Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13272/22.0T8LSB.L1-2
Relator: RUTE SOBRAL
Descritores: MEIO DE PROVA
DECLARAÇÕES DE PARTE
VALORAÇÃO
LIVRE APRECIAÇÃO
PRESCRIÇÃO
CONTRATO DE TRANSPORTE
TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS
OBRIGAÇÃO DE RESULTADO
CONVENÇÃO CMR
PERDA DA MERCADORIA
LIMITE DA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I–Vigorando no regime processual civil português o princípio da apreciação livre das declarações de parte, como decorre do artigo 466º, nº 3, do Código de Processo Civil, não deve, a priori, o seu valor probatório ser reduzido a uma função meramente subsidiária das demais provas ou a princípio de prova.

II–Ao invés, devem as declarações de parte ser objeto de livre valoração, devendo, casuisticamente, ser apreciado o seu contributo para o esclarecimento da matéria controvertida, e a necessidade de corroboração noutros meios de prova.

III–Os prazos de prescrição consagrados no regime jurídico dos contratos de transporte nacional (Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de outubro, com as alterações operadas pelo Decreto-Lei n.º 145/2008, de 28 de julho, e pelo Decreto-Lei n.º 57/2021, de 13 de julho) e internacional (regulado pela Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, concluída em Genebra em 18 de maio de 1056, a que Portugal aderiu mediante o Decreto-Lei nº 46235), atenta a especialidade da respetiva regulamentação, prevalecem sobre o prazo ordinário da prescrição consagrado no artigo 309º do Código Civil.

IV–O contrato de transporte, possuindo como objetivos a deslocação de pessoas ou mercadorias para o local convencionado, gera para o transportador uma obrigação de resultado.

V–Na relação contratual de transporte internacional, se o expedidor não demonstrar qualquer atuação dolosa (ou gravemente culposa) da transportadora, a indemnização devida pela perda da mercadoria (cujo valor não foi especificado no momento da expedição) deve ficar limitada ao disposto no artigo 23º CMR, sendo de afastar a aplicabilidade do regime do artigo 29º daquele diploma.



Sumário (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:


I–RELATÓRIO


1.1–A., identificado nos autos, instaurou a presente ação declarativa comum, em 25-05-2022, contra CTT Expresso-Serviços Postais e Logística, SA, igualmente identificada nos autos, pedindo a condenação da ré no pagamento das seguintes quantias, acrescidas de juros à taxa legal:
- € 32.658,71 (trinta e dois mil, seiscentos e cinquenta e oito euros e setenta e um cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais;
- € 1.000,00 (mil euros), a título de danos não patrimoniais.
Fundamentando tais pretensões, invoca o autor ter recorrido aos serviços de transporte de mercadorias, nacional e internacional, da ré. Sucede que os produtos cujo transporte o autor solicitou à ré nem sempre foram entregues ao destinatário, ou foram entregues partidos, o que lhe causou prejuízos, de natureza patrimonial e não patrimonial, de que pretende ser ressarcido por via da presente ação.

1.2–A ré contestou a ação, arguindo a exceção de prescrição, por terem decorrido mais de dois anos desde a data da expedição das mercadorias em causa. Alegou ainda que o autor procedeu a um insuficiente embalamento da mercadoria, o que, aliado ao seu conteúdo frágil, esteve na origem do sucedido. Por outro lado, apenas para um dos transportes o autor contratou o serviço frágil”.
Acresce que nos termos da legislação aplicável, a ré apenas responderia se a perda, extravio ou dano na mercadoria lhe pudessem ser imputados a título de culpa grave, operando ainda os limites indemnizatórios legalmente previstos.
Concluiu a ré pugnando pela improcedência da ação, com a sua consequente absolvição do pedido.

1.3–Convidado o autor a exercer contraditório relativamente à matéria de exceção arguida na contestação, pronunciou-se considerando que o prazo de prescrição aplicável é o de 20 anos, previsto no artigo 309º do Código Civil, dado que a questão em litígio reside no não cumprimento da obrigação de entrega das mercadorias. E mesmo que se considerasse o prazo de prescrição de um ano, sempre teria que considerar-se que as sucessivas reclamações por si apresentadas interromperam o referido prazo.
Concluiu o autor que a exceção de prescrição deveria ser julgada improcedente, reiterando a pretensão deduzida na petição inicial.

2–Dispensada a realização de audiência prévia, em face da simplicidade da causa, foi proferido despacho saneador, no qual foi relegada para a sentença a apreciação da exceção de prescrição, por depender de prévia produção de prova.
Foi identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.

3–Realizada audiência de julgamento, com produção de prova, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, constando do seu dispositivo o seguinte:
Em face do exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente e, em consequência, condeno a ré a pagar ao autor a quantia de € 52,40, acrescida de juros legais de mora, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento”

