Julgar Especial, Prova Difícil, 2014, p. 36, salienta que «se as partes podem passar a declarar a seu pedido o que viram, ouviram, sentiram, cheiraram, tocaram, conversaram, disseram, em suma, o que testemunharam, e porque o testemunharam não faz qualquer sentido conferir a estas declarações proferidas por pessoas que materialmente são testemunhas só porque são partes, um valor diverso do daqueles factos que foram testemunhados por quem é material e formalmente testemunha».
Também o acórdão da RG de 02.05.2016, in www.dgsi.pt., considerou que «A credibilidade das declarações da parte tem de ser apreciada em concreto, numa perspetiva crítica, com vista à descoberta da verdade material, sem pré-juízos devido à sua qualidade de parte mas, igualmente, sem esquecer que se impõe uma aferição cuidada das declarações, de acordo com as regras da experiência de vida, do conhecimento, numa perspetiva de análise conjunta das demais provas produzidas, bem podendo suceder que as respetivas declarações, em concreto, possam merecer muita, pouca ou, mesmo, nenhuma credibilidade. É, assim, em concreto, em face das circunstâncias do caso, com o concurso dos elementos indicados, que se deverão apreciar as declarações de parte, sem pré-juízos».
Vemos, assim, que, em abstrato, a prova por declarações deve merecer a mesma credibilidade das demais provas legalmente admissíveis e ser valorada nos termos previstos no art. 466.º, n.º 3, do CPC, isto é, deve ser, concretamente, apreciada pelo tribunal de forma livre.
Ora, no caso que nos ocupa, as declarações do 2.º R., analisadas e devidamente ponderadas de acordo com o critério da livre apreciação da prova e tendo em consideração a respectiva coerência interna, a fluidez e a riqueza de pormenores que contêm, constituem um forte contributo para que o tribunal, com base nelas, forme uma “prudente convicção sobre a verdade ou a plausibilidade dos factos probandos”, de acordo com o disposto no art. 607º, n.º 5, 1.ª parte, do CPC, já acima referenciado.
De todo o modo, verificamos que, in casu, as declarações do 2.º R. em nada se mostram desacreditadas pela restante prova produzida, sendo o A./recorrente que, ao invés, não logrou apontar um único meio de prova que as abale.
Nada tendo sido aduzido, em concreto, pelo recorrente, susceptível de infirmar o juízo probatório formulado pelo tribunal a quo, mantêm-se inalterado o facto vertido no n.º 48 dos fatos provados, improcede o recurso nesta parte.
d) Pretende, ainda, o recorrente que o ponto II dos factos não provados (que tem a seguinte redacção: «II. No hospital, o Autor questionou a circunstância de os atos cirúrgicos constantes do orçamento não coincidirem com aqueles que haviam sido manuscritos pelo 2.º Réu no dia 2 de agosto de 2011 (nos documentos de fls. 19 a 22), perguntando se não haveria uma eventual informação incorreta ou insuficiente»), seja considerado provado (conclusão 3.ª).
Sucede que o recorrente limita-se a afirmá-lo, sem proceder, como era seu ónus, a uma análise crítica da apreciação feita pelo tribunal a quo, não demonstrando em que medida o mesmo se afastou dos princípios e  regras de direito probatório, nem das regras da racionalidade e experiência comum, não indicando quais os meios de prova que pretende ver reapreciados e em que medida é que os mesmos alteram a decisão em crise.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.
e) Finalmente, o recorrente acusa a sentença recorrida de ter omitido que a cirurgia do dia 10 decorreu entre as 20h25 (anestesia) e as 22h25 (saída do bloco), o que considera um facto relevante (conclusão 3.ª).
Baseia a sua pretensão no documento n.º 35 junto com a contestação.
Antes de mais importa salientar que o facto em causa não foi alegado pelo A. na petição inicial (contrariamente à primeira cirurgia, em relação à qual alegou a hora precisa do seu início).
Não compreendemos, pois, a estranheza e as insinuações manifestadas pelo recorrente na conclusão 3.ª das suas alegações, ao afirmar não conseguir entender o facto de a sentença ter omitido as horas da cirurgia do dia 10.
Se tal facto era “relevantíssimo” como afirma, porque razão não o alegou na petição inicial, sendo certo que lhe cabia alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir (art. 5.º, n.º 1 do CPC)?
Seja como for, da documentação clínica junta pelos RR. na contestação (documento n.º 35), que não foi posta em causa, decorre que a referida cirurgia decorreu no dia 10.08.2011, entre as 20h25 e as 22h10m, tendo a saída do bloco ocorrido às 22h25, o que constitui, quanto cremos, um facto instrumental, que pode ser considerado nos termos do art. 5.º, n.º 2 al. a) do CPC:.
