Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
413/14.0TELSB-S.L1-5
Relator: ANA CLÁUDIA NOGUEIRA
Descritores: APREENSÃO DE BENS
PRAZOS
DURAÇÃO DO INQUÉRITO
DIREITO DE PROPRIEDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I -  A restrição imposta aos titulares dos bens sujeitos a apreensão nos termos do art.º 178º/1 do Código de Processo Penal deverá cingir-se ao estritamente necessário para prossecução dos desígnios que serve, de conservação da prova e de garantia da perda a favor do Estado, a final, do produto e da vantagem do crime, quer quanto à sua extensão, quer quanto à forma de execução, quer ainda quanto à duração da indisponibilidade sobre o bem.
II - Inexiste norma legal que imponha um prazo máximo de duração da medida de apreensão em função das várias fases processuais, como se verifica no caso das medidas de coação, por aplicação do disposto nos arts. 215º e 218º, do Código de Processo Penal; assim como inexiste qualquer indexação da duração da apreensão aos prazos de duração máxima do inquérito, previstos no art.º 276º do Código de Processo Penal em função da situação processual do arguido, da gravidade dos crimes e da excecional complexidade do próprio processo.
III - Os prazos máximos de duração do inquérito não são perentórios, sendo válidos os atos processuais praticados ainda que depois de findo o prazo legal previsto para a duração do inquérito; o mesmo é dizer que o termo do prazo não tem qualquer efeito preclusivo, mormente no que respeita à apreensão de bens que houver sido decretada (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional 294/2008);
IV - As consequências do decurso do prazo de inquérito sem que seja proferido despacho final são de ordem meramente administrativa, restringindo-se à possibilidade de fixação de um período necessário para conclusão do inquérito ou avocação do processo, num e noutro caso, pelo superior hierárquico imediato do titular do processo ou de despoletar incidente de aceleração processual, nos termos dos arts. 276º/6 a 8 e 108º e sgs., do Código de Processo Penal; uma outra consequência, será a do fim do segredo de justiça interno nos termos do art.º 89º/6, do Código de Processo Penal;
V - Para aferir da proporcionalidade da medida de apreensão de bens e da sua manutenção à luz das obrigações decorrentes para os Estados do art.º 1º do Protocolo nº 1, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos erige como fator fundamental, mas não absoluto, a sua duração; são indicados como fatores a considerar também:
- a necessidade de manter a medida tendo em conta o decurso e fase do procedimento criminal e as consequências para as partes interessadas;
- o comportamento processual do titular do bem afetado, por um lado, e da autoridade estadual responsável pela ingerência, pelo outro;
- a existência de remédios efetivos, incluindo o acesso a tribunais, pelos quais a pessoa afetada possa desafiar a manutenção da medida apreensora.
VI - Não sendo perentórios nem preclusivos os prazos máximos de duração do inquérito, tão pouco existindo prazos máximos de duração da medida processual de apreensão de bens adotada nessa fase, só a análise do caso concreto permite aferir se é de revogar a apreensão de bens ocorrida há 6 anos e 9 meses atrás por não ter sido ainda proferido o despacho final de encerramento do inquérito, com fundamento na violação do princípio da proporcionalidade na restrição imposta ao direito de propriedade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, as Juízas da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. No processo de inquérito com o NUIPC 413/14.0TELSB que corre termos no DCIAP de Lisboa, investiga-se a prática de crimes de fraude na obtenção de subsídio, previstos e punidos pelos arts. 3º, 8º e 36º/1, a), 2, 3 e 5, a), do DL 28/84 de 20/01, a que corresponde pena de prisão de dois a oito anos e penas acessórias como a de privação do direito a subsídios ou subvenções, encerramento definitivo de estabelecimento e de dissolução da sociedade; e do crime de branqueamento, previsto e punido pelo art.º 368º-A/1, com referência ao art.º 1º da L. 36/94 de 29/09, e 2, do Código Penal, com a pena de prisão de dois a doze anos.
Pela arguida AA. foi, em 17/04/2023, apresentado junto do Juízo de Instrução Criminal requerimento nos termos do disposto nos arts. 17º, 178º/7 e 186º/1, do Código de Processo Penal, que finalizou com o seguinte pedido:
a. Seja revogada a decisão de apreensão e ordenada a restituição à requerente dos veículos da sua propriedade: com marca e modelo ..., e matrícula ...; com marca e modelo ..., e matrícula ..-PB-..; e com marca e modelo ..., e matrícula ..-PT-...
b. Por força de revogação da decisão de apreensão, seja determinada a devolução à requerente dos valores que depositou a título de caução para poder levantar os veículos automóveis também da sua legítima propriedade: com marca e modelo ..., e matrícula ..-LH-..; com marca e modelo ..., e matrícula ..-RA-..; com marca e modelo ..., e matrícula ..-..-HN.
Tendo o Ministério Público manifestado oposição a esta pretensão, o Senhor Juiz de Instrução Criminal proferiu em 04/05/2023 despacho pelo qual, manifestando concordância com os fundamentos da oposição do Ministério Público, que reproduziu e subscreveu, indeferiu a requerida entrega das viaturas apreendidas e dos depósitos de caução, mantendo a sua apreensão.
2. Inconformada com essa decisão, dela recorre a arguida «AA.», peticionando a sua revogação; formula para tanto as seguintes conclusões (transcrição):
«(…)
1. O despacho recorrido, proferido em 4 de Maio de 2023, bem como a oposição do Ministério Público daquela mesma data, de que a ora Recorrente foi igualmente notificada pelo ofício datado de 4 de Julho de 2023, incidem sobre requerimento apresentado pela mesma em 17 de Abril de 2023, enquanto legítima proprietária de seis veículos que lhe foram apreendidos em 23 de Maio de 2017 (há 6 anos e 4 meses), com respectivas remoção e entrega ao GAB (do IGFE, I.P.), à ordem de inquérito que, mesmo considerada a data de 17 de Novembro de 2014 fixada por despacho para efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 276º do Código de Processo Penal, perdura já há 107 meses (praticamente 9 anos), sem que tenha sido deduzida acusação por alegada prática de qualquer ilícito, pelo que inexistindo ou sendo ainda insuficientes, mesmo a esta data, indícios e/ou fundamento para aquele efeito.
2. O facto de o inquérito perdurar sem ser encerrado há já 9 (nove) anos, com morosidade já reconhecida pelo Estado Português (Procuradoria-Geral da República) nos Autos de Aceleração Processual DA n.º 6732/20, mais que mais ainda se foi e vai protelando de forma temporalmente indefinida, representa, mais do que o contexto actual a considerar, circunstância de relevância maior para a própria aferição sobre se há justificação atendível, atentos os autos; os princípios da necessidade, da proporcionalidade e da adequação; e por elementar respeito pelo direito à propriedade, para que se possa manter a decisão, reportada a 6 anos e 4 meses (76 meses) atrás, por que foi determinada a apreensão dos seis veículos da legítima propriedade da ora Recorrente.
3. Na oposição do Ministério Público ao requerido pela ora Recorrente em 17 de Abril de 2023, a que adere também o Tribunal a quo, constata-se que o Estado Português anui a que possam decorrer o que já serão até mais de 6 (seis) anos e 8 (oito) meses para além de um prazo máximo de duração do inquérito de 27 meses, e sem que o decurso de tempo tão significativo influa, no momento e nas circunstâncias actuais, na aferição dos pressupostos legais para que todos e cada um dos veículos da Recorrente continuem apreendidos, tanto que até remete essencialmente para o próprio despacho jurisdicional reportado a Maio de 2017, por que foi determinada a apreensão dos veículos, executada no dia 23 daquele mês.
4. É a um entendimento pautado pelo que configura preclusão do próprio direito fulcral a um direito justo e equitativo que adere o Tribunal a quo, apresentando-o como sendo também a sua posição, em desconsideração e violação do que se consagra não só na Constituição da República Portuguesa (tanto, em termos gerais, no artigo 20º, n.º 4, como, especificamente para o processo criminal, no artigo 32º, n.º 2), como também no artigo 10º da Declaração Universal dos Direitos Humanos1, no artigo 6o, n.º 1, da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, no artigo 14º, n.º 1, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e
Políticos, e nos artigos 47º § 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
5. Nem do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 294/2008, nem dos Acórdãos do Tribunal Constitucional reportados a 1987 (Acórdão TC 7/87 e Acórdão TC 340/87) se extrai que entendimento no sentido de que se conforme sequer com os artigos 20º, n.º 4, e 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, quanto mais com o que se consagra também em tratados europeus e internacionais, ultrapassar-se em já mais de 6 (seis) anos e 8 (oito) meses aquele que foi e é o prazo máximo de 2 anos e 3 meses (27 meses) de duração do inquérito, tão pouco de que se possa protelar também a restrição do direito elementar da propriedade, com privação dos plenos direitos que a este são inerentes, ao longo do que são já 6 (seis) anos e meio, em inquérito que perdura há 9 (nove) anos sem que tenha sido deduzida acusação, ou se possa sequer vislumbrar se e quando o será.
6. Pelo contrário, a Jurisprudência dos Tribunais Superiores revela atenção para o que apenas poderá ser restrição ou compressão daquele direito fundamental à propriedade temporalmente (e na extensão) limitada ao estritamente necessário e apenas se/enquanto necessário, e também à morosidade, sendo que, pese embora incidindo sobre objecto outro específico, também no próprio Acórdão proferido no presente inquérito pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 16 de Dezembro de 2021 (julgando, parcialmente e no essencial do mérito, o recurso procedente) se aludiu, com sensibilidade judicial e sentido de Justiça, ao que já era, então, um inquérito com quase 8 (oito) anos de duração efectiva, sem que a também ora Recorrente tivesse (ou tenha) sido sequer acusada de qualquer ilícito criminal e continuando os veículos da sua propriedade apreendidos.