4–Não se conformando com a decisão proferida, o autor dela interpôs recurso, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que, julgando a ação procedente, condene a ré no pedido, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1.Vem o presente recurso interposto da Sentença proferida nos presentes autos e que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Ré CTT Expresso - Serviços Postais e Logísticos, SA. a pagar ao Autor a quantia de €52,40, acrescida de juros legais de mora, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento, absolvendo a Ré, ora Recorrida, do demais peticionado pelo Autor.
2.Ora, salvo o devido respeito, que é muito, o ora Recorrente discorda da decisão adotada e promulgada pelo Tribunal a quo, pois que, no seu entender, entende que a sentença em apreço incorre em manifesto erro de apreciação da matéria de facto.
3.Tendo em conta o elenco dos factos considerados como provados, dúvidas não restam que o Autor, ora Recorrente, contratou os serviços da Ré, aqui Recorrida, para transporte de mercadorias e, mais concretamente, de garrafas de vinho.
4.Relativamente ao embalamento/acondicionamento das garrafas de vinho, deveria o Tribunal a quo ter dado como facto provado o facto descrito sob a alínea al), segundo a qual “a mercadoria objeto das guias de transporte identificadas nos factos provados n.ºs 7º e 25º encontrava-se acondicionada de modo suficiente a evitar a sua quebra”.
5.Ressalvado o devido respeito, não pode o Recorrente deixar de mencionar que o Tribunal a quo mal andou quando decidiu da forma como o fez, ignorando o alegado, porquanto o depoimento das testemunhas B. e C., bem como as declarações de parte do Autor, vão em sentido totalmente contrário.
6.Estes testemunhos não foram devidamente valorados e tomados em consideração pelo Tribunal a quo. Se o fossem, a decisão teria sido bem diversa, uma vez que as testemunhas são claras ao afirmar que assistiram por inúmeras vezes ao processo de acondicionamento/embalamento das garrafas executado pelo Autor, ora Recorrente, bem como salientam o quão cauteloso e diligente era, impedindo-os até de mexer nas embalagens, por forma a garantir o cabal acondicionamento das mesmas.
7.Por seu turno, valorizou-se o depoimento da testemunha D., funcionária da Ré, ora Recorrida, quando foi a própria a indicar que o modo de acondicionamento/embalamento das garrafas contratando a taxa CTT era semelhante – senão igual – ao modo como o Recorrente embalava/acondicionava as suas garrafas, tal qual como descrito pelo próprio e pelas testemunhas supra indicadas ao douto Tribunal.
8.Em boa verdade, a testemunha clarifica o modo como as garrafas se deviam encontrar acondicionadas/embaladas – em “caixas de cartão” e “papel bolha” – à semelhança de como o Autor, ora Recorrente, explicou e descreveu ao douto tribunal a quo como procedeu ao embalamento das suas encomendas.
9.Se num primeiro momento a testemunha D. afirma convictamente o modo como as garrafas se encontravam – na sua ótica - mal acondicionadas, no momento a seguir já é a própria a mencionar ao douto tribunal a quo que não se via bem pelas fotografias enviadas pelo cliente, vendo apenas garrafas completamente danificadas/partidas.
10.Então em que é que ficamos? Como pode a testemunha da Ré, ora Recorrida, afirmar com toda a clareza que os embalamentos realizados pelo Autor, aqui Recorrente, foram mal-acondicionadas quando é a própria a assumir que “não dava para ver”?
11.As suas palavras não logram, assim, dar sustento justificativo satisfatório à decisão de que aqui se recorre, ao passo que o depoimento das testemunhas B. e C., bem como as declarações de parte do Autor, foram absolutamente elucidativas quanto a este ponto.
12.Ademais, mal andou a Mma. Juiz a quo quando afirma que “É o próprio autor que declarou em julgamento não se recordar das características, quantidades e valores dos vinhos que embalou, acondicionou e cujo transporte, nacional e internacional, solicitou à ré”.
13.Parece-nos natural que o Recorrente não se recorde de forma pormenorizada acerca dos nomes e moradas de todos os compradores com quem contratou e das características, quantidades e valores exato dos vinhos que embalou, isto porquanto, conforme comprovado perante o douto tribunal, o Recorrente dedicou-se a esta atividade de leilões durante, pelo menos, dois anos.
14.Por conseguinte, no exercício dessa atividade, e em virtude das dezenas, senão centenas de encomendas realizadas pelo Recorrente, naturalmente que o mesmo recorria aos serviços da Recorrida, bem como de outras empresas de transporte
15.Ademais, o Recorrente realizou várias encomendas com recurso aos serviços da Ré, ora Recorrida, sendo que umas correram dentro da normalidade e em conformidade com o contratado entre as partes e não se encontram em objeto de discussão nos presentes autos.
16.No que diz respeito ao valor dos vinhos, foi o próprio Autor, ora Recorrente, que indicou que eram leiloados “sobretudo vinhos de qualidade para puder ser leiloado que eles não aceitam vinhos qualquer”. (das 14:52 às 15:33, minuto 00:20:34 até às 00:20:42), entre os quais nomeou “a mais cara de todas seria uma garrafa de um vinho da madeira na ordem dos 7 mil e tal euros, ela no mercado nacional e internacional está marcada a oito mil e qualquer coisa e ela foi leiloada por 7 mil e poucos euros” (minuto 00:21:02 até às 00:21:20).
17.Para além disso, a testemunha C. questionado sobre o valor das garrafas disse tratarem-se de “umas mais especiais que as outras” e ter noção do valor de algumas garrafas porque “vi algumas garrafas. Não lhe posso dizer os nomes, porque não me recordo especificamente, mas vi bastantes garrafas com valores já… pronto que para uma pessoa vai a um restaurante e não pede um vinho daqueles em qualquer restaurante, por exemplo (…) eu vi várias garrafas com valor bem superior aos €100,00 ou €150,00, facilmente aliás”. (das 15:40 às 15:48, minuto 00:03:50 até às 00:04:28)
18.Os factos não provados sob as alíneas a), b), e) h), j), k), l), n), p), q), s), t), u), x), z), aa), ab), ad), ae), af) deveriam ser considerados como provados, devendo ser reconhecido que o Autor, aqui Recorrente, recorreu aos serviços da Ré, ora Recorrida, para enviar a mercadoria conforme foi discriminada nos presentes autos e consta, inclusive, das faturas já juntas.
19.Quanto à análise das faturas comprovativas dos prejuízos sofridos pelo Recorrente verifica-se que houve uma total incúria na sua apreciação pelo Tribunal a quo, sendo evidente que tais faturas revestem uma importância crucial já que o Recorrente concretiza nas ditas faturas os valores exatos das mercadorias enviadas aos seus clientes com recurso aos serviços prestados pela Ré, ora Recorrida
20.Assim, mal andou a douta sentença quando fundamenta a sua convicção que “O tribunal não duvida que o autor solicitou e que a ré transportou mercadoria com o peso descrito em cada uma das guias de transporte. Porém, não há prova de que essa mercadoria corresponda aos vinhos descritos nas faturas-recibos impugnadas pela ré.”.
21.Diga-se que, essa é uma ilação que, salvo melhor entendimento, não se ancora em qualquer dos documentos juntos em sede de Audiência.
22.Basta analisar as guias de transporte e as faturas juntas aos presentes autos para constatar que os destinatários identificados nas ditas guias de transporte são exatamente os mesmos nomes que constam das faturas juntas aos autos, bem como as datas das mencionadas faturas correspondem precisamente às datas de envio constantes das guias de transporte.
23.Não se concebe a razão porque o Tribunal a quo logrou convencer-se que “No que concerne à entrega de mercadoria partida ao destinatário, inexistem provas que apontem no sentido afirmado pelo autor quer na petição inicial, quer no julgamento. Não foram juntas fotos ou troca de correspondência entre o autor e os destinatários que ateste essa ocorrência”.
24.Aliás, conforme o que foi referido pela Testemunha D., é a mesma a afirmar várias vezes a existência de fotografias enviadas pelo Recorrente à Recorrida que atestam a entrega de mercadoria partida ao destinatário.
25.Cumpre salientar que, foram igualmente juntos aos autos documentos comprovativos de troca de correspondência entre Autor e comprador (já junta como doc. n.º 3 na Petição Inicial), bem como sucessivas reclamações entre o Recorrente e a Recorrida pela falta de entrega de mercadoria ou pela entrega da mercadoria danificada.
26.No que diz respeito às guias de transporte n.ºs CE 802654197PT e CE802705203PT (Irlanda), o tribunal a quo deveria ter considerado como factos provados os factos não provados sob as alíneas a) a g).
27.Tudo isto foi desconsiderado pelo Tribunal a quo, pese embora tenha ficado claro que a mercadoria não foi entregue ao destinatário na Irlanda pela prova documental já junta com a Petição Inicial, onde o próprio comprador Sean Spencer questiona o Autor, ora Recorrente, sobre o paradeiro da encomenda.
28.De facto, retira-se isso mesmo atendendo às declarações prestadas pelo Autor, ora Recorrente, ao Tribunal a quo, fazendo-o de forma segura e convicta, reveladora de respostas verdadeiras.
29.De igual modo, mal andou a douta sentença ao considerar que “o autor não juntou qualquer comprovativo do alegado reembolso”. Note-se que, o Tribunal a quo desconsiderou (indevidamente) a referência feita pelo Autor e que merecera toda a credibilidade no que diz respeito à forma como este recebia a generalidade dos pagamentos por intermédio da plataforma de leilões denominada Catawiki.
30.Urge questionar como poderia o Autor juntar comprovativo da transação efetuada, deduzidas as comissões pagas à leiloeira, quando não foi possível ao Recorrente lograr concretizar o negócio, por culpa imputável à Recorrida.
31.Conforme explicado ao douto tribunal, só no momento da entrega da mercadoria ao destinatário (em plenas condições) é que se efetuava a transação entre a plataforma de leilões e o Autor, deduzindo-se as comissões que seriam pagas à leiloeira.
32.A falta de entrega da mercadoria, ainda que por culpa imputável à Recorrida, seria condição sine qua non para que o pagamento não se efetivasse. Assim, há que salientar que não obstante o cliente não ser reembolsado pelo comprador, o Autor, aqui Recorrente, já tinha despendido uma quantia monetária corresponde ao valor dos vinhos enviados, bem como das despesas de embalamento e despesas de transporte com recurso aos serviços da Ré, ora Recorrida.
33.Acresce que, quanto à mercadoria com destino a Roma, Itália, objeto da guia de transporte n.º CE802704976PT, datada de 06/05/2020, resultou demonstrado que a mesma não foi entregue.
34.Nos termos da douta sentença, “Autor e ré não convencionaram prazo de entrega desta mercadoria. Porém, nos termos do artigo 20º, n.º 1, da CMR, é forçoso concluir que, tendo decorrido mais de 60 dias desde a entrega da mercadoria (em 06/05/2020) ao cuidado do transportador sem que este tenha demonstrado a sua entrega ao destinatário, a mercadoria se deve considerar perdida na sua totalidade, o que confere ao expedidor o direito a receber uma indemnização.”
35.Em face de tudo o quanto foi exposto, e tendo sido dado como facto provado que a mercadoria efetivamente não foi entregue ao comprador, dúvidas não restam que o Autor, aqui Recorrente, deveria ser reembolsado pelo valor da mercadoria no montante de €1320,00.
36.Todavia, o Tribunal a quo assim não entendeu, alicerçando-se na circunstância de “Considerando que, no caso sub judice, não resultou demonstrado que o autor tivesse declarado o valor da mercadoria, ou sequer as suas características (nomeadamente garrafas de vinho), a indemnização deve ser calculada apenas em função do peso bruto transportado (in casu, 5kgs), nos termos do artigo 23º da CM”
37.Nessa conformidade, e exatamente para acautelar a posição mais débil daquele que contrata o serviço, neste caso do Recorrente, o legislador positivou no n.º 1 do artigo 17.º da CMR que “o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora na entrega”.
38.A este propósito, refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que:IV.- A indemnização compreende o valor da perda da mercadoria avariada, incluindo o lucro cessante”. – Cfr. Acórdão do STJ, datado de 12/10/2017, Processo n.º 4858/12.2TBMAI.P1.S11, disponível in www.dgsi.pt.
39.Acresce que, parece-nos da mais elementar justiça que o Recorrente ao contratar um serviço para transporte de garrafas de vinho que não são entregues ao destinatário, por culpa imputável à Recorrida, seja indemnizado pelo valor dessa efetiva perda
40.Não restam dúvidas face à prova produzida que o Autor, ora Recorrente, recorreu a uma plataforma de leilões para proceder à venda das aludidas garrafas de vinho. De igual modo, parece-nos também que uma plataforma de leilões conhecida internacionalmente como a “Catawaki” jamais permitiria que se leiloassem garrafas de vinho sem atestar a veracidade e autenticidade dos produtos em causa. Isso mesmo é confirmado pelo Autor perante o Tribunal a quo.
41.Tudo isto torna simplesmente indefensável aplicar o valor indemnizatório pré-fixado, rejeitando-se por completo essa decisão da douta sentença da qual se recorre.
42.Ademais, não se compreende como pode a douta sentença recorrida considerar como facto não provado o facto sob a alínea i) referente à Guia de transporte n.º DA286927554PT em face de toda a prova produzida.
43.Ora, a partir do momento em que a Recorrida assume perante o aqui Recorrente que as garrafas foram danificadas e, por conseguinte, assume a responsabilidade de proceder à devolução das restantes garrafas que permaneceram intactas, parece-nos, e salvo melhor opinião, que é da única e exclusiva responsabilidade da aqui Recorrida que as aludidas garrafas cheguem ao destinatário em perfeitas condições.
44.Assim não sendo, parece-nos também que é da única e exclusiva responsabilidade da Recorrida assumir o reembolso do valor dessas mesmas garrafas, bem como das despesas de transporte.
45.Relativamente à Guia de Transporte DA287914720PT, não obstante o Autor, ora Recorrente, ter contratado o serviço especial da taxa frágil e garantindo as melhores condições de acondicionamento, o objeto não foi entregue ao destinatário nem devolvido ao aqui Recorrente.
46.Na douta sentença é referido que “quanto à mercadoria com destino a Amadora, objeto da guia de transporte n.º DA287914720PT, datada de 06/05/2020, resultou demonstrado que a mesma não foi entregue. Autor e ré não convencionaram prazo de entrega desta mercadoria. Porém, nos termos do artigo 19º, n.º 2, do DL n.º 239/2003, é forçoso concluir que, tendo decorrido mais de 15 dias desde a entrega da mercadoria (em 06/05/2020) ao cuidado do transportador sem que este tenha demonstrado a sua entrega ao destinatário, a mercadoria se deve considerar perdida na sua totalidade, o que confere ao expedidor o direito a receber uma indemnização”.
47.Perante o exposto, dúvidas não restam que o Recorrente deveria ter sido recompensado pelos prejuízos causados em virtude dos danos causados à mercadoria transportada, o que não é em nada consentâneo com a douta sentença quando menciona que “Considerando que, no caso sub judice, não resultou demonstrado que o autor tivesse declarado o valor da mercadoria, ou sequer as suas características (nomeadamente garrafas de vinho), ou declarado um interesse especial na entrega, a indemnização deve ser calculada apenas em função do peso bruto transportado (in casu, 4kgs), nos termos do artigo 20º, n.º 1, do DL 239/2003”.
48.É a própria testemunha da Recorrida que reconhece que houve uma das encomendas reclamadas pelo Recorrente que se danificou, tendo sido contratado serviço frágil para o efeito, bem como que a indemnização deveria ser pelo valor da fatura e não pelo valor do peso bruto.
49.Ora, não obstante o reconhecimento destes factos, inequívocos aliás, quer na prova documental, quer na prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, entendeu o Tribunal a quo que a indemnizar o Autor, ora Recorrente, seria em função do peso bruto transportado, quando tudo apontava para outra decisão.
50.Considerando que o prazo de prescrição seria de um ano – o que não se concebe e só por mera hipótese de raciocínio se consente - cabia à Ré, aqui Recorrida, fazer a prova da data a partir da qual o prazo de um ano deveria ser contado, tal como preceituado no artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil, o que não sucedeu.
51.É evidente que a conduta da Ré, ora Recorrida, teve repercussões na imagem, prestígio e reputação do Autor, ora Recorrente, junto dos seus clientes. Sobretudo porquanto sucederam-se comentários depreciativos, negativos e prejudiciais da pessoa do Autor, deixando este de ter viabilidade e posição para continuar com a sua atividade.
52.Isso mesmo é corroborado pelas declarações de parte do Autor, bem como pelas testemunhas B. e C.
53.Por conseguinte, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, deverá ser alterada a decisão recorrida.

5.–A ré não apresentou contra-alegações.

6.–Foi admitido o recurso, como apelação, com subida imediata e nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

7.–Remetidos os autos a este Tribunal em 12-02-2024, inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.

II–FUNDAMENTAÇÃO

A–QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.

A.1-Consequentemente, nos presentes autos, as questões a decidir consistem em saber, no que se reporta à IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO, se:
- A prova produzida demonstrou que a mercadoria objeto das guias de transporte identificada nos factos provados números 7 e 25 encontrava-se acondicionada de modo suficiente a evitar a sua quebra, pelo que tal factualidade constante da alínea al) dos factos não provados deve transitar para os factos provados?
- Os factos não provados sob as alíneas a), b), e) h), j), k), l), n), p), q), s), t), u), x), z), aa), ab), ad), ae), af) deverão ser considerados provados (reportando-se tal factualidade às concretas vendas que o autor celebrou, com os vários clientes aí identificados, incidindo sobre os específicos vinhos aí mencionados, bem como à sua correspondência com as guias de transporte)?
- Mais concretamente, a venda a E. e a circunstância de o autor o ter reembolsado em € 720,00 deverá transitar para os factos provados (alíneas a a g dos factos não provados)?
- Apurou-se que as quatro garrafas que não se haviam partido no decurso do transporte, quando foram devolvidas ao autor estavam partidas, pelo que a alínea i) dos factos não provados deve transitar para os factos provados?
- Os factos apurados produziram impacto negativo na imagem e prestígio do autor pelo que o facto não provado sob a alínea aj) deve transitar para os factos provados?