Assim sendo, determina-se o aditamento aos factos provados do n.º 12A com a seguinte redacção: «A cirurgia referida no n.º 12 ocorreu no dia 10.08.2021, entre as 20h25 e as 22h10m, tendo o A. saído do bloco às 22h25».
5.2.4. Em consequência do supra decidido, são os seguintes os factos provados que se altera e adita:
1. Após a realização de vários exames auxiliares de diagnóstico e consulta de neurocirurgia no Hospital Particular do Algarve, efetivada no dia 6 de agosto de 2011, o 2.º Réu – médico neurocirurgião – propôs ao Autor o internamento no Hospital (...), sito em Lisboa, pertença do 1.º Réu, bem como a realização de uma cirurgia à coluna lombar (cfr. documentos de fls. 19 a 22);
3. O Autor consentiu em ser internado nas instalações do Hospital (...), no dia 9 de agosto de 2011, pelas 11h52m, como aconselhado pelo 2.º Réu;
12A. A cirurgia referida no n.º 12 ocorreu no dia 10.08.2021, entre as 20h25 e as 22h10m, tendo o A. saído do bloco às 22h25.
5.3 Vejamos, agora, se, em face da facticidade provada, a sentença recorrida fez uma correcta aplicação do Direito.
O recorrente não coloca em causa as conclusões extraídas na sentença recorrida quanto à celebração entre si e os RR. de contratos de prestação de serviços (o que, de resto, defendeu nos arts. 66.º e 67.º da petição inicial), concordando que a  situação dos autos se move dentro dos parâmetros da responsabilidade civil contratual, o que, também, subscrevemos.
Da análise conjugada das suas alegações, decorre que o mesmo se insurge, apenas, contra o entendimento perfilhado na sentença recorrida relativo à não verificação dos pressupostos da responsabilidade civil contratual: “ilicitude” e “nexo de causalidade”.
Com efeito, perscrutadas, atentamente, as conclusões do recorrente, constata-se que o mesmo defende que:
- o tribunal a quo fez errónea interpretação do art. 799.º, n.º 1 do CPC, ao entender caber ao lesado a prova dos factos demonstrativos do incumprimento ou cumprimento defeituoso por parte do médico ou da desconformidade entre os actos praticados e as leges artis (ilicitude) e do nexo de causalidade entre esses actos e os danos, nos termos do art. 342.º, n.º 1 do CPC, defendendo que é o médico que tem que provar que agiu de acordo com as leges artis (conclusão 13.ª, 14.ª);
- as lesões e sequelas por si sofridas decorrem de erro médico ocorrido aquando da 1.ª cirurgia a que foi sujeito no dia 09.08.2011 e não de neurotoxicidade da raquianestesia  (conclusões 8.ª, 9.ª, 11.ª e 17.ª);
- constituiu erro terapêutico o facto de entre o final daquela 1.ª cirurgia e o início da 2.ª (dia 10.08.2011) terem decorrido 23 horas ou, por outras palavras, constitui erro de tratamento o facto de o diagnóstico e a terapia do hematoma espinhal ter ocorrido com grande atraso, ultrapassando o intervalo máximo de 6-8 horas, tendo essa demora sido determinante das lesões sofridas e da incapacidade definitiva do A. de 86% (conclusões 4.ª, 5.ª, 6.ª, 7.ª e 15.ª);
- não houve consentimento informado relevante, nem cumprimento do dever de informação adequada, sendo que, contrariamente ao entendido pelo tribunal a quo, competia aos RR. provar que cumpriam o referido dever (conclusões 18.ª e 19.ª).
Debrucemo-nos, então, separadamente, sobre cada uma das referidas questões.
5.3.1. No que respeita à primeira questão, é manifesta a falta de razão ao recorrente.
Com efeito, o recorrente confunde a presunção de culpa, inegavelmente decorrente do n.º 1 do art. 799.º do CC (e afirmada, com acerto, na sentença recorrida), com a prova da ocorrência do facto a ilícito (in casu, o incumprimento ou o cumprimento defeituoso do(s) contratos(s)), a cargo, naturalmente, do credor/lesado, por se tratar de facto constitutivo do seu direito à reparação (art. 342.º, n.º 1 do CC).
Acompanhamos, pois, a sentença recorrida, quando nela se afirma:
 «Por conseguinte, surge-nos como adquirido que o ónus da prova da diligência recairá sobre o médico, nos termos gerais de direito (cfr. citado artigo 799.º); mas que apenas relevará, caso o lesado logre produzir prova sobre a existência do vínculo contratual e dos factos demonstrativos do incumprimento ou do cumprimento defeituoso por parte do médico (ilicitude), nos termos gerais e para efeitos do preceituado no artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.