7. Face ao que foi explicitamente exposto no requerimento de 17 de Abril de 2023 e também com referência, nomeadamente ao que fora já concretizado e demonstrado, mediante (mais) 22 documentos juntos aos autos quase 5 (cinco) anos antes, por requerimento da ora Recorrente de 16 de Julho de 2018, basta-se a decisão sob recurso, remetendo para a oposição do Ministério Público, com as considerações imprecisas e mesmo incorrectas, não concretizadas e muito menos sustentadas (infimamente que fosse) nos autos que ali são apresentadas, sem apoio na realidade e configurando as mesmas ilações de há anos atrás subversivas não só do princípio da presunção de inocência, como da própria equidade processual, e, mais ainda, do próprio propósito de apuramento da verdade material por que se rege a investigação e o processo criminais.
8. Foi e está cabalmente concretizado e demonstrado nos autos de inquérito quando, como, a quem, por que preco. com que rendimentos cada um dos seis veículos foi adquirido, sendo que três deles até o foram em anos muito anteriores aos factos sob investigação (..., com matrícula ..-..-HN, em ...; ..., com matrícula ..-LH-.. e do ano de 2008, em ...; ... com matrícula ..-PT-.., em ...), sem que auferir rendimentos bastantes que o permitam - como, para mais, também já demonstrados nos autos - seja crime, muito menos passível de uma perseguição criminal decorrente de meras ilações e presunções de culpa.
9. É do conhecimento generalizado e da prática comum, até aconselhada por contabilistas e técnicos oficiais de contas, a constituição de sociedades para efeitos de gestão de património familiar, para efeitos da própria gestão de património familiar e atentas as vantagens fiscais perfeitamente legais - e, precisamente, porque legalmente previstas - que daí também decorrem e, em particular quanto a veículos, vantagens (económicas) perfeitamente legítimas e legais em seguros, reparações e despesas de manutenção e compra de materiais de desgaste, sem que tal contenda, de forma alguma, com o princípio e o regime da transparência, antes pelo contrário.
10. Contrariamente ao feito pela própria Recorrente enquanto Arguida, na oposição do Ministério Público, a que se adere no despacho recorrido, não se concretiza infimamente em que se apoiam a título probatório as afirmações que ali são apresentadas e/ou o que concretamente se entende indiciá-lo, afigurando-se essencialmente uma colagem ao que se entendeu que sustentava, há 6 (seis) anos e meio atrás, o despacho por que foi determinada a apreensão dos seis veículos da ora Recorrente, no que mais se agrava ainda a violação já bem patente neste inquérito do direito a um processo justo e equitativo e, bem assim, a afronta ao princípio fundamental da presunção de inocência e ao direito elementar da propriedade.
11. No caso concreto, não estão em causa o que sejam elementos ou meios probatórios, muito menos se justificando a apreensão dos veículos para efeitos probatórios, e, com enfoque na actualidade, pelo que também sem se poder desconsiderar o contexto de morosidade processual, decorre da decisão recorrida que nem decorridos (agora mais) de 5 (cinco) anos desde a apresentação do requerimento de 16 de Julho de 2018 pela Recorrente existe ainda sustentação, mesmo que indiciaria, que permitisse, ou permita, que fosse a Recorrente acusada da prática de qualquer crime, designadamente o que, da mesma forma vaga e desfasada do que os autos permitem, se prevê e pune no artigo 368º-A do Código Penal.
12. Tão pouco se enquadra o caso concreto no n.º 5 do artigo 186º do Código de Processo Penal, e, assim, para o que se prevê no artigo 228º do mesmo diploma legal, para mais quando o BB, a quem a titular da acção penal pretendia atribuir, logo ab initio, a prática de facto ilícito, mas sem que também tenha sido acusado de seja o que for nestes autos até a esta data decorridos há 9 (nove) anos, prestou a caução económica no valor de 500.000,00€ que lhe foi fixada há anos atrás.
13. Sem que se possa olvidar a sua natureza meramente cautelar, a apreensão, no caso concreto que se submete à Vossas justas apreciação e decisão, é desnecessária para efeitos de prova (artigo 178.º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Penal) e, por outro, também não há elementos suficientes que permitam a previsão e com consistência, decorridos já 9 (nove) anos de inquérito, de que o veículo apreendido seja, a final, declarado perdido a favor do Estado, nos termos do disposto no artigo 110º do Código Penal.
14. A manutenção, nas circunstâncias e momento actuais, a que não pode ser alheio o facto de estarmos em face de inquérito que se arrasta há já 9 (nove) anos, com apreensão de veículos reportada a 23 de Maio de 2017 (há mais de 6 anos e meio), não se coaduna sequer - antes muito pelo contrário - com o disposto no artigo 191º, n.º 1, do Código de Processo Penal, enquanto concretização legal do que se estabelece, desde logo, no artigo 18º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa.
15. Antes se está, por força do despacho recorrido e se mantido, em face de violação do que se prevê nos aludidos artigos 178º, n.º 1, e 186, n.º 1, e, bem assim, dos princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação acautelados e previstos no artigo 193º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal, sem que se verifiquem, quanto mais persistam fundamentos para a manutenção da decisão de apreensão de todos e cada um dos seis veículos da propriedade da ora Recorrente.
16. Para além da ilegalidade da decisão recorrida, o Tribunal a quo incorre, nela, em violação do disposto no artigo 62º e ainda no artigo 18o, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, bem como do que, enquanto direitos humanos, se protege e garante no artigo 17º da Declaração Universal dos Direitos Humanos; se reforça mesmo no artigo Io do Protocolo Adicional à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais; e, bem assim, se vinca no artigo 17º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
17. A manutenção da apreensão dos veículos da legítima propriedade da Recorrente pelo despacho recorrido, e atento o que caracteriza os autos e deles consta, contende seriamente não só com o direito elementar à propriedade, como também com os princípios, direitos e garantias fundamentais como consagrados nos artigos 20º, n.º 4, e 32º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa; nos artigos 10º e 1 Io, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos; no artigo 6o, n.ºs 1 e 2, e no respectivo n.º 3, alínea a), da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais; no artigo 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; e nos artigos 47º § 2 e 48º, n.ºs 1 e 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
(…)».
3. Na primeira instância, o Exm.º Procurador do Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
«(…)
1. A arguida recorrente incorre na prática do crime de branqueamento; e a sua legal representante e o coarguido BB também incorrem na prática do mesmo crime e na do crime precedente de fraude na obtenção de subsídio, qualificada, p e p, respetivamente, nos arts. 368º-A, nº1 (com referência ao art.º 1º da L. 36/94 de 29.9) e nº2, do C. Penal com a pena de prisão de dois a doze anos; e, 3º e 36º, nº1, al. a), nº2, nº3 e nº5, al. a); crime punido com a pena de prisão de dois a oito anos e a pena assessória de dissolução da sociedade.
2. O artigo 219º da CRP, os artigos,178º, nº1,186º, nº1 e 2, 374º, nº3, al. c), do CPP, os artigos 109º a 111º e 130º do C. Penal, a L. 5/2002 de 11.1, a L. 45/2011 de 24.6 que criou o Gabinete de Recuperação de Ativos, a L. 74/2009 de 12.9, a L. 65/2003 de 23.8, a L. 25/2009 de 5.6, a L. 88/2009 de 31.8 e a Lei 30/2017 de 30.5, estas quatro em concordância com as Convenções enunciadas na presente resposta, normas a que o Estado português se obrigou, impõem a conclusão de que é legítimo e necessário o confisco de bens com a finalidade de perda a favor do Estado.
3. A apreensão foi ordenada nesse estrito quadro legal.
4. A Decisão Judicial ora recorrida observa-o e aplica-o, ao mantê-la.
5. O prazo de duração do inquérito é justificado pela_disseminação dos factos por diversas jurisdições, com a opacidade emprestada pelos agentes à conduta criminosa, utilizando diversas sociedades, com a complexidade da matéria e com a extensão dos autos.
6. Os presentes autos, declarados de especial complexidade, são compostos por 34 volumes de autos principais, 128 apensos bancários, 80 apensos de busca e largas dezenas de apensos temáticos (designadamente, relatórios periciais, intercepções telefónicas, correio eletrónico, apensos do GRA e incidentes).
7. Procedeu-se à inquirição já de mais de 50 testemunhas.
8. Apenas há poucos meses foi integralmente executada a DEI remetida para as autoridades francesas, cuja vasta documentação transmitida ainda se encontra a ser analisada pela Equipa Mista.
9. A duração do inquérito mostra-se por isso conforme às exigências de um processo justo e equitativo, não só porque é justificada pela atividade criminosa sob investigação, pela sua complexidade e dimensão, mas também porque em todas aquelas matérias em que os direitos dos cidadãos, e dos aqui arguidos, suspeitos ou visados, podem ser ofendidos, está garantida a reserva de jurisdição, do que o presente recurso é manifesta evidência.
10. Não se mostrando violados o direito a um processo justo e equitativo, ou o direito de propriedade da recorrente.
11. Nem quaisquer normativos constitucionais, penais ou processuais penais invocados, pugnamos pela manutenção da Douta Decisão recorrida, nos seus precisos termos, negando-se provimento ao recurso.
(…)».
4. Neste Tribunal da Relação, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer acompanhando integralmente o teor da resposta apresentada pela Senhor Procurador na primeira instância. Pugna igualmente pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.
5. Foi cumprido o disposto no art.º 417º/2 do Código de Processo Penal, com resposta da recorrente, em síntese, reiterando os fundamentos do recurso.
6. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º/3, c) do Código de Processo Penal.

II- FUNDAMENTAÇÃO
1. QUESTÕES A DECIDIR
Em conformidade com o disposto no art.º 412º/1 do Código de Processo Penal, o objeto do recurso, cingindo-se ao conteúdo da decisão recorrida, é delimitado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme decorre da leitura conjugada do disposto nos arts. 119º/1, 123º/2 e 410º/2, a), b) e c), do Código de Processo Penal. (2)
Há apenas uma questão a decidir:
Constitui fundamento da revogação de apreensão de bens efetuada ao abrigo do disposto no art.º 178º do Código de Processo Penal a excessiva morosidade do inquérito, concretamente, o facto de decorridos mais de 6 anos e meio após essa apreensão inexistir uma acusação?