A.2-No âmbito da apreciação do mérito do recurso, constituem questões a decidir as seguintes:
- A indemnização da mercadoria com destino a Roma (Itália), a que corresponde a guia de transporte nº CE 802704976PT, datada de 6-05-2020, apurada que está a sua não entrega, não deve ser calculada em função do seu peso bruto mas do seu valor efetivo?
- Quanto à guia de transporte DA287914720PT, relativa a serviço especial de taxa frágil, a indemnização deveria ser calculada em função do seu valor efetivo e não em função do peso bruto transportado?
- O direito indemnizatório que o autor invoca nestes autos extinguiu-se por prescrição?

B–FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

B.1– Foram os seguintes os factos que a decisão de primeira instância considerou provados:
1º- A ré é uma sociedade comercial que tem por objeto a prestação de serviços de recolha, tratamento, transporte e distribuição de documentos, mercadorias e outros envios postais de âmbito nacional e internacional, bem como serviços complementares na área logística.
2º- No dia 30/03/2020, o autor solicitou e pagou à ré o transporte de mercadoria, que não detalhou, com o peso de 9kgs, com entrega a E., Irlanda, tendo a ré emitido a guia de transporte n.º CE802654197PT.
3º-No dia 06/05/2020, o autor solicitou e pagou à ré o transporte de mercadoria, que detalhou como “vinhos”, com o peso de 8kgs, com entrega a E., Irlanda, tendo a ré emitido a guia de transporte n.º CE802705203PT.
4º- O autor não solicitou, nem pagou, serviços especiais para o transporte das mercadorias objeto das guias de transporte identificadas em 2º e 3º.
5º-Nos dias 28 e 29 de maio de 2020, o autor solicitou informação, junto dos serviços da ré, sobre o estado do transporte das mercadorias objeto das guias de transporte identificadas em 2º e 3º.
6º-Em resposta aos pedidos de informação referidos em 5º, a ré enviou a carta datada de 23/06/2020, junta com a petição inicial como documento 8, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
7º-No dia 03/04/2020, o autor solicitou e pagou à ré o transporte de mercadoria, que detalhou “como vinhos”, com o peso de 11,51kgs, com entrega a F., Madrid, Irlanda, tendo a ré emitido a guia de transporte n.º DA286927554PT.
8º-A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 7º foi acondicionada e embalada pelo autor.
9º-O autor não solicitou, nem pagou, serviços especiais para o transporte da mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 7º.
10º-No dia 28/04/2020, a ré elaborou um auto relativamente à encomenda objeto da guia de transporte identificada em 7º dele fazendo constar o seguinte: “a encomenda é proveniente da Tourline e deu entrada danificada no OLX com GT DB703799500PT, cartão molhado no exterior, interior contém 6 garrafas de vinho, duas partidas; as restantes foram reembaladas e devolvidas ao expedidor”.
11º-A ré expediu, e o autor recebeu, as quatro garrafas referidas em 10º.
12º-No dia 06/05/2020, o autor solicitou e pagou à ré o transporte de mercadoria, que não detalhou, com o peso de 5kgs, com entrega a G., Roma, Itália, tendo a ré emitido a guia de transporte n.º CE802704976PT.
13º-O autor não solicitou, nem pagou, serviços especiais para o transporte das mercadorias objeto da guia de transporte identificada em 12º.
14º- No dia 29/05/2020, o autor solicitou informação, junto dos serviços da ré, sobre o estado do transporte da mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 12º
15º-No dia 06/05/2020, o autor solicitou e pagou à ré o transporte de mercadoria, que não detalhou, com o peso de 5kgs, com entrega a H., Bruxelas, tendo a ré emitido a guia de transporte n.º CE802704931PT.
16º- O autor não solicitou, nem pagou, serviços especiais para o transporte das mercadorias objeto da guia de transporte identificada em 15º.
17º- O autor acondicionou e embalou a mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 15º.
18º- No dia 29/05/2020, o autor solicitou informação, junto dos serviços da ré, sobre o estado do transporte da mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 15º.
19º-No dia 06/05/2020, o autor solicitou e pagou à ré o transporte de mercadoria, que detalhou como vinhos, com o peso de 7kgs, com entrega a I., Suécia, tendo a ré emitido a guia de transporte n.º CE802705265PT.
20º-O autor acondicionou e embalou a mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 19º.
21º-Em maio de 2020, o autor solicitou informação, junto dos serviços da ré, sobre o estado do transporte da mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 19º.
22º-No dia 24/03/2020, o autor solicitou e pagou à ré o transporte de mercadoria, com entrega a J., de Aveiro, (…), tendo a ré emitido a guia de transporte n.º DA286927293PT.
23º-O autor acondicionou e embalou a mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 22º.
24º-No dia 28/05/2020, o autor solicitou informação, junto dos serviços da ré, sobre o estado do transporte da mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 22º
25º-No dia 25/03/2020, o autor solicitou e pagou à ré o transporte de mercadoria, que não detalhou, com o peso de 4,112 kgs, a entregar a J., de Aveiro, tendo a ré emitido a guia de transporte n.º DA286735072PT.
26º-Para o transporte identificada em 25º, o autor solicitou e pagou o serviço extra “DOM Para Amanhã”.
27º-O autor acondicionou e embalou a mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 25º.
28º-A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 25º foi devolvida ao autor, partida.
29º-No dia 28/05/2020, o autor solicitou à ré informação sobre a devolução e danificação da mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 25º.
30º-No dia 13/04/2020, o autor solicitou e pagou à ré o transporte de mercadoria, que detalhou como “documentos”, com o peso de 4,648 kgs, a entregar a L., do Porto, tendo a ré emitido a guia de transporte n.º DA287150298PT.
31º-Para o transporte identificada em 30º, o autor solicitou e pagou o serviço extra “DOM Para Amanhã”.
32º-O autor acondicionou e embalou a mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 30º.
33º-No dia 28/05/2020, o autor solicitou à ré informação sobre a devolução e danificação da mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 25º.
34º-No dia 06/05/2020, o autor solicitou e pagou à ré o transporte de mercadoria, que não detalhou, com o peso de 4kgs, a entregar a M., de Amadora, tendo a ré emitido a guia de transporte n.º DA287914720PT.
35º-Para o transporte identificada em 34º, o autor solicitou e pagou o serviço extra “DOM FRG Para Amanhã”.
36º-O autor acondicionou e embalou a mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 34º
37º-A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 34º não foi entregue ao destinatário, nem devolvida ao autor.
38º-No dia 18/05/2020, o autor solicitou informação junto dos serviços da ré sobre o estado do transporte da mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 34º.
39º-No dia 28/05/2020, o autor enviou à ré uma carta, junta com a petição inicial como documento 35, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
40º-Em resposta, a ré enviou a carta de 18/06/2020, junta com a petição inicial como documento 36, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
41º-Nos dias 10 e 25/11/2020, o autor enviou à ré duas novas cartas, juntas com a petição inicial como documentos 37 e 38, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
42º-Em resposta, a ré enviou ao autor um email datado de 06/01/2022, junto com a petição inicial como documento 39, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
43º-No dia 08/02/2022, através do seu Mandatário, o autor enviou à ré a carta junta com a petição inicial como documento 40, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
44º-A presente ação foi instaurada no dia 25/05/2022.
45º-A ré foi citada na presente ação no dia 30/05/2022.
46º-O autor não declarou o valor da mercadoria transportada no momento da requisição dos diversos serviços de transporte à ré, supra elencados”.

B.2–Foram os seguintes os factos que a sentença da primeira instância considerou não provados:

a)-O autor vendeu a E., Irlanda, 2 garrafas de 1997 Colheita Madeira Justino, 2 garrafas de 1930 vinho Porto Real Companhia Velha e 3 garrafas Vinho Porto Kopke Branco Lágrima, pelo preço de € 720,00.
b)-a mercadoria descriminada na alínea a) corresponde à mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 2º.
c)-A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 2º não foi entregue a Sean Spencer.
d)-O serviço identificado em 3º foi solicitado pelo autor por força e na sequência da demora na entrega da mercadoria identificada em 2º.
e)-O serviço identificado em 3º continha o mesmo tipo e valor de mercadoria identificado em 2º.
f)-A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 3º não foi entregue a Sean Spencer.
g)-Em julho de 2020, na sequência de não ter recebido qualquer mercadoria, o autor reembolsou Sean Spencer do valor por este pago de € 720,00.
h)-O autor vendeu a F., Madrid, um lote de 8 garrafas Vinho Quinta do Estanho 1989, pelo preço de € 700,00.
i)-As quatro garrafas de vinho referidas nos factos provados 10º e 11º foram devolvidas ao autor partidas.
j)-A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 7º corresponde à mercadoria descriminada na alínea h).
k)-No dia 03/05/2020, o autor vendeu a G., Roma, Itália, um lote de 3 garrafas Vinho Porto Quinta do Noval do ano 1963, pelo preço de € 1.320,00.
l)-A mercadoria descriminada na alínea k) corresponde à mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 12º.
m)-A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 12º foi entregue a G., Roma, Itália.
n)-No dia 06/05/2020, o autor vendeu a H., Bruxelas, Bélgica, um lote de 4 garrafas Vinho Porto Quinta do Noval, pelo preço de € 750,00.
o)-A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 15º chegou ao destino partida.
p)-A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 15º corresponde à mercadora descriminada na alínea n).
q)-No dia 06/05/2020, o autor vendeu a I., Suécia, um lote de 5 garrafas Vinho Quinta do Estanho 1989, pelo preço de € 550,00.
r)-A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 19º chegou ao destino partida.
s)-A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 19º corresponde à mercadoria descriminada na alínea n).
t)-No dia 24/03/2020, o autor vendeu a J., de Aveiro, uma garrafa “Pera Manca 1999”, 1 garrafa “Nobilis 1995” e 1 garrafa Quinta da Prdavilde 1999” pelo valor total de € 187,50.
u)-No dia 25/03/2020, o autor vendeu a J., de Aveiro, 2 garrafas “Porto Real Companhia Velha de 1955”, pelo valor de € 850,00.
v)-A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 22º chegou ao destino partida.
x)-A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 22º corresponde à mercadoria descriminada nas alíneas t) e u).
z)-No dia 25/03/2020, o autor vendeu a J., de Aveiro, 1 garrafa “Porto Real Vinícola de 1919” e 2 garrafas de Porto Real Companhia Velha de 1930” pelo preço global de € 1.330,00.
aa)-A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 25º corresponde à mercadoria descriminada na alínea z).
ab)-No dia 13/04/2020, o autor vendeu a L., do Porto, um lote de 2 garrafas Porto Velho e 1 vinho “Madeira Luiz Gomes” pelo preço total de € 730,00.
ac)-A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 30º chegou ao destino partida.
ad)- A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 30º corresponde à mercadoria descriminada na alínea ab).
ae)-No dia 04/05/2020, o autor vendeu a M., de Amadora, um lote de 4 garrafas de vinho do Porto velho, no montante de € 950,00 e um lote de 3 garrafas sendo 2 de Porto Velho e 1 garrafa de vinho da madeira “malvasia candida datada de 1911”, pelo valor de € 7.150,00.
af)-A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 34º corresponde à mercadoria descriminada na alínea ae).
ag)-Nos sucessivos transportes solicitados à ré, o autor perdeu vinhos no valor global de € 15.957,50.
ah)-Nos sucessivos transportes solicitados à ré, o autor despendeu a quantia de € 743,71.
ai)-O autor reembolsou os seus clientes no valor de € 15.957,50.
aj)-A imagem, prestígio e reptação do autor ficaram afetadas junto dos seus clientes.
ak)-O autor sentiu nervosismo, ansiedade, inquietação e dificuldade em dormir.
al)-A mercadoria objeto das guias de transporte identificadas nos factos provados n.ºs 7º e 25º encontrava-se acondicionada de modo suficiente a evitar a sua quebra.
am)-Autor e ré acordaram prazo de entrega da mercadoria objeto das guias de transporte (internacional) identificadas nos factos provados 2º, 3º, 7º, 12º, 15 e 19º.
an)-Autor e ré acordaram prazo de entrega da mercadoria objeto da guia de transporte (nacional) identificada no facto provado n.º 22º”.