Antes de ocorrer a inversão do ónus da prova prevista no artigo 344.º, n.º 1, do Código Civil, incumbirá ao autor comprovar que houve cumprimento defeituoso da obrigação do réu, ou seja, caber-lhe-á produzir a prova dos factos constitutivos do direito invocado, designadamente de que a prestação foi cumprida defeituosamente por parte do médico contratado.
(…)
Caberia ao Autor alegar e provar a objetiva desconformidade entre os atos praticados e as leges artis – entendidas estas como o conjunto de regras, técnicas ou procedimentos aplicáveis a situações semelhantes, embora sem nunca perderem de vista o caso concreto (…).
Assim como lhe incumbia demonstrar o nexo de causalidade entre esses atos e os danos, para além desses mesmos danos. Já quanto à culpa, em sede de responsabilidade contratual haverá que considerar a presunção de culpa resultante do n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil (“Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua”), como se viu.
Efetivamente, a ilicitude do ato médico tem de ser demonstrada pelo lesado e se essa ilicitude foi, ou não, demonstrada no caso vertente é o que sobressai, de antemão; sem prejuízo de serem tidas em consideração as dificuldades do paciente no que concerne ao incumprimento/cumprimento defeituoso neste tipo de processos (…)».
Não desconhecemos que, em face das grandes dificuldades que o doente tem de provar o incumprimento dos deveres objectivos de cuidado, da culpa e do nexo de causalidade, tem-se entendido que o princípio da igualdade das partes e do equilíbrio na garantia do direito à prova impõem que se presuma a culpa do causador do dano, quando este surge como um facto excepcional, de acordo com a normalidade da sucessão de acontecimentos e com as regras da experiência, de tal modo que a verificação do dano deva ser tida como manifestação indubitável da escassez da diligência utilizada (cfr. neste sentido, André Dias Pereira, in Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, 2015, p. 780).
Sucede que, no caso que nos ocupa, as circunstâncias excluem o recurso à prova por primeira aparência (prova prima facie), uma vez que se provou, expressamente, que a cirurgia a que o A. se submeteu no dia 09.08.2011, bem como, diga-se, a raquianestesia, decorreram sem intercorrências (n.ºs 36 e 37 dos factos provados), não se tendo registado, nem verificado quaisquer lesões de estruturas nervosas (n.º 38 dos factos provados), sendo que a explicação possível para as queixas do A. reside na neurotoxicidade da raquianestesia, inesperada e imprevisível, resultante de uma relação idiossincrática entre o A. e as drogas administradas (n.º 48 dos factos provados).
Têm, pois, inteira aplicação ao caso dos autos as seguintes conclusões extraídas no acórdão do STJ de 06.01.2020, in www.dgsi.pt, que, pela sua pertinência, citamos: «V - Estando em causa a realização de uma intervenção cirúrgica com vista à excisão de uma hérnia discal, o médico fica obrigado, não a obter o resultado consistente na sua cura, mas apenas a executar a cirurgia dispensando ao doente os cuidados de saúde adequados à sintomatologia apresentada, fazendo uso das regras que a ciência médica mais recente prescreve para aquela concreta patologia. VI - Só há violação ilícita do direito do doente se o médico executar a cirurgia à revelia das leges artis vigentes, caso em que poderia falar-se em cumprimento defeituoso da obrigação a que estava adstrito. VII - Só a alegação e ulterior demonstração, por um lado, das regras conhecidas pela ciência médica em geral como sendo as apropriadas à execução da intervenção cirúrgica em causa, considerando o estado do doente – as leges artis – e, por outro, da sua não utilização com perícia e diligência por parte do médico, permitiriam que se afirmasse a ilicitude da conduta deste. VIII - Como elemento constitutivo do direito invocado pelo doente, é a ele que cabe a demonstração da ilicitude, enquanto falta de cumprimento, por parte de quem demanda como civilmente responsável, das leges artis ajustadas à sua situação de doença, ou seja, do incumprimento dos deveres tuteladores do seu direito de saúde» (sublinhado nosso).
Enfim, o tribunal a quo não violou o disposto nos arts. 799.º, n.º1, 342.º, n.ºs 1 e 2, 344.º, n.º 1 e 513.º do CC (este último, nem sequer foi convocado, na sentença recorrida, para a solução jurídica da causa…), improcedendo, a este respeito, as conclusões do recorrente.
5.3.2. No que concerne à segunda questão supra enunciada, defende o recorrente que as lesões e sequelas por si sofridas decorreram de erro médico/negligência/imperícia ocorridos aquando da 1.ª cirurgia a que foi sujeito no dia 09.08.2011 e não de neurotoxicidade da raquianestesia  (conclusões 8.ª, 9.ª, 11.ª e 17.ª).
Sustentou esta asserção nas alterações por si propugnadas quanto à matéria de facto, que, como se viu, não mereceram acolhimento.