2. DECISÃO RECORRIDA E ENQUADRAMENTO PROCESSUAL
2.1 É do seguinte teor a decisão recorrida datada de 04/05/2023 (transcrição):
«(…)
Fls. 32 a 35, com referência a fls. 1 a 14 - Veio a requerente AA, requerer o levantamento da apreensão e a restituição dos veículos com as matrículas BB, ..-PB-.. e ..-PT-.. e a restituição dos valores que depositou a titulo de caução para levantamento das viaturas com as matriculas ..-LH-.., ..-RA-.. e ..-..-HN, nos termos e com os fundamentos constantes do seu requerimento, que aqui se dá por reproduzido, por mera economia processual.
O M.º P.º deduziu oposição ao requerido levantamento da apreensão que incide sobre os referidos veículos automóveis, nos termos e com os fundamentos que infra se transcrevem, para melhor compreensão:
«O Ministério Público, notificado, por termo de vista datado de 24/04/2023, nos termos e para os efeitos do artigo 178.º, n,º8 do CPP (Código de Processo Penal) do requerimento apresentado pela arguida AA - fls. 1 a 14, vem, pelo presente, consignar a sua
OPOSIÇÃO
Ao levantamento da apreensão dos veículos com as matrículas BB, ..-PB-.. e -PT-, ..-LH-.., ..-RA-.. e ..-..-HN.
O que faz com os seguintes fundamentos:
I- Dos argumentos da requerente.
1. A arguida requerente vem solicitar ao Mmo. Juiz de Instrução que:
a) Revogue a decisão de apreensão e, em consequência:
b) Ordene a restituição dos veículos com as matrículas BB, ..-PB-.. e ..-PT-..;
c) Determine a devolução à requerente dos valores que depositou a título de caução para levantar os veículos com as matrículas ..-LH-.., ..-RA-.. e ..-..-HN.
2. Começa por notar a morosidade processual que em seu entender fere o inquérito e alega a ultrapassagem do prazo legal para o seu encerramento, mesmo atendendo à declaração de excepcional complexidade do mesmo.
3. Avança que a duração do inquérito, que já ultrapassou os 8 anos e 5 meses, associada à apreensão das viaturas de sua propriedade já desde 23 maio de 2017, ofendem de forma essencial o seu direito de propriedade.
4. Mais especifica que a 30/12/2017 pôde levantar as viaturas com as matrículas 48-LH- 19 e ..-RA-.., contra o depósito de caução no valor respectivo de €90.193,00 e €87.500,00 e em 2021 fez o mesmo quanto à viatura ..-..-HN, nesta caso contra o depósito de € 14.737,74.
5. E que as viaturas com as matrículas BB e ..-PB-.. foram objecto de declaração de utilização operacional, desconhecendo a situação e paradeiro das mesmas.
6. Refere que nunca esteve em causa como fundamento da e para a apreensão as viaturas apreendidas constituírem meio de prova, mas tão só produtos relacionados com a prática de um facto ilícito típico.
7. Em seguida, ao longo de 11 páginas, a requerente reproduz o seu requerimento de 16/07/2018, no qual referiu que a sua constituição se ficou a dever à intenção de BB e a sua família obterem vantagens económicas na utilização e manutenção das viaturas através de uma empresa e não para ocultar ou dissimular o produto de um crime ou para praticar o crime de branqueamento de capitais.
8. Mais aduziu que BB e a sua família tinham capital suficiente para aquisição das referidas viaturas, capital esse proveniente dos seus rendimentos, tendo discriminado os rendimentos brutos declarados por BB e a sua ex-esposa, ora unida de facto, CC.
9. Dedicando-se em seguida a demonstrar o procedimento aquisitivo das viaturas apreendidas e em especial aquela que foi a data da sua aquisição por aqueles que, posteriormente, transmitiram as viaturas à requerente, considerando que um e outra demonstram que as viaturas apreendidas não são objecto do crime e que a transmissão das viaturas para a sua esfera de propriedade não constituiu um acto de branqueamento.
10. Afirmou que a prova de que tinha capital para proceder à aquisição das viaturas foi confirmada pelo facto de ter tido capacidade para proceder ao depósito das quantias necessárias ao levantamento de algumas das viaturas apreendidas.
11. Recordando os despachos do Senhor Vice-Procurador-Geral da República que, na sequência dos pedidos de aceleração processual, conferiram prazo adicional para o encerramento do inquérito,
12. Conclui mostrar-se violado o disposto no artigo 276.º do Código de Processo Penal, com consequente responsabilização do Estado Português nos termos do artigo 12.º da Lei n.º 67/2007, de 31/12 e atento o disposto no artigo 22,º da Constituição da República (doravante CRP), mormente por violação dos artigos 20.º, n.º 4 e 32.º, n.ºs 1 e 2, e 62.º da CRP., considerando que o procedimento adoptado nos autos é violador do direito a um processo equitativo, do princípio da presunção da inocência e do direito de propriedade.
*
II - Da oposição do Ministério Público.
II.1 - Da alegada violação dos princípios do processo equitativo, presunção de inocência e do direito de propriedade da arguida.
13. A arguida, aqui requerente, associa a morosidade processual destes autos, com a apreensão dos veículos de sua propriedade, à violação dos princípios do processo equitativo, presunção de inocência e do direito de propriedade.
14. Ora, a este respeito, e tendo por assente (como parece ser hoje unânime) que os prazos do 276.º do CPP são meramente ordenadores, importa reler o Acórdão do tribunal Constitucional n.º 294/2008, disponível em TC > Jurisprudência > Acordãos > Acórdão 294/2008 (tribunalconstitucional.pt1)
Conforme o Tribunal Constitucional tem sublinhado noutras ocasiões e constitui entendimento doutrinário assente, o direito de propriedade, tal como previsto no artigo 62º, n.º 1, da Constituição, não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições definidas noutros lugares do texto constitucional ou na lei, quando a Constituição para ela remeter, ainda que possa tratar-se de limitações constitucionalmente implícitas (GOMES CANOTILHOA/ITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4a edição revista, Coimbra, pág. 801;JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2005, Coimbra, pág. 628).
Referindo-se especialmente às apreensões em processo penal (estando então em causa a norma do artigo 178º, n.º3, do CPP de 1987, na sua redacção originária), o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 7/87 (publicado no Diário da República n.º 33, I Série, de 9 de Fevereiro de 1987), afirmou que as apreensões, quando autorizadas ou ordenadas pela autoridade judiciária, nos casos referidos nesse preceito, não podem deixar de considerar- se um limite imanente ao direito de propriedade, daí se extraindo a sua completa conformidade com o garantia constitucional. E, na mesma linha de orientação, o acórdão n.º 340/87 (publicado no Diário da República n.º220, II Série, de 24 de Setembro de 1987) entendeu que o artigo 108º do Código Penal de 1982 (também na sua redacção originária), quando prevê a perda a favor do Estado de objectos de terceiro, não é inconstitucional, por violação do direito de propriedade, por ser de considerar que esse direito constitucional pode ser sacrificado em homenagem aos valores da segurança das pessoas, da moral ou da ordem pública enquanto elementos constitutivos do Estado de Direito democrático.
No caso vertente, não se vê que a manutenção da apreensão de quantias para além dos prazos legalmente fixados para o termo do inquérito, represente uma restrição ilegítima do direito de propriedade por violação do princípio da proporcionalidade, designadamente na sua dimensão de adequação aos fins visados pela lei.
Vimos que a apreensão tem a dupla função de meio de obtenção de prova e de garantia patrimonial do eventual decretamento de perda de valores a favor do Estado (cfr. DAMIÃO DA CUNHA Perda de bens a favor do Estado, Centro de Estudos Judiciários, 2002, pág. 26), e, nesse sentido, tem pleno cabimento que enquanto providência processual instrutória ela possa manter-se até à fase de julgamento e venha apenas o ser declarada extinta com a sentença final (absolutória ou condenatória), quando nela tenha sido entretanto fixado o destino a dar aos bens apreendidos.
A apreensão de bens ou valores que constituam o produto do crime não está relacionada, por isso, com quaisquer vicissitudes processuais, mas unicamente com os próprios fins do processo penal, e é justificada à luz do interesse da realização da justiça, nas suas componentes de interesse na descoberta da verdade e de interesse na execução das consequências legais do ilícito penal.
E neste plano de compreensão tem relevo chamar a atenção para o facto de estarmos perante formas de criminalidade económica-financeira organizada que é de muito difícil prova e relativamente à qual o legislador sentiu necessidade, através da mencionada Lei n.º 5/2002, de adoptar medidas especiais de controlo e repressão, mediante a derrogação do segredo fiscal e bancário, para facilitar a investigação criminal (artigos 2º a 5º). a permissão do registo de voz e de imagem, como específico meio de produção de prova (artigo 6º), e a previsão de um mecanismo especial de perda de bens a favor do Estado tomando por base a presunção de obtenção de vantagens patrimoniais ilícitas através da actividade criminosa (artigo 7º) - sobre estes aspectos, DAMIÃO DA CUNHA, ob. cit., págs. 7-10).
Num outro plano, os recorrentes invocam ainda a violação do princípio da presunção da inocência do arguido e do direito ao processo célere, tal como consagrados no artigo 32º, n.º 2, da Constituição.
Não existindo dúvidas, no âmbito do processo, quanto ao alcance do primeiro dos princípios enunciados, e aceitando que este posso representar, no ponto em que mais releva para o caso, a proibição de antecipação de uma pena, haverá de convir-se que a manutenção da apreensão de valores, destinando-se a funcionar como elemento de prova a ser considerado nas fases ulteriores do processo e como garantia patrimonial de uma eventual medida de perda de bens a favor do Estado, não põe em causa esse parâmetro constitucional. Desde logo, porque não fica de nenhum modo excluído que, nos precisos termos do artigo 186º, se venha a determinar a restituição dos bens apreendidos ao seu titular, quer porque se reconheça, no decurso do processo, a desnecessidade da apreensão para efeitos probatórios, quer porque, na decisão final, se considere não verificada a prática dos factos ilícitos que eram imputados aos arguidos.
Não é, por conseguinte, a circunstância de a apreensão subsistir para além dos prazos legalmente fixados para a conclusão do inquérito, como vem alegado, que poderá implicar uma violação do principio da presunção da inocência do arguido, visto que nada fica decidido quanto ao destino a dar às quantias apreendidas e é a própria natureza da medida processual (meio de obtenção de prova e medida cautelar) que justifica que posso manter-se até ao termo do processo.
