Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
14586/19.2T8LSB.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: RECURSO
IMPUGNAÇÃO DIFERIDA
TAXA DE JUSTIÇA
APOIO JUDICIÁRIO
FACTOS
REVELIA
INDEMNIZAÇÃO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
CÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NÃO CONHECIMENTO (PARCIAL)/ IMPROCEDENTE
Sumário: (da exclusiva responsabilidade da Relatora – art. 663.º, n.º 7, do CPC)
I - Não é admissível a impugnação diferida, com o recurso da sentença final, do despacho em que o Tribunal recusou dar sem efeito anterior despacho (que determinara a notificação da Ré para comprovar o pagamento da taxa de justiça atento o indeferimento do pedido de apoio judiciário, conforme previsto no art. 570.º, n.º 2, do CPC) e mandou cumprir o disposto no art. 570.º, n.º 3, do CPC, negando reconhecer o deferimento tácito do pedido de apoio judiciário cujo comprovativo havia sido junto com a contestação.
II - Da sentença proferida ao abrigo do disposto no art. 567.º do CPC, mesmo com uma fundamentação sumária do julgado, deverá constar, sob pena de nulidade [cf. art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC], o elenco dos factos tidos como estando plenamente provados.
III - Na presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, não contestada, em que vem peticionada pela 1.ª Autora uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em virtude do ataque por uma cadela de raça “pastor alemão”, os factos atinentes aos rendimentos auferidos pela Autora e à situação de reformada, não se tratam de factos para cuja prova a lei exija documento escrito, nos termos e para efeitos do disposto no art. 568.º, al. d), do CPC.
IV - Não se afigura excessivo o montante de 15.000 € fixado na 1.ª instância a título de indemnização por tais danos não patrimoniais, considerando o susto vivenciado pela Autora aquando do ataque, as lesões traumáticas que teve (traumatismo da coluna lombo sagrada e uma fratura do rádio direito), as duas intervenções cirúrgicas que teve de realizar, bem como as várias consultas e tratamentos que teve, as dores que sentiu e sente (com Quantum Doloris fixável em 4 numa escala até 7), o período de incapacidade temporária absoluta de 30 dias, a incerteza pela evolução do seu estado de saúde, o desgosto pelas sequelas com que ficou, designadamente a rigidez do punho direito e artrose pós-traumática, com impotência funcional crónica do punho direito, que se traduzem num défice permanente da sua integridade físico-psíquica de 5 pontos, com impacto nas atividades profissionais, sociais e de lazer, além de uma cicatriz (de 7,5 cm) no punho direito, e a circunstância de ter passado a ser uma pessoa dependente, com limitações, o que a deixa triste e frustrada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
“AA”, (3.ª) Ré na ação declarativa que sob a forma de processo comum contra si - e ainda contra “DD”(1.ª Ré) e “EE” (2.ª Ré) - foi intentada por “BB” (1.ª Autora) e “CC” (2.ª Autora), interpôs o presente recurso de apelação da sentença que julgou a ação procedente.
Na Petição Inicial, apresentada em 14-07-2019, as Autoras peticionaram que as Rés fossem solidariamente condenadas no pagamento:
A) À 1.ª Autora “BB”, da quantia de 48.852,55 € a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados sobre o capital desde a citação e até efetivo pagamento;
B) À 2.ª Autora “CC”, da quantia de 378,50 € a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados sobre o capital desde a citação e até efetivo pagamento.
Alegaram, para tanto e em síntese, que:
- No dia 25-07-2016, a 1.ª Autora, enquanto passeava duas cadelas de que a 2.ª Autora é dona, foi atacada por uma cadela de raça pastor alemão, propriedade das 1.ª e 2.ª Rés, que estava a ser passeada pela 3.ª Ré, à solta;
- Devido ao ataque, a 1.ª Autora caiu ao chão e sofreu lesões cujo tratamento implicou que fosse submetida a duas intervenções cirúrgicas, bem como a várias consultas médicas, r/x, sessões de fisioterapia e outras, com o que despendeu a quantia de 1.612,55 €;
- A 1.ª Autora sofreu e continua a sofrer dores, apesar da medicação, e continuará a necessitar de acompanhamento médico e de fisioterapia;
- Por causa das lesões ficou temporariamente impossibilitada de desenvolver a sua atividade profissional, como empregada doméstica da 2.ª Autora e cuidadora de idosos, incapacidade que foi total durante 60 dias e implicou perdas salariais de 2.240 €;
- Ficou afetada com um défice permanente da sua integridade físico-psíquica fixado em 5 pontos, com esforços acrescidos para a atividade profissional de empregada doméstica e sem poder continuar a exercer a atividade de auxiliar de idosos, o que representa um dano biológico, na vertente de dano patrimonial, de montante não inferior a 30.000 €;
- A 1.ª Autora teve danos não patrimoniais, cuja indemnização deve ser fixado em valor não inferior a 15.000 €, considerando as dores que sentiu e sente, a situação vivenciada durante o período de incapacidade temporária absoluta, a incerteza no seu estado de saúde, a tristeza pela perda do convívio com familiares amigos, o desgosto em consequência das sequelas sofridas pelo acidente e da incapacidade permanente genérica de 5 pontos, pelo impacto nas atividades profissionais, sociais e de lazer, bem como em consequência da cicatriz (de 7,5 cm) que tem no punho direito, e a circunstância de ter passado a ser uma pessoa dependente e triste;
-  Em consequência do ataque da cadela pastor alemão ficou também ferida uma cadela propriedade da 2.ª Autora, a qual despendeu com os tratamentos veterinários a quantia de 128,50 €;
- A 2.ª Autora sentiu desgosto com a situação de saber que a sua cadela tinha sido atacada, danos não patrimoniais estes que quantifica em 250 €;
- As Rés são solidariamente responsáveis, nos termos do art. 493.º do CC ou, pelo menos, nos termos do art. 502.º do CC.
As Rés foram pessoalmente citadas (designadamente a 3.ª Ré, através de carta registada com a/r assinado a 25-05-2020, junto aos autos em 02-06-2020, e as demais através de Agente de Execução, conforme certidões juntas a 14-08-2020).
A 3.ª Ré apresentou Contestação a 29-06-2020, com a qual juntou comprovativo de pedido de apoio judiciário (nas modalidades de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e de pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo).
Em 14-04-2021, foi proferido despacho determinando a notificação do Instituto da Segurança Social para informar qual a decisão que recaiu sobre o pedido de apoio judiciário formulado pela Ré contestante.
O Instituto da Segurança Social, veio informar, conforme emails juntos aos autos em 26-04-2021, que o requerimento de proteção jurídica apresentado pela 3.ª Ré havia sido indeferido por falta de resposta à audiência prévia, acrescentando que a requerente havia sido notificada para prestar esclarecimentos/juntar documentos, e que, decorrido o prazo concedido para responder, nada dissera.
Em 01-07-2021, foi proferido despacho que determinou a notificação da decisão da Segurança Social “à Ré contestante, a fim de a mesma proceder ao pagamento da taxa de justiça em falta, atento o indeferimento do pedido de apoio judiciário (art.º 570º, nº2 do CPC). Prazo: 10 dias”.
Notificada com cópia do despacho e da informação do ISS (notificação elaborada a 05-07-2021), veio a Ré, em 02-09-2021, alegar, em síntese, que não recebeu a carta da Segurança Social relativa à audiência prévia e que desconhece se foi enviada para a morada em que foi citada (que diz estar errada), requerendo que fosse notificada a Segurança Social para dar sem efeito a decisão de indeferimento do pedido de apoio judiciário e que o Tribunal a dispensasse do pagamento da taxa de justiça no prazo fixado.
As Autoras pronunciaram-se, na mesma data, pelo indeferimento desse requerimento.
Foi proferido despacho em 29-09-2021 determinando a notificação do ISS para juntar comprovativos das notificações efetuadas no âmbito do procedimento de apoio judiciário e informar se a referida Ré tinha impugnado a decisão de indeferimento.
Por email junto aos autos em 28-10-2021, o ISS informou que, por decisão de 26-01-2021, o requerimento de proteção jurídica havia sido indeferido, por falta de resposta na sequência da falta de resposta à audiência prévia, pois nada tinha sido dito pela requerente após ter sido notificada para prestar esclarecimentos/juntar documentos e uma vez que havia sido informada de que, na falta de resposta, nos termos do n.º 3 do art. 8.º-B da Lei de Proteção Jurídica, o requerimento iria ser indeferido, não havendo lugar a nova notificação. O ISS enviou, em anexo, cópia da notificação para a audiência prévia (Ofício com a ref.ª APJ 61292/2020 de 02/12/2020), com registo de saída a 03-12-2020 n.º 00283973, bem como do despacho de indeferimento datado de 26-01-2021.
O Tribunal determinou a notificação àquela Ré destes documentos e para se pronunciar (cf. despacho de 14-12-2021).
A Ré, assim notificada, veio, em 10-01-2022, apresentar requerimento, em que, invocando a falta de prova de comunicação sobre a audiência prévia, requereu que fosse determinado ao ISS a realização de buscas no sentido de confirmar a insuficiência económica da referida Ré e a ulterior prolação de decisão em conformidade com tal situação de insuficiência económica.
As Autoras vieram, em 19-01-2022, pronunciar-se no sentido do indeferimento do requerido pela 3.ª Ré e do prosseguimento dos autos nos termos do art. 570.º, n.º 3, do CPC, considerando que aquela tinha, pelo menos desde 05-07-2021, conhecimento da decisão de indeferimento do pedido de apoio judiciário sem que tivesse reagido contra a mesma pelos meios próprios.
O Tribunal, por despacho proferido em 03-02-2022, determinou a notificação do Instituto da Segurança Social para juntar aos autos o documento comprovativo do envio à Ré da carta com a ref.ª APJ (…)92/2020 (audiência prévia), com registo dos CTT.
Por email junto aos autos em 14-02-2022, o Instituto de Segurança Social enviou cópia do talão do registo dos CTT de 03-12-2020, atinente ao envio de carta (registada) em 03-12-2020, dirigida à Ré “AA” (para a morada indicada no requerimento de proteção jurídica).
Em 08-03-2022, o Tribunal determinou que se oficiasse aos CTT para informar sobre se a carta remetida pelo ISS tinha sido recebida ou não, tendo aqueles Serviços respondido, em 28-03-2022, nos seguintes termos: “Pelo acima descrito é impossível facultar informação sobre o objecto RF606504285PT, uma vez que o prazo de aceitação é anterior ao acima mencionado, ou seja, o tempo de arquivo da informação sobre o mesmo no sistema já foi excedido.”
A 3.ª Ré, notificada desta informação em 12-04-2022, apresentou, em 28-04-2022, novo requerimento, em que veio solicitar ao Tribunal que considerasse a formação de ato tácito de deferimento do pedido feito com efeitos a contar de 18-08-2020 (correspondente a 30 dias após o pedido sem que tenha havido qualquer decisão).
Os Autores pronunciaram-se em 02-05-2022, no sentido do indeferimento do requerido.
A 12-05-2022, foi proferido o seguinte Despacho (sublinhado nosso):
“A Ré “AA” veio aos autos veio dizer que tomou conhecimento da decisão sobre o seu pedido de concessão de apoio judiciário apenas por via do despacho que determinou o cumprimento do artigo 570.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, porquanto o ISS não notificou a ora exponente em sede de audiência prévia nem lhe deu conhecimento da existência da aludida decisão. Assim, requer que se dê sem efeito o despacho e se considere deferido tacitamente o benefício do apoio judiciário.
A A. pugna pelo indeferindo da pretensão com os fundamentos que invoca.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos do artigo 23º, nº 1, da Lei nº 34/2004, de 29 de julho, a notificação das decisões proferidas no âmbito do procedimento destinado à apreciação do pedido de concessão do benefício do apoio judiciário segue os termos previstos no Código do Procedimento Administrativo.
Na alínea a) do nº 1 do artigo 112º do C.P.A. estabelece-se que as notificações podem ser efetuadas: por carta registada dirigida para o domicílio do notificando ou, no caso de este o ter escolhido para o efeito, para outro domicílio por si indicado.
Por sua vez, no artigo 113º, nºs 1 e 2, do C.P.A., refere-se que a notificação por carta registada presume-se efetuada no terceiro dia útil posterior ao registo ou no primeiro dia útil seguinte a esse, quando esse dia não seja útil. A presunção prevista no número anterior só pode ser ilidida pelo notificando quando não lhe seja imputável o facto de a notificação ocorrer em data posterior à presumida.