No que concerne ao cumprimento das leges artis ou ao erro de execução da cirurgia, a sentença recorrida considerou que:
«(…) o Autor não logrou comprovar, na sua plenitude, a ilicitude da atuação do 2.º Réu como médico, conforme lhe incumbia nos termos gerais aplicáveis (cfr. artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil), em matéria de alegada violação das leges artis quando intervencionou cirurgicamente o Autor (lesão da dura) e, ainda, sobre a pretensa ausência de informação/consentimento quanto ao mesmo paciente; tal como o não fez (indemonstração no plano fáctico) no tocante aos putativos maus-tratos, como doente internado, pelo pessoal auxiliar ao serviço e nas instalações do (hospital) 1.º Réu.
(…)
Não resultou apurado que a atividade desenvolvida no tratamento do Autor – a primeira intervenção cirúrgica a que foi submetido – não fosse a adequada ou necessária ao tratamento do mal de que ele padecia. Não se provou, como já se viu e além do mais, que a paraplegia que o Autor sofreu tivesse sido provocada por lesão na dura; e que a invocada/suposta lesão a nível de L4 explicasse a situação clínica do Autor depois da intervenção cirúrgica de 9 de agosto de 2011.
De igual sorte, não resultou apurado que a dita intervenção cirúrgica tivesse sido realizada de forma deficiente ou defeituosa, nem mesmo que houvessem sido omitidos os atos necessários e adequados à situação clínica do Autor.
Antes se aquilatou, em concreto, e nomeadamente, que não se registaram nem verificaram, durante a mencionada intervenção, quaisquer lesões de estruturas nervosas. No âmbito da mesma intervenção de 9 de agosto de 2011, a punção para a raquianestesia não atingiu, nem traumatizou, o cone medular.
A razão principal para a suspeita de hematoma teve que ver com a circunstância de o Autor ter arritmia cardíaca, com a possibilidade de formação de trombos e/ou êmbolos, em especial durante cirurgias. Por isso, fora-lhe administrado medicamento anticoagulante – enoxaparina – para prevenir estes eventos; o risco desta medicação é, por vezes, sucederem hematomas pós-operatórios (conforme descrito na sua nota de alta).
O diário/resumo de enfermagem não regista quaisquer queixas do Autor em relação ao tratamento que teve no hospital, o qual se despediu de todo o pessoal auxiliar e enfermeiros mostrando-se agradecido pelos cuidados.
A explicação possível para as queixas do Autor deveu-se a neurotoxicidade da raquianestesia, inesperada e imprevisível, resultante de uma relação idiossincrática entre o Autor e as drogas administradas: ele continuou, após o tempo esperado para a reversão da anestesia, a apresentar marcada disfunção das raízes nervosas da “cauda equina”.
É que, na obrigação de meios acima sobejamente explicitada (cremos), o médico estará somente vinculado a prestar ao doente os melhores cuidados, em conformidade com as leges artis e os conhecimentos científicos atualizados e comprovados na data da intervenção (mas não a cura). Enfatizámos que a obrigação de meios emerge quando o “devedor” apenas se compromete a desenvolver prudente e diligentemente certa atividade para a obtenção de determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza.
(…)
Nessa medida, o que está em jogo no pleito cinge-se a uma obrigação de meios, sem dúvida. Ademais, complicações pós-operatórias, precoces ou mais tardias, podem sempre acontecer e influir numa situação cirúrgica sensível como a presente – desde hemorragias, hematomas, infeções, dor crónica, entre muitas outras sequelas possíveis, mais ou menos duradouras. Daí, todavia, à comprovada verificação efetiva de qualquer “erro médico”, de atuação desconforme com as “leis da arte médica”, vai um passo que – ressalvado o respeito devido pela situação do Autor, que é muito – não se deu in casu.
Por conseguinte, entre os factos provados não temos qualquer facticidade concreta que nos habilite a concluir, inequivocamente e com toda a segurança, que a atividade médica desenvolvida no tratamento do Autor se exercitou em desconformidade com as leges artis ou eivada de negligência».
O A. discorda deste entendimento, mas assenta as razões dessa discordância em factos que não resultaram demonstrados.
As alterações introduzidas na matéria de facto provada (coligidas no ponto 5.2.4) não alteram os pressupostos fácticos em que assentaram as conclusões do tribunal a quo supra transcritas, às quais não podemos deixar de aderir.
Não ficou, pois, demonstrada qualquer omissão de actos médicos que devessem ter sido praticados, nem a comissão de actos médicos que não devessem ter sido praticados, nem, finalmente, que tivessem sido praticados actos médicos de forma ineficiente, com violação das técnicas da profissão integradoras das respectivas leges artis.
