Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8079/22.8T8ALM-F.L1-6
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE)
Descritores: SUSPEIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/02/2024
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: SUSPEIÇÃO
Decisão: INDEFERIMENTO
Sumário: As menções efetuadas pela Sra. Juíza no âmbito das decisões judiciais que proferiu, a respeito da verificação da (in)existência de fundamento jurídico para as pretensões de suspensão da instância executiva e de prestação de caução deduzidas pelo requerente, mostram-se circunscritas à respetiva finalidade apreciativa e decisória, ou seja, à observância do respetivo dever de administrar a Justiça, não se patenteando nelas – nem sequer pelo momento (ou atraso, na perspetiva do requerente) em que vieram a ser proferidas - algum «pré-juízo» sobre a motivação decisória do mérito da causa ainda a apreciar.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: “A”, executado nos autos, veio, por requerimento apresentado em 20-03-2024, apresentar incidente de suspeição relativamente à Sra. Juíza “B”.
Para tanto, invocou, em síntese, que:
- Com a oposição, requereu em 22-05-2023 a suspensão da execução, nos termos previstos na al. c) do n.º1 do art.º 733 CPC, pretensão em que insistiu em 12-10-2023 e em 17-01-2024;
- A decisão judicial veio apenas a ser proferida em 18-01-2024, tendo o Tribunal indeferido a suspensão a escassos dias de terminar o prazo da venda judicial, quando a suspensão foi requerida em 22-05-2023;
- Em 06-02-2024 o Executado veio a deduzir incidente de prestação e caução e fez um requerimento em 27-02-2024 requerendo a suspensão da instância
- “O Julgador, que demorou meses para decidir da suspensão da instância requerida em Maio/23, e que apenas decidiu em Janeiro/24, tendo de permeio diversos req. a solicitar uma decisão, veio a condenar o Executado em 2UCs por entender, que ainda faltavam decorrer os três dias de multa concedidos aos Exequentes, razão pela qual o req. era extemporâneo, mas não se autocondenou por ter decidido em janeiro, algo que lhe foi solicitado em Maio e que desde Outubro estava em condições de decidir”;
- “Mas a senha persecutória do Julgador perante o Executado teve o seu ponto último com o despacho proferido em 06-03-2024, notificado às partes em 07-03-2024 (…) no incidente da prestação e caução, o Julgador considera a mesma inidónea, porque pasme-se sendo a divida de 13.354,00 e existindo custas processuais, estão reclamadas créditos, por parte do MP no valor de 2.395,00 (valor este aceite pelos executados) e estão ainda reclamados créditos no valor de 44.320,00 (não reconhecidos pelos executados e devidamente impugnados), considera que o valor patrimonial da fracção 74.225,40, não é bastante para salvaguardar os credores”;
- “(…) esta decisão mostra à evidência uma postura de perseguição ao executado que não encontra guarida em nenhum preceito legal”;
- “A suspensão da instância era assim um imperativo desde logo do bom senso e de um julgador prudente e consciencioso”;
-“o julgador num pré juízo que não se entende considera que, mesmo antes do julgamento, não existem duvidas que exequentes deram cumprimento ao ónus que sobre si impendia de provar os requisitos de certeza, exigibilidade e liquidez da prestação que aliás decorriam directamente do título executivo, não existindo duvidas, em face deste último e do requerimento executivo, do preenchimento dos referidos requisitos.»”; e
- “O Executado por tudo quanto foi expresso não sente que o Juiz do processo seja imparcial e isento quando for julgar os embargos, pois o mesmo já formou uma ideia e uma certeza, quando ainda não existe julgamento e até no reconhecimento de que a existência de uma hipoteca/penhora era caução bastante que justificava a suspensão da execução, o julgador foi “mais papista que o papa” e mesmo perante a não oposição dos exequentes, obstou a tal desiderato”.
Na sua resposta (com data de 21-03-2024), a Sra. Juíza “B”, veio dizer não ter tido relação com as partes ou outros intervenientes na causa, não conhecendo o executado ou seu mandatário, não tendo qualquer relação próxima de amizade, parentesco ou inimizade ou conhecimento com qualquer das partes em litígio, entendendo não ocorrer qualquer motivo sério e fundamentado para que seja a suspeição requerida.
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Vejamos:
Veio o requerente deduzir o presente incidente de suspeição relativamente à Sra. Juíza titular dos autos em apreço.