Por identidade de razão, não é o prolongamento da situação de apreensão de bens que pode pôr em causa o direito ao processo célere, enquanto garantia de defesa do arguido. Esta pode considerar-se afectada, de algum modo, pelo esgotamento dos prazos de conclusão do inquérito - caso tenha efectivamente ocorrido visto que, por si, essa eventualidade é determinante de um atraso na resolução final do processo (ainda que possa discutir-se se é suficiente para que se considere violado o princípio constitucional). Não há, no entanto, uma directa correlação entre a manutenção da apreensão e a possível violação do direito ao processo célere, porquanto não é a pretendida restituição das quantias apreendidas que poderá obstar a que processo prossiga e impedir a consequência processual negativa que advenha da demora na ultimação do processo do inquérito. “
15. Ou seja, a manutenção da apreensão mesmo após decorridos os prazos a que alude o artigo 276.º do CPP, conquanto se verifiquem os seus pressupostos (o que no caso ocorre, como veremos a seguir), em nada contende com a presunção de inocência, o direito a um processo célere ou o direito de propriedade.
16. Este admite diversas restrições, entre as quais não poderia deixar de estar a de poder ser restringido - primeiro cautelarmente e, verificados os necessários requisitos, a final, definitivamente - quando o mesmo se tenha constituído ilicitamente.
II.2 - Os fundamentos para a decisão e manutenção da apreensão.
17. Nos presentes autos investiga-se a prática de crimes de fraude na obtenção de subsídio, previsto e punido pelos artigos 3.º, 8.º e 36.º, n.º 1, al. a), n.º 2, n.º 3 e n.º 5, al. a), do DL 28/84 de 20.1, crime punido com a pena de prisão de dois a oito anos e de penas acessórias como a de privação do direito a subsídios ou subvenções, encerramento definitivo de estabelecimento e de dissolução da sociedade; e do crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368.º-A, n.º 1 (com referência ao artigo l.º da Lei 36/94 de 29.9) e n,º 2, do Código Penal, com a pena de prisão de dois a doze anos.
18. Conforme consignado no despacho que ordenou a apreensão indicia-se o desvio de elevadas quantias monetárias provenientes de fundos comunitários para outros fins que não a concretização de projectos que esses fundos se destinavam a financiar.
19. Indicia-se também que a compra de veículos automóveis de alta cilindrada, na ..., serviu para dissimular e converter os valores obtidos dessa forma fraudulenta, tendo tais veículos sido exportados para Portugal onde foram revendidos, por um dos arguidos, por valor inferior ao da sua aquisição a empresas ou sujeitos por si controlados ou relacionados com a fraude na obtenção de subsídios.
20. As viaturas são importadas por empresas detidas pelos arguidos BB, DD, EE, FF e GG.
21. Entre elas está a AA e têm como destinatário final empresas indicadas como fornecedoras e os seus sócios, como é o caso da ..., ..., ... e o sócio destas HH, entre outros.
22. Entre janeiro de 2014 e janeiro de 2016 foram importados da ... 38 veículos automóveis e que, destes, 32 foram registados a favor dos arguidos ou de pessoas da sua confiança.
23. De todos, apenas através da ... foram importados 13, no ano de 2014, o que não exclui que tenham sido importados outros através de outras empresas.
24. Deste modo, BB, com a adesão e auxílio dos demais coarguidos, nomeadamente, de Vânia Gomes, logrou colocar em território nacional, e na titularidade dos beneficiários dos projetos ou de pessoas da sua confiança, tal património adquirido com o produto do cometimento daqueles crimes de fraude na obtenção de subsídio, por todos cometido, dissimulando a sua origem.
25. O que releva para a decisão e manutenção da apreensão é que se trata de um modo de ocultação e de dissimulação do produto do crime ou da sua vantagem, nos termos em que vêm definidos nos artigos 368.º e 110.º do Código Penal (redação da Lei n.º 30/2017) ou que já vinham definidos no artigo 111.º do Código Penal.
26. O que determinou a apreensão destes bens foi o facto de terem sido adquiridos com o lucro proveniente de um fato ilícito típico, o cometimento do crime de fraude na obtenção de subsídio, qualificado, para o qual contribuiu, de forma decisiva, a empresa alemã ....
27. Como o facto de integrarem a conversão de tais lucros, a transferência de tais vantagens, por si obtidas ou por terceiros, integradas, deste modo, na economia legítima.
28. Os rendimentos declarados pelos arguidos afiguram-se-nos incongruentes com o património que titulam o que determinará a necessidade da liquidação a que alude o art.º 8º da L. 5/2002,
29. A requerente AA, proprietária de vários veículos automóveis de alta cilindrada, foi constituída em ........2015, com um capital de €5,000,00, sendo a titular da quota única CC, ex-mulher de BB e que com este continua a viver, em união de facto.
30. A sede da arguida é a morada/casa de habitação do arguido II, filho de BB.
31. Os veículos automóveis supra identificados encontravam-se todos na garagem da residência de BB e de CC, na sua esfera patrimonial e para sua utilização.
32. Os métodos pelos quais esta empresa portuguesa, imediatamente, após a sua constituição, adquiriu vários veículos automóveis de alta cilindrada, o que foi feito mediante a intervenção de BB e de CC, são indiciadores da prática do crime de branqueamento de capitais.
33. Mesmo o veículo de matrícula ..-..-HN, de que era proprietário BB, foi adquirido por esta empresa em ........2015, apenas 10 dias após a sua constituição, indiciando-se fortemente que com este negócio BB justificou uma transferência de dinheiro a crédito para uma conta bancária pessoal, integrando esta venda um novo ato de branqueamento.
34. Deste modo, forçoso é concluir que se encontram preenchidos todos os pressupostos formais e materiais da apreensão dos veículos referidos, aliás como já judicialmente apreciado.
É nesta conformidade que nos opomos à devolução à requerente dos veículos automóveis supra identificados, promovendo seja o requerimento indeferido e mantidas as apreensões determinadas nos autos.» (sic).
Cumpre decidir:
Tomei boa nota da Oposição deduzida pelo detentor da acção penal supra transcrita.
As viaturas em causa foram apreendidas por se indiciar terem sido adquiridos com o lucro proveniente de um fato ilícito típico, o cometimento do crime de fraude na obtenção de subsídio, qualificado, para o qual se indicia terá contribuído, de forma decisiva, a empresa alemã ....
Atenta a factualidade e ilícitos penais objecto da investigação, somos levados a corroborar o entendimento sancionado pelo detentor da acção penal, de que está em causa um modo de ocultação e de dissimulação do produto do crime ou da sua vantagem, nos termos em que vêm definidos nos artigos 368.º e 110.º do Código Penal (redação da Lei n.º 30/2017) ou que já vinham definidos no artigo 111º do Código Penal.
Corrobora-se o entendimento sancionado pelo titular da acção penal de que a manutenção da apreensão mesmo após decorridos os prazos a que alude o artigo 276.º do CPP, conquanto se verifiquem os seus pressupostos (o que no caso ocorre, como veremos a seguir), em nada contende com a presunção de inocência, o direito a um processo célere ou o direito de propriedade.
Aliás, concordando, na íntegra, com a oposição deduzida pelo detentor da acção penal, à qual me arrimo e aqui dou por reproduzida, não por falta de ponderação própria da questão, mas por simples economia processual e por ilustrar com suficiência de argumentos, o entendimento que perfilhamos, pelo que se indefere, por ora, a requerida entrega das viaturas e depósitos de caução, mantendo-se a respectiva apreensão das mesmas.
Notifique o M.º P.º e a ora Requerente (esta última, também com cópia da oposição deduzida).
(…)».
2.2 Veio este despacho na sequência de requerimento da aqui recorrente de 17/04/2023 com o seguinte teor (transcrição):
«(…)
AA, Arguida no inquérito criminal supra referenciado e nele já melhor identificada, legítima proprietária do veículo automóvel com marca e modelo ..., e matrícula ..-LH-.., do veículo com marca e modelo ..., e matrícula ..-RA-.., do veículo automóvel com marca e modelo ..., e matrícula BB, do veículo automóvel com marca e modelo ..., e matrícula ..-PB- .., do veículo automóvel com marca e modelo ..., e matrícula ..-..-HN, e do veículo automóvel com marca e modelo ..., e matrícula ..-PT-.., vem dirigir-se, respeitosamente, a V. Ex.a, enquanto Garante dos Direitos, Liberdades e Garantias Fundamentais na fase processual ainda em curso, submetendo a Vossas apreciação e decisão quanto se segue, ao abrigo do disposto nos artigos 17º, 178º, n.º 7, e 186º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal:
1º Atento o que se justifica requerer, não é despiciendo, antes muito pelo contrário, aqui aludir, para efectiva consideração, à já reconhecida (pelo Estado Português | Procuradoria-Geral da República) morosidade processual que fere o inquérito n.º 413/14.0TELSB e, ainda assim, com prorrogações de um prazo legal para respectivo encerramento que se encontra há muito ultrapassado, no que configura há manifesta violação do direito fulcral a um processo equitativo, à luz não só da Constituição da República Portuguesa, como de tratados europeus e internacionais de exigidos respeito e aplicação em (e por) Portugal.
2º O inquérito em causa corre termos desde Julho de 2014, ou seja, há já quase 9 (nove) anos a esta data.
3º Em 17 de Novembro de 2014, foi proferido despacho pela Senhora Procuradora titular do inquérito (de fls 50 a 54, Vol. I) “a fixar o objeto da investigação, identificados os primeiros sujeitos e determinada a sujeição dos autos a segredo de justiça, iniciando-se, decurso do prazo de inquérito em conformidade com a previsão contida no art.º 276º, n.º 4, do Código de Processo Penal.”.
4º Àquele despacho, no qual se consignou expressamente o início, em 17 de Novembro de 2014, do “decurso do prazo de inquérito em conformidade com a previsão contida no art.º 276º, n.º 4, do Código Processo Penal” foi, inclusivamente, também feita alusão, para todos os devidos efeitos e face ao legalmente estatuído, no requerimento de fls 1002 a fls 1004 da Senhora Procuradora titular do inquérito pelo qual a mesma requereu que fosse declarada a excepcional complexidade dos autos nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 215º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal, por forma a alargar-se o prazo máximo de duração do inquérito para 18 (dezoito) meses, o que veio a ser deferido por despacho de 17 de Maio de 2015 (a fls 1007).