Deveras, a matéria de facto provada e não provada não permite detectar nas consultas, nos diagnósticos, nas cirurgias realizadas ou no acompanhamento clínico do A., qualquer desconformidade da actuação dos RR. às leges artis ou qualquer desvio ao padrão de comportamento diligente e competente, por terem praticado as intervenções cirúrgicas de forma errada, deficiente ou leviana.
É certo que se provou que, após a cirurgia de 09.08.2011, ocorreram complicações pós-operatórias (n.ºs 11 e 42 dos factos provados), que o A. teve que ser sujeito a outra intervenção cirúrgica (que visou e permitiu excluir a causa mais provável das queixas do A. e explorar outras causas possíveis para a explicação do sucedido – n.º 43 dos factos provados) e que, na decorrência da intervenção cirúrgica de 09.08.2011, o A. padece de lesão neurológica irreversível.
Todavia, a factualidade que se apurou não permite afirmar a existência de erro médico ou qualquer outro acto ilícito e negligente que lhe tenha dado origem, nem que tenha sido uma eventual intercorrência da 1.ª cirurgia que tenha originado a necessidade da cirurgia subsequente.
E se, através da 2.ª cirurgia, foi possível perceber que o A. tinha um hematoma de pequena dimensão com efeito compressivo (n.º 44 dos factos provados), nada se provou que relacione esse hematoma com a execução da primeira cirurgia, antes se tendo provado que sua razão principal teve a ver com a circunstância de o A. ter arritmia cardíaca, com possibilidade de formação de trombos e/ou êmbolos, em especial durante cirurgias (n.º 45 dos factos provados).
Improcedem, aqui também, todas as conclusões do recorrente.
5.3.3. Em relação à terceira questão sobredita, advoga o recorrente que, entre o final da 1.ª cirurgia a que foi sujeito e o início da 2.ª cirurgia, decorrem 23 horas, o que  constituiu um erro terapêutico, por o diagnóstico e a terapia do hematoma espinhal ter ocorrido com grande atraso, ultrapassando o intervalo máximo de 6-8 horas, sendo essa demora a razão determinante das lesões sofridas e da incapacidade definitiva de que ficou a padecer (conclusões 4.ª, 5.ª, 6.ª, 7.ª e 15.ª);
Desde logo, importa ter presente que esta matéria não foi invocada na petição inicial, nem em qualquer outro articulado superveniente, não podendo ser qualificada de concretizadora e, muito menos, instrumental.
Na verdade, compulsada a petição inicial, verifica-se que os únicos factos ilícitos imputados pelo A. aos RR. foram:
- informação incorrecta ou insuficiente quanto à 1.ª cirurgia (art. 8.º);
- aplicação, na 1.ª cirurgia, de uma anestesia diversa da que o A. pretendia (arts. 11.º e 13.º);
- falta de informação e de consentimento para a 2.ª cirurgia (arts. 20.º e 21.º);
- falta de explicação sobre os tratamentos de fisioterapia (art. 26.º);
- imperícia, imponderação, negligência grosseira, erros anestésicos e cirúrgicos (na 1.ª cirurgia), que lesaram a dura-máter e causaram a paraplegia e incapacidade do A. e a perda de capacidade de ganho (arts. 33.º, 34.º, 40.º, 55.º, 58.º, 66.º e 69.º);
- maus-tratos, humilhações, vexames e inconsiderações do pessoal de enfermagem e auxiliar e dos terapeutas (arts. 24.º, 25.º, 28.º, 29.º, 30.º, 61.º e 69.º).
 Vê-se, pois que o A., embora alegando, genericamente, a existência de erro médico e de negligência dos RR., não os relacionou ou sustentou no atraso (superior a 6-8 horas) no diagnóstico e na terapia do hematoma espinhal, tanto que tal matéria não consta dos temas da prova, nem foi, por isso, objecto de instrução, antes constitui uma questão de facto nova, que não pode ser conhecida por este tribunal superior.
Com efeito, é, comummente, entendido que a causa de pedir é o acto ou facto jurídico concreto de onde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer e que é legalmente idóneo para o condicionar ou produzir (art. 581.º, n.º 4 do CPC).
Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas (arts. 5.º, n.º 1 e 552.º, n.º 2 al. d),  do CPC), entendendo-se por “factos essenciais” aqueles que integram o núcleo primordial da causa de pedir e que desempenham uma função individualizadora da mesma.
Ora, no caso dos autos, os factos essenciais, integradores e individualizadores da causa de pedir, são os supra enunciados, dos quais o A. retira o direito de indemnização que pretende fazer valer.
Já os factos relativos à demora da 2.ª cirurgia escapam, completamente, ao núcleo dos factos essenciais que compõem a causa de pedir da acção, tal como foi configurada na petição inicial, constituindo factos novos, que não foram objecto de uma oportuna ampliação da causa de pedir e que não podem ser atendidos.