Em 03 de Dezembro foi enviada carta registada à Ré para a morada que consta dos autos para juntar documentos e no âmbito da audiência prévia.
Em 26-01-2021 o requerimento foi indeferido por falta de resposta á audiência prévia.
Deve, pois, considerar-se que a ré foi notificada da audiência prévia e da proposta de decisão de indeferimento do pedido de proteção jurídica, uma vez que, limitando-se a afirmar a inexistência da notificação pelos serviços da Segurança Social, não procurou ilidir a presunção prevista no citado artigo 113º, nº 1, do C.P.A..
 Analisados os autos verifica-se que não a Ré não conseguiu demonstrar que a carta não lhe foi entregue não ilidindo a presunção de que foi notificada para a morada que consta nos presentes autos. os autos ainda que a segurança social não tenha notificado o reclamante do indeferimento do apoio judiciário,
Acresce que a Ré não apresentou a impugnação no procedimento destinado à apreciação do pedido de concessão de proteção jurídica junto do ISS, pelo que a proposta de indeferimento, passados dez dias úteis, por força do disposto no nº 2 do artigo 23º da Lei nº 34/2004, converteu-se, sem qualquer outra notificação, em decisão de indeferimento.
Assim, mantém-se o despacho proferido.
Deste modo, ao abrigo do disposto no artigo 570.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, notifique a Ré para, no prazo de 10 dias, proceder ao pagamento da taxa de justiça devida, com acréscimo de multa em igual montante (não podendo ser inferior a 1 UC nem superior a 5 UC’s).
Notifique.”
Notificada a 3.ª Ré para esse efeito (cf. notificação elaborada a 17-05-2022), a Ré apresentou requerimento em 30-05-2022, data limite de pagamento indicada na guia, alegando, em síntese, aguardar que seja reconhecido o deferimento tácito do pedido de proteção jurídica, pois, independentemente de a carta ter ou não sido recebida, “o tribunal pode alterar o que decidiu, tendo em conta que o alegado pedido de audiência prévia foi feito seis meses após a formação do acto tácito e a jurisprudência assume que após esse prazo, o acto tácito torna-se sempre definitivo”.
Em 06-10-2022, foi proferido despacho com o seguinte teor (sublinhado nosso):
“Nos presentes autos foi proferido despacho em 01.07.2021 a determinar a notificação da ré para juntar o comprovativo do pagamento da taxa de justiça, considerando o indeferimento do pedido de apoio judiciário (ref.ª 406722674).
Após diversas diligências instrutórias, o Tribunal proferiu o despacho de ref.ª 415668159 (12.05.2022), indeferindo o pedido formulado pela ré no sentido de ser considerado o deferimento tácito do requerimento de proteção jurídica, e determinando a notificação da ré para proceder ao pagamento da taxa de justiça devida, acrescida de multa processual nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 570.º do Código de Processo Civil.
Nessa sequência, vem a ré, a ref.ª 32721452, requer que o Tribunal se pronuncie novamente sobre questão já decidida, nomeadamente que seja reconhecido o deferimento tácito do seu direito à proteção jurídica pois, independentemente da remessa da carta ter sido ou não recebida, o tribunal pode alterar o que decidiu, tendo em conta que o alegado pedido de audiência prévia foi feito seis meses apos a formação do ato tácito e a jurisprudência assume que após esse prazo, o ato tácito torna-se sempre definitivo.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 613.º do Código de Processo Civil, aplicável aos despachos por força do n.º 3 do mesmo artigo, e que consagra o princípio da intangibilidade das decisões judiciais, “proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”.
Desta forma, uma vez que a questão suscitada pela requerente foi já objeto de decisão, não pode o Tribunal apreciá-la novamente. A discordância com o referido despacho poderia ter sido manifestada pela requerente através do meio próprio: o recurso da decisão, o que o requerimento aqui em apreço manifestamente não é.
Assim, indefiro o requerido.
Após trânsito, conclua.”
Em 09-11-2022, foi proferido o seguinte despacho:
“Decorrido o prazo concedido pelo despacho de 12.05.2022 (ref.ª 415668159), a ré não demonstrou ter efetuado o pagamento da taxa de justiça devida pela apresentação da contestação e da respetiva multa.
Ao abrigo do disposto no n.º 5 do artigo 570.º e na alínea c) do n.º 2 do artigo 590.º do Código de Processo Civil, convido a ré a, em dez dias, proceder ao pagamento da taxa de justiça devida pela apresentação da contestação e da multa já aplicada, acrescida de multa de valor igual ao da taxa de justiça inicial, com o limite mínimo de 5 (cinco) UC, e com a expressa cominação de que, não o fazendo, será determinado o desentranhamento da contestação (n.º 6 do referido artigo 570.º).”
A Ré foi notificada, tendo-lhe sido remetida guia com data limite de pagamento de 24-11-2022 (que não pagou).
Em 17-02-2023, foi proferido o Despacho com o seguinte teor (sublinhado nosso):
“Notificada para efetuar o pagamento da taxa de justiça devida pela apresentação de contestação, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 570.º do Código de Processo Civil, a ré contestante não efetuou qualquer pagamento. Novamente notificada, agora nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 570.º, a ré contestante nada pagou, juntou ou requereu.
Assim, e nos termos do disposto no n.º 6 do mencionado artigo 570.º, determino o desentranhamento da contestação.
Constata-se, então, que, regularmente citadas, as rés não apresentaram qualquer contestação no prazo legal.
Uma vez que não se afigura verificar-se nenhuma das situações a que alude o artigo 568.º do Código de Processo Civil, declaro confessados os factos articulados na petição inicial, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 567.º do mesmo diploma.
Notifique nos termos e para os efeitos previstos no n.º 2 do artigo 567.º do Código de Processo Civil.”
As Autoras vieram alegar.
Em 31-03-2023 foi desentranhada a Contestação do processo físico (embora não tenha sido eliminada do processo eletrónico).
Em 14-04-2023, foi proferida a Sentença recorrida, cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Por todo o exposto, julgo integralmente procedente, por provada, a presente ação e, em consequência:
a) Condeno as rés a pagar à autora “BB”, a título de indemnização, a quantia de € 48.852,55 (quarenta e oito mil oitocentos e cinquenta e dois euros e cinquenta e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, devidos desde a citação e até integral pagamento;
b) Condeno as rés a pagar à autora “CC”, a título de indemnização, a quantia de € 378,50 (trezentos e setenta e oito euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, devidos desde a citação e até integral pagamento;
Nos termos do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º do Código de Processo Civil, a responsabilidade pelo pagamento das custas do processo recai sobre a parte que tiver ficado vencida. Como tal, nos presentes autos, as custas ficarão integralmente a cargo das rés.”
A 3.ª Ré veio, em 22-05-2023, interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões (sublinhado nosso):
1. A Apelante vem recorrer do despacho proferido a 17/05/2022, com o qual não pode concordar por violação dos Nº 2 e 3 do artº 25º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho (Regime de Acesso ao Direito e tribunais).
2. Contrariamente ao decidido, devia ter sido considerado o deferimento tácito do pedido de apoio judiciário feito nos autos, tendo em conta que não houve qualquer decisão no prazo de 30 dias após apresentação do requerimento.
3. As datas invocadas pela Segurança Social, 30/09/2021 e 26/01/2021, não são idóneos a invalidar o acto tácito, que deve ser confirmado e reconhecido por este tribunal superior.
4. Em consequência da validade do acto tácito, deve o Apoio judiciário requerido pela Apelante ser considerado deferido, com efeitos a partir de 18/08/2020, revogando-se o despacho recorrido, com as legais consequências, concretamente a anulação de todos os despachos proferidos após o despacho revogado, o que inclui, necessariamente a Sentença proferida nos autos e a admissão da contestação da Apelante nos autos.
5. Caso não seja validado o acto tácito formado a respeito do pedido de apoio judiciário, a Apelante invoca também a Violação do Nº 2 do Artigo 113 do CPA.
6. Pois, tendo a Segurança Social sido notificada nos termos do artº 113 Nº 2 do C.P.A., não confirmou a receção desse envio. Os CTT também não confirmaram o envio, dado já não terem acesso aos dados do sistema.
7. Da letra do artigo retira-se que se exige apurar a data da efectiva recepção, o que não consta nos autos, tendo sido declarado pela Segurança Social que não confirmava o envio.
8. Sendo assim, não podia o Juiz de 1ª Instância considerar que a notificação se considera perfeita, para efeitos de presunção de notificação nos termos do artº 113º Nº 1º do C.P.A..
9. Deve, assim, ser revogado o despacho em causa e substituído por outro que acautele os interesses da 3ª Ré, nomeadamente ordenar nova notificação da 3ª Ré de todos os actos/decisões relativas ao apoio judiciário, para poder exercer os seus direitos de defesa e impugnação, e após, prosseguir o processo os seus termos.
10. A revogação do despacho recorrido tem como consequência a anulação de todos os actos proferidos após o despacho revogado, o que inclui, necessariamente, a Sentença proferida nos autos e a integração da Contestação que o Juiz mandou desentranhar, sem fundamento.
Sem conceder, caso não procedam os anteriores fundamentos,
11. Ocorre a Nulidade da Sentença, prevista no artº 615º Nº 1, b) do C.P.C. por violação do art.º 607º n.ºs 3, 1ª parte e 4.
12. O Juiz limitou-se a invocar que a matéria de facto alegada foi dada como provada, por aplicação do artº 567 do C.P.C., não especificando os factos concretos que levaram a condenar a 3ª Ré na totalidade do pedido, incluindo uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais cujos montantes não foram escrutinados pelo juiz, limitando-se a considerar “ ....a quantia peticionada como ajustada”, o que é claramente insuficiente face ao normativo atrás invocado e que foi violado frontalmente.
13. Pelo exposto, em cumprimento do disposto no art.º 607º, n.ºs 3, 1ª parte e 4, do CPC, deveria o juiz indicar expressamente os factos provados, indicando todo o material probatório que estivesse fora da mera revelia e da correcta aplicação das normas jurídicas aos factos, não bastando considerar que foi declarada provada toda a matéria alegada pelas AA.
14. Neste sentido, invoca-se Acordão do Tribunal da Relação de Guimarães de 13/07/2014, in http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/.
15. Ocorre também Nulidade da Sentença por erro no julgamento da matéria de facto, com fundamento no artº 662, Nº 2, Alínea c) e artºs 567 Nº 2 e 568º alínea d) do C.P.C.
16. A revelia da 3ª Ré não dispensa o Juiz de aplicar o direito aos factos, nomeadamente àqueles cuja prova requeira documento escrito, o que ocorre com os alegados rendimentos da 1ª A. Nada consta no processo acerca de tais rendimentos invocados nos artºs 99, 100º,107º, e 172º da P.I., entre outros.
17. Neste sentido, invoca-se Acordão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14/13/2019, in http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/.
18. Por nulidade devida a erro na matéria de facto da sentença, prevista no artº 662 Nº 2, alínea c) deve ser determinada a baixa do processo à 1.ª instância para que o juiz “a quo” profira despacho a convidar as AA. a juntar aos autos documentos idóneos a demonstrar os seus rendimentos, como sejam recibos, declarações fiscais ou outros equivalentes.
19. A Sentença viola, ainda, os artºs 388º, 494º, 496º e 500º, todos do C.C..
20. Os danos não patrimoniais considerados, e que foram peticionados, Euros 15.000,00, não são equitativos, face á factualidade ficta dada como provada genericamente, sem especificação.
21. Tais danos, dada a factualidade dos autos, não ultrapassam 3.000,00, caso haja condenação, o que não se concede.
22. Também o facto das AA. alegarem que a 3ª Ré era Comitente, devia ter levado à responsabilização apenas das 1ª e 2ª Rés, e não da 3ª Ré, que devia ter sido absolvida.
23. Pelo exposto, foram violados os artºs 388º, 494º, 496 e 500º, todos do C.C, cuja aplicação correcta leva a revogar a sentença, também na parte que lhes diz respeito.