5º De facto, como expressamente estipulado no n.º 4 do artigo 276º do Código de Processo Penal, o prazo máximo de duração do inquérito “conta-se a partir do momento em que o inquérito passado a correr contra pessoa determinada ou em que se tiver verificado a constituição de arguido”, tendo, no caso, se iniciado tal prazo em 17 de Novembro de 2014, como expressamente fixado e consignado nos autos pela própria detentora do exercício da acção penal.
6º Tendo o inquérito criminal em causa se iniciado, para efeitos de cumprimento do prazo de duração máxima de 18 meses, no aludido dia 17 de Novembro de 2014, ainda hoje persiste, à revelia do estabelecido no artigo 276º (conjugado com o artigo 215º) do Código de Processo Penal, e do que são princípios, direitos e garantias fundamentais, reconhecidos enquanto direitos humanos.
7º Requerida pela Arguida, ora requerente, a aceleração processual do inquérito n.º 413/14.0TELSB, aquele seu pedido foi deferido por despacho do Senhor Vice-Procurador-Geral da República de 4 de Maio de 2020.
8º De resto, também requerimento de aceleração processual apresentado pelo BB foi deferido por despacho de 20 de Abril de 2020 do Senhor Vice-Procurador Geral da República.
9º Já aquando da apresentação daqueles pedidos de aceleração processual, o inquérito havia perdurado e se protelado em anos (!) face àquele que era (e é) o respectivo prazo de duração máxima e mesmo muito para além do que, ainda assim, se pudesse reputar como um “atraso” razoável.
Sublinhado e negrito nossos.
Máximo de 27 meses mesmo que consideradas cartas rogatórias expedidas e o período máximo e total, por processo, de suspensão de 9 meses (metade dos 18 meses de duração máxima de inquérito já considerada a excepcional complexidade).
10º Mesmo quando reconhecida pelo Estado Português a excessiva morosidade processual pelos dois despachos de 20 de Abril de 2020 e de 4 de Maio de 2020 do Senhor Vice-Procurador Geral da República, por que foram deferidos os pedidos de aceleração processual do inquérito criminal n.º 413/14.0TELSB (DA n.º 6732/20 - Autos de Aceleração Processual), atribuiu—se mais 12 (doze) meses para o respectivo encerramento.
11º Depois de ultrapassado em ainda mais 1 (um) ano - para além dos vários anos em que já o fora - o prazo máximo legalmente estabelecido para a duração do inquérito, veio a ser proferido pelo Senhor Vice-Procurador-Geral despacho em 27 de Maio de 2021 em que atribuiu outros 12 (doze) meses para encerramento de inquérito que teria, no máximo - e já consideradas tanto a excepcional complexidade, como a expedição de cartas rogatórias - uma duração de 27 meses (18 meses, acrescidos de um período de suspensão com duração - total e única por processo - de 9 meses).
12º E, ultrapassada, mais uma vez, essa nova prorrogação unilateral pelo Ministério Público (Estado Português) de um prazo legalmente estabelecido e ultrapassado (violado) há anos, veio a ser determinada, por despacho de 26 de Maio de 2022 do Senhor Vice-Procurador-Geral da República “nova prorrogação, por 12 meses, do prazo de encerramento do ” (DA n.º 6732/20 - Autos de Aceleração Processual).
13º Reforce-se, também nesta sede e para todos os devidos e justificados (presentes e ulteriores) efeitos, que os 27 meses de prazo máximo para encerramento do inquérito, iniciado em 17 de Novembro de 2014, decorre já de uma sua declarada excepcional complexidade e, bem assim, da expedição de cartas rogatórias (com a suspensão correspondente, delimitada temporalmente), como acautelado e estabelecido pelo Legislador no artigo 276º, n.º 3, alínea c), e n.º 5, do Código de Processo Penal.
14º Inquérito, que, já por força da excepcional complexidade e atenta a expedição de cartas rogatórias, tinha e tem como prazo legal de duração máxima 27 meses, iniciados em 17 de Novembro de 2014, perdura ainda e se vai protelando, com um atraso já de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses a esta data, agravando o que configura, e há muito, violação grosseira de direitos e garantias elementares no âmbito do processo criminal.
15º Fixado em 17 de Novembro de 2014 o início do prazo legalmente determinado de respectiva duração máxima, decorreram 101 (cento e um) meses, ou seja, 8 (oito) anos e 5 (cinco) meses desde aquela data sem que o inquérito em apreço tenha sido encerrado, em violação ostensiva tanto do estipulado no artigo 276º do Código de Processo Penal, como de direitos humanos considerados como basilares num Estado de Direito, com consequente responsabilização do próprio Estado Português, não só ao abrigo do artigo 12º da lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro, e atento o disposto no artigo 22º da Constituição da República Portuguesa, como também, por já plenamente justificado, directamente junto do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e/ou do Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas.
16º É, desde logo, neste contexto de morosidade processual e mais agravando ainda o que configura violação - com maiores prejuízo e danos - dos princípios, direitos e garantias elementares com consagração nos artigos 20º, n.º 4, e 32º, n.ºs 1 e 2 (este, especificamente para o processo criminal) da Constituição da República Portuguesa, e, bem assim, nos artigos 10º e 11º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos3, no artigo 6o, n.ºs 1 e 2, e no respectivo n.º 3, alínea a)4, da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, no artigo 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos5, e nos artigos 47º § 2 e 48º, n.ºs 1 e 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia6, que a Arguida ora requerente, foi e continua privada do efectivo de propriedade, e inerentes posse e uso, dos veículos da sua propriedade que lhe foram apreendidos.
17º Para além de consagrado no artigo 62º da Constituição da República Portuguesa, o direito à propriedade era já (e é) protegido e garantido no artigo 17º da Declaração Universal dos Direitos Humanos; no artigo Iº do Protocolo Adicional à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais; e no artigo 17º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
18º Pelo que, num inquérito que perdura há quase 8 (oito) anos e 5 (meses), com já reconhecida morosidade processual pelo Estado Português (Ministério Público | Procuradoria-Geral da República), e mediante um atraso - mesmo muito para além do que seria ainda razoável - de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses a esta data, assume também maior relevância em sede e para efeitos de ponderação e decisão sobre a manutenção a apreensão de veículos da propriedade da Arguida.
ora requerente o que se acautela e garante não só no artigo 62º da Lei Fundamental, como também naqueles instrumentos normativos europeus.
19º É no âmbito deste inquérito, em que não está a ser assegurado o direito fundamental (direito humano) a um processo equitativo e justo, que, em 23 de Maio de 2017, foram apreendidos à ora requerente os 6 (seis) veículos automóveis da sua propriedade, com respectivas remoção e entrega ao Gabinete de Administração de Bens7 (do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I.P.8, organismo público inserto na administração indirecta do Estado):
Veículo automóvel com marca e modelo ..., e matrícula ..-LH-..;
Veículo automóvel marca e modelo ..., e matrícula ..-RA-..;
Veículo automóvel com marca e modelo ..., e matrícula ..-..-HN;
Veículo automóvel com marca e modelo ..., e matrícula BB;
Veículo automóvel marca e modelo ..., e matrícula ..-PB-..;
Veículo automóvel com marca e modelo ..., e matrícula ..-PT-...
20º Como constante dos presentes autos, os dois primeiros dos supra identificados veículos - ..., com matrícula 48-LH-l 9; e ...(Range Rover), com matrícula ..-RA-.. — vieram a poder ser levantados, em Dezembro de 2017, pela Arguida sua proprietária, contra o depósito, em 30 de Outubro daquele mesmo ano, dos valores por que foram avaliados, ou seja, respectivamente, 90.193,00 € (noventa mil cento e noventa e três euros) e 87.500,00 € (oitenta e sete mil e quinhentos euros), à ordem e enquanto “receita” do IGFEG, I.P.
21º O veículo automóvel marca e modelo ..., com matrícula ..-..-HN, pôde ser levantando apenas no ano de 2021 pela sua proprietária, a ora requerente, mas também contra o depósito, a título de caução, do valor da respectiva avaliação -14.737,74 € - à ordem do IGFEG, I.P., e autorizados, somente dessa forma, os respectivos uso e posse à sua legítima proprietária.
22º Em 25 de Maio de 2018, a proprietária, ora requerente, foi notificada de que os seus veículos da marca ..., modelos 420 D e 530 D, respectivamente com as matrículas BB e ..-PB- .., foram declarados como sendo susceptíveis de uso operacional pelo Estado (concretamente, pela própria Polícia Judiciária), e, isto, sem mais até à presente data em sede e para efeitos de efectivação da tutela legal e constitucional dos direitos e interesses da proprietária.
23º Aquando da notificação à legal representante da ora requerente, em 28 de Maio de 2018, de que aqueles dois seus veículos eram declarados susceptíveis de uso operacional pelo Estado, ficou também a ora requerente a saber que, afinal, já em 18 de Julho de 2017 haviam sido considerados de interesse e para uso da Polícia Judiciária, declarando, para o efeito, a própria Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) que cada uma daquelas duas viaturas era “de vir a ser declarada a perdida a favor do Estado”.
24º Na sequência de requerimentos da proprietária e, nomeadamente, o de 16 de Outubro de 2019, veio a ser promovido pela Senhora Procuradora titular do inquérito e assim também decidido por despacho jurisdicional de 20 de Janeiro de 2020 (de fls 251 e notificado por ofício datado de 6 de Março de 2020) que, a título de “esclarecimentos”, fossem remetidas fotocópias à proprietária daqueles dois veículos, através da sua mandatária forense, de fls 188 e 189 e de fls 201 e 202, ou seja, dos Autos de Exame e Avaliação efectuados por elementos do próprio OPC em 25 de Maio de 2017, ou seja, aquando da sua apreensão.
25º Pese embora tenha vindo a persistir a Arguida, ora requerente, enquanto proprietária dos veículos em que fossem respeitados e dado efectivo cumprimento aos procedimentos legalmente previstos, nada mais foi e/ou lhe é dado concretamente a saber desde então, sendo que desconhece quais a situação e a própria localização actuais daqueles seus dois veículos - e, isto, há já praticamente 6 (seis) anos após a sua apreensão, em 25 de Maio de 2017.