E nem se diga que os factos em causa assumem a natureza de meros factos concretizadores, pois que os mesmos não têm como propósito pormenorizar, densificar ou explicitar o quadro fáctico exposto, antes cumprindo uma nova função individualizadora do tipo legal.
Os recursos têm por escopo a reapreciação daquilo que foi decidido, estando vedado ao tribunal de recurso o conhecimento de questões novas, com excepção daquelas que devam ser de conhecimento oficioso (cfr. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 7.ª ed., 2022, p. 139, e acórdãos do STJ de 02.06.2015 e 08.10.2020 in www.dgsi.pt., no último dos quais se escreveu: «(i)  Os recursos são meios a usar para obter a reapreciação de uma decisão mas não para obter decisões de questões novas, isto é, de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes perante o tribunal recorrido. (ii) - As questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos: destinam-se a reapreciar questões e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprir um ou mais graus de jurisdição, prejudicando a parte que ficasse vencida»).
Mas, ainda que se entendesse que os factos em causa são, meramente, complementares ou concretizadores da causa de pedir invocada e que decorreram da instrução da causa, sempre teríamos que o A./recorrente não peticionou, no recurso interposto, que esta Relação se substituísse à 1.ª instância e os considerasse como provados, com base nos elementos probatórios constante dos autos (conforme melhor se explanou no ponto 5.2.2).
De resto, a factualidade apurada não permite concluir que a actuação médica e a prestação dos cuidados necessários posterior à cirurgia de 09.08.2011 tenham sido tardias e inadequadas e, muito menos, que tenha sido por isso que o A. ficou a padecer das sequelas descritas nos factos provados (que são, todas elas, subsequentes à 1.ª cirurgia).
Cai, pois, por terra o argumento, só agora trazido pelo recorrente ao processo, de que ocorreu uma violação do dever de intervenção tempestiva por parte dos RR., improcedendo, mais uma vez, as conclusões do recorrente.
5.3.4. Finalmente, defende o recorrente que não houve consentimento informado relevante da sua parte, nem foi cumprido o dever de informação adequada, sendo que competia aos RR. a prova do cumprimento desse dever (conclusões 18.ª e 19.ª).
Aqui, a sentença recorrida considerou que:
«Na situação debatida, ficou por demonstrar a falta de informação ao paciente por banda do 2.º Réu, ou a ausência de consentimento deste para a consecução de qualquer das intervenções cirúrgicas em apreço. Cumpre aditar que o Autor é pessoa de elevada instrução, sendo inverosímil que fosse desconhecedora dos atos a que se iria sujeitar.
A facticidade apurada e em presença milita a que, pelo menos, o Autor não se encontrava alheado do alcance da(s) intervenção(ões) a que se iria submeter, ou dos eventuais riscos e contingências que daí emanassem. Inclusive, no tocante aos tratamentos ulteriores de fisioterapia ministrados, jamais se constatou que houvessem sido iniciados sem que ao demandante tivesse sido fornecida qualquer explicação prévia».
Dispensamo-nos, neste lugar, de desenvolver maiores considerações sobre a vinculação dos RR. ao dever de informação adequada e de recolha de consentimento informado do paciente, por ter sido abordada com clareza e pertinência na sentença recorrida (cfr. arts. 44.º e 45.º do Código Deontológico dos Médicos, aprovado pelo Regulamento n.º 14/2009, de 13.01, em vigor à data dos factos, e, por exemplo, André Dias Pereira, in Consentimento Informado, Centro de Direito Biomédico, Coimbra, 2006, e Rute Teixeira Pedro, in A responsabilidade civil do médico – Reflexões sobre a noção da perda de chance e a tutela do doente lesado, Centro de Direito Biomédico, número 15, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p.78).
Ora, no caso dos autos, no que concerne à 1.ª cirurgia realizada, provou-se que:
«1. Após a realização de vários exames auxiliares de diagnóstico e consulta de neurocirurgia no Hospital Particular do Algarve, efetivada no dia 2 de agosto de 2011, o 2.º Réu – médico neurocirurgião – propôs ao Autor o internamento no Hospital (...), sito em Lisboa, pertença do 1.º Réu, bem como a realização de uma cirurgia à coluna lombar (cfr. documentos de fls. 19 a 22);
2. A cirurgia consistiria, segundo o dito médico, numa “Foraminectomia, Discectomia e Recalibração do Canal Lombar em 2 níveis (L3-L4 e L4-L5)” (cfr. documento de fls. 21 e 22);
3. O Autor consentiu em ser internado nas instalações do Hospital (...), no dia 8 de agosto de 2011, como aconselhado pelo 2.º Réu».