Terminou a Apelante defendendo que deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se e anulando-se o Despacho proferido em 17-05-2022, e em consequência, todos os atos e despachos praticados após, o que inclui a sentença proferida, dando-se por admitida nos autos a contestação da Apelante; Se assim não se entender, deve ser declarada nula a sentença proferida, com fundamento no art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC e no art. 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, com a baixa dos autos à 1.ª Instância para convidar as Autoras a juntarem documento demonstrativo dos rendimentos que alegam na Petição Inicial, prosseguindo os autos após essa instrução; Se não for anulada a sentença, a manterem-se os factos provados constantes dos autos, deve, ainda assim, ser totalmente revogada, no sentido de se absolver a Apelante.
Juntou com a sua alegação recursória cópia de novo requerimento de proteção jurídica, cujo deferimento se mostra comprovado pelo ofício junto aos autos a 19-09-2023.
Em 29-06-2023, foi apresentada alegação de resposta (com dedução de incidente de justo impedimento que veio a ser decidido por despacho de 23-12-2023), em que as Autoras-Apeladas defenderam que deverá ser negado provimento ao recurso, confirmando-se o despacho de 13-05-2022 e a sentença, concluindo, em síntese, que:
(…) 2. Entendem as Recorrida, ao contrário da Recorrente, que andou bem as doutas decisões proferidas pelo Tribunal “a quo”, devendo as mesmas manter-se tanto na parte decisória como nos seus fundamentos.
(…) 20. Em suma: não existe qualquer fundamento para por em causa o despacho proferido pelo Tribunal em 13/05/2022, não se verificando qualquer violação de normativo, nem da Lei 35/2004, nem do CPA, devendo o mesmo manter-se nos seus precisos termos.
21. Não existe, no entender das Recorridas, qualquer nulidade da sentença, ou violação que lei que imponha decisão diversa da proferida.
(…) 24. Os factos alegados pelas Autoras não foram contestados pelas Rés, e têm suporte documental.
(…) 26. Pelo que todos os factos alegados pelas Autoras na sua petição inicial devem ser dados como provados.
27. Os danos reclamados pelas Autoras encontram-se também devidamente demonstrados e provados, sendo equitativo o seu cálculo.
28. As Rés são solidariamente responsáveis pelo acidente causado e pelos danos dele decorrentes, porquanto, a 1.ª e 2.ª Rés, eram na data dos factos, proprietárias da cadela “XX”, e a 3.ª Ré era quem passeava, no interesse e por conta das 1.ª e 2.ª Ré o cão ““XX””, incumbindo-lhe o cumprimento dos deveres de vigilância e guarda da cadela.
(…) 35. Com a sua conduta, as Rés violaram o disposto no art.º 7.º do DL 314/2003 de 17/12, que obriga todos os cães e gatos que circulem na via ou lugar públicos de coleira ou peitoral, no qual deve estar colocada, por qualquer forma, o nome e morada ou telefone do detentor; sendo proibida a presença na via ou lugar públicos de cães sem estarem acompanhados pelo detentor, e sem açaimo funcional, excepto quando conduzidos à trela, em provas e treinos ou, tratando-se de animais utilizados na caça, durante os actos venatórios.
36. Caso se entenda que não se verifica no caso dos autos a responsabilidade por facto ilícito, nos termos do art.º 493.º do CC, as Ré sempre serão responsáveis nos termos do art. 502º do CC, respondendo com base no risco.
(…) 41. Verificam-se no caso todos os pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual, pelo que as Rés estão obrigadas a pagar os danos sofridos pelos intervenientes, nos termos do art.º 483.º n.º 1 e 562.º ambos do Código Civil, e, subsidiariamente, os da responsabilidade pelo risco.
(…) 43. A sentença recorrida fez uma séria apreciação sobre os factos carreados para os autos, e prova apresentada, nomeadamente prova documental.
44. Indicou expressamente os factos provados na sentença.
45. Fez, também o enquadramento jurídico daquela factualidade, considerando adequados os valores peticionados pelas A.A. /Recorridas a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, que não merecem censura.
46. E, por isso, não há qualquer nulidade da sentença recorrida, nem, qualquer violação dos dispositivos enunciados pela Recorrente, nomeadamente os artigos 607.º, 667.º n.º 2, 662.º n.º 2, do CPC, nem os art.º 388.º, 494.º, 496.º e 500.º todos do CPC.
Foi neste Tribunal da Relação proferido despacho que convidou as partes a pronunciarem-se, querendo, sobre a inadmissibilidade do recurso na parte em que visa o despacho de 13-05-2022, nada tendo aquelas vindo dizer.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

***

II - FUNDAMENTAÇÃO

Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Além da questão prévia da inadmissibilidade do recurso na parte em que visa o despacho de 12-05-2022, identificamos as seguintes questões a decidir (pela ordem que nos parece mais lógica):
1.ª) Caso se entenda que é de tomar conhecimento do recurso na parte relativa ao despacho de 12-05-2022, se não podia ter sido considerado como estando indeferido o pedido de apoio judiciário (cujo comprovativo a 3.ª Ré juntou com a Contestação), com a subsequente anulação do processado subsequente àquele despacho, incluindo a sentença, e a integração nos autos da Contestação desentranhada;
2.ª) Caso se responda negativamente à questão anterior, se a sentença é nula, nos termos do art. 615.º, nº 1, al. b), do CPC, por não especificar os factos concretos que levaram à condenação da 3.ª Ré na totalidade do pedido;
3.ª) E se também se verifica a nulidade da sentença (em bom rigor, se é caso para a sua anulação), por erro no julgamento da matéria de facto, ao abrigo dos artigos 662.º, n.º 2, al. c), 567.º, n.º 2, e 568.º, al. d), do CPC, por não estarem provados por documento escrito os rendimentos da 1.ª Autora;
4.ª) Se, face ao alegado na Petição Inicial, é aplicável ao caso o art. 500.º do CC, do que resulta não ser a 3.ª Ré responsável por qualquer indemnização;
5.ª) Caso se entenda que a 3.ª Ré está obrigada a indemnizar a 1.ª Autora, se o montante da indemnização relativa aos danos não patrimoniais não deverá ultrapassar 3.000 €.
Questão prévia
A Apelante entende que o despacho de 12-05-2022 cabe na categoria de decisões que admitem impugnação diferida nos termos do art. 644.º, n.º 3, do CPC.
Desde já adiantamos, que, seja qual for a parte do despacho impugnada, não será de tomar conhecimento do recurso a este respeito.
Efetivamente, a recorribilidade de uma decisão (de harmonia com os pressupostos gerais previstos nos artigos 629.º a 631.º do CPC) não se confunde com a admissibilidade de apelação autónoma ou de impugnação diferida de uma decisão.
A este respeito, preceitua o art. 644.º do CPC, sob a epígrafe “Apelações autónomas”, que:
“1 - Cabe recurso de apelação:
a) Da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente;
b) Do despacho saneador que, sem pôr termo ao processo, decida do mérito da causa ou absolva da instância o réu ou algum dos réus quanto a algum ou alguns dos pedidos.
2 - Cabe ainda recurso de apelação das seguintes decisões do tribunal de 1.ª instância:
a) Da decisão que aprecie o impedimento do juiz;
b) Da decisão que aprecie a competência absoluta do tribunal;
c) Da decisão que decrete a suspensão da instância;
d) Do despacho de admissão ou rejeição de algum articulado ou meio de prova;
e) Da decisão que condene em multa ou comine outra sanção processual;
f) Da decisão que ordene o cancelamento de qualquer registo;
g) De decisão proferida depois da decisão final;
h) Das decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil;
i) Nos demais casos especialmente previstos na lei.
3 - As restantes decisões proferidas pelo tribunal de 1.ª instância podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no n.º 1.
4 - Se não houver recurso da decisão final, as decisões interlocutórias que tenham interesse para o apelante independentemente daquela decisão podem ser impugnadas num recurso único, a interpor após o trânsito da referida decisão.”
Sobre o n.º 3 deste artigo, explica Abrantes Geraldes, in “Recursos no novo Código de Processo Civil”, 5.ª edição, Almedina, págs. 216-218, que (acrescentou-se o sublinhado): “As decisões intercalares que, sendo impugnáveis em abstrato, não admitam recurso de apelação autónoma intercalar, podem (e só podem) ser impugnadas no âmbito do recurso que eventualmente venha a ser interposto do despacho saneador ou da decisão final do processo (ou da decisão final do procedimento cautelar ou do incidente respetivo), de acordo com o disposto no n.º 3, ou nas condições referidas no n.º 4. (…) A impugnação diferida pressupõe a verificação, relativamente à concreta decisão, de todos os pressupostos da recorribilidade. A única especificidade traduz-se na falta de autonomia e no facto de o decurso do prazo normal do recurso não determinar o efeito de trânsito em julgado. Por isso, só são impugnáveis, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do art. 644.º, as decisões interlocutórias atípicas (isto é, não previstas no n.º 2) relativamente às quais se verifiquem os pressupostos gerais de recorribilidade, maxime o que decorre do art. 629.º, n.º 1.”
Há, portanto, decisões das quais não cabe apelação autónoma - nos termos dos n.ºs 1 e 2 do do citado artigo 644.º -, mas que podem ser impugnadas no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no n.º 1, o que significa que a sua impugnação é admissível mediante recurso, mas fica diferida para momento e sede própria, a do recurso interposto de uma outra decisão, prevista no n.º 1 do mesmo artigo. Todavia, isso pressupõe que se verifiquem, quanto à concreta decisão impugnada/recorrida, os pressupostos gerais de recorribilidade.
Continua Abrantes Geraldes, na obra citada, pág. 218, lembrando que: “Assim, são insuscetíveis de integrar o recurso que venha a ser interposto da decisão final as impugnações de despachos de mero expediente ou proferido no exercício legal de poderes discricionários, excluídas pelo n.º 1 do art. 630.º.” São despachos de mero expediente, na definição constante do art. 152.º, n.º 4, do CPC, os que se destinam a “prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes”, o que, nas palavras de Abrantes Geraldes, obra citada, pág. 78, significa que “Neles está envolvida a atuação procedimental que encontra correspondência na tramitação legalmente prescrita, daí se afastando, por exemplo, os despachos que não encontrem cobertura em tal tramitação ou os que de algum modo possam interferir no resultado da lide”.
Ora, o despacho recorrido, na parte em que se limitou a manter um despacho anteriormente proferido (que a 3.ª Ré pretendia fosse dado sem efeito) e a determinar a notificação da 3.ª Ré ao abrigo do disposto no art. 570.º, n.º 3, do CPC, parece enquadrar-se nessa categoria, nada “acrescentando” relativamente ao que sempre decorreria da tramitação legalmente prevista: o despacho anterior subsistia incólume e a secretaria cumpriria oficiosamente o disposto no art. 570.º, n.º 3, do CPC.
Reconhecemos, no entanto, que nesse despacho, ainda que implicitamente, o Tribunal recorrido também decidiu indeferir a pretensão da 3.ª Ré quanto a considerar tacitamente deferido o benefício do apoio judiciário, o que já não constitui um despacho de mero expediente. Porém, daí não se segue que se trate de um despacho passível de impugnação diferida nos termos acima explanados – pelo contrário, do mesmo cabia apelação autónoma, tratando-se de decisão “cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil”.
A respeito desta previsão normativa, constante da alínea h) em apreço, veja-se o que explica Rui Pinto, no artigo “Oportunidade processual de interposição de apelação à luz do artigo 644.º CPC”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano LXI, 2020, n.º 2, pág. 642 (omite-se na citação as notas de rodapé e os parágrafos): “(R)elativamente às decisões cuja impugnação com o recurso da decisão final seria absolutamente inútil (al. h)) são decisões com efeitos de direito ou de facto irreversíveis, pelo que a procedência recursória diferida não alcançaria efeito útil por não os poder afastar. Ganhar ou perder o recurso a final seria igual, redundando numa utilidade nula. Em consequência, a sua impugnação não pode ser retardada. Exemplo: o despacho que indefere o pedido de não audição prévia da parte requerida num procedimento cautelar. A possibilidade de a procedência do recurso poder importar anulação dos atos processuais posteriores à decisão revogada não constitui inutilidade absoluta.”