C–Fundamentação de Direito

C.1–Da impugnação da matéria de facto

Sob a epígrafe Modificabilidade da decisão de facto estabelece o nº 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil:
1A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Já do nº 2 daquela norma resulta que:
2 A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a)- Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b)- Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c)- Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d)- Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.

Por outro lado, a reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso implica que o recorrente, nas alegações em que impugna a decisão relativa à matéria de facto, cumpra os ónus que o legislador estabeleceu a seu cargo, enunciados no artigo 640º CPC, com a seguinte redação:
1Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)-Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)-Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)-A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a)-Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b)-Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.

Incumbe, pois, ao recorrente, no essencial, identificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (640º, nº 1, alínea a), CPC), os concretos meios probatórios que impunham, na sua perspetiva, decisão diversa (640º, nº 1, alínea b), CPC) e qual a decisão que deve ser proferida quanto aos factos impugnados (640º, nº 1, alínea c), CPC).
No que à indicação dos meios probatórios diz respeito, estabelece o artigo 640º, nº 2, alínea a), CPC: “Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com precisão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso (…)”.
Afigurando-se que o autor/recorrente deu cumprimento aos ónus supra enunciados, por a tal nada obstar, procede-se à apreciação da impugnação da matéria de facto que deduziu.

-Assim, considerou o recorrente que a prova produzida demonstrou que a mercadoria objeto das guias de transporte identificadas nos factos provados números 7 e 25 encontrava-se acondicionada de modo suficiente a evitar a sua quebra, pelo que tal factualidade constante da alínea al) dos factos não provados deve transitar para os factos provados.

À referida alínea o Tribunal a quo conferiu a seguinte redação:
al)- A mercadoria objeto das guias de transporte identificadas nos factos provados n.ºs 7º e 25º encontrava-se acondicionada de modo suficiente a evitar a sua quebra. Já os factos provados sob os números 7 e 25 referem-se a duas solicitações de transporte de mercadoria dirigidas pelo autor à ré, uma das quais ocorrida no dia 03-04-2020, com entrega em Madrid e outra ocorrida no dia 25-03-2020, com entrega em Aveiro. Efetivamente, ali se exarou: 7º No dia 03/04/2020, o autor solicitou e pagou à ré o transporte de mercadoria, que detalhou “como vinhos”, com o peso de 11,51kgs, com entrega a F., Madrid,(…), tendo a ré emitido a guia de transporte n.º DA286927554PT” e “25º No dia 25/03/2020, o autor solicitou e pagou à ré o transporte de mercadoria, que não detalhou, com o peso de 4,112 kgs, a entregar a J., de Aveiro, tendo a ré emitido a guia de transporte n.º DA286735072PT”.
A este propósito, o Tribunal recorrido motivou nos seguintes termos a decisão:
Por fim, considerando que o autor não requisitou, nem pagou o serviço de transporte de mercadoria frágil; que foi a única pessoa responsável por embalar e acondicionar a mercadoria com destino a Espanha (F.) e a Aveiro (J.); e que esta mercadoria se partiu, forçoso é concluir que a mesma não se encontrava acondicionada de modo suficiente a evitar a quebra. É que o autor não pode deixar de saber que o transporte de mercadoria frágil exige o pagamento de uma taxa específica para o efeito, justificada pelo facto de ter etiquetas próprias da ré (e não fita-cola comprada em supermercado), ser processada manualmente nas centrais de distribuição, quer da origem quer do destino (ao invés de passar pelos tapetes rolantes e outras máquinas) e ser armazenada com maior cautela nas carrinhas de transporte de objetos postais. Assim, ao não requisitar e pagar o serviço “frágil”, o autor não podia deixar de admitir a enorme probabilidade de as garrafas de vinho se partirem, uma vez que “plástico com bolhas” e cartão não eram suficientes para evitar a quebra, por exemplo, na saída da encomenda dos tapetes rolantes para caixas e carrinhas de distribuição (como explicou de modo sereno, objetivo e coerente a testemunha AS..., funcionária da ré desde 1999). Pelo exposto, o tribunal julgou não provado o facto descrito sob a alínea al)”.

Os meios de prova invocados pelo recorrente para a pretendida alteração da matéria de facto foram, fundamentalmente, os depoimentos das testemunhas B. e C., bem como as declarações de parte do autor. A este propósito, considerou ainda o recorrente que o Tribunal ponderou o depoimento da testemunha D., funcionária da ré, que descreveu a forma de acondicionamento correto, no âmbito dos transportes feitos pelos CTT, em termos muito similares à que ele próprio utilizou, além de que do seu testemunho resultou que não dava para ver como é que o autor acondicionou a mercadoria.
Tendo-se procedido à audição integral dos depoimentos testemunhais indicados e das declarações de parte produzidas pelo autor, desde já se adianta não se encontrar fundamento consistente para a pretendida alteração da matéria constante da alínea al) dos factos não provados.
Efetivamente, das declarações de parte do autor (minuto 5.40 ao minuto 8.00) resultou que ele próprio embrulhava as garrafas de vinho transacionadas em jornal ou em papel de embrulho e ainda lhes colocava os revestimentos de plástico utilizados na venda de fruta nos hipermercados escrevendo na caixa garrafas de vinhoefrágil”. Mais referiu que obtinha tais caixas em determinado hipermercado, sendo as mesmas de cartão e destinadas ao transporte de vinho
Ora, tal procedimento não corresponde ao que, de forma objetiva e consistente, foi descrito pela testemunha D., e que é utilizado pelos CTT que, desde logo, envolve a utilização de caixas específicas, com separadores internos. Mas, de forma mais significativa, a testemunha D. referiu que, estando em causa material frágil, além de se impor o seu acondicionamento de forma diversa da que o autor executava, exigia-se que o próprio transporte contratado fosse o adequado a tal fragilidade. Mais referiu em várias passagens do seu depoimento designadamente ao minuto 4.50, que estando em causa o transporte de garrafas de vinho, o respetivo acondicionamento revelou-se insuficiente por as caixas não disporem de divisórias internas e as garrafas de vinho não estarem revestidas de “papel bolha”. A este propósito, referiu ainda, ao minuto 7.03, que as fotografias que examinou não permitiam ver de forma precisa qual o revestimento das garrafas a que o autor recorreu, referindo que se tratava de plástico, mas não “papel bolha”. Declarou também que o autor, tendo optado por não contratar o serviço nacional relativo a “transporte frágil” e de “seguro adicional” quanto a transporte internacional, não poderia pretender que, por escrever na caixa frágil ou garrafas de vinho”, o transporte seria diverso do normal, que envolve, por exemplo, o manuseamento da mercadoria por empilhadores. Ao invés, se o autor tivesse contratado o serviço de “transporte frágil” ou “seguro adicional”, o manuseamento das caixas de vinho seria manual, sendo maior a probabilidade de evitar quaisquer danos na mercadoria.
Salienta-se ainda que as testemunhas B. e C., genros do autor, não demonstraram conhecimento da factualidade em causa, pois, segundo declararam, por frequentarem a casa do autor conheciam a sua atividade de vendas de garrafa em leilões e observaram-no a embalar alguma mercadoria, com plástico e cartões, desconhecendo, no entanto como é que foi embalada a concreta mercadoria em discussão nos autos. Acresce que o próprio procedimento de embalamento que descreveram, com colocação dos plásticos/esponjas da fruta (como referiu o declarante) nas garrafas, esferovite, papel e jornal nas caixas (como referiu a testemunha B. ao minuto 3.45 do seu depoimento), ou cartão e plástico e fita a com a menção “frágil” (como referiu a testemunha C. ao minuto 5,05 a 6.00) não permitiu concluir que o mesmo se aproximasse do descrito como adequado pela testemunha D. (com recurso a papel bolha e a caixas com divisórias entre as garrafas).
A este propósito, julgamos ser de reiterar o afirmado na sentença, relativamente ao facto de o autor não ter contratado o serviço de transporte frágil (ou de seguro adicional para o estrangeiro), que envolvia etiquetagem própria, o seu processamento manual nas centrais de distribuição e o seu cuidadoso armazenamento nas carrinhas de transporte.

De acordo com o disposto no artigo 662º, nº 1, CPC: A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Tal significa que a decisão da matéria de facto apenas deve ser alterada se o Tribunal da Relação, depois de analisada a prova produzida, conclua, com segurança, pela existência de um erro de apreciação relativamente à factualidade objeto da impugnação – neste sentido, Acórdão da Relação do Porto de 21-06-2021 proferido no processo nº 2479/18.5T8VLG.P1, disponível em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017 disponível em www.dgsi.pt, onde, além do mais, se refere: I.-Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efetuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II.- Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira instância”
Porém, a consideração como não provada da factualidade constante da alínea al) dos factos não provados não merece qualquer censura, por não ter ficado demonstrado que a mercadoria em causa tivesse sido embalada de molde a evitar a sua quebra.

Consequentemente, improcede a impugnação da matéria de facto relativamente à alínea al) dos factos não provados.

- O autor/recorrente insurgiu-se também quanto ao facto de terem resultado não apurados os factos mencionados sob as alíneas a), b), e) h), j), k), l), n), p), q), s), t), u), x), z), aa), ab), ad), ae), af) do elenco dos factos não provados.
Como se referiu anteriormente, tal factualidade reporta-se às concretas vendas que o autor celebrou, com os vários clientes aí identificados, incidindo sobre os específicos vinhos aí mencionados, bem como à sua correspondência com as guias de transporte emitidas pela ré.
Na perspetiva do recorrente, a análise conjugada das faturas e das guias de transporte permitiria concluir serem os mesmos os destinatários da mercadoria transportada e os adquirentes.

A este propósito, na motivação da factualidade em questão, referiu o tribunal recorrido:
“No que concerne aos factos não provados, cumpre referir que o autor não demonstrou as características, a quantidade e o valor da mercadoria cujo transporte solicitou à ré.
Com efeito, como o próprio autor admitiu em julgamento, foi ele quem acondicionou e embalou a mercadoria sem qualquer intervenção dos funcionários da ré e até dos seus dois genros (testemunhas B. e C.).
É o próprio autor que declarou em julgamento não se recordar das características, quantidades e valores dos vinhos que embalou, acondicionou e cujo transporte, nacional e internacional, solicitou à ré.
A pretexto de não se recordar desses factos, o autor alude às faturas-recibo juntas com a petição inicial (documentos 1, 10, 13, 16, 19 22, 23, 25, 28, 31 e 32). Contudo, além desses documentos não preencherem os requisitos formais de uma fatura-recibo, foram impugnados pela ré.
O autor podia e devia ter junto os documentos adequados à demonstração da venda de vinhos de valor superior a € 15.000,00. Porém, não o fez. Mesmo que tivesse efetuado a venda através de uma leiloeira eletrónica (catawiki), tal facto não impedia o autor de juntar o comprovativo da transação efetuada, deduzidas as comissões pagas à leiloeira, o que não sucedeu.
Inexiste, tão pouco, documentos nos autos demonstrativos da existência desses vinhos à data da alegada venda. É que, nem sequer os genros do autor souberam elencar as características e quantidades de garrafas de vinho que viram embalar, para o tribunal lhes atribuir credibilidade ao afirmarem que viram o sogro embalar “vinhos caros”. De resto, não acompanharam o autor ao posto dos correios, pelo que não podem assegurar que mercadoria este solicitou à ré que transportasse.
O tribunal não duvida que o autor solicitou e que a ré transportou mercadoria com o peso descrito em cada uma das guias de transporte. Porém, não há prova de que essa mercadoria corresponda aos vinhos descritos nas faturas-recibos impugnadas pela ré.
Pelas razões expostas, o tribunal julgou não provados os factos descritos sob as alíneas a), b), h), j), k), l), n), p), q), s), t), u), x), z), aa), ab), ad), ae), af), e ag)”.