26º O que aqui sempre também se renova, para todos os devidos efeitos, apelando a que se zele pelo elementar direito de propriedade como consagrado no artigo 62º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e, bem assim, pelo próprio princípio da legalidade, e de quanto se acautela e determina no artigo 202º, n.º 2, da Lei Fundamental.
27º Por sua vez, o veículo automóvel com marca e modelo ..., e matrícula ..-PT-.., continua entregue, para administração, ao GAB, sendo um bem (veículo automóvel) único, insusceptível de ser substituído, o que bem se evidencia atento o próprio procedimento e ritual de entrega e de certificação pela marca.
28º Num inquérito que se vai arrastando no seio do Ministério Público - sem previsão legal sequer, a nível do ordenamento jurídico interno, de possibilidade de crivo ou intervenção jurisdicional9 - , muito para além do respectivo prazo legal de duração máxima, em violação que se mostra já ostensiva de direitos humanos, mais importa ainda o que se segue e se requer, intrínseco que é tanto ao direito elementar à propriedade, como ao direito a um processo equitativo e justo, em que se insere o princípio da presunção de inocência, fulcral que é num Estado de Direito democrático.
29º A Arguida era e é a proprietária dos veículos em causa, sendo que, ademais, vinga aquele princípio da presunção de inocência e sempre deverá ser assegurado o direito fundamental a um processo/inquérito justo e equitativo, com todas as devidas (e plenas) garantias de defesa e de intervenção da Arguida (proprietária dos veículos) como legalmente previsto, em concretização do que são ditames constitucionais e encontra igual consagração em instrumentos normativos europeus e internacionais.
30º Não estava, nem esteve jamais em causa nos autos - como se pode aferir nos mesmos e pelo entendido por Autoridades Judiciárias - que os veículos (qualquer dos seis veículos) representassem, ou representem meio de prova.
31º Tão somente se referia, ab initio e há anos atrás - enquanto afirmação ou presunção de culpa da ora requerente, sem sustentação probatória alguma concreta ou consistente, mesmo que indiciária, que fosse apresentada e o permitisse -, que os veículos, abordados e tratados de forma genérica pela titular do exercício da acção penal, seriam produtos relacionados com a prática de um qualquer facto ilícito típico.
32º Em 16 de Julho de 2018, foi apresentado requerimento pela Arguida aos autos de inquérito, cujo teor aqui se reproduz, atento o que iá anteriormente se demonstrava e era demonstrável contrario de uma presumida culpa e dessa abordagem genérica (e. assim, vaga) a bens - no caso, veículos automóveis - da propriedade da ora requerente:
«1 º O prazo de 18 meses para encerramento do presente inquérito, como previsto no artigo 215º, n.0 3, alínea c), do Código de Processo Penal, e contabilizado desde 17 de Novembro de 2014 (conforme vertido por V. Ex.ª em requerimento de fls 1002 a 1004, por alusão directa ao estipulado no n.º4do artigo 276ºdo Código de Processo Penal), há muito que foi ultrapassado (concretamente, já ultrapassado a esta data em mais 25 meses).
2º A Arguida viu todos os seus veículos serem apreendidos no âmbito deste inquérito em 23 de Maio de 2017, tendo decorrido já praticamente 1 anos e 3 meses a esta data desde essa apreensão.
3º Como constante dos autos, todos os veículos da propriedade da Arguida foram apreendidos com respectiva remoção, tendo 4 (quatro) deles sido colocados sob a administração do Gabinete de Administração de Bens (GAB).
4º Pese embora a apreensão, com remoção, reportada a 23 de Maio de 2017, só em 25 de Maio de 2018 (1 ano depois) foi a Arguida, ora Requerente, notificada de que os outros 2 (dois) veículos foram declarados como sendo susceptíveis de utilização operacional - no caso, afectos a uso pela Polícia Judiciária -, sem que lhe tivesse sido ainda notificada a respectiva avaliação, muito menos a possibilidade de, a final, vir a ser declarada a sua perda a favor do Estado.
5º Não pode também deixar de aqui se mencionar que, muito embora a apreensão destes veículos estivesse para ser efectuada com a nomeação como fiel depositária da gerente da Arguida, CC, tal não se veio a concretizar e antes foram removidos aquando da apreensão, com os inerentes custos e danos que já foram causados nos veículos como reflectidos nas respectivas avaliações, e sem que tenha ainda sido proferido despacho sobre requerimento de Janeiro deste ano no sentido de poderem os veículos ficar confiados à Arguida, mesmo enquanto durasse a respectiva apreensão.
6º Evidencia-se, desde logo, que a situação a que estão votados há muito os veículos da propriedade da Arguida, removidos que foram e sujeitos a parqueamento em más condições, acarreta uma perda cada vez mais significativa de valor das viaturas e a sua deterioração, o que não favorece ou mesmo protege o Estado, e prejudica em muito a Arguida, que, com tanto, é verdadeiramente sancionada sem que tenha sido sequer acusada, muito menos condenada pela prática de qualquer ilícito, em processo cuja fase de inquérito se protela muito para além do prazo legal e do que seria ainda de reputar razoável para respectivo encerramento.
7º Mesmo em sede de primeiro interrogatório, o BB logo esclareceu, com rigor e clareza, que a Arguida e ora requerente foi constituída para que em seu nome fossem registados os veículos que ele próprio e a família detinham com vista a, por via lícita (e, de resto, até corrente, porque perfeitamente legal), ter vantagens económicas em seguros, reparações, despesas de manutenção e compra de materiais de desgaste.
8º Foi esse o único objectivo, perfeitamente legal e legítimo, da própria criação da sociedade aqui Arguida e requerente, e não qualquer intuito de ocultação e/ou dissimulação do produto de crime ou a prática em si do crime de branqueamento de capitais, que, pese embora referido como alegado motivo para a apreensão dos veículos da propriedade da Arguida, não encontra sustentação, ainda hoje e já decorridos 25 (vinte cinco) meses para além do prazo legal para encerramento do inquérito, em qualquer elemento probatório concreto que sequer o indicie consistentemente.
9º Se já feito o levantamento patrimonial e financeiro do BB, não poderá senão aferir-se de capacidade económica e financeira do próprio e seu agregado familiar para a aquisição e a detenção do património exibido.
10º Feito o levantamento patrimonial e financeiro tanto do BB, como da Arguida AA, e efectivamente analisado a esta data o acervo documental apreendido, não pode deixar de se evidenciar a proveniência lícita dos rendimentos que permitiram adquirir os veículos em apreço, afastando-se o que fosse presunção — em si afrontosa do princípio basilar da presunção de inocência — em sentido contrário.
11º Sem prejuízo do que consta já dos autos e permite concluir pela legítima e lícita aquisição de património, importa à Arguida carrear para os autos mais elementos que cabalmente o demonstram, para Vossa justa apreciação.
12º A Arguida, ora requerente, foi constituída em ... de ... de 2015, conforme certidão permanente do registo comercial, que pode ser consultada com o código …
13º A Arguida abriu uma única conta bancária, no caso, no banco ..., na agência sita na ..., em ..., conforme demonstrado por via da documentação contabilística que foi apreendida em 23 de Maio de 2018, constante dos autos.
14º Para cabalmente elucidar sobre a inexistência de qualquer movimento ilícito ou que a tal conclusão pudesse conduzir, juntam-se, para Vossa apreciação, todos os extractos com (todos) os movimentos bancários realizados pela Arguida, como documentos n.ºs 1 a 13.
15º Como se pode verificar pela sua leitura, por sinal facilitada atendendo ao pequeno número/volume de movimentos, não há qualquer débito na conta da Arguida que não esteja justificado contabilisticamente e/ou a favor do BB ou da sua ex-mulher CC (com quem casou em ...) e com quem vive em união de facto.
16º Também para que não se coloque em crise, mesmo que a título de presunção em sentido contrário, a adequação dos rendimentos do BB ao património adquirido e que exibe e, nomeadamente, as viaturas que se encontram em nome da Arguida, é importante referir que tanto ele próprio e a ex-mulher desde o ano de 1987 de forma contínua, ininterrupta, facto este que pode e se pede mesmo a V. Ex.ª que seja ser confirmado junto da Autoridade Tributária.
17º Nos últimos 10 (dez) anos, o Arguido e a sua ex-mulher, vivendo ainda em união de facto, tiveram os seguintes rendimentos brutos declarados em sede e para efeitos de IRS, como se pede a V. Ex.ª" seja igualmente comprovado junto da …
Ano de 2007: 108.108,28€, a que acrescem 20.000,00€ de dividendos que foram tributados à taxa liberal e, portanto, não englobados (cfr. documento n.º 14, que se junta), num total de 128.108,28€ (cento e vinte e oito mil cento e oito euros e vinte e oito cêntimos).
Ano de 2008: 111.814,45€ (cento e onze mil oitocentos e catorze euros e quarenta e cinco cêntimos).
Ano de 2009: 126.527,23€ (cento e vinte e seis mil quinhentos e vinte sete euros e vinte e três cêntimos).
Ano de 2010: 141.362,51€ (cento e quarenta e um mil trezentos e sessenta e dois euros e cinquenta e um cêntimos).
Ano de 2011: 124.670,00€ a que se somam 283.900,00€ de mais valias isentas de tributação porque resultantes da venda de 1% das acções que detinham no grupo ... há mais de 2 anos (conforme atestado pelos documentos que se juntam como documentos n.ºs 15 a 19), tendo o rendimento total bruto no ano de 2011 sido de 408.570,00€ (quatrocentos e oito mil quinhentos e setenta euros).
Ano de 2012: 87.176,17€ (oitenta e sete mil cento e setenta e seis euros e dezassete cêntimos).
Ano de 2013: 61.472,78€ (sessenta e um mil quatrocentos e setenta e dois euros e setenta e oito cêntimos).
Ano de 2014: 60.649,78€ (sessenta seiscentos e quarenta e nove euros e setenta e oito cêntimos).