Também Abrantes Geraldes, na obra citada, pág. 216, assim o explica, afirmando «não basta que a transferência da impugnação para um momento posterior comporte o risco de inutilização de uma parte do processo, ainda que neste se inclua a sentença final. Mais do que isso, é necessário que imeditamente se possa antecipar que o eventual provimento do recurso da decisão interlocutória não passará de uma “vitória de Pirro”, sem qualquer reflexo no resultado da ação ou na esfera jurídica do interessado». Ademais, como refere Abrantes Geraldes, na obra citada, pág. 217, “(A) impugnação da decisão interlocutória pode constituir o único mecanismo capaz de determinar a anulação ou a revogação da decisão final, casos em que a impugnação desta, em vez de se fundar em vícios intrínsecos, pode ser sustentada na impugnação de decisão interlocutória com função instrumental e prejudicial relativamente ao resultado final”.
Ora, nos presentes autos, afigura-se patente a absoluta inutilidade em relegar a impugnação do despacho em apreço para o recurso da sentença, considerando que, na sequência daquele, veio a ser proferido, em 17-02-2023, o Despacho que determinou o desentranhamento da contestação, despacho do qual também cabia, como é evidente, apelação autónoma, nos termos do art. 644.º, n.º 2, al. d), do CPC. Nesta linha de pensamento, a título exemplificativo, veja-se o acórdão da Relação de Guimarães de 23-09-2021, proferido no proc. n.º 1459/18.5T8VRL-C.G1, disponível em www.dgsi.pt, em que estava precisamente em causa um despacho que determinara o desentranhamento da contestação, oportunamente apresentada pelos réus, uma vez que se verificavam os pressupostos previstos no artigo 570.º do CPC, conforme se alcança do respetivo sumário, com o seguinte teor:
“I - Tendo o tribunal recorrido rejeitado o articulado de contestação, sem analisar a causa, isto é, o conteúdo do articulado sobre a relação material controvertida, ou seja, por razões que nada tiveram a ver com os seus fundamentos substanciais, a situação subsume-se à al. d), do n.º 2 do art. 644º do CPC.
II - E assim sendo, essa decisão, nos termos do n.º 3 do art. 644º do CPC, não pode ser impugnada no recurso que venha a ser interposto das decisões previstas no n.º 1, onde se insere a sentença final, mas sim no prazo de quinze dias (art. 638º, n.º 1 do CPC), para que impeça a formação de caso julgado.”
Note-se que a 3.ª Ré não cuidou de interpor recurso de apelação autónoma do despacho que determinou o desentranhamento da contestação, pelo que o mesmo transitou em julgado, tendo força de caso julgado formal, sendo já inatacável (cf. art. 620.º do CPC), o que demonstra bem a absoluta inutilidade da revogação do despacho ora impugnado.
Na verdade, até em ordem a obviar à prolação ou ao trânsito em julgado da decisão de desentranhamento que veio a ser proferida ou a acautelar a sua subsequente anulação, a 3.ª Ré deveria ter impugnado em apelação autónoma a decisão proferida a 12-05-2022, que indeferiu a sua pretensão de ver reconhecido o deferimento tácito do pedido de apoio judiciário que tinha requerido, conforme comprovativo junto com a Contestação. A respeito de caso idêntico ao que nos ocupa, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa de 14-12-2023, proferido no proc. n.º 6113/19.8T8LRS-B.L1, disponível em www.dgsi.pt, em que a ora Relatora teve intervenção como 2.ª Adjunta (o despacho objeto desse recurso tinha indeferido o requerimento em que a executada/embargante pugnava pelo reconhecimento da formação de ato tácito de deferimento do pedido de proteção jurídica invocado na petição de embargos).
Assim, é inevitável concluir que o despacho em apreço não é passível de impugnação diferida, a qual, além de não ter cabimento legal até se mostra ab initio inútil, ante o trânsito em julgado e força de caso julgado formal do despacho que determinou o desentranhamento da contestação, pelo que não se irá tomar conhecimento do recurso na parte em que incide sobre o despacho proferido em 12-05-2022 (1.ª questão acima enunciada).
Da nulidade da sentença
Na sentença recorrida, a seguir a um breve relatório, em que é mencionado, além do mais, que “A matéria de facto alegada pelas autoras foi, nos termos do disposto no artigo 567.º do Código de Processo Civil, declarada provada, atenta a falta de contestação” e um saneador tabelar, constam as seguintes considerações:
«Nos presentes autos, importa apurar se os danos alegados pelas autoras são imputáveis às rés e, como tal, se têm de por estas ser indemnizados.
Pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos (enunciação)
Tendo em conta a factualidade provada nos autos, cumpre subsumi-la ao direito, respondendo à questão a resolver acima identificada.
A pretensão das autoras convoca o instituto jurídico da responsabilidade civil, fonte de obrigações cujo fundamento subjacente é a ideia de reparação patrimonial de um dano privado (cfr. Mário Júlio Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Coimbra, Almedina, 2011, p. 521).
A obrigação de indemnizar, isto é, de reparar o dano, pode assentar na culpa do agente que tenha violado determinada norma de proteção ou direito subjetivo – em que estaremos no domínio da responsabilidade por factos ilícitos, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil – ou na necessidade ou conveniência social de reparar o dano sofrido pelo lesado, independentemente da culpa do agente – responsabilidade objetiva, excecional nos termos do disposto no n.º 2 daquele artigo 483.º.
O acionamento do instituto da responsabilidade por factos ilícitos depende da verificação dos respetivos pressupostos, previstos no referido n.º 1 do artigo 483.º, a saber: a demonstração de um (i) facto, (ii) ilícito, (iii) culposo, ligado (iv) causalmente aos (v) danos.
A ilicitude do facto pode resultar da violação do direito subjetivo de outrem, ou da violação de uma norma de proteção (isto é, de normas que, muito embora protejam interesses particulares, não confiram aos seus titulares um direito subjetivo a essa tutela).
Relativamente à imputação do facto ao agente, ou seja, à culpa, exige-se que este tenha atuado de forma a merecer a reprovação e a censura do direito, sendo, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil, apreciada em abstrato, ou seja, pela diligência de uma pessoa média (o bom pai de família) em face das circunstâncias do caso concreto. Pode revestir tanto a modalidade de dolo, como de negligência (em que o resultado resulta da falta de cuidado, imprevidência ou imperícia).
O requisito do dano nos diz que a obrigação de indemnizar depende da circunstância de, em concreto, o facto ilícito e culposo ter causado um prejuízo a alguém, podendo o dano ser patrimonial ou não patrimonial.
Finalmente, o requisito do nexo causal determina que apenas sejam indemnizáveis os danos que tenham sido produzidos pelo facto (artigo 563.º do Código Civil), desempenhando, “consequentemente, a dupla função de pressuposto da responsabilidade civil e de medida da obrigação de indemnizar” (cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, cit., p. 605).
No caso vertente, no que respeita à ilicitude do facto, dispõe o artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 314/2003, de 17 de dezembro, que “1 - É obrigatório o uso por todos os cães e gatos que circulem na via ou lugar públicos de coleira ou peitoral, no qual deve estar colocada, por qualquer forma, o nome e morada ou telefone do detentor. 2 - É proibida a presença na via ou lugar públicos de cães sem estarem acompanhados pelo detentor, e sem açaimo funcional, exceto quando conduzidos à trela, em provas e treinos ou, tratando-se de animais utilizados na caça, durante os atos venatórios.”.
Quanto ao requisito da culpa, a presunção de culpa consagrada no n.º 1 do artigo 493.º do Código Civil: “Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua”.
A lei onera com a presunção de culpa a detenção de animal, com o dever de vigiar (dever esse que decorre, como já referido, da criação de uma fonte especial de risco acrescido), não sendo relevante a propriedade sobre a coisa, mas sim o poder de facto sobre ela.
No caso vertente, em face da matéria provada, resulta claro que as autoras sofreram danos de natureza patrimonial e não patrimonial ligados causalmente à atuação ilícita e culposa das rés, pelo que se conclui que estão reunidos todos os elementos de que a lei faz depender o surgimento da obrigação de indemnizar das rés.
Nos termos do disposto no artigo 562.º do Código Civil, “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, sendo certo que, como acima se referiu já, “a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão” (artigo 563.º), consagrando o nosso ordenamento, assim, a causalidade adequada como elemento delimitador dos danos indemnizáveis (como salienta Almeida Costa, ob. cit., p. 765, no domínio da responsabilidade objetiva, constitui um elemento delimitador decisivo, face à ausência dos parâmetros da ilicitude e da culpa).
Não sendo possível a reconstituição natural, a indemnização será por equivalente, correspondendo a uma determinada quantia pecuniária, no valor dos danos indemnizáveis (n.º 1 do artigo 566.º do Código Civil).
Nos autos estão em causa danos patrimoniais e danos não patrimoniais, sendo estes últimos insuscetíveis de avaliação pecuniária e apenas compensáveis, na medida em que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (n.º 1 do artigo 496.º do Código Civil), sendo o montante indemnizatório fixado pelo tribunal equitativamente (n.º 3 do mesmo artigo).
Considerando a factualidade demonstrada, afigura-se a quantia peticionada como ajustada aos danos provados, cabendo então condenar as rés ao seu pagamento.
No que respeita ao pagamento dos juros vencidos e vincendos, sobre a obrigação de indemnização, são devidos desde a citação, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 805.º do Código Civil.»
A Apelante, nas conclusões da sua alegação recursória, insurge-se contra o que, em síntese, diz ser o incumprimento do disposto no art. 607.º, n.ºs 3, 1.ª parte, e 4, do CPC, por não terem sido na sentença indicados expressamente os factos provados que levaram a condenar a 3.ª Ré na totalidade do pedido, não bastando considerar que foi declarada provada toda a matéria alegada pelas Autoras, por aplicação do art. 567.º do CPC.
As Apeladas discordam, defendendo, em síntese, que a sentença não é nula, tendo o Tribunal indicado expressamente os factos provados.
Apreciando.
Nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Trata-se de norma que se relaciona com o dever de fundamentar as decisões consagrado designadamente no art. 205.º, n.º 1, da CRP, nos termos do qual “(A)s decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. E também no art. 154.º do CPC, que preceitua:
“1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade”.
Em particular, quanto à sentença, regem os n.ºs 3 a 5 do art. 607.º do CPC, dos quais resulta que a sentença deve conter fundamentação de facto e de direito. Conforme previsto nos n.ºs 3 e 4 deste artigo, na sentença, após um breve relatório, em que se conclui com a enunciação as questões que ao tribunal cumpre solucionar, (S)eguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final”; e “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.
Tem sido tradicionalmente defendido na jurisprudência que a nulidade a que se refere o art. 615.º, n.º 1, al. b), do CPC pressupõe a falta absoluta de fundamentação, não se bastando com a fundamentação escassa ou insuficiente, muito embora a jurisprudência, incluindo do STJ, e a doutrina mais recentes venham reconhecendo que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, ao ponto de não possibilitar às partes a compreensão cabal e análise crítica das razões (de facto e de direito) da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade dessa decisão. A título exemplificativo, veja-se o acórdão do STJ de 02-03-2011, proferido no proc. n.º 161/05.2TBPRD.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança do ponto 1. do respetivo sumário: “À falta de fundamentação de facto e de direito deve ser equiparada a fundamentação que exponha as razões, de facto e de direito, para a decisão de modo incompleto, tornando deste modo a decisão incompreensível e não cumprindo o dever constitucional/legal de justificação”. Destacamos também o acórdão do STJ de 26-02-2019, proferido no proc. n.º 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, disponível em www.dgsi.pt, citando as seguintes passagens do respetivo sumário:
“I. A fundamentação da matéria de facto provada e não provada, com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas da decisão, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e qual a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal.
(…) VII. Uma deficiente ou obscura alusão aos factos provados ou não provados pode comprometer o direito ao recurso da matéria de facto e, nessa perspectiva, contender com o acesso à Justiça e à tutela efectiva, consagrada como direito fundamental no art. 20º da Constituição da República”.
No presente processo, ante a falta de contestação por parte das Rés, importa ainda ter presente o disposto no art. 567.º do CPC, nos termos do qual:
“1 - Se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor.
2 - É concedido o prazo de 10 dias, primeiro ao mandatário do autor e depois ao mandatário do réu, para alegarem por escrito, com exame do suporte físico do processo, se necessário, e em seguida é proferida sentença, julgando-se a causa conforme for de direito.
3 - Se a resolução da causa revestir manifesta simplicidade, a sentença pode limitar-se à parte decisória, precedida da necessária identificação das partes e da fundamentação sumária do julgado.”