Ora, correspondendo as faturas a documentos elaborados e emitidos pelo réu (com óbvio interesse no desfecho da causa), o facto de as mesmas não serem mencionadas nas guias de transporte, ou de não ser detalhada a mercadoria transportada, não permite estabelecer a correspondência entre ambos os meios de prova, inviabilizando a identificação da concreta mercadoria que corresponde a cada guia de transporte. Tal ilação não pode, com segurança, extrair-se da identidade dos destinatários, ou das datas apostas em cada um dos documentos. Aliás, as próprias faturas juntas pelo autor suscitaram fundadas reservas ao Tribunal recorrido dado que, manifestamente, não cumprem os requisitos legais exigíveis à data, não mencionando o número de contribuinte dos adquirentes, o preço do produto transacionado sem imposto e a taxa tributária aplicada – cfr artigo 7º do DL 28/2019, de 15/2 e 36º CIVA.

Refira-se ainda que a testemunha D. referiu expressamente (minutos 23.15 a 23.40 do seu depoimento) que o cliente não declarou que estava a transportar garrafas de vinho, menção essa que, desde logo, deveria constar das guias de transporte. O certo é que analisadas as várias guias de transporte juntas aos autos (documentos números 2, 5, 14, 17 20, 26, 29, 33 junto com a petição inicial), verifica-se que não é mencionado qual o conteúdo e o valor da mercadoria transportada.

E o certo é que se afigura que tal prova não era difícil de fazer. Efetivamente, nas suas declarações de parte (entre os minutos 18.00 e 19.30), o autor esclarece que previamente a cada uma das vendas, foram sempre trocadas comunicações com a leiloeira, que envolveram o envio da fotografia das garrafas a transacionar. Após tal envio, na posse das referidas fotografias, à leiloeira cabia avaliar a veracidade e autenticidade do produto que o autor se propunha transacionar, e só após tal verificação o mesmo era colocado em leilão. A venda deveria então ser confirmada em 15 dias, após o que o cliente atribuía um “feedback” positivo (indiciador de que recebera a mercadoria) e efetuava o pagamento. Ora, todas estas comunicações deixaram, decerto, um lastro documental de que o autor deveria ter lançado mão para comprovar o prejuízo invocado.

Como tem vindo a ser referido, incumbe ao juiz a apreciação livre das provas, o que não significa que a convicção do juiz se forme arbitrariamente porquanto (…) lhe é imposto um processo de valoração racional, dirigido à formação de um prudente juízo crítico global, o qual deve assentar na ponderação conjugada dos diversos meios de prova, aferidos segundo as regras de experiência, atendendo aos princípios de racionalidade logica e considerando as circunstâncias do casoAcórdão da Relação do Porto, de 18-09-2023 Proferido no processo 4702/20.7T8BRG.P1, disponível em www.dgsi.pt. Como refere Marta João Dias “A fundamentação do juízo probatório-breves considerações”, Revista Julgar nº 13, pág. 180.: a decisão sobre a veracidade dos factos não se poderá basear em critérios irracionais, isto é, em intuições, palpites ou crenças”.

Porém, na ausência de uma conexão segura entre o conteúdo das guias de transporte e as faturas juntas aos autos, nenhuma censura merece a decisão do Tribunal recorrido, sendo forçoso concluir-se que o recorrente não comprovou a matéria constante das alíneas a), b), e) h), j), k), l), n), p), q), s), t), u), x), z), aa), ab), ad), ae), af) dos factos não provados, no que se reporta aos específicos clientes e vinhos aí mencionados, bem como à sua correspondência com as guias de transporte emitidas pela ré.

- Considera o recorrente que se apurou a venda a E., bem como as demais vicissitudes por si alegadas a propósito de tal negócio, pelo que os factos não provados sob as alíneas a) a g) devem ser considerados apurados.

É a seguinte a matéria que o autor pretende ver transposta para os factos provados:
a)- O autor vendeu a E., Irlanda, 2 garrafas de 1997 Colheita Madeira Justino, 2 garrafas de 1930 vinho Porto Real Companhia Velha e 3 garrafas Vinho Porto Kopke Branco Lágrima, pelo preço de € 720,00.
b)- a mercadoria descriminada na alínea a) corresponde à mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 2º.
c)- A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 2º não foi entregue a E..
d)- O serviço identificado em 3º foi solicitado pelo autor por força e na sequência da demora na entrega da mercadoria identificada em 2º.
e)- O serviço identificado em 3º continha o mesmo tipo e valor de mercadoria identificado em 2º.
f)- A mercadoria objeto da guia de transporte identificada em 3º não foi entregue a E.
g)- Em julho de 2020, na sequência de não ter recebido qualquer mercadoria, o autor reembolsou E. do valor por este pago de € 720,00”.

Motivando a sua discordância, invoca o autor a prova documental junta com a petição inicial, designadamente as comunicações em que o referido E. o questiona sobre o paradeiro da encomenda, bem como a prova por declarações de parte.

O Tribunal recorrido considerou tal matéria nas alíneas e) e g) dos factos não provados, motivando o decidido nos seguintes termos:
No que concerne à falta de entrega da mercadoria a “E.”, na Irlanda (guias de transporte n.ºs CE 802654197 e CE802705203PT), o autor alega que a mercadoria não foi entregue ao destinatário; que teve de voltar a enviar mercadoria idêntica; que a segunda entrega também não foi efetuada; e que, por essa razão, teve de reembolsar E. no valor de € 720,00.
Acontece que:
- o autor não juntou qualquer comprovativo do alegado reembolso;
- as guias de transporte em discussão (documentos 2 e 5 da petição inicial) diferem entre si, no que toca ao peso da mercadoria transportada, em 1 kg. O que demonstra que a segunda mercadoria transportada não podia ser idêntica à primeira.
- o documento 3 da petição inicial corresponde a emails trocados entre o autor e E. e entre este e um alegado operador de objetos postais irlandeses. Porém, a ré impugnou este documento e veio juntar o documento 1 da contestação, não impugnado pelo autor (email trocado entre si e os correios irlandeses através do sistema informático de comunicações dos operadores postais), do qual resulta que os correios irlandeses confirmam ter entregue a mercadoria e não terem recebido reclamações. Face ao exposto, o tribunal julgou não provados os factos descritos sob as alíneas c), d), e), f) e g)”

No que se reporta à concreta mercadoria vendida a E., cabe reiterar que a ausência de uma conexão consistente entre o conteúdo das guias de transporte e as faturas juntas aos autos inviabiliza que se estabeleça uma correspondência entre tais documentos.
Consequentemente, não se extraindo da guia de transporte qual a mercadoria transacionada, nem o seu valor, fica inviabilizado, com um mínimo de segurança, o apuramento do negócio.
E não é possível colmatar tal falha probatória com a análise das comunicações trocadas entre o autor e o referido comprador (documento nº 3 junto com a petição inicial). Desde logo, tais comunicações desenvolveram-se à margem das regras próprias inerentes à venda em leilões, conforme foram explicadas pelo autor em declarações de parte. Efetivamente, depois de confirmada a autenticidade e veracidade do produto que pretendia transacionar pela leiloeira, competia ao autor expedir a mercadoria, que num prazo de quinze dias deveria chegar ao destinatário que, por sua vez, concedia “feedback” positivo, procedendo ao seu pagamento. Se a mercadoria por qualquer motivo não chegasse ao destino, cabia à leiloeira entrar em contacto com o vendedor. Ora, as comunicações diretas entre o comprador e o autor correspondiam, segundo o próprio declarou a uma tentativa de chegar a acordo com o cliente, para que o feedback fosse positivo (minuto 22.40 a 23.30), à margem do procedimento próprio para o efeito, não se revelando suficientes para esclarecer as vicissitudes do negócio.
Por fim, o alegado reembolso dos € 720,00 ao referido cliente, a ter ocorrido, terá expressão em suporte documental, que o autor não juntou aos autos, incumprindo o ónus probatório a seu cargo, nos termos do disposto no artigo 342º, nº 1, do Código Civil.
É certo que sobre a matéria em questão foram produzidas declarações de parte que interessa apreciar, criticamente, de molde a definir se possuem a virtualidade de justificar a impugnação da decisão da matéria de facto, na parte ora em análise.
No que se reporta à valoração de tal meio de prova, têm vindo a formar-se essencialmente três teses sumariadas no acórdão da Relação de Lisboa de 26-04-2017 Proferido no processo nº18591/15.0T8SNT.L1-7, disponível em www.dgsi.pt nos seguintes termos:
I– (…) tese do caráter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos; (ii) tese do princípio de prova e (iii) tese da autossuficiência das declarações de parte.
II–Para a primeira tese, as declarações de parte têm uma função eminentemente integrativa e subsidiária dos demais meios de prova, tendo particular relevo em situações em que apenas as partes protagonizaram e tiveram conhecimento dos factos em discussão.
III–A tese do princípio de prova defende que as declarações de parte não são suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova.
IV–Para a terceira tese, pese embora as especificidades das declarações de parte, as mesmas podem estribar a convicção do juiz de forma autossuficiente.”

A este propósito, defende Mariana Fidalgo “A prova por declarações de parte”, FDUL, 2015, pág. 80 «(…) ponto, para nós, assente é que este meio de prova não deve ser previamente desprezado nem objeto de um estigma precoce, sob pena de perversão do intuito da lei e do princípio da livre apreciação da prova. Não olvidando o carácter aparentemente subsidiário das declarações de parte, certo é que foram legalmente consagradas como um meio de prova a ser livremente valorado, e não como passíveis de estabelecer um mero princípio de prova ou indício probatório, a necessitar forçosamente de ser complementado por outros. Assim sendo, e ainda que tal possa naturalmente suceder com pouca frequência na prática, defendemos que será admissível a concorrência única e exclusiva deste meio de prova para a formação da convicção do juiz em determinado caso concreto, sem recurso a outros meios de prova.»

Ora, afigurando-se ser esta a posição mais consentânea com o princípio da apreciação livre das declarações de parte, consagrado no artigo 466º, nº 3, CPC, o certo é que ouvidas integralmente e analisadas as declarações de parte do autor, não é possível concluir que configuraram um relato consistente e objetivo da factualidade em causa. Ao invés, foram pautadas por várias imprecisões, não logrando, designadamente, identificar os vinhos que estão em causa nos autos e que, segundo referiu, foram por si adquiridos, tendo ainda fotografado as respetivas embalagens para colocação na plataforma de leilões. Assim, ainda que se aceite que o valor das declarações de parte não pode ser diminuído, a priori, por serem produzidas por quem possui um manifesto interesse no desfecho da causa, o certo é que forçosamente terá que ser reconhecido que o autor não logrou esclarecer a matéria em questão que, não tendo resultado comprovada das restantes prova produzidas, não poderia deixar de considerar-se não apurada.
Consequentemente, não estando demonstrado o negócio, também as suas vicissitudes não resultaram apuradas, não merecendo qualquer censura a decisão do Tribunal recorrido quanto ao não apuramento da matéria constante das alíneas a) a g) dos factos não provados.