Desta factualidade decorre que ao A. foi proposta uma cirurgia à coluna lombar e que lhe foi fornecida informação atinente ao que consistia essa cirurgia (que o A. revelou ter entendido bem, tanto que alegou, embora sem o ter provado, que chegou a questionar os serviços hospitalares sobre supostas divergências quanto à descrição dos actos cirúrgicos que constavam do orçamento que lhe foi apresentado, por comparação com as informações que lhe foram fornecidas pelo médico), tendo o A. consentido em ser internado no hospital 2.º R. para o efeito.
No que respeita à desnecessidade de consentimento escrito, reproduzimos neste lugar as palavras de André Dias Pereira, in Consentimento Informado, Centro de Direito Biomédico, Coimbra, 2006, p. 43: «em regra, segundo as leis portuguesas, não é necessário consentimento escrito. Todavia, certas intervenções carecem – nos termos da lei – de consentimento escrito: a interrupção voluntária da gravidez, a esterilização, o diagnóstico pré-natal, “sempre que possível”, os testes genéticos, a electroconvulsoterapia e intervenções psico-cirúrgicas, os ensaios clínicos em seres humanos, as transplantações entre vivos. Para além disto, a Direcção Geral de Saúde, através da Circular Informativa da DGS n.º 15/DSPCS, de 23- 03-98, recomendou a utilização de formulários escritos, em especial quando estejam em causa intervenções médicas, de diagnóstico ou cirúrgicas, que impliquem um risco sério para a vida ou a saúde do doente. Assim, na medida em que a Direcção Clínica do Hospital ou do Serviço exija a utilização dos formulários de consentimento informado, o médico tem o dever de serviço de cumprir esta formalidade. Neste caso, o consentimento deve ser prestado por escrito – não por força de uma lei, mas por força de uma ordem hierárquica. No âmbito da medicina privada, os médicos têm de cumprir as leis que, excepcionalmente, impõem o consentimento escrito. Mas não estão obrigados às instruções vigentes no Sistema Nacional de Saúde».
Também esta Relação, em acórdão de 10.02.2022, in www.dgsi.pt, entendeu que: «Tal consentimento informado pode ser prestado por escrito ou oralmente, atento o disposto no art.º 48.º, n.º 1 do Código Deontológico dos Médicos».
De resto, não decorre da factualidade provada que a cirurgia, efectivamente, realizada no da 9.08.2011 tenha sido outra, diversa da programada, para a qual o A. não tenha prestado consentimento.
No que concerne à raquianestesia, importa salientar que, em sede de petição inicial, o A., apenas, alegou que pretendia que lhe fosse aplicada anestesia geral, o que não se provou (ponto IV do factos não provados). O A. nada invocou, nesse lugar, quanto à falta de informação sobre a anestesia que lhe foi ministrada e, muito menos, que não tenha havido consentimento da sua parte para a mesma (sendo certo que na raquianestesia o doente não fica inconsciente e, embora o A. tenha adormecido durante a cirurgia, terá, certamente tido, inicialmente, percepção de que não lhe foi ministrada uma cirurgia geral).
No que toca à 2.ª cirurgia, o A. alega que não lhe foi prestada qualquer informação ou pedido de consentimento, nada se tendo, efectivamente, provado quanto a tanto.
Ora, estando-se em face de facto impeditivo do direito da A., competia aos RR., contrariamente ao entendimento perfilhado na sentença recorrida, provar a existência do consentimento informado, por ser este o entendimento que mais promove a igualdade de armas no processo e a igualdade na aplicação do direito (cfr. André Dias Pereira, Responsabilidade Civil em saúde e Violação do Consentimento Informado na Jurisprudência Portuguesa Recente, in Revista Julgar, n.º 42, 2020, e acórdãos do STJ de 02.06.2015, 16.06.2015, de 22.03.2018, 01.12.2020, 18.01.2022, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Sucede que se provou que era urgente a realização da 2.ª cirurgia descompressiva e que a mesma tinha como objectivo identificar as causas possíveis das queixas do A. (cfr. n.ºs 18 e 43 dos factos provados). Aliás, o próprio A. defende nas suas alegações que tal intervenção deveria ter ocorrido com maior urgência ainda, no que deixa subentendido o seu acordo tácito à sua realização: não só concordava com a mesma, como queria que acontecesse mais depressa.
Mas ainda que a factualidade apurada seja insuficiente para poder considerar-se verificado o consentimento tácito do A., sabemos que, em situações de urgência, em que a não intervenção criaria riscos comprovados para o próprio paciente, admite-se o consentimento presumido.
Com efeito, dispõe o art. 39..º do Código Penal, que:
 «1 - Ao consentimento efectivo é equiparado o consentimento presumido.
 2 - Há consentimento presumido quando a situação em que o agente actua permitir razoavelmente supor que o titular do interesse juridicamente protegido teria eficazmente consentido no facto, se conhecesse as circunstâncias em que este é praticado».