O que significa que a revelia (operante - fora das situações excecionais previstas no art. 498.º do CPC) produz o efeito de confissão ficta ou confissão tácita. Perante o mesmo, deverá o Tribunal considerar confessados os factos articulados na petição inicial, sendo então concedido às partes, quando patrocinadas por advogado, prazo para alegarem por escrito. Após, é proferida sentença, julgando-se a causa conforme for de direito, aplicando o direito aos factos considerados provados. De salientar que mesmo uma fundamentação sumária do julgado incluirá, ainda que por remissão para os artigos da petição inicial (embora se mostre menos correta uma tal remissão), o elenco dos factos tidos como estando plenamente provados.
Atentando na Petição Inicial e na sentença recorrida, é manifesto que a resolução da causa não se revestia de manifesta simplificidade (nem tal foi, aliás, afirmado na sentença), que, seja como for, não dispensaria uma sumária fundamentação de facto e de direito. Logo, e uma vez que o Tribunal considerou que todos os factos alegados estavam provados por confissão ficta, nos termos do art. 567.º, n.º 1, do CPC, impunha-se que os tivesse indicado, o que não fez, sendo forçoso concluir que é nula a sentença recorrida, por não especificar os fundamentos de facto que justificam a decisão.
Pelo exposto, julga-se verificada a nulidade da sentença recorrida.
Ante a regra da substituição ao tribunal recorrido consagrada no art. 665.º, n.º 1, do CPC, passa-se a conhecer do restante objeto da apelação.
Da anulação da sentença
A Apelante defende, em síntese, que: em caso de revelia o art. 567.º, n.º 1, do CPC consagra um sistema de efeito cominatório semipleno uma vez que a causa não é necessariamente julgada procedente, antes deve ser julgada conforme for de direito; no caso, a revelia não dispensava o Juiz de aplicar o direito aos factos “cuja prova esteja associada a um documento escrito”, o que ocorre com os alegados rendimentos da Autora “BB”, invocados nos artigos 99.º, 100.º, 107.º e 172.º da PI, nada constando no processo acerca de tais rendimentos, que resultam da mera alegação das Autoras; em sede de rendimentos, valem os documentos fiscais ou equivalentes, não a mera alegação das partes; por estarem em falta nos autos tais elementos de prova, verifica-se uma “nulidade na matéria de facto”, nos termos do 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, devendo ser determinada a baixa do processo à 1.ª instância para que o juiz a quo profira despacho a convidar as Autoras a juntar aos autos documentos idóneos a demonstrar os seus rendimentos, designadamente recibos, declarações fiscais ou outros equivalentes.
As Apeladas discordam, afirmando, em síntese, que os factos alegados pelas Autoras não foram contestados pelas Rés e têm suporte documental, pelo que devem ser dados como provados.
Apreciando.
Conforme acima já referimos, o art. 568.º contém exceções à aplicação do art. 567.º (isto é, a que operem os efeitos da revelia aí previstos), estabelecendo que:
“Não se aplica o disposto no artigo anterior:
a) Quando, havendo vários réus, algum deles contestar, relativamente aos factos que o contestante impugnar;
b) Quando o réu ou algum dos réus for incapaz, situando-se a causa no âmbito da incapacidade, ou houver sido citado editalmente e permaneça na situação de revelia absoluta;
c) Quando a vontade das partes for ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela ação se pretende obter;
d) Quando se trate de factos para cuja prova se exija documento escrito.”
No entender da Apelante, os factos vertidos nos artigos que indica, atinentes aos rendimentos da 1.ª Autora, careciam de prova documental, subsumindo-se na previsão da citada alínea d) do art. 568.º do CPC. Por considerar que se tratam de factos controvertidos substantivamente relevantes para a decisão da causa, defende que é de aplicar o disposto no art. 662.º, n.º 2, al. c), do CPC, nos termos do qual:
“A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
(…) c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Atentemos no teor dos artigos da Petição Inicial indicados pela Apelante:
“99º. Pelo exercício desta actividade, a Autora aufere uma média de 120 Euros por mês.
100º. Ou seja, na data do acidente, auferia a 1.ª Autora uma média mensal de cerca de 1.120,00 Euros .
(…) 107º. Tendo ficado na situação de reformada a partir de 10.05.2017.
172º. nos termos do artigo 564º/2 do Código Civil, reclama das Rés, a título solidário, uma indemnização correspondente ao acrescido custo do trabalho que a A. teve de suportar para desempenhar as suas funções laborais - dano biológico, na vertente de dano patrimonial, - no montante nunca inferior a 30.000 Euros.”
Em primeiro lugar, é manifesto que a alegação constante do art. 172.º do CPC não corresponde a nenhum facto propriamente dito, mas a uma alegação de direito e conclusão jurídica emergente de outras alegações feitas na Petição Inicial, designadamente nos artigos 111.º, 112.º e 145.º.
Quanto aos factos atinentes aos rendimentos auferidos pela Autora (artigos 99.º e 100.º), não se tratam manifestamente de factos para cuja prova a lei exija documento escrito, inexistindo disposição legal da qual resulte uma tal restrição ao princípio da liberdade dos meios probatórios. O mesmo se diga, no caso dos autos, quanto à situação de reformada da Autora.
Efetivamente, desde há muito que a jurisprudência vem interpretando restritivamente a citada alínea d) do art. 568.º (e, antes deste, o art. 485.º, al. d), do CPC de 1961), entendendo que embora a prova de alguns factos seja documental, mormente quanto à idade, tal exigência não se justifica quando o facto alegado pela parte não é impugnado pela parte contrária e não se reveste de relevância decisiva ante o objeto do litígio. Nesta linha de pensamento, a título exemplificativo, veja-se o acórdão do STJ de 13-05-1997, proferido no proc. n.º 97A012, disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário tem o seguinte teor:
“I - A idade do autor é apurada como qualquer outro facto.
II - A exigência de prova documental só surge quando esse facto for posto em dúvida pela parte contrária, ou quando constitua o próprio "thema decidendum".”
De qualquer modo, sempre se dirá que de vários documentos juntos aos autos com a Petição Inicial (cf. docs. 8, 11, 12, 17 e 23) resultam igualmente tais factos.
Assim, improcedem, neste particular, as conclusões da alegação de recurso.
Cumpre agora, em substituição do Tribunal recorrido, especificar os Factos provados, o que se passa a fazer, tendo em atenção a confissão ficta dos factos e, complementarmente, os documentos juntos aos autos:
1. As 1.ª e 2.ª Rés eram, à data de 25-07-2016, donas de uma cadela adulta, de grande porte, da raça “Pastor Alemão”, com o nome ““XX””, registado na Junta de Freguesia do Lumiar com a licença n.º (…) A.
2. A 2.ª Autora “CC” era, à data de 25-07-2016, dona de duas cadelas de pequeno porte, de raça indeterminada.
3. Nessa data, a 2.ª Autora “CC” havia incumbido a 1.ª Autora “BB” de passear as suas cadelas, o que a 1.ª Autora fez.
4. Assim, no dia 25-07-2016, cerca das 10h00, a 1.ª Autora passeava as duas cadelas de pequeno porte, com cerca de 20 cm de altura, com a respetiva trela, junto à Praça Rainha D. Filipa, 6, em Lisboa.
5. No momento em que passeava as cadelas no referido local, a 1.ª Autora foi surpreendida pelo surgimento da cadela de raça pastor alemão, identificada em 1., que estava a ser passeada pela 3.ª Ré “AA”, empregada das 1.ª e 2.ª Rés, na via pública à solta, e sem trela ou açaime.
6. Logo que se apercebeu da presença do animal, a 1.ª Autora, dado o porte do animal, e temendo pela sua integridade física e das cadelas que passeava, procurou esconder-se, com as cadelas, num parque de estacionamento que se encontrava nas imediações da Praça Rainha D.ª Filipa.
7. A cadela “pastor alemão”, contudo, apercebeu-se da presença da 1.ª Autora e das duas referidas cadelas, e começou a correr em direção àquela Autora e às ditas cadelas, com o intuito de as intercetar e/ou morder, apresentando um passo determinado, furioso e voraz, o que ainda assustou mais a 1.ª Autora.
8. A 1.ª Autora procurou proteger-se, a si e às cadelas, pegando-as no seu colo.
9. No entanto, a cadela ““XX”” pastor alemão chegou próximo da 1.ª Autora e das cadelas num espaço muito curto de tempo, de menos de 5 segundos e, de modo súbito e enfurecido, atacou a 1.ª Autora e as cadelas, saltando em direção à 1.ª Autora e às cadelas que aquela agarrava ao colo, e, ato contínuo, mordeu uma das cadelas, abocanhando-a na parte abdominal e traseira, junto às patas.
10. Em virtude disso, a 1.ª Autora caiu desamparada no chão, sobre a zona lombar e com apoio do braço direito, que ficou de modo repentino a sustentar todo o seu peso.
11. Tal situação provocou, além do mais, traumatismo da coluna lombo sagrada, e uma fratura distal, articular e cominutiva do rádio direito.
12. A Autora sentiu logo dores muito intensas.
13. Mesmo após a queda, a cadela (pastor alemão) continuou junto da 1.ª Autora, ladrando de modo feroz.
14. Nesse momento a 1.ª Autora encontrava-se prostrada no chão, numa posição indefesa e cheia de dores, sem se poder mexer, sentindo pânico pela situação.
15. A 1.ª Autora gritou por socorro e foi assistida por uma vizinha que se encontrava próximo do local e acorreu em seu socorro, ajudando-a a levantar-se e afastando o pastor alemão para fora daquele local.
16. Após estes factos, apareceu no local a 3.ª Ré “AA”, trazendo na sua mão uma trela, que mais tarde se soube ser da cadela pastor alemão.
17. Entretanto, e porque as dores que a 1.ª Autora sentia eram cada vez maiores e insuportáveis, deslocou-se, juntamente com a sua referida vizinha, até a casa da 2.ª Autora “CC”, a fim de ser transportada para o Hospital.
18. O braço daquela apresentava-se bastante inchado e com possível fratura.
19. A 1.ª Autora foi de imediato transportada pela 2.ª Autora para o Hospital de Santa Maria, onde deu entrada pelas 10h32 do dia 25-07-2016.
20. À entrada no Hospital, a 1.ª Autora apresentava punho direito com edema e deformação, e palpação da coluna lombo-sagrada, com dor moderada a intensa (nível 5/10).
21. No Hospital, a Autora realizou diversos exames, nomeadamente análises ao sangue e Raio-X, e tomou medicação analgésica.
22. Após observação, foram diagnosticadas à Autora fratura distal, articular e cominutiva do rádio (do tipo Barton volar) do punho direito, e traumatismo na coluna lombo sagrada.
23. No Hospital, no Serviço de Ortopedia, foram realizadas manobras à Autora para recolocação do rádio (denominada “redução” de fratura) com anestesia local, o que não foi viável.
24. Com tal manobra, e apesar da anestesia local, a Autora sofreu dores muito intensas.
25. Foi também colocada à 1.ª Autora uma tala gessada, que manteve durante 7 dias.
26. A Autora teve alta às 16h06 do dia 25-07-2016, com indicação para cirurgia urgente, uma vez que o Serviço de Ortopedia não tinha disponibilidade de recursos humanos e materiais para que a intervenção cirúrgica se realizasse de imediato e não havia possibilidade de internamento até à data da cirurgia.
27. A 1.ª Autora saiu com medicação analgésica para o domicílio, sabendo da existência de uma fratura e que iria ser contactada para a intervenção, mas sem qualquer indicação sobre a data da cirurgia, o que a preocupou.
28. A 1.ª Autora ficou durante 5 dias sem ter conhecimento da data da intervenção que havia de se realizar, com dores e incerteza da sua recuperação, apenas tendo sido contactada no dia 30-07-2016 no sentido de se deslocar ao Hospital a fim de ser intervencionada.
29. No dia 01-08-2016, a 1.ª Autora foi internada no Hospital de Santa Maria, foi-lhe retirado o gesso e foi submetida a intervenção cirúrgica para tratamento da fratura do rádio do punho direito, com redução cruenta e colocação de material de osteossíntese com placa volar de 2 colunas (Synthes – 3 parafusos 2.7 na diáfise e 5 parafusos na metáfise radial).
30. Teve alta do Hospital no dia 02-08-2016, com indicação para repouso no domicílio, manter o membro elevados, aplicação de gelo e com vigilância sobre os membros e medicação.