- Considera o recorrente que se apurou que as quatro garrafas de vinho que lhe foram devolvidas estavam partidas, pelo que a alínea i) dos factos não provados deve transitar para os factos provados.
Para cabal compreensão da discordância do recorrente, haverá que ponderar, desde logo o constante do artigo 10º dos factos provados com o seguinte teor:
10º- No dia 28/04/2020, a ré elaborou um auto relativamente à encomenda objeto da guia de transporte identificada em 7º dele fazendo constar o seguinte: “a encomenda é proveniente da Tourline e deu entrada danificada no OLX com GT DB703799500PT, cartão molhado no exterior, interior contém 6 garrafas de vinho, duas partidas; as restantes foram reembaladas e devolvidas ao expedidor.
Já da alínea i) dos factos não provados consta:
i)- As quatro garrafas de vinho referidas nos factos provados 10º e 11º foram devolvidas ao autor partidas”.
A este propósito, consta da sentença recorrida:
As alíneas i), ai), aj), ak), am) e an) resultaram não provadas por absoluta ausência de prova.

E na realidade, compulsados todos os meios de prova produzidos e examinados, forçosa é a conclusão de que não foi produzida prova que evidenciasse que as quatro garrafas que permaneceram intactas relativas à guia de transporte GT DB703799500PT e que acabaram por ser devolvidas ao autor, se encontrassem partidas no momento dessa devolução. E assim é, embora o autor tenha aludido a tal realidade nas suas declarações (minutos 37.30 a 39), referindo que as garrafas em questão, reembaladas pelos CTT, lhe foram devolvidas partidas, mas não apresentando qualquer elemento objetivo que o comprovasse. Ora, afigura-se que não tendo o autor documentado a quebra das garrafas que lhe foram restituídas depois de embaladas pelos CTT, e não sendo possível atribuir às declarações que prestou níveis razoáveis de autenticidade e de assertividade, tal realidade não pode haver-se por demonstrada, sem a corroboração de outros meios de prova. E não se trata aqui de aderir à tese de que as declarações de parte constituem apenas um princípio de prova sob pena de se desvirtuar na totalidade o ónus probatório (…)”, como referido no Acórdão da Relação do Porto de 15-09-2014 Disponível em www.dgsi.p, mas sim de proceder a uma apreciação livre das que foram prestadas nestes autos, nos termos do disposto no artigo 466º, nº 3, CPC.
Assim, na ausência de qualquer corroboração do declarado pelo autor, a matéria em questão não poderia deixar de considerar-se como não provada.
Consequentemente, improcede nesta parte a impugnação da matéria de facto, dado que não foi produzida prova que autorize a alteração da decisão quanto à alínea i) dos factos não provados.

- Defende o recorrente que factos apurados produziram impacto negativo na sua imagem e prestígio, o que implica que o facto não provado sob a alínea aj) transite para os factos provados.
Naquela alínea ficou consignado: aj) A imagem, prestígio e reputação do autor ficaram afetadas junto dos seus clientes.
Sustentando, nesta parte, a sua discordância, invoca o recorrente os depoimentos testemunhais produzidos por B. e C., bem como as suas próprias declarações de parte.
Da audição integral dos referidos depoimentos testemunhais resulta que a testemunha B. (genro do autor) referiu que o viu cabisbaixo por força da situação descrita nos autos (minuto 5.50 do seu depoimento). Já a testemunha C., também genro do autor, referiu que o sogro se sentiu frustrado e impotente com as vicissitudes inerentes às entregas das garrafas em causa nos autos (minutos 5.05 a 5.60).

A tal propósito, o Tribunal recorrido motivou a decisão nos seguintes termos: “As alíneas i), ai), aj), ak), am) e an) resultaram não provadas por absoluta ausência de prova”.
E o certo é que analisada toda a prova produzida, dúvidas não restam de que não foi produzida prova que evidenciasse que a imagem e a reputação do autor junto dos seus clientes tenha ficado afetada por força dos factos apurados. E assim é, embora o autor tenha referido que foi banido da plataforma de leilões por força de “feedbacks negativos” (minuto 32.40).
Porém, não ficou demonstrado que tal situação seja, a qualquer título, imputável à ré, devendo, ao invés, admitir-se a possibilidade de a mesma ser exclusivamente atribuível aos procedimentos de embalamento e entrega a que o autor recorreu, sendo por isso de manter a decisão do Tribunal recorrido quanto à consideração como não apurado do facto enunciado sob a alínea aj).

Analisados criticamente os meios de prova indicados pelo recorrente, conclui-se inexistir fundamento para alterar a decisão do Tribunal a quo no que se reporta à matéria de facto, que, de resto, se mostra fundamentada de forma exemplar.
Improcedendo totalmente a impugnação da matéria de facto, a factualidade a ponderar na decisão do mérito do recurso é a que consta da sentença recorrida, supra enunciada.

C2–Reapreciação da decisão de mérito

O autor/recorrente reage à decisão que, julgando a ação parcialmente procedente, condenou a ré a pagar-lhe a quantia de € 52,40 acrescida de juros, ao invés do montante global por si peticionado de € 33.658,71 (trinta e três mil, seiscentos e cinquenta e oito euros e setenta e um cêntimos), a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que, na sua perspetiva, sofreu por força de incumprimento contratual que imputa à ré.
Fundamentando tal pedido, invoca o autor o incumprimento da ré da obrigação de entrega de mercadoria, no âmbito de contratos de transporte entre ambos celebrados.
E o certo é que da factualidade apurada resulta que entre autor e ré foram celebrados contratos de transporte internacional e nacional de mercadorias.
Caraterizando sumariamente tal tipo contratual, salienta-se que mediante o contrato de transporte, uma das partes (transportador) obriga-se perante outrem a deslocar pessoas ou coisas de um local para o outro mediante retribuição - José Engrácia Antunes Direito dos Contratos Comerciais, Coimbra Almedida, 2009, pá. 725 e ss. Relativamente à sua forma consensual, refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04-11-2010 Disponível em www.dgsi.pt: O contrato de transporte caracteriza-se por uma paradoxal consensualidade, pois embora se afirme que o contrato de transporte em geral é um contrato consensual, que vale neste âmbito o principio da liberdade de forma (art.º 219.º do Código Civil), é também verdade que ao contrato de transporte surge quase sempre ligado um documento de transporte, seja no transporte de coisas, seja no de pessoas.” A obrigação principal neste tipo de contrato consiste na deslocação física de pessoas ou mercadorias, embora, em regra, concorram outros deveres a que o transportador está adstrito para a boa execução do contrato.
Tem ainda sido salientado que um outro elemento presente no contrato de transporte consiste na direção exclusiva da deslocação. Como refere Mónica Alexandra Soares Pereira in “O Contrato de Transporte de Mercadorias Rodoviário- A Responsabilidade do Transportador” tese de mestrado, in www.repositorioaberto-up.pt:“(…) é necessário que a organização da operação de deslocação das mercadorias seja feita pelo transportador. Este aspeto pode traduzir-se, por exemplo, na escolha do percurso a realizar ou do veículo a utilizar para efetuar o transporte. Atendendo a fatores como o prazo estipulado para a entrega das mercadorias ou o tipo de bem em causa, se é perecível ou frágil, cabe ao transportador optar pelo caminho que melhor se adequa às circunstâncias. Todavia a direção da operação de transporte já não inclui o que é transportado, em que condições o transporte é efetuado, nem a quem é que se destina. Assim sendo, verificamos que estaremos face a um contrato de transporte sempre que o objetivo principal do contrato seja a deslocação de pessoas ou mercadorias e o transportador tenha a direção exclusiva da deslocação”.

A par do sinalagma que assinala este vínculo contratual, o contrato de transporte carateriza-se pela assunção pelo transportador de uma obrigação de resultado dado que embora a deslocação seja a razão de ser do contrato de transporte, a colocação da mercadoria no lugar destinado é igualmente fundamentalAcórdão da Relação de Lisboa de 24-11-2022 Proferido no processo nº 13847/21.5T8SNT.L1-6, disponível em www.dgsi.pt. Por outro lado, para que o contrato possa considerar-se cumprido, é necessário que a mercadoria chegue ao seu destino nas mesmas condições em que foi recebida pelo transportador – Acórdão da Relação do Porto de 20-05-2003 Proferido no processo JRPP00036117, disponível em www.dgsi.pt

Como resulta dos factos provados, os contratos de transporte em que o autor fundamenta a pretensão que deduziu nos autos reportam-se quer a transporte internacional, quer a transporte nacional.
No que se reporta ao regime do contrato de transporte internacional rodoviário de mercadorias, haverá que atender ao estabelecido na “Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada”, concluída em Genebra em 19 de maio de 1956 (a que Portugal aderiu mediante o Decreto-Lei nº 46235). Tal diploma resulta, assim, de tratado multinacional, do qual o Estado Português é uma das partes contratantes.
Em tal diploma, a responsabilidade do transportador rodoviário internacional de mercadorias encontra-se regulada nos artigos 17º a 29º. E a propósito de tal regime, tem-se entendido que o referido contrato consubstancia uma “obrigação de duplo resultado”, dado que a transportadora fica obrigada não só a deslocar a mercadoria, mas ainda a entregá-la ao destinatário no estado em que a recebeu. Não sendo obtido tal – duplo – resultado, haverá incumprimento do transportador, conforme princípio regra estabelecido no artigo 17º, nº 1 CMR, que estipula: O transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega”. Já do nº 2 daquela norma resulta que:O transportador fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar.

Encontra-se, assim, estabelecida uma responsabilidade subjetiva do transportador, onerado com uma presunção de culpa, cabendo-lhe demonstrar, caso pretenda eximir-se à obrigação de indemnizar, que os danos decorrem de factos relativamente dos quais decorre a exoneração da sua responsabilidade (entre os quais, por exemplo, a falta ou defeito da embalagem - cfr. artigo 17º, nº 4, alínea b), CMR).
Ora, apurou-se que foi acordado entre o autor e a ré o transporte de mercadoria para a Irlanda (factos provados sob o nºs 2 e 3), Espanha (factos provados sob os nºs 7º e 8º), Itália (facto provado sob o nº 12), Bruxelas (facto provado sob o nº 15) e Suécia (facto provado sob o nº 19º). Tendo sido solicitados para a Irlanda a realização de dois serviços, conclui-se que, no total, foi acordada a realização de seis transportes internacionais.
Porém, tendo o autor soçobrado na impugnação da matéria de facto que deduziu, ponderando o objeto do recurso, já anteriormente delimitado, subsiste a apreciação da responsabilidade da ré relativamente ao transporte acordado para Itália (Roma), ao qual se refere a guia de transporte nº CE 802704976PT.
E a tal propósito, pretende o recorrente que a indemnização da mercadoria com destino a Roma (Itália), a que corresponde a referida guia de transporte datada de 06-05-2020, apurada que está a sua não entrega, seja calculada não em função do seu peso bruto, mas pelo seu valor efetivo.
A este propósito, apurou-se que a mercadoria objeto da guia de transporte em análise (CE802704976PT) foi entregue ao transportador (ré) no dia 06/05/2020. O autor não identificou ou detalhou qual a mercadoria, estando apurado que apresentava um peso de 5 Kg e deveria ser entregue a G., Roma, Itália (facto provado sob o nº 12).