Ano de 2015: 103.708,15€ a que acrescem 77.014,52€ de compensação global isenta de IRS por rescisão por mútuo acordo do contrato de trabalho que a ex-mulher de BB tinha com o ...., num total de rendimentos auferidos em 2015 de 180.722,67€ (cento e oitenta mil setecentos e vinte e dois euros e sessenta e sete cêntimos).
Ano de 2016: 43.548,10€ (quarenta e três mil quinhentos e euros e dez cêntimos).
18º Como se pode e se pede seja ser comprovado junto da própria Administração Tributária, o BB e a sua ex-mulher CC obtiveram rendimentos, de 1.349.951,97€ (um milhão trezentos e quarenta e nove mil novecentos e cinquenta e um euros e noventa e sete cêntimos) desde 2008 a 2016 o que é totalmente compatível com o património que exibem, designadamente os veículos que foram registados em nome da Arguida ora requerente, e mesmo considerando o valor de cada bem na sua aquisição (como infra também, com rigor, se exporá).
19º Atendendo ao que se vem de expor e demonstrar perante V. Ex.ª" não subsiste qualquer fundamento para que seja mantida a apreensão do veículo de marca e modelo ..., com matricula ..-..-HN, que foi adquirido pelo BB em Fevereiro de 1997,pelo que, desde logo, em data muito anterior a quaisquer factos sob investigação no presente inquérito e em nada com eles poder ser relacionado, sem que deva a Arguida continuar a ser penalizada indevidamente mediante a privação da posse e do uso do que é, justa e legitimamente, da sua propriedade.
20º Nem se pode sugerir, muito menos concluir, que a aquisição daquele veículo consubstanciaria prática do crime de branqueamento de capitais por ter sido registado em nome da Arguida em Dezembro de 2015, pois, como se pode verificar pelos movimentos contabilísticos e bancários da ora requerente, esta não efectuou qualquer pagamento ao BB, tendo o veículo sido registado em nome da Arguida sem que houvesse qualquer movimento financeiro (como demonstrado pelos documentos n.ºs 1 a 13, juntos para Vossa apreciação), porque apenas pelos motivos e objectivos convergentes já esclarecidos e que são até de prática corrente.
21º Quanto ao veículo de marca ..., com matrícula ..-LH-.. e do ano de 2008, foi adquirido pela ... em Março de 2011 a um particular, EE, e vendido por aquela à arguida AA em Dezembro de 2015, também sem que sobre tal venda tenha havido movimento financeiro, estando ainda o valor, no montante de 10.000,00 €, para pagamento.
22º Também que a este veículo respeita, com matrícula ..-LH-.., não houve qualquer movimento financeiro no período de tempo sob investigação, tendo a sua aquisição sido muito anterior, como demonstrado por documentos já juntos aos autos.
23º No que concerne ao veículo de marca ..., com matrícula ..-RA-.., foi adquirido pela Arguida em Fevereiro de 2016 na ..., conforme documento que já consta dos autos e registado a favor da Arguida em Abril desse mesmo ano.
24º Tal veículo foi pago pela Arguida directamente ao vendedor ..., nunca podendo constituir ou representar essa aquisição ocultação e/ou dissimulação do produto de qualquer crime, porque foi a sócia gerente que fez suprimentos à sociedade ora requerente para a capacitar a efectuar tal compra e com valores que obteve em 2015 com o recebimento da já aludida compensação por resolução do seu contrato de trabalho, como também resulta demonstrando (vide documento
25º Resulta também demonstrado, e muito para além da própria presunção de inocência, que não poderia, nem pode também este veículo ter sido utilizado em qualquer operação efeitos de branqueamento de capitais, ou sequer estar relacionado com os alegados crimes sob investigação.
26º Por sua vez, o veículo de marca ..., com matrícula BB, foi adquirido directamente pela Arguida em ..., na ..., a ... - muito depois do período em investigação e não sequer a qualquer empresa Arguida.
27º O veículo em causa é, efectivamente e na prática, pertença de II, filho de BB, que o colocou em nome da Arguida para usufruir, como é perfeitamente legal e legítimo, das condições de redução de despesas a que já supra se aludiu e que são não só perfeitamente legais, como mesmo prática corrente.
28º Importa também aqui vincar que foi II quem procedeu ao seu efetivo pagamento como se demonstra com os movimentos financeiros de transferência da conta pessoal deste para a da sua mãe, e da conta desta para a da Arguida, sempre em total transparência, sem motivo algum para o ocultar, na altura, muito menos nesta sede.
29º II trabalhou cerca de 18 meses em ... na área da sua formação académica, a …, e, quando regressou a Portugal, adquiriu um ... modelo … usado, com a matrícula ..-OT-.. e que, infelizmente, sofreu um acidente grave no início do ano de 2016.
30º A indemnização que II recebeu da seguradora (22.060,00€ e venda do salvado por 14.180,00€) foi pelo mesmo usada/canalizada para a compra do veículo usado com matrícula BB, pelo valor de 30.747,90€.
31º O negócio de aquisição foi feito em nome da Arguida pelas razões já expostas e porque toda a família interpretava e tinha esta empresa como a que ficaria e ficava detentora de todos os veículos relacionados com a família (da família), pelas vantagens daí advindas e, reforce-se, como é perfeitamente legal e lícito.
32º Quanto ao veículo com a marca ... e matrícula ..-PT-.., foi adquirido pelo BB em ..., conforme contrato de que se junta cópia como documento n.º21.
33º A sua entrega ao Arguido foi realizada em 3 de Abril de 2013 (conforme cópia do auto de entrega que se junta como documento n.º 22) e, portanto, em data muito anterior aos factos sob investigação, não havendo sustentação alguma, antes prova em contrário, para que se possa ver nesta aquisição sequer quaisquer indícios de ocultação e/ou dissimulação do produto da prática de qualquer crime.
34º Mais esclarece a Arguida que a aquisição deste veículo, dito de luxo, foi possível e consumada com o rendimento que o BB obteve com a venda das acções que detinha no grupo ... desde a sua subscrição e que em 2011 lhe renderam 283.900,00 €, pagos em prestações durante o ano de 2011 e 2012, conforme comprova pelos movimentos a crédito na sua conta bancária do ....
35º Face a quanto se vem de expor, não pode o simples facto de a Arguida ser proprietária de vários veículos ditos de alta cilindrada indiciar, por si, a prática de qualquer crime, desconsiderando-se o que, em contrário, se demonstra mesmo perante V. Ex." sobre a causa, a forma e a capacidade financeira, bem como respectiva origem dos rendimentos, para a aquisição das viaturas em apreço.
36º A aquisição de cada veículo está plenamente justificada e demonstrada em quanto a caracterizou e a possibilitou financeiramente, e certo é também que nenhum dos veículos.
37º Face a quanto se prova por via documental e se pede mesmo seja comprovado também junto da Autoridade Tributária, resultam demonstrados não só os rendimentos bastantes para a aquisição dos veículos em causa, como a respectiva origem, ao que acresce uma comprovada aquisição reportada a anos anteriores à factualidade sob investigação nos presentes autos, não havendo, face a tanto, por que presumir, contra prova feita, que as viaturas teriam sido adquiridas com lucro proveniente de qualquer actividade ilícita e/ou como forma de branqueamento de capitais ilicitamente obtidos.
Pedindo Vossa apreciação para tudo quanto se vem de expor e demonstrar por via documental, a AA requer a V. Ex. Seja determinado o levantamento da apreensão, com restituição à requerente enquanto legítima proprietária, dos veículos com as matrículas ..-..-HN; ..-LH-..; 40-RA- 67; BB e ..-PT-.., bem como dos veículos ... com matrícula ..-..-HN, ... com matrícula BB, e ... com matrícula ..-PT-..:
Seja, consequentemente, determinada a devolução à requerente do valor de 90.193,00€, depositado em caução e relativo ao veículo com a matrícula ..-LH-..; e a devolução do valor de 87.500,00€, depositado em caução e relativo ao veículo com a matrícula ..-RA-...»
33º Para além dos 22 documentos, para cujo teor, como referenciado naquele requerimento reportado a quase 5 (cinco) anos atrás, aqui se remete, foram requeridas diligências probatórias pela Arguida, ora requerente, como lhe era e é de pleno direito, ainda que coarctada no exercício de plenos direitos e garantias de defesa e no âmbito de um processo equitativo, por se manter a sujeição de inquérito que perdura há quase 9 (nove) anos a segredo de justiça externo (ficando a requerente limitada ao que lhe fosse/seja admitido, ou não, ver de inquérito em que continua a ser visada e, pelo que se expõe, lesada nos seus direitos elementares).
34º Decorridos já mais de 5 (cinco) anos, mesmo quando apresentada prova a contrario de uma presunção de culpa, refutando até objectivamente, concretamente quanto a cada veículo, que se estivesse em face de produtos ou vantagens decorrentes da prática de qualquer crime, para além de requeridas diligências probatórias que mais o corroboravam, persiste a apreensão dos veículos, tendo três deles podido ser levantados, mas mediante o depósito, como caução, pela requerente dos valores por que foram avaliados.
35º Depósito de valores que mais demonstra ainda a capacidade financeira decorrente de rendimentos regulares, próprios e legítimos (legais), na pendência de um inquérito criminal que perdura e se arrasta, em prejuízo de direitos e garantias elementares da requerente há quase 9 (nove) anos.
36º Não estando em causa elementos ou meios probatórios, não se concebe, nem é dado a conhecer e com consistência, em que se sustenta uma “afirmação” em como os veículos, e mesmo quando adquiridos por outrem e/ou em anos (muito) anteriores aos próprios factos sob investigação há já quase 9 (nove) anos, poderiam ser produto ou ser tidos como vantagens da prática de qualquer ilícito típico.
37º Com enfoque na actualidade e sem se poder, também por isso, desconsiderar o contexto de morosidade processual, nem decorridos já praticamente 5 (cinco) anos desde a apresentação do supra transcrito requerimento existe ainda sustentação mesmo que indiciária que permitisse que fosse a requerente acusada da prática de qualquer crime.
38º E, mesmo que o fosse, sem que se vislumbre como, atentos os próprios elementos carreados para os autos pela Arguida e ora requerente, e as diligências probatórias requeridas há já tão significativo tempo (5 anos) junto da titular do inquérito, existisse ainda motivação e sustentação probatória e bastante para que se pudesse, e possa, manter a decisão de apreensão dos 6 (seis) veículos, com prejuízos causados e causandos à sua legítima proprietária.