31. Foi também colocada à 1.ª Autora nova tala gessada, que manteve até 25-08-2016.
32. A 1.ª Autora teve consultas de Ortopedia, no Hospital de Santa Maria, em 11-08-2016 e 25-08-2016, tendo também efetuado, na primeira data, Raio-X (duas incidências).
33. No dia 25-08-2016, foram-lhe retirados os pontos da cirurgia e colocada nova tala “móvel”.
34. Em 07-09-2016, fez consulta de Fisiatria no Hospital de Santa Maria, tendo-lhe sido prescritos tratamentos de medicina física e de reabilitação.
35. No dia 15-09-2016, fez nova consulta de Fisiatria e realizou dois Raio-X.
36. No pós-operatório, e durante mais de 2 meses (de setembro a novembro de 2016), a Autora realizou diversos tratamentos de recuperação do rádio e punho direitos no Hospital de Santa Maria, nomeadamente massagens com técnicas especiais, mobilização articular manual, banho de turbilhão e treino de destreza manual.
37.  Os tratamentos realizados provocaram dores muito intensas à Autora.
38. Foi a novas consultas de Ortopedia em 15-09-2016 e 04-10-2016.
39. Nas deslocações ao Hospital, para tratamentos e consultas, a 1.ª Autora necessitou de recorrer à 2.ª Autora, que a levava de automóvel, uma vez que não podia deslocar-se em transportes públicos.
40. Após a realização da primeira cirurgia, em 01-08-2016, foi logo referido à 1.ª Autora pelos serviços clínicos do Hospital de Santa Maria, a eventualidade de rejeição do material de osteossíntese.
41. Os serviços clínicos do Hospital Santa Maria comunicaram ainda à Autora, que dada a localização e o tipo de fratura em causa, “o grau de morbilidade seria muito elevado” e “as hipóteses de recuperação muito exíguas”, havendo a forte probabilidade de realização de cirurgias futuras de correção e reabilitação, o que a levou a recear que a fratura não consolidasse e obrigasse a novo internamento e nova intervenção cirúrgica.
42. A Autora continuou a sofrer muitas dores, tendo dores muito agudas, antes, durante e após os tratamentos.
43. Os tratamentos e consultas realizados após a cirurgia de 01-08-2016 não melhoraram o estado de saúde da Autora.
44. A 1.ª Autora teve necessidade de interromper os tratamentos a que estava sujeita, dadas as dores que sentia.
45. Foi observada na Clínica Europa em 19-12-2016 para avaliação do seu estado de saúde.
46. A 1.ª Autora comunicou aos serviços clínicos do Hospital de Santa Maria a situação em que se encontrava, tendo sido encaminhada de novo para consultas de Ortopedia, vindo a ser novamente observada, nos dias 19-01-2017 e 08-05-2017, também realizando análises clínicas.
47. Na consulta realizada em 08-05-2017, a 1.ª Autora foi informada pelos serviços clínicos do Hospital de Santa Maria que a única solução para diminuição das dores seria a realização de nova cirurgia, com remoção da placa (material de osteossíntese) e imobilização permanente do pulso, com a colocação de nova placa de osteossíntese, de características diferentes da primeira, que implicava a redução permanente de mobilidade do punho direito.
48. Tal imobilização permanente do pulso determinava a incapacidade para a realização de inúmeras tarefas.
49. A Autora, face a um cenário de redução da mobilidade permanente do pulso, que não pretendia, mas com dores permanentes, teve necessidade de recorrer a outros médicos para aconselhamento, o que fez em diversos estabelecimentos de saúde, designadamente no Hospital da Cruz Vermelha (em 08-05-2017), na Clínica CUF (em 29-05-2017) e no Hospital dos Lusíadas.
50. Em 30-06-2017, após aconselhamento médico, realizou nova intervenção cirúrgica, no Hospital dos Lusíadas, para remoção do Material de osteossíntese da placa e libertação / descompressão do nervo mediano.
51. Tal intervenção cirúrgica era necessária para aliviar as dores sentidas pela 1.ª Autora e garantir a mobilidade e a funcionalidade do membro.
52. Foi então submetida a anestesia geral.
53. A 1.ª Autora teve alta no dia 30-06-2017, com encaminhamento para tratamentos de medicina física e reabilitação para melhoria da sua condição de saúde.
54. Em 10-07-2017, a 1.ª Autora realizou novos exames e tratamentos, nomeadamente Raio-X, análises clínicas e, em 17-08-2017, foi observada em consulta de Ortopedia no Hospital dos Lusíadas.
55. A 1.ª Autora frequentou 15 sessões de Medicina Física e Reabilitação, com tratamentos de cinesiterapia, fortalecimento muscular e massagens com técnicas especiais (“Clínica Manustrata”), que terminou em 25-09-2017.
56. No dia 25-09-2017 foi novamente avaliada pelos serviços clínicos do Hospital dos Lusíadas e submetida a Raio-X.
57. Após observação, foram evidenciadas, como sequelas, rigidez do punho direito, com artrose pós-traumática, mantendo dor e impotência funcional crónica do punho direito.
58. Na data dos factos, a 1.ª Autora exercia a atividade profissional de empregada doméstica para a 2.ª Autora, mediante o pagamento do respetivo vencimento.
59. No exercício da atividade profissional de empregada doméstica, a 1.ª Autora tinha como funções, além do mais, limpeza da casa, lavagem de roupa, passagem de roupa a ferro, cozinha, e passeio dos animais.
60. A 1.ª Autora trabalhava para a 2.ª Autora cerca de 5 horas por dia, 7 dias por semana, de segunda a domingo, auferindo uma média de 1.000 € mensais x 14 meses.
61. Além disso, a 1.ª Autora, prestava apoio ao domicílio e no acompanhamento de idosos, que incluía a alimentação dos idosos, companhia, acompanhamento noturno, banhos, contatos com os familiares que fossem necessários e as diligências que fossem solicitadas com esse propósito.
62. Desempenhava essa outra atividade durante uma média de 2 horas por dia, 3 vezes por semana, a uma média de 5 €/hora, auferindo uma média de 120 € por mês.
63. Por causa do acidente, a Autora ficou totalmente impossibilitada de exercer a atividade profissional para a 1.ª Autora durante cerca de 60 dias.
64. A partir do acidente e em consequência do mesmo, a Autora deixou de ter condições físicas para continuar a prestar o apoio ao domicílio aos idosos, tendo abandonado essa atividade.
65. A Autora, em virtude das sequelas que ficaram a afetar a sua condição física, teve de se reformar, estando na situação de reformada desde 10-05-2017.
66. A 1.ª Autora tinha a expectativa de continuar a trabalhar nas atividades acima descritas durante mais anos e era uma pessoa muito trabalhadora e determinada.
67. Antes do acidente, era uma pessoa saudável e autónoma, sem quaisquer problemas de saúde que a limitassem no exercício das suas atividades profissionais e pessoais.
68. Fazia as compras sozinha, limpava e passava a ferro, para si e para a 2.ª Autora, cozinhava para si e para a 2.ª Autora, aspirava para si e para a 2.ª Autora, limpava a casa, passeava os animais da 2.ª Autora, ajudava os idosos, dando-lhes banho, transportando-os nas cadeiras de rodas e dentro de casa, proporcionava-lhes as refeições e companhia.
69. Após o acidente, e por causa de tais lesões e sequelas, a 1.ª Autora deixou de poder realizar várias atividades relacionadas com a sua atividade profissional, designadamente passar a ferro, cortar alimentos, aspirar, movimentar móveis ou objetos pesados, ir às compras e carregar as mesmas, lavar loiça, levantar e deitar os idosos na cama, empurrar cadeira de rodas, acompanhar os idosos num banho, pegar na bolsa.
70. Na vida diária, e por causa do acidente, a 1.ª Autora viu a sua vida pessoal afetada na medida em que deixou de poder exercer atividades quotidianas, designadamente secar o cabelo, ir às compras, cortar alimentos rijos, escrever, fazer tricot, sendo que gostava muito de fazer tricot, e agora não consegue.
71.  A 1.ª Autora é dextra, mas, para colmatar ao máximo as suas dificuldades, tenta fazer as atividades com a mão esquerda, o que a frustra, porquanto não tem a mesma destreza, força e motricidade na mão esquerda.
72. Em consequência do acidente, a 1.ª Autora passou a necessitar do apoio da 2.ª Autora, que a vem acompanhando desde então na realização de algumas tarefas.
73. A 1.ª Autora, que ajudava a 2.ª Autora nas tarefas, vive agora uma tremenda angústia, pois passou a ser ajudada em algumas tarefas ao invés de ajudar, como passar a ferro, atividade para a qual foi necessário contratar uma entidade externa.
74. O acidente sofrido e as consequências daí decorrentes provocaram óbvias alterações de humor na pessoa da Autora, que, em razão da sua limitação, passou a sentir-se triste e preocupada, a ser uma pessoa mais triste, fechada, que se sentiu e sente limitada, vivendo preocupada com a sua subsistência e a perda de autonomia.
75. A Autora teve de tomar medicamentos para aliviar as dores.
76. Ainda mantém dores na zona do braço, mesmo em descanso, que a obrigam a mudar constantemente a posição do braço, nunca mais conseguiu dormir virada para a direita, pelo peso que o braço sofre e as dores e incómodos que provoca, e não consegue calçar meias de compressão, que utilizava até então, pela força que tem de fazer ao puxar as meias.
77.  A 1.ª Autora ficou com uma cicatriz nacarada na face anterior do punho direito com 7,5 cm de comprimento, o que se traduz num “Dano Estético Permanente” valorado em 1 ponto numa escala até 7.
78. Por causa dessa cicatriz, a Autora evita ir para a praia, pela vergonha de expor as suas cicatrizes e deformações.
79. A Autora nasceu em 12-06-1950.
80. Em consequência do acima descrito, a 1.ªAutora apresenta como sequelas: Mobilidade da coluna lombo-sagradas dolorosas, condicionando limitação funcional; Cicatriz nacarada da face anterior do punho direito, medindo 7,5 cm de comprimento; Mobilidades do punho direito dolorosas; Rigidez do punho direito, mais acentuada na flexão e extensão.
81. As lesões e sequelas sofridas pela 1.ª Autora em consequência do sinistro dos autos determinaram para esta diversos graus e períodos de incapacidade temporária, designadamente:
i. Défice Funcional Temporário Total de 30 dias, correspondente aos períodos de internamento hospitalar para realização das duas cirurgias atrás referidas e de posteriores períodos de repouso / absoluto no domicílio;
ii. Défice Funcional Temporário Parcial, no restante período compreendido entre a data do acidente e a data da consolidação (com exclusão dos referidos 30 dias);
iii. Repercussão Temporária na Atividade Profissional Total fixável em 60 dias;
iv. Repercussão Temporária na Atividade Profissional Parcial fixável no restante período, compreendido entre a data do acidente e a data prévia ao início da reforma (09-05-2017), com exclusão dos referidos 60 dias.
82. Além disso, a 1.ª Autora ficou com um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 5 pontos, sendo as sequelas descritas compatíveis com o exercício da atividade de empregada doméstica, mas implicando esforços acrescidos, tendo em conta a limitação nas tarefas que exigem a realização de esforços suplementares, tais como limpeza profunda da casa, transporte de objetos pesados e tratamento da roupa.
83. A intensidade das dores sofridas pela 1.ª Autora desde a data da lesão até à data da alta, com o internamento, intervenções cirúrgicas, fisioterapia e tratamentos a que foi submetida, (Quantum Doloris) é fixável em 4 numa escala até 7.
84. As sequelas dolorosas da Autora serão permanentes, sendo apenas paliativos os tratamentos que possam ser prescritos (analgésicos e fisioterapia), e tenderão a agravar-se no futuro, na medida em que as atividades da vida quotidiana exigirão cada vez mais dos membros superiores.
85. A Repercussão permanente Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer foi fixada no grau 5, numa escala até 7, tendo em conta a impossibilidade de a Examinanda realizar as atividades de costura e tricot, que efetuava diariamente, entre outras próprias da idade.
86. A 1.ª Autora necessita de um regular e adequado acompanhamento/tratamento médico da especialidade de Ortopedia, como forma de influenciar positivamente o prognóstico do caso, e/ou, pelo menos, evitar o seu agravamento futuro, fixável em uma consulta médica anual e 25 sessões anuais de fisioterapia.