Na ausência de qualquer convenção quanto ao prazo para a sua entrega, haverá que atender ao disposto no artigo 20º, nº 1, CMR (Decreto lei 46235 – Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, concluída em Genebra a 18 de maio de 1956), com a seguinte redação:
1.- O interessado, sem ter de apresentar outras provas, poderá considerar a mercadoria como perdida, quando esta não tiver sido entregue dentro dos 30 dias seguintes ao termo do prazo convencionado, ou, se não foi convencionado prazo, dentro dos 60 dias seguintes à entrega da mercadoria ao cuidado do transportador

Assim mostra-se fundamentada a conclusão da sentença recorrida de que se considera ter ocorrido perda da mercadoria no dia 06/07/2020.
Relativamente ao cálculo da indemnização devida, haverá que ter presente o Decreto nº 28/88, de 6 de setembro (Protocolo à Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada), que opera parcialmente a substituição do artigo 23º da CMR.
Assim, conjugando ambos os diplomas para a fixação da indemnização devida pela perda da mercadoria a que se refere a guia de transporte CE802704976PT, atender-se-á ao nº 6 do artigo 23º da CMR (que não sofreu alteração), com a seguinte redação: Só poderão exigir-se indemnizações mais elevadas no caso de declaração do valor da mercadoria ou de declaração de juro especial na entrega, em conformidade com os artigos 24 e 26”. Já do nº 3 daquela mesma norma, com as alterações decorrentes do protocolo supra mencionado, resulta que A indemnização não poderá, porém, ultrapassar 8,33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em causa”. Tal unidade de conta corresponde ao direito de saque especial (nº 7 do artigo 23º CMR).
Consequentemente, dado que o autor não declarou nem as caraterísticas da mercadoria, nem o seu valor, procedendo ao cálculo da indemnização, nos termos expostos, verifica-se que o mesmo deve corresponder a € 10,48/kg (8,33 DES x € 1,23 No dia do “julgamento”, ou seja, da prolação da sentença em primeira instância (28-07-2023), a cotação do direito especial de saque (XDR) correspondia a € 1,23 – cfr. artigo 23º, nº 7, CMR.) por quilograma de mercadoria perdida, o que, no caso concreto, equivale a € 51,25 (€ 10,25 x 5kgs), acrescido de juros legais de mora, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento (artigo 23º da CMR e artigo 805º, n.º 1, do Código Civil).
Porém, por aplicação do princípio plasmado no artigo 635º, nº 5, do CPC (non reformatio in pejus), valerá aqui o valor fixado pela primeira instância, isto é, € 52,40, acrescido de juros legais de mora, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento.
A este propósito, cabe ainda salientar que a factualidade apurada não autoriza a conclusão de que o dano emergente da não entrega da mercadoria a que se refere a guia de transporte nº CE 802704976PT decorreu de dolo (ou de falta equivalente) da ré transportadora. Efetivamente, nos termos do artigo 29º, nº 1, CMR: O transportador não tem o direito de aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerado equivalente ao dolo”. Nos termos de tal norma, o transportador perde o direito a aproveitar-se das disposições que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova, se o dano emergiu de dolo seu ou de falta equivalente.

Assim, no que se refere à equivalência entre dolo e culpa grave, refere-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 27-10-2022 Proferido no processo nº5366/21.6T8LSB.L1-2, disponível em www.dgsi.pt: “Para efeitos do artigo 29.º da CMR (afastamento da limitação da responsabilidade do transportador) a negligência grosseira/culpa grave é equivalente a dolo. Tendo em conta os últimos desenvolvimentos, o mais que se pode defender atualmente é que essa culpa tem de ser uma culpa grave consciente (uma falta indesculpável).”

Aceitando-se tal equiparação da culpa grosseira ao dolo, haverá que concluir, em face da factualidade que resultou demonstrada, que nenhum facto se apurou que seja evidenciador de atuação dolosa (ou grosseiramente negligente) da ré, tanto mais que se desconhece, em absoluto, a forma como se processou tal transporte. Consequentemente, forçoso é concluir que não se apurou a existência de falta grave e indesculpável que, nos termos do preceito citado, vede ao transportador o direito ao cálculo da indemnização pela perda da mercadoria nos termos do disposto no artigo 23º nºs 1 e 2 CMR. E é sobre o lesado que incumbia o ónus da prova do dolo ou culpa grave do transportador – veja-se, a este propósito, o acórdão da Relação de Lisboa de 14-12-2023 Proferido no processo nº 5397/19.6T8LRS.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, ainda que a propósito do regime similar consagrado no artigo 21º do Dl 239/2003, diploma este decalcado do da CMR.
Salienta-se ainda que tal dolo ou falta de gravidade similar não pode extrair-se da circunstância de não se ter apurado se a ré respondeu à reclamação que lhe foi dirigida pelo autor. Efetivamente, a ausência de resposta a uma reclamação, apresentada em momento posterior à falha no transporte nos termos e prazos acordados, ainda que constitua violação de obrigação acessória da transportadora, não se reconduz a dolo ou falta grave, para efeitos de subsunção do cálculo da indemnização ao regime do artigo 29º CMR. Ao invés, a atuação dolosa ou equiparada pressuposta por tal preceito deverá ser aferida na execução da obrigação de transporte em si, inserindo-se no pleno cumprimento ou incumprimento da obrigação principal do contrato, e não relativamente a obrigação acessória traduzida no dever de resposta a reclamação apresentada pelo expedidor.

Calculada a indemnização devida nos termos expostos, porque foi arguida pela ré a exceção de prescrição, interessa definir se opera tal causa de extinção do direito de indemnização reconhecido ao autor.
A prescrição, consubstanciando uma exceção perentória inominada, desencadeadora da absolvição do réu do pedido (cfr. artigo 576º, nºs 1 e 3, CPC), constitui uma particular forma de extinção dos direitos, mediante o simples decurso de um lapso temporal. Assim, “se o titular de um direito o não exercer durante certo tempo fixado na lei, extingue-se esse direito. Diz-se, nestes casos, que o direito prescreveu (ou caducou)” - Mota Pinto “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª ed., p. 373.). A prescrição inscreve-se, assim, na problemática da repercussão do tempo nas relações jurídicas, devendo ser invocada por aquele a quem aproveita – cfr. artigos 296º e ss e 303º, Código Civil – iniciando o seu curso quando o direito puder ser exercido; se, porém o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação só findo esse tempo se inicia o prazo da prescriçãocfr. artigo 306º, nº 1, Código Civil.
O autor invocou a aplicabilidade do prazo de prescrição de 20 anos inerente à responsabilidade contratual (cfr. artigo 309º, Código Civil).
Porém, mostrando-se previsto no regime da CMR um específico prazo de prescrição, deverá o mesmo prevalecer em obediência ao princípio de que a lei especial afasta a lei geral (cfr. artigo 7º, nº 3, do Código Civil). Deverá, pois, atender-se ao prazo de prescrição que se encontra previsto no artigo 32º CMR, nos seguintes termos:
1.As ações que podem ser originadas pelos transportes sujeitos à presente Convenção prescrevem no prazo de um ano. No entanto, a prescrição é de três anos no caso de dolo, ou de falta que a lei da jurisdição a que se recorreu considere equivalente ao dolo. O prazo de prescrição é contado:
a)-A partir do dia em que a mercadoria foi entregue, no caso de perda parcial, avaria ou demora;
b)-No caso de perda total, a partir do 30º dia após a expiração do prazo convencionado, ou, se não tiver sido convencionado prazo, a partir do 60º dia após a entrega da mercadoria ao cuidado do transportador;
c)- Em todos os outros casos, a partir do termo de um prazo de três meses, a contar da conclusão do contrato de transporte; (…);
2. Uma reclamação escrita suspende a prescrição até ao dia em que o transportador rejeitar a reclamação por escrito e restituir os documentos que a esta se juntaram.”

Apurou-se que o autor solicitou informação sobre o estado da encomenda no dia 29/05/2020 (facto provado nº 14), o que, de facto, é configurador de uma reclamação. Porém, não resultou demonstrado que a ré tenha respondido a tal reclamação, afigurando-se válido o raciocínio da sentença recorrida que considerou que a declinou com a sua citação no âmbito dos presentes autos em 30/05/2022. Consequentemente, tendo presente que o prazo de 1 ano de prescrição se suspende, nos termos do artigo 32º, n.º 2, 1º parágrafo da CMR, entre a reclamação escrita do expedidor e a rejeição dessa reclamação pelo transportador, forçosa é a conclusão de que o direito do autor a receber uma indemnização pela perda total da mercadoria objeto da guia de transporte n.º CE802704976PT não se encontra prescrito.
Bem decidiu o Tribunal recorrido neste ponto, que, no fundo, não integra o objeto do recurso, dado que nessa parte o autor obteve vencimento em primeira instância (pois a exceção foi, nessa medida, julgada improcedente).

No que se reporta aos quatro contratos de transporte nacional celebrados entre o autor e a ré (factos provados sob os números 22º, 25º, 30º e 34º), mantendo-se a decisão da matéria de facto já enunciada, forçosa é a conclusão de que subsiste apenas a eventual responsabilidade da ré relativamente à guia de transporte DA287914720PT (facto nº 34). O autor não detalhou tal mercadoria, ele próprio procedeu ao seu acondicionamento e embalamento, e apurou-se que não foi entregue ao destinatário, nem devolvida ao autor (facto provado sob o nº 37). Acresce que o autor solicitou e pagou o serviço especial relativo a mercadoria “frágil” (facto nº 35º).
A discordância do autor relativamente ao decidido radica quer no facto de defender que a indemnização deveria ser calculada em função do valor efetivo da mercadoria, e não em função do peso bruto transportado, quer ainda por considerar que tal direito indemnizatório não prescreveu.
Valem aqui as considerações tecidas anteriormente quanto ao contrato de transporte (internacional), dado que também quando ocorre em território nacional se caracteriza pela assunção, pela transportadora, da obrigação de deslocar a pessoa ou a mercadoria entre dois pontos geográficos, pagando o passageiro ou carregador o preço devido por tal transporte. Constitui ainda obrigação do transportador a de entregar ou colocar a mercadoria ou a pessoa transportada nas condições acordadas. Assim, também no contrato de transporte nacional releva a colocação do bem ou da pessoa íntegros no local do destinoMenezes Cordeiro Manual de Direito Comercial, I, Almedina, 2001, pág. 537.. A tal contrato típico e nominado, disciplinado, além do mais, nos artigos 366º a 369º do Código Comercial, aplica-se o regime previsto no Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de outubro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 145/2008, de 28 de julho e pelo Decreto-Lei n.º 57/2021, de 13 de julho.
A responsabilidade da ré decorre do disposto no artigo 19º, n.º 2, do DL n.º 239/2003, dado ter decorrido prazo superior a 15 dias desde a entrega da mercadoria (em 06/05/2020) ao cuidado do transportador sem que este tenha demonstrado a sua entrega ao destinatário. Consequentemente, deve a mercadoria considerar-se perdida na sua totalidade, o que confere ao expedidor o direito a receber uma indemnização.