E o art. 156.º do mesmo diploma estatui que:
«1 - As pessoas indicadas no artigo 150.º que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos sem consentimento do paciente são punidas com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2 - O facto não é punível quando o consentimento:
a) Só puder ser obtido com adiamento que implique perigo para a vida ou perigo grave para o corpo ou para a saúde; ou
b) Tiver sido dado para certa intervenção ou tratamento, tendo vindo a realizar-se outro diferente por se ter revelado imposto pelo estado dos conhecimentos e da experiência da medicina como meio para evitar um perigo para a vida, o corpo ou a saúde;
e não se verificarem circunstâncias que permitam concluir com segurança que o consentimento seria recusado».
Sobre o consentimento hipotético, escreveu-se no acórdão do STJ de 02.06.2015, in www.dgsi.pt, que o mesmo «(…) obedece aos seguintes requisitos: 1) que tenha sido fornecida ao paciente um mínimo de informação; 2) que haja a fundada presunção de que o paciente não teria recusado a intervenção se tivesse sido devidamente informado; 3) que a intervenção fosse: i) medicamente indicada; ii) conduzisse a uma melhoria da saúde do paciente; iii) visasse afastar um perigo grave; 4) a recusa do paciente não fosse objetivamente irrazoável, de acordo com o critério do paciente concreto. O ónus da prova do consentimento hipotético, como forma de mitigar a responsabilidade médica, pertence ao médico e aplica-se aos casos de violações menos graves do dever de informação, mas não aos casos de violações graves do dever de informação, por exemplo, omissão de esclarecimento de riscos significativos de uma operação, e, por maioria de razão, aos casos em que falta de todo a prestação de consentimento (intervenções médicas não autorizadas » (cfr., no mesmo sentido, André Dias Pereira, Ob. Cit., p. 485).
E no acórdão do STJ de 08.09.2020, in www.dgsi.pt, que «compete à instituição de saúde – e/ou médico – provar que, mesmo que houvesse cumprido corretamente os seus deveres de informação, o paciente se teria comportado do mesmo modo, tomando a mesma decisão. Não deve admitir-se a invocação da figura do consentimento hipotético quando estejam em causa violações graves dos deveres de conduta da instituição de saúde – e/ou do médico –, como sucede quando aquela omite informações fundamentais ou essenciais para a autodeterminação do paciente».
Volvendo ao caso do autos, temos que a intervenção cirúrgica realizada no dia 10.08.2011 revestia carácter urgente e era absolutamente necessária para evitar o agravamento da lesão, que afectaria, negativamente de forma permanente, a qualidade de vida do A., pelo que, em face das circunstâncias do caso concreto, afigura-se-nos razoável presumir o consentimento do A., tendo em conta os interesses em causa e a ponderação entre a acção e a omissão.
De resto, e como se disse, é o próprio recorrente que, nas alegações, defende a necessidade e a urgência - mais, a emergência - dessa cirurgia, o que permite entender que a sua vontade esclarecida seria a de a ela se submeter e que teria, sem margem de dúvidas, consentido na sua realização, se lhe tivesse sido pedida.
Por último, importa ter em conta que as lesões e sequelas de que ficou a padecer o A. nada têm que ver com a realização da 2.ª cirurgia, pelo que a alegada falta de consentimento para a realização da mesma, traduzindo-se, é certo, numa interferência não consentida e ilícita na sua integridade física, não é causal dos danos verificados, não sendo dessa intervenção ilícita, mas quanto muito da primeira, que teriam emergido os danos corporais e patrimoniais invocados.
É que, embora a intervenção no corpo do paciente não consentida seja ilícita, só haverá dever de compensar os danos patrimoniais e não patrimoniais que tenham sido causados por essa intervenção, o que não sucede no caso dos autos.
E, assim sendo, improcedem, também nesta matéria, as conclusões do recorrente.
5.4. Aqui chegados, conclui-se que não se encontram-se preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil: a ilicitude (incumprimento do(s) contrato(s) de prestação de serviços e das regras de conduta decorrentes da ética médica e do Código Deontológico aprovado pelo Regulamento n.º 14/2009, de 13.01, em vigor à data dos factos nomeadamente, da obrigação de obter um consentimento informado) e o nexo de causalidade entre o facto – erro médico/intervenção médica não consentida – e o dano (patrimonial e não patrimonial).
Soçobram, assim, todas as conclusões recursivas, devendo manter-se a sentença recorrida.
O recorrente suportará as custas do recurso, por ter ficado vencido (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).

VI – DISPOSITIVO
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar totalmente improcedente a apelação interposta pelo A., confirmando-se, por consequência, a sentença recorrida.
Custas da apelação e do incidente supra referido no ponto II pelo apelante, fixando-se em uma UC a taxa de justiça desse incidente.
Notifique.
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Lisboa, 21.03.2024
Rui Oliveira
Carla Mendes
Carla Figueiredo