87. Durante o período de tempo subsequente às altas hospitalares em que permaneceu em repouso no domicílio, a 1.ª Autora, necessitou de ajuda temporária para realização de todas as atividades da vida diária, tais como higiene pessoal, limpeza da casa, tratamento da roupa e confeção de alimentos.
88. No restante período e de forma vitalícia, a 1.ª Autora necessitará da ajuda permanente de uma empregada doméstica (ou equivalente) para realização das lides domésticas mais exigentes, tais como limpeza profunda da casa e tratamento da roupa, durante 10 horas semanais.
89. Com as cirurgias, tratamentos e exames realizados, a Autora despendeu o valor de 1.612,55 €.
90. Em consequência da atuação da cadela pastor alemão ““XX””, a cadela “ZZ” de que a 2.ª Autora era proprietária, sofreu ferimentos, na zona da barriga e das patas traseiras.
91. Em virtude dessas lesões, foi observada e tratada no Hospital Veterinário do Restelo, no dia 25-07-2016, tendo a 2.ª Autora despendido com os tratamentos realizados à cadela “ZZ”, a quantia de 128,50 €.
92. A 2.ª Autora sentiu desespero ao saber que a sua cadela “ZZ” tinha sido mordida por uma cadela de raça “pastor alemão”, bem como desgosto com as lesões causadas na cadela “ZZ”.
93. As Autoras tiveram conhecimento de que aquela não tinha sido a primeira vez que a cadela ““XX”” tinha atacado um terceiro, pois cerca de dois anos antes já havia ocorrido outro ataque com a cadela ““XX”” a uma cadela de uma vizinha da Autora.
94. As Rés sabiam que a cadela ““XX””, como pastor alemão, era uma cadela com um comportamento de proteção e territorial, que podia desenvolver um comportamento agressivo.
95. Em 25-07-2016, a cadela ““XX”” não estava vacinada e só após o ataque, no dia 30-07-2016, as Rés a decidiram vacinar contra a raiva.
Da inexistência de obrigação de indemnizar a cargo da 3.ª Ré por aplicação do art. 500.º do CC
A Apelante sustenta que: as Autoras alegaram que a 3.ª Ré era Comitente, concretamente alegaram que a 3.ª Ré passeava a cadela dos autos no interesse e por conta das 1.ª e 2ª Rés, “mas tal relação jurídica, com impacto na atribuição de responsabilidade civil, não foi levada em consideração na Sentença”; assim, por aplicação do art. 500.º do CC, totalmente ausente na decisão e, por isso, violado, devia o tribunal decidir pela responsabilização exclusiva das 1.ª e 2.ª Rés, e não da 3.ª Ré.
As Apeladas contrapõem, em síntese, que se verificam os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, pelo que as Rés estão obrigadas a pagar os danos sofridos pelos intervenientes, nos termos dos artigos 483.º n.º 1 e 562.º ambos do CC, sendo que só, subsidiariamente, haveria responsabilidade pelo risco.
Apreciando.
Em primeiro lugar, importa frisar que não foi alegado na Petição Inicial que a 3.ª Ré era comitente. Pelo contrário, face ao que foi alegado pelas Autoras apenas se poderia abstratamente conjeturar a possibilidade de existir uma relação de comissão, nos termos do art. 500.º do CC, em que a 3.ª Ré figuraria como comissária e as 1.ª e 2.ª Rés como comitentes.
Mas o que importa é ter em atenção os factos que - face ao alegado na Petição Inicial - ficaram provados, factos esses que as Autoras qualificaram, em primeira linha, como fundamento da responsabilidade civil por factos ilícitos e, subsidiariamente, para o caso de assim não se entender, como fundamento da responsabilidade civil objetiva, pelo risco, consagrada no art. 502.º do CC, no que configura uma causa de pedir subsidiária.
Como resulta das considerações feitas na sentença, que acima citámos, o Tribunal recorrido não chegou a apreciar esta última questão, por ter concluído que ao caso eram aplicáveis os preceitos legais (que indicou) atinentes à responsabilidade civil por facto ilícito, pelo que estava prejudicada outra indagação.
Também não foi na sentença apreciada da (suposta) existência de uma relação de comissão e a responsabilidade que daí poderia advir nos termos do art. 500.º do CPC, sendo certo que não foi invocada a nulidade da sentença por omissão de pronúncia a esse respeito, estando-se perante uma questão nova, de que não cumpre conhecer em sede de recurso.
De qualquer modo, sempre se dirá, admitindo que o problema possa de qualificação jurídica (cf. art. 5.º, n.º 3, do CPC), que, tendo o Tribunal a quo entendido ser devida indemnização fundada em responsabilidade delitual ou por factos ilícitos, incluindo por culpa presumida, ficou, por definição, excluída a responsabilidade pelo risco ou objetiva, que é independente de culpa.
Note-se que a Apelante não considerou errado o enquadramento jurídico feito na sentença recorrida, nem pugnou pela inaplicabilidade ao caso dos artigos 483.º, n.º 1, e 493.º, n.º 1, do CC, e do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 314/2003, de 17 de dezembro, aí expressamente mencionados.
Se com a sua argumentação, assente num equívoco e muito incipiente, a Apelante pretende agora afastar a aplicação destes preceitos ao caso, por ao invés considerar aplicável o art. 500.º do CC, é manifesto que não lhe assiste razão. Basta atentar no teor deste artigo, que, sob a epígrafe “Responsabilidade do comitente”, tem o seguinte teor:
“1. Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.
2. A responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso for praticado pelo comissário, ainda que intencionalmente ou contra as instruções daquele, no exercício da função que lhe foi confiada.
3. O comitente que satisfizer a indemnização tem o direito de exigir do comissário o reembolso de tudo quanto haja pago, excepto se houver também culpa da sua parte; neste caso será aplicável o disposto no n.º 2 do artigo 497.º”.
Conforme resulta do invocado artigo, a sua aplicação serviria apenas para responsabilizar as 1.ª e 2.ª Rés, independentemente de culpa, mas teria como pressuposto que sobre a 3.ª Ré, suposta comissária, também recaísse a obrigação de indemnizar, sendo incorreto pretender que, por via da aplicação deste artigo, esta última não poderia ser considerada responsável.
Assim, improcedem, neste particular, as conclusões da alegação de recurso.
Do montante da indemnização devida à 1.ª Autora por danos não patrimoniais
A Apelante argumenta que, não obstante tenha sido peticionada, pela 1.ª Autora, a indemnização de 15.000 € a título de danos não patrimoniais, o Tribunal deveria fixado uma quantia mais equitativa, dada a situação descrita nos autos, considerando, no máximo, 3.000 € como ajustado ao sucedido.
As Apeladas defendem a adequação do valor fixado.
Como é sabido, o nosso ordenamento jurídico consagra o princípio da ressarcibilidade dos danos não patrimoniais, desde que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do Direito (art. 496.º, n.º 1, do CC), surgindo as maiores dificuldades maiores na fixação do seu quantum, por não ser possível a reconstituição in natura nem funcionar aqui a teoria da diferença, já que, em regra, não é possível reconstituir a situação que existiria se o evento danoso não tivesse ocorrido, sendo de atribuir ao lesado uma compensação pecuniária. Lembramos, a propósito, as sábias palavras de Vaz Serra, in BMJ 83, pág. 85: “a satisfação ou compensação dos danos morais não é uma verdadeira indemnização no sentido equivalente ao dano, isto é, de valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão. Trata-se de dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que este, sendo apenas moral, não é susceptível de equivalente”.
A fixação dos danos não patrimoniais é assim feita segundo juízos de equidade, tendo em conta a culpabilidade do lesante e as demais circunstâncias do caso (arts. 496.º, n.º 3, e 494.º, ambos do CC). Há ainda que ter em consideração os critérios usualmente seguidos nas decisões dos nossos tribunais (cf. art. 8.º, n.º 3, do CC), sem olvidar que a jurisprudência tem vindo a reconhecer progressivamente a necessidade de atribuir indemnizações significativas por danos não patrimoniais. A título meramente exemplificativo, veja-se a seguinte passagem do acórdão do STJ de 24-05-2005, proferido no processo n.º 05A819, disponível em www.dgsi.pt, pela síntese de aspetos que devem nortear o juízo equitativo:
“Primeiro: está definitivamente enterrado o tempo da atribuição de indemnizações baixas, miserabilistas; hoje, os tribunais estão sensibilizados para a quantificação credível dos danos não patrimoniais - credível para o lesado e credível para a sociedade, respeitando a dignidade e o primado dos valores do ser, como acontece com a integridade física e a saúde, que o Estado garante a todos os cidadãos (art.ºs 9º, b), e 25º, nº 1, da Constituição); este "movimento" contra indemnizações meramente simbólicas não deixa de estar relacionado muito directamente, além do mais, com o aumento continuado e regular dos prémios de seguro que tem ocorrido no nosso país por imposição das directivas comunitárias, aumento esse cujo objectivo fulcral (pelo menos no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil por acidentes de viação) não é o de garantir às companhias seguradoras lucros desproporcionados, mas antes o de, em primeira linha, assegurar aos lesados indemnizações adequadas.
Segundo: As indemnizações adequadas passam com cada vez maior frequência por uma valorização mais acentuada dos bens da personalidade física, espiritual e moral atingidos pelo facto danoso, bens estes que, incindivelmente ligados à afirmação pessoal, social e profissional do indivíduo, "valem" hoje mais do que ontem; e assim, à medida que com o progresso económico e social e a globalização crescem e se tornam mais próximos toda a sorte de riscos - riscos de acidentes os mais diversos, mas também, concomitantemente, riscos de lesão do núcleo de direitos que integram o último reduto da liberdade individual, - os tribunais tendem a (2) interpretar extensivamente as normas que tutelam os direitos de personalidade, particularmente a do art.º 70º do Código Civil.
Terceiro: É necessário, em todo o caso, agir cautelosamente; e o Supremo Tribunal, nesta matéria, tem uma responsabilidade acrescida, dada a função que lhe está cometida de contribuir para a uniformização da jurisprudência; não é conveniente, por isso, alterar de forma brusca os critérios de valoração dos prejuízos; não deve perder-se de vista a realidade económica e social do país; e é vantajoso que o trajecto no sentido duma progressiva actualização das indemnizações se faça de forma gradual, sem rupturas e sem desconsiderar (muito pelo contrário) as decisões precedentes acerca de casos semelhantes. Isto porque os tribunais não podem nem devem contribuir para alimentar a noção de que neste domínio as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. A justiça tem ínsita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade; é tudo isto que no seu conjunto origina o sentimento de segurança, componente essencial duma sociedade assente em bases sólidas. Ora, de certo modo os tribunais são os primeiros responsáveis e sobretudo os principais garantes da afirmação de tais valores: cabe-lhes contrariar com firmeza a ideia de que os factos danosos geradores de responsabilidade civil, muitas vezes tragédias pessoais e familiares de enorme dimensão material e moral, possam ser transformados em negócios altamente rendosos para pessoas menos escrupulosas.
Quarto: A indemnização prevista no art.º 496º, nº 1, do CC, mais do que uma indemnização é uma verdadeira compensação: segundo a lei, o objectivo que lhe preside é o de proporcionar ao lesado a fruição de vantagens e utilidades que contrabalancem os males sofridos e não o de o recolocar "matematicamente" na situação em que estaria se o facto danoso não tivesse ocorrido; a reparação dos prejuízos, precisamente porque são de natureza moral (e, nessa exacta medida, irreparáveis, é uma reparação indirecta).”