Nos termos do disposto no artigo 6º, nº 1, do DL 239/2003, de 4 de outubro: O expedidor pode, mediante o pagamento de um suplemento de preço a convencionar, declarar na guia de transporte o valor da mercadoria, o qual, no caso de exceder o limite do valor estabelecido no nº 1 do artigo 20º, substitui esse limite”. Já o artigo 7º daquele diploma confere ao expedidor a possibilidade de “(…) declarar na guia de transporte o valor do interesse especial na entrega da mercadoria, para o caso de perda, avaria ou incumprimento do prazo convencionado”. Certo é que, na ausência de tais menções, opera o limite de responsabilidade consagrado no artigo 20º do diploma, salientando-se, por aplicável ao caso presente, o estipulado no seu nº 1, nos seguintes termos: Sem prejuízo do disposto nos artigos 6º a 8º, o valor da indemnização devida por perda ou avaria não pode ultrapassar € 10 por quilograma de peso bruto de mercadoria em falta”. Assim, dado que o autor não efetuou as referidas menções, a indemnização não poderia deixar de ser calculada nos termos do preceito citado, apenas em função do peso bruto transportado (in casu, 4 kgs), nos termos do artigo 20º, n.º 1, do DL 239/2003.

Porém, como referido na decisão recorrida, deverá concluir-se que prescreveu o direito de indemnização do autor relativo ao transporte em causa.
Efetivamente, tendo sido entregue a mercadoria em questão (guia de transporte DA287914720PT) à transportadora no dia 06/05/2020, deve considerar-se que ocorreu a sua perda total no dia 22/05/2020.
É certo que ficou demonstrado que o autor solicitou informação sobre o estado da encomenda no dia 18/05/2020, o que configura uma reclamação, e que no dia 10/11/2020, o autor voltou a solicitar informação sobre o estado desta encomenda.
A tal reclamação, a ré não deu resposta.
Porém, como referido na sentença recorrida, no âmbito do regime do transporte nacional não se encontram previstas causas específicas de suspensão do prazo de prescrição, o que determina a aplicação das normas gerais de suspensão e interrupção do prazo de prescrição, previstas nos artigos 318º e seguintes do Código Civil. E o certo é que, neste caso, não opera qualquer uma dessas causas interruptivas ou suspensivas da prescrição. E assim é mesmo ponderando o período de suspensão do prazo de prescrição determinado durante a vigência do estado de emergência e situação pandémica no país. Certo é que, mesmo ponderando a suspensão dos prazos de prescrição entre 22-01-2021 e 06-04-2021, por efeito do disposto termos dos artigos 2º e 4º da Lei n.º 4-B/2021, que aditou o artigo 6º à Lei n.º 4- A/2020, de 19 de março, no momento da instauração da ação, em 25-05-2022, o direito indemnizatório do autor decorrente da não entrega da mercadoria transportada sob a guia DA287914720PT já se encontrava prescrito, por decurso do prazo de prescrição de um ano.
Improcede, pois, o recurso.

Por ter ficado vencido, o autor/recorrente é responsável pelo pagamento das custas processuais – cfr. artigo 527º e 529º, CPC.

*

III–DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta 2ª secção cível:
- Julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo autor A., mantendo a decisão recorrida.

Custas do recurso pelo autor/recorrente – cfr. artigos 527º, CPC.

D.N.


Lisboa, 21 de março de 2024



Rute Sobral- (relatora)
Paulo Fernandes da Silva- (1º adjunto)
Pedro Martins- (2º adjunto-com declaração de voto e voto de vencido parcial, conforme declaração infra)

(Assinatura eletrónica)


Declaração de Voto e Voto de Vencido (parcial)

I-Da função subsidiária das declarações de parte

O art. 466/1 do CPC dispõe que “as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo.”

O regime legal tem por pressuposto que a parte foi assistindo à produção de prova (neste sentido, veja-se, por exemplo, veja-se o post do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, de 24/04/2017:Um apontamento sobre as declarações de parte, no blog do IPPC) e que, no fim dela, considerou que havia dúvidas que importava esclarecer, pelo que lhe dá a possibilidade de, então, requerer a prestação de declarações (neste sentido, por exemplo, o ac. do TRL de 22/06/2023, proc. 14415/20.4T8LSB.L1-2, relatado pelo signatário; no mesmo sentido, no processo civil alemão, vai um dos elementos fornecidos pelo Prof. Miguel Teixeira de Sousa]: “O § 448 ZPO estabelece o seguinte: "Mesmo sem o pedido de uma parte e sem a consideração [da distribuição] do ónus da prova, o tribunal pode, quando o resultado da audiência de julgamento e de qualquer outra produção da prova não for suficiente para fundamentar a sua convicção sobre a verdade ou não verdade de um facto probando, ordenar a audição de uma parte ou de ambas as partes sobre o facto". Entende-se que o tribunal deve ordenar a audição da parte quando o facto não esteja provado, mas, dos elementos recolhidos no processo, tenha resultado um começo de prova que possa vir a ser completado pela prova resultante da audição da parte (cf. Wieczorek/Schütze/Völzmann-Stickelbrock (2013), § 448 8; Stein/Jonas/Berger (2015), § 448 5). […]” (Para que serve afinal a prova por declarações de parte? Post publicado no blog do IPPC em 25/05/2018)).

Logo, as declarações de parte são, no regime legal, um elemento de prova com função subsidiária (neste sentido, veja-se a vária doutrina citada no ac. do TRP de 10/09/2015, proc. 6615/11.4TBVNG.P1, relatado pelo signatário; Lebre de Freitas, na 4ª edição da Acção declarativa, 2017, Gestlegal, refere-se ao funcionamento das declarações de parte “como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária […]” (págs. 322 [= 328 da 5.ª edição, de 2024] – repare-se que ‘outros’ se refere a ‘elementos de clarificação’ e não a ‘provas’). E, junto com Isabel Alexandre, no CPC anotado, vol. II, Almedina, 3.ª edição, 2017, pág. 309, diz que é isso que acontecerá o mais das vezes porque a liberdade de apreciação da prova “não equivale a arbitrariedade” e que “[o] facto de as declarações de parte poderem ser requeridas já depois de produzidas todas as provas […] abona esse entendimento da sua função.” [contra, veja-se a posição de Miguel Teixeira de Sousa nos trabalhos citados acima.]

II-Da apreciação das declarações de parte

A questão anterior é diferente da questão da forma como as declarações de parte devem ser apreciadas. A lei (art. 466/3 do CPC) é clara: “O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.”

Mas o tribunal também deve ter em consideração as regras normais da formação da convicção do juiz. Ora, em relação a factos que são favoráveis à parte que presta declarações, o juiz não pode ficar convencido com essas declarações se não houver um mínimo de corroboração delas por outras provas.

Como se trata da formação da convicção do juiz, não está em causa a aplicação de regras jurídicas, para além da referência legal à livre apreciação da prova, pelo que se pode lembrar aqui o que diz, relativamente ao sistema espanhol, Jordi Nieva Fenoll, La valoración de la prueba, Marcial Pons, 2010, págs. 241/242: A única coisa que importa valorar da declaração de um litigante é que o seu relato esteja espontaneamente contextualizado e que se veja credenciado por outros meios de prova. De contrário, a declaração é suspeita de falsidade, ou, ao menos, a sua força probatória é tão débil que não tem que ser tida em conta. Nem sequer se é coerente, pelas razões já vistas. Nestes casos, importaria concluir que o resultado da produção das declarações é infrutífero e o juiz assim o deveria argumentar na sentença [a citação, aqui menos completa, vem dos acórdãos do TRP de 26/06/2014, 97564/13.8YIPPRT.P1, não publicado, e de 20/11/2014, proc. 1878/11.8TBPFR.P2, publicado, relatados pelo signatário].

III-Da indemnização relativa à encomenda para a Itália:

A limitação da responsabilidade da ré decorre, no caso, do art. 23 da CMR. Mas esta limitação será afastada, por força do art. 29 da CMR, se se puder afirmar que o dano provem de dolo do transportador ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo.

Para efeitos do artigo 29.º da CMR a negligência grosseira/culpa grave ou, pelo menos, a culpa grave consciente (uma falta indesculpável) é equivalente a dolo. Ora, o facto de o transportador não dar (ou não se provar – como no caso) qualquer explicação para o que sucedeu à mercadoria, demonstra (por presunção natural ou judicial) culpa grave (e consciente / indesculpável).

E tal tem a ver, logicamente, também com a fase posterior ao transporte: as duas sentenças do Tribunal de Milão e do Tribunal de Roma, citadas no acórdão referido a seguir, é disso que tratam; a sentença de 11/05/2016 considerou como um caso de culpa lata, equivalente ao dolo, a falta de entrega das mercadorias sem se poder apurar qualquer motivo para isso. A epígrafe da resenha e comentário de tal acórdão é significativa: “Transporte terrestre; Não entrega de parte da carga; Falha grave da transportadora; Existe na ausência de explicação quanto à sua causa.”

Mantém-se, pois, o que se disse no acórdão do TRL de 27/10/2022, proc. 5366/21.6T8LSB.L1-2, relatado pelo signatário deste voto (para onde se remete para melhor fundamentação do que antecede e do que se segue):

O transportador tem, pelo menos, de alegar o que é que se passou com a mercadoria. Ao fazê-lo, dá ao expedidor as bases necessárias para que possa fazer a investigação dos factos que lhe permitam alegar que o transportador agiu com culpa grave, sem adoptar os cuidados precisos para evitar a perda/destruição, total ou parcial, da mercadoria. Se não o fizer, isto é, se o transportador não cumprir aquele dever de esclarecimento mínimo, tem de se concluir, por presunção judicial (art. 349 do CC), que ele não actuou de forma minimamente diligente. Pois só um transportador completamente despreocupado com as mercadorias, isto é, com os interesses das suas contrapartes, é que nem sequer é capaz de dizer o que é que se passou com as mercadorias; se não fosse assim, teria organizado a sua empresa e o transporte de mercadorias de modo a ter o mínimo de conhecimento do que é que se passava com elas. O sistema de responsabilidade do transportador não está pensado para proteger este tipo de transportador que não cumpre minimamente com os padrões de diligência exigíveis. Os expedidores, quando contratam o transporte da mercadoria, estão à espera que os transportadores tenham a sua empresa organizada de tal modo que possam, pelo menos, ter conhecimento do que é que se passa com as mercadorias.

Conclui-se, assim, que no caso a ré não deve poder beneficiar do limite à sua responsabilidade porque, face à ausência de qualquer explicação para o desaparecimento da mercadoria (factos H, J e J), demonstra que não tem a sua empresa organizada de modo a cumprir os parâmetros de diligência exigíveis, nem os cumpriu no caso dos autos.

Não sendo aplicáveis as regras do artigo 23.º, n.ºs 1 e 2, da CMR, a indemnização deve ser fixada com equidade, por força do art. 566.º/3 do CC, mas tendo em conta que contribui com culpa para o dano o expedidor que contrata o transporte da mercadoria sem dizer nada quanto ao seu valor. Neste caso a indemnização não deve ser fixada, ao abrigo do artigo 570.º do CC, com equidade, em mais de 10 vezes o valor que resulta do artigo 23º/3 da CMR.

Aplicando o que antecede, considero que, no caso, a indemnização pelo extravio desta encomenda, tendo em contas os limites decorrentes do valor que o autor dava à mercadoria e aquele que resulta do cálculo segundo o art. 23/3 da CMR, devia ser fixado por volta de 600€; mas, aplicando o limite das 10 vezes referido acima, ela devia ser fixada em 512,50€.


Pedro Martins