Nos termos do disposto no nº. 1 do artigo 120.º do CPC., as partes podem opor suspeição ao juiz quando ocorrer motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, nomeadamente, as situações elencadas nas suas alíneas a) a g).
O juiz natural, consagrado na CRP, só pode ser afastado ou recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas, sérias e graves.
E os motivos sérios e graves, tendentes a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, resultarão da avaliação das circunstâncias invocadas.
O TEDH – na interpretação do segmento inicial do §1 do art.º 6.º da CEDH, (“qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei”) - desde o acórdão Piersack v. Bélgica (8692/79), de 01-10-82 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57557) tem trilhado o caminho da determinação da imparcialidade pela sujeição a um “teste subjetivo”, incidindo sobre a convicção pessoal e o comportamento do concreto juiz, sobre a existência de preconceito (na expressão anglo-saxónica, “bias”) face a determinado caso, e a um “teste objetivo” que atenda à perceção ou dúvida externa legítima sobre a garantia de imparcialidade (cfr., também, os acórdãos Cubber v. Bélgica, de 26-10-84 (https://hudoc.echr.coe.int/ukr?i=001-57465), Borgers v. Bélgica, de 30-10-91, (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-57720) e Micallef v. Malte, de 15-10-2009 (https://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-95031) ).
Assim, o TEDH tem vindo a entender que um juiz deve ser e parecer imparcial, devendo abster-se de intervir num assunto, quando existam dúvidas razoáveis da sua imparcialidade, ou, porque tenha exteriorizado relativamente ao demandante, juízos antecipados desfavoráveis, ou, porque, no processo, tenha emitido algum juízo antecipado de culpabilidade.
A dedução de um incidente de suspeição - pelo que sugere ou implica - deve ser resguardado para casos evidentes que o legislador espelhou no artigo 120.º do CPC, em reforço dos motivos de escusa que se refere o artigo 119.º do CPC.
A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo.
O direito a um julgamento justo, não se trata de uma prerrogativa concedida no interesse dos juízes, mas antes, uma garantia de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, de modo a que, qualquer pessoa tenha confiança no sistema de Justiça.
Do ponto de vista dos intervenientes nos processos, é relevante saber da neutralidade dos juízes face ao objeto da causa.
Com efeito, os motivos sérios e válidos atinentes à imparcialidade de um juiz terão de ser apreciados de um ponto de vista subjetivo e objetivo.
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Colocados os parâmetros enunciados que importa observar na decisão do incidente em apreço, analisemos a situação concreta.
Dir-se-á desde já, que a apreciação objetiva que irá ser feita, se prende tão só com a materialização ou não dos requisitos do incidente, e não, com qualquer apreciação de natureza jurisdicional referente ao mérito do processo a que se refere o incidente, a qual, não nos incumbe efetuar.
No seu requerimento, o requerente insurge-se relativamente ao momento em que o julgador veio a proferir decisão sobre a pretensão de suspensão da instância executiva que apresentara e, bem assim, sobre a decisão de indeferimento da mesma e da prestação de caução que deduziu, entendendo que “(…) esta decisão mostra à evidência uma postura de perseguição ao executado que não encontra guarida em nenhum preceito legal”.
Considera o requerente que o julgador demonstrou um “pré juízo” antes do julgamento, mostrando que o mesmo “já formou uma ideia e uma certeza, quando ainda não existe julgamento e até no reconhecimento de que a existência de uma hipoteca/penhora era caução bastante que justificava a suspensão da execução”.
Liminarmente, cumpre salientar que, não se patenteia qualquer das circunstâncias a que se referem as alíneas a) a f) do n.º 1, do artigo 120.º do CPC.
Quanto à alínea g) – existência de inimizade grave ou grande intimidade entre o juiz e alguma das partes ou seus mandatários – tem-se entendido que “não constitui fundamento específico de suspeição o mero indeferimento de requerimento probatório (RL, 7-11-12, 5275/09) nem a inoportuna expressão pelo juiz sobre a credibilidade das testemunhas (RG 20-3-06, 458/06)” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 148).