Ainda a título exemplificativo da jurisprudência mais recente do STJ sobre situações próximas da que nos ocupa, destaca-se o acórdão de 06-02-2024, proferido no proc. n.º 3418/18.9T8LSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, em que foi decidido manter a indemnização de 20.000 € que havia sido fixada pela Relação a título de indemnização por danos não patrimoniais. Nesse caso, a Autora tinha sido atingida no joelho pela porta do comboio, quando subia para o mesmo, provando-se designadamente que: na sequência do embate, sofreu uma lesão no menisco e logo sentiu enormes dores, tendo dificuldade em deslocar-se até ao seu lugar na carruagem; durante a viagem, sentiu imensas dores e a perna esquerda inchou; sofreu de incapacidade temporária absoluta desde junho de 2017, até, pelo menos, 04-09-2017; sofreu dores no dia do acidente e nos meses seguintes; continua a deslocar-se com dificuldade; neste momento, debate-se com problemas de artrose, continua a sentir dores e a tomar analgésicos para as conseguir suportar, tem dificuldade em encontrar posição para dormir devido às dores; aguarda que seja marcada uma operação ao menisco e que sejam agendadas mais consultas de ortopedia; teve de andar de canadianas durante vários meses e continua a não poder ter uma vida normal; o quadro depressivo da Autora agravou-se com o acidente que teve ao subir para o comboio; antes do acidente, a Autora trabalhava, conduzia e tinha a sua vida autónoma; tem vivido muito angustiada, com momentos de depressão e desgosto por recear que a sua vida nunca mais volte a ser o que era. Ante esse quadro fáctico, o Supremo Tribunal de Justiça lembrou que o direito aplicável é a norma do artigo 496.º do Código Civil (cujo n.º 4 remete para a norma do artigo 494.º), que fixa como critérios, para a determinação da compensação por danos não patrimoniais, a gravidade dos danos para as várias dimensões da vida/existência das pessoas lesadas, a equidade, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica do lesante e do lesado e demais circunstâncias do caso.
Os danos não patrimoniais não se reconduzem a uma única figura ou categoria, assumindo variados modos de expressão: o dano estético, o quantum doloris, o dano da perda de autonomia, o dano psíquico da perda de alegria de viver, o dano da perda dos anos de juventude e da diminuição da longevidade, o dano na vida sexual, social, de lazer e de desporto, o impacto da lesão na vida familiar e nas relações sociais, a diminuição da liberdade pessoal, a perda da capacidade de trabalho, a dificuldade em dormir e em andar, etc.
O artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil atribui ao julgador a tarefa de determinar o que é equitativo e justo em cada caso, não em função da adição de custos ou despesas, mas, no intuito de contrabalançar, através dos bens espirituais que o dinheiro permite adquirir, o sofrimento psicológico e corporal causado por um facto ilícito. Daí que, como se afirmou no acórdão recorrido, «os danos não patrimoniais não possam sujeitar-se a uma estrita e precisa medição quantitativa, mas sim a uma valoração compensatória».
(…) A determinação do montante da compensação por danos não patrimoniais tem uma dimensão necessariamente casuística e dependente das caraterísticas particulares do caso concreto, assumindo a comparação entre indemnizações arbitradas em processos diferentes apenas um sentido meramente indicativo, sem olvidar a tendência natural para a subida das indemnizações, tendo em conta a crescente valorização dos bens jurídicos vida, saúde, e integridade física/psíquica. Neste sentido, se pronunciou também o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 14-03-2023 (proc. n.º 309/20.7T8PDL.L1.S1) «Tal diferenciação justifica-se pela mudança da conjuntura económico-social, marcada atualmente por altas taxas de inflação e pela menor rentabilidade do dinheiro, bem como por uma tendência natural para as indemnizações subirem progressivamente ao longo dos anos, por força da crescente valorização da dignidade humana e dos bens jurídicos pessoais na consciência social».
(…) Verificada a ponderação que o Tribunal da Relação fez de todos os elementos disponíveis (as circunstâncias relevantes do caso, o disposto na lei e as orientações da jurisprudência), conclui-se que o valor encontrado para a indemnização não é desadequado e, por conseguinte, não existem razões para o alterar.
Esta conclusão não é infirmada pela comparação entre a solução do acórdão recorrido e a do acórdão invocado pela recorrente (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-04-2022). Neste, a lesada, enfermeira de profissão, recebeu uma indemnização por danos não patrimoniais de 15.000 euros, por danos sofridos na cervical, que lhe causaram dores intensas e possibilidade de cirurgia, limitações na sua autonomia, necessidade de tratamentos, tendo ficado com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 3 pontos, compatível com o exercício da atividade profissional habitual.”
(…) Neste quadro fáctico, sendo um dos critérios fixados na lei, a situação económica do lesante e a do lesado (artigo 494.º do Código Civil, por remissão do n.º 4 do artigo 496.º), não se afigura haver qualquer motivo atendível, por exemplo, a circunstância de a culpa da ré ter sido presumida, para baixar a indemnização, dado estar em causa o poder económico de uma grande empresa versus uma cidadã que auferia à data do acidente um rendimento mensal inferior ao salário mínimo (facto provado n.º 43).”
Transpondo estas considerações para o caso dos autos, importa referir desde já que este Tribunal da Relação não dispõe de elementos sobre a situação económica das Rés, cuja responsabilidade é solidária, pois as Rés não deduziram Contestação, sede própria para a alegação de factos pertinentes a esse propósito. Não se olvida que à 3.ª Ré veio entretanto a ser concedido o benefício do apoio judiciário, mas, sem mais elementos, mormente atinentes à situação das demais, apenas podemos considerar que as Rés são pessoas singulares.
Do elenco dos factos provados avulta a circunstância de a Autora ter sido vítima, em julho de 2016, de um ataque assustador por parte de um canídeo, vindo a cair desamparada no chão, na via pública, sobre a zona lombar e com apoio do braço direito, o que lhe provocou traumatismo da coluna lombo sagrada, e uma fratura distal, articular e cominutiva do rádio direito, ficando prostrada no chão, numa posição indefesa, cheia de dores, sem se poder mexer, enquanto o canídeo continua a ladrar de modo feroz, sentindo aquela pânico pela situação, tudo conforme descrito nos pontos 7 a 14. Trata-se de uma situação que poderia ter tido consequências mais gravosas, sendo lastimável a falta de cuidado das Rés, deixando que uma cadela da raça pastor alemão, que já antes manifestara um comportamento agressivo, andasse na rua, completamente à solta, sem trela ou açaime, não estando sequer a 3.ª Ré perto do animal, de modo a exercer a força e autoridade necessárias para impedir um ataque a outro animal ou às pessoas.
Por outro lado, importa salientar a forma como este acontecimento afetou a vida da Autora, ante a factualidade descrita nos pontos 19 a 88, sendo de realçar que: a Autora teve de ser transportada para um Hospital público, apresentando o punho direito com edema e deformação, e palpação da coluna lombo-sagrada com dor, com dor moderada a intensa (nível 5/10), realizou diversos exames e tomou medicação analgésica, tendo-lhe sido diagnosticadas fratura distal do punho direito e traumatismo na coluna lombo sagrada; foram realizadas à Autora manobras para recolocação do rádio, o que não foi viável, tendo a Autora, apesar da anestesia local, sofrido dores muito intensas; foi-lhe colocada uma tala gessada, que manteve durante 7 dias; teve alta no próprio dia, mas com indicação para cirurgia urgente e com medicação analgésica para o domicílio, ficando durante 5 dias sem ter conhecimento da data da intervenção que havia de se realizar, com dores e incerteza da sua recuperação; no dia 01-08-2016, ficou internada no referido Hospital, foi-lhe retirado o gesso e foi submetida a intervenção cirúrgica para tratamento da fratura do rádio do punho direito, com redução cruenta e colocação de material de osteossíntese; teve alta no dia 02-08-2016, com indicação para repouso no domicílio, manter o membro elevados, aplicação de gelo e com vigilância sobre os membros e medicação, tendo-lhe sido colocada nova tala gessada, que manteve até 25-08-2016; realizou mais raio-X e teve várias consultas de Ortopedia e Fisiatria, no Hospital; no dia 25-08-2016, foram-lhe retirados os pontos da cirurgia e colocada nova tala “móvel”; no pós-operatório, e durante mais de 2 meses, realizou diversos tratamentos de recuperação do rádio e punho direitos no referido Hospital, que lhe provocaram dores muito intensas; receou que a fratura não consolidasse e obrigasse a novo internamento e nova intervenção cirúrgica; continuou a sofrer muitas dores, tendo mesmo necessidade de interromper os tratamentos a que estava sujeita, dadas as dores que sentia; em 30-06-2017, após aconselhamento médico, realizou, com anestesia geral, nova intervenção cirúrgica num Hospital privado, para remoção do Material de osteossíntese da placa e libertação / descompressão do nervo mediano; em 10-07-2017, realizou novos exames e tratamentos, e, em 17-08-2017, foi observada em consulta de Ortopedia no referido Hospital privado; frequentou 15 sessões de Medicina Física e Reabilitação, que terminou em 25-09-2017; no dia 25-09-2017 foi novamente avaliada pelos serviços clínicos do Hospital privado e submetida a Raio-X, estando evidenciadas sequelas, designadamente rigidez do punho direito, com artrose pós-traumática, mantendo dor e impotência funcional crónica do punho direito; a Autora, que exercia a atividade profissional de empregada doméstica, realizando as tarefas habituais, e, além disso, prestava apoio ao domicílio e no acompanhamento de idosos, ficou, por causa deste acidente, totalmente impossibilitada de exercer a atividade profissional de empregada doméstica durante cerca de 60 dias e deixou de ter condições físicas para continuar a prestar o apoio ao domicílio aos idosos, tendo abandonado essa atividade, tendo mesmo, em virtude das sequelas que ficaram a afetar a sua condição física, de se reformar, ficando na situação de reformada a partir de maio de 2017; a Autora, cuja idade, em julho de 2016, era 66 anos, tinha a expectativa de continuar a trabalhar nas atividades acima descritas durante mais anos e era uma pessoa saudável, sem limitações no exercício das suas atividades profissionais e pessoais; deixou, por causa das lesões e sequelas, de poder realizar várias atividades relacionadas com a sua atividade profissional, e viu a sua vida pessoal afetada na medida em que deixou de poder exercer atividades quotidianas, incluindo fazer costura e tricot; a Repercussão permanente Repercussão Permanente nas Atividades Desportivas e de Lazer foi fixada no grau 5, numa escala até 7; sente frustração, por não conseguir as atividades com a mão esquerda; passou a sentir-se angustiada, triste e preocupada, vivendo preocupada com a sua subsistência e a perda de autonomia; teve de tomar medicamentos para aliviar as dores; mantém dores na zona do braço, mesmo em descanso, que a obrigam a mudar constantemente de posição do braço e nunca mais conseguiu dormir virada para a direita, pelo peso que o braço sofre e as dores e incómodos que provoca; não consegue calçar meias de compressão, que utilizava até então, pela força que tem de fazer ao puxar as meias; ficou com uma cicatriz nacarada na face anterior do punho direito com 7,5 cm de comprimento, o que se traduz num “Dano Estético Permanente” valorado em 1 ponto numa escala até 7; além dessa cicatriz, apresenta como sequelas mobilidade da coluna lombo-sagradas dolorosas, condicionando limitação funcional, mobilidades do punho direito dolorosas e rigidez do punho direito, mais acentuada na flexão e extensão; teve diversos períodos de incapacidade temporária e ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 5 pontos, sendo as sequelas descritas compatíveis com o exercício da atividade de empregada doméstica, mas implicando esforços acrescidos, tendo em conta a limitação nas tarefas que exigem a realização de esforços suplementares, tais como limpeza profunda da casa, transporte de objetos pesados, tratamento da roupa; a intensidade das dores sofridas pela Autora desde a data da lesão até à data da alta (Quantum Doloris) é fixável em 4 numa escala até 7, sendo as sequelas dolorosas permanentes e com tendência a agravar-se no futuro; necessita de um regular e adequado acompanhamento/tratamento médico da especialidade de Ortopedia, com uma consulta médica anual e 25 sessões anuais de fisioterapia.
Ante estas circunstâncias e tendo em atenção a jurisprudência de que acima demos conta, entendemos que o valor da indemnização fixada na sentença pelo conjunto dos danos não patrimoniais que a Autora sofreu não se mostra excessivo.
Assim, improcedem, neste particular, as conclusões da alegação de recurso, ao qual será negado provimento.
Vencida a Apelante, é responsável pelas custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC). No entanto, não será condenada no respetivo pagamento, uma vez que beneficia do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (cf. ofício junto em 19-09-2023) – cf. artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC, e 1.º e 16.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, e artigos 20.º, 26.º e 29.º do RCP.
***
III - DECISÃO
Em conformidade com o acima exposto, decide-se:
- Não tomar conhecimento do recurso na parte em que incide sobre o despacho proferido em 12-05-2022;
- Negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência, a sentença recorrida.
Não se condena a Apelante (3.ª Ré) no pagamento das custas do recurso atento o apoio judiciário de que beneficia.
D.N.

Lisboa, 07-03-2024
Laurinda Gemas
Orlando Nascimento
Paulo Fernandes da Silva