39º Tão pouco se enquadra o caso concreto no n.º 5 do artigo 186º do Código de Processo Penal, e, assim, para o que se prevê no artigo 228º do mesmo diploma legal, para mais quando o BB, a quem a titular da acção penal pretendia atribuir, ah initio, a prática de facto ilícito, mas sem que também tenha sido acusado de seja o que for nestes autos até a esta data, prestou a caução económica que lhe foi fixada há anos atrás.
40º É de notar que no próprio douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido nos presentes autos em 16 de Dezembro de 2021 (Processo n.º 413/14.0TELSB-Q.L1 - Recurso Penal) não deixou de se atentar, mesmo para o que era objecto de decisão, em que:
«Também não será despiciendo referir que o processo de inquérito tem quase oito anos de investigação (ao que a arguida será alheia, entenda-se) e não tendo ainda sido deduzida a acusação pública.»
41º E, quanto a se estar ou não em face de meio de prova que permitisse a manutenção da apreensão (e, para mais, até uma pretensa venda antecipada dos veículos por mera decisão administrativa), também ali se consignou que “adiantar já que neste particular desiderato, nada se conhece, e não tendo sido aparentemente emitido qualquer parecer nesse ou noutro sentido (quanto ao meio de prova relevante)”, ainda que, como também referido no douto acórdão, não fosse, então, “o cerne da questão “sub ”, considerado aquele que era o concreto objecto do recurso penal em causa.
42º Como se pede respeitosamente a V. Ex.ª, importa atentar nos autos no momento actual, sem prejuízo do que já em ... era demonstrado pela própria requerente e pela mesma requerido para efeitos probatórios, visando a restituição dos veículos e, bem assim, dos valores depositados em caução.
43º E sem que o tempo decorrido de investigação seja despiciendo, muito pelo contrário, como era já merecedor da atenção do Tribunal da Relação de Lisboa, ainda que a concreta questão que lhe fora, então, submetida fosse diversa da manutenção da apreensão de 6 (seis) veículos da Arguida, ora requerente, que nem acusada foi pela prática de qualquer ilícito num inquérito que perdura agora já há quase 9 (nove) anos.
44º A manutenção, nas circunstâncias e momento actuais, a que não pode ser alheio o facto de estarmos em face de inquérito que se arrasta há quase 9 (nove) anos, com apreensão de veículos reportada a 23 de Maio de 2017 (há quase 5 anos), não se coaduna com o disposto no artigo 191º, n.º 1, do Código de Processo Penal, enquanto concretização legal do que se estabelece, desde logo, no artigo 18º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa:
«1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.»
45º Estão em causa restrição e privação de relevo do direito à propriedade, com assento no artigo 62º da Lei Fundamental, para além de protegido no artigo 17º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 10 do Protocolo Adicional à Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, e no artigo 17º, n.º 1, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
46º E, isto, num inquérito em que há muito foi ultrapassado em anos o prazo de duração máxima para respectivo encerramento como pensado e estabelecido pelo Legislador, em manifesta morosidade processual (e, assim, preterição, do direito basilar a um processo justo e equitativo), como já reconhecido pelo Estado Português (Procuradoria-Geral da República), atento o despacho de 4 de Maio de 2020 do Senhor Vice-Procurador-Geral da República (DA n.º 6732/20 — Autos de Aceleração Processual).
47º Pelo que, no caso concreto, uma manutenção da apreensão dos veículos da legítima propriedade da requerente contende seriamente não só com o direito elementar à propriedade, como também com os princípios, direitos e garantias elementares consagrados nos artigos 20º, n.º 4, e 32º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa; nos artigos 10º e 11º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos Humanos; no artigo 6º, n.ºs 1 e 2, e no respectivo n.º 3, alínea a), da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais; no artigo 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos; e nos artigos 47º § 2 e 48º, n.ºs 1 e 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
Pede-se, respeitosamente, a Vossa melhor e justa atenção, enquanto garante do respeito por direitos, liberdades e garantias fundamentais em sede de inquérito criminal, para com quanto se vem de expor e que:
Seja revogada a decisão de apreensão e ordenada a restituição à requerente dos veículos da sua propriedade: com marca e modelo ..., e matrícula ...; com marca e modelo ..., e matrícula ..-PB-..; e com marca e modelo ..., e matrícula ..-PT-...
Por força de revogação da decisão de apreensão, seja determinada a devolução à requerente dos valores que depositou a título de caução para poder levantar os veículos automóveis também da sua legítima propriedade: com marca e modelo ..., e matrícula ..-LH-..; com marca e modelo ..., e matrícula ..-RA-..; com marca e modelo ..., e matrícula ..-..-HN.
P.D.
(…)».
3. Do contexto processual do recurso - as apreensões e estado atual dos bens apreendidos e do inquérito
a. Em 10/05/2017 foi proferido pelo Ministério Público despacho pelo qual foi ordenada busca e apreensão, entre outros, de veículos automóveis pertencentes à ora recorrente, no que ora releva, com a seguinte fundamentação em particular:
«(…)
Foram desviadas para outros fins que não a concretização dos projetos financiados, elevadas quantias monetárias.
Com vista a dissimular e a converter os valores obtidos através da atuação fraudulenta supra descrita, valores que foram efetivamente, pagos por fundos comunitários, BB determinou-se a adquirir veículos de alta cilindrada, na ..., que exportou para Portugal onde foram revendidos por valor inferior ao da sua aquisição, a empresas ou sujeitos que controla ou relacionados com a fraude que desenvolveram.
Tal plano, permite-lhe também obter custos de exercício, diminuir o lucro tributável da ...
Permite-lhe sobretudo, transferir e converter o produto obtido pela fraude comunitária cometida, conforme planeou e quis.
No ano de 2014 a ... revendeu para Portugal 13 veículos automóveis.
Dos extratos bancários da conta titulada pela ... no ... resulta que o dinheiro teve como destino o pagamento das máquinas e equipamentos feitos por empresas portuguesas, as contas pessoais de alguns dos suspeitos (BB, DD, FF, JJ e KK), bem como algumas das empresas de que estes são gerentes em Portugal.
O lucro obtido pela ..., resultante da diferença entre o valor faturado aos projetos e o valor pago pelas máquinas e equipamentos é utilizado para adquirir automóveis de luxo que, posteriormente, são revendidos para Portugal por um valor abaixo do seu preço de custo na ....
As viaturas são importadas por empresas detidas pelos mesmos suspeitos (BB, DD, EE, FF e GG), entre elas a ..., AA, ... e ... e têm como destinatário final empresas indicadas como fornecedoras e os seus sócios, como é o caso da ..., ..., ... e o sócio destas, HH, entre outros.
Tratam-se, pelo menos, dos seguintes veículos:
1. Viatura da marca ..., modelo F151, matrícula ..-PT-.., registada a favor da empresa AA, companheira de BB e que este utiliza, diariamente.
2. Viatura da marca ..., matrícula ..-LH-.., registada a favor da sociedade AA;
3. Viatura da marca ..., matrícula ..-..-HN, registada a favor da sociedade AA;
4. Viatura da marca ..., matrícula ..-RA-.., registada a favor da sociedade AA;
5. Viatura da marca ..., modelo 420D, matrícula BB, registada a favor da AA;
(…)
8. Viatura da marca ..., matrícula ..-PB-.., inicialmente registada a favor de BB e atualmente registada a favor AA;
(…).» - fls. 3607 a 3685.
b. Em .../.../2017 foi dado cumprimento aos mandados de busca e apreensão das referidas viaturas, vindo as apreensões a ser validadas por despacho do Ministério Público de .../.../2017 – fls. 3973 a 3982.
c. Em .../.../2017 foi apresentada pelo IGFEJ e notificada à recorrente a seguinte avaliação de quatro das 6 viaturas que lhe foram apreendidas (fls. 6040 e sg.):
i. ..., modelo F151, matrícula ..-PT-.. – 343.816,00€;
ii. ..., matrícula ..-LH-.. – 90.193,00€;
iii. ..., matrícula ..-RA-.. – 87.500,00€;
iv. ..., matrícula ..-..-HN – 13.000,00€.
d. O veículo ..., matrícula ..-..-HN, viria posteriormente a ser reavaliado em 14.737,74€ - fls. 7715.
e. O veículo ..., modelo F151, matrícula ..-PT-.., veio a ser reavaliado em 29/11/2017 em 225.032,34€ e em 15/09/2022, em 197.000€, vindo a ser entregue pela Polícia Judiciária ao GAB a 05/05/2022 - fls. 11610.
f. Em relação às viaturas da marca ..., modelo 420D, matrícula BB e ..-PB-.., foram afetas provisoriamente ao uso operacional pelo Estado, concretamente, pela Polícia Judiciária, mediante manifestação de interesse nesse sentido por esta entidade, em 28/07/2017, o que seria comunicado à recorrente por notificação de 25/05/2018 – fls. 6046 e sgs., 8510 e sgs. e 8758 e sgs..
g. Em 29/11/2017 os veículos ..., com matrícula ..-LH-.. e ..., com matrícula ..-RA-.. – foram entregues à recorrente contra o prévio depósito à ordem do IGFEG, I.P dos valores correspondentes à sua avaliação, respectivamente, 90.193,00 € (noventa mil cento e noventa e três euros) e 87.500,00 € (oitenta e sete mil e quinhentos euros) – fls. 7274 e sgs..
h. Em 25/11/2020 foi entregue ao arguido BB, enquanto representante da arguida ora recorrente o veículo ..., matrícula ..-..-HN, mediante depósito da quantia de 14.737,74€ - fls. 11352.
i. Notificado BB por carta/notificação de 29/05/2023 nos termos do disposto nos arts. 12º e 13º da L. 45/2011, de 24/06 da nova avaliação em relação ao veículo ..., modelo F151, matrícula ..-PT-.., no valor de 197.000,00€, possibilitando-se reavê-lo mediante depósito dessa quantia, não foi manifestado interesse nesse sentido nos termos do nº 4 daquele art.º 12º – fls. 11958 e sgs..
j. Por despacho