Conforme se lê neste último aresto, o fundamento para a recusa do juiz, “não pode basear-se em considerações de direito ou juízos de valor, como a afirmação de que a sra. juiz “manifestou inqualificável impaciência com as arguidas e testemunhas de defesa, em claro tratamento de desigualdade…”, que “a sra. juiz disse às arguidas e às testemunhas J, F, A e M que estavam a mentir” e que “a testemunha A (foi) ameaçada com processo crime por falsas declarações”, pois isso revela apenas um modo de exercício dos poderes de direção da audiência que não pode ser censurado pela Relação, no âmbito do pedido de recusa”.
Lê-se no mesmo Acórdão que: “As simples expressões através das quais o juiz revele a credibilidade que dá a determinada declaração, ou a outro meio de prova, não bastam para deduzir a sua recusa e a violação de alguma das regras sobre a aquisição da prova pode ser impugnada por vários os meios (desde a arguição de irregularidades ou nulidades até à interposição de recurso), mas nenhum deles passa pela dedução do incidente da recusa do juiz.
O processo de decisão do juiz não se inicia apenas depois de terminadas as alegações orais, pois, inevitavelmente, ele vai analisando e confrontando os diversos depoimentos e fazendo juízos sobre a credibilidade de cada um deles, mas o importante é que, até ao final das alegações, não feche o espírito à possibilidade de valorar todas as contribuições para a prova, quer confirmem ou infirmem os juízos que foi fazendo.
As regras da boa prudência aconselham que o juiz não revele os seus juízos, mas (…), por vezes deve tomar decisões que, ao menos implicitamente, indicam a credibilidade que, até aí, lhe parece merecer determinado depoimento, sem que, em todo o caso, da circunstância da convicção já estar em processo de formação, possa ser tirada a conclusão de que já existia um «pré juízo»”.
Ora, no caso em apreço, as menções efetuadas pela Sra. Juíza no âmbito das decisões judiciais que proferiu, a respeito da verificação da (in)existência de fundamento jurídico para as pretensões de suspensão da instância executiva e de prestação de caução deduzidas pelo requerente, mostram-se circunscritas à respetiva finalidade apreciativa e decisória, ou seja à observância do respetivo dever de administrar a Justiça, não se patenteando nelas – nem sequer pelo momento (ou atraso, na perspetiva do requerente) em que vieram a ser proferidas - algum «pré-juízo» sobre a motivação decisória do mérito da causa ainda a apreciar.
Com efeito, na economia de cada uma das decisões tomadas não é possível concluir, ao contrário do que o faz o requerente, que possa estar inquinado o processo de julgamento ainda a cargo do julgador, apenas sucedendo que, como tantas vezes ocorre, o juiz tem de, nas concretas circunstâncias de tramitação processual, decidir pretensões e incidentes interlocutórios, de um modo ou de outro, aplicando o Direito, sem que isso possa revelar, em si mesmo, alguma quebra da imparcialidade devida pelo julgador.
Podemos entender que o requerente se não reveja no conteúdo de posições tomadas pelo julgador, na decorrência do indeferimento de pretensões por si deduzidas, mas tal não revisão, descontentamento ou discordância, não implica parcialidade do julgador, nem alguma “postura de perseguição ao executado”.
Os recursos são os mecanismos legais para se poder reagir em tais situações e para se aquilatar da correta ou incorreta aplicação da lei.
A Justiça é feita caso a caso, tendo em consideração a real e objetiva situação a dirimir.
O Juiz não é parte nos processos, devendo exercer as suas funções com a maior objetividade e imparcialidade, sabendo-se que nem sempre se consegue passar esta imagem, mas, o que releva é que esta conceção esteja materializada no julgador e que o utente da justiça a final a compreenda.
Perante os elementos disponíveis e o contexto em que teve lugar a intervenção da Sra. Juíza – que não tem alguma relação com o requerente e demais intervenientes no processo, senão, em virtude deste - , não se conclui que, objetiva e subjetivamente, se mostre posta em causa a imparcialidade do julgador.
Assim sendo, entendemos não se encontrarem reunidos os pressupostos que materializam o incidente, o que conduz à sua improcedência.
Não se nos afigura a existência de litigância de má-fé do requerente.
Face ao exposto, indefiro a requerida suspeição relativamente à Sra. Juíza “B”.
Não se vislumbra má fé na litigância do requerente.
Custas a cargo do requerente.
Notifique.

Lisboa, 02-04-2024,
Carlos Castelo Branco (Vice-Presidente, com poderes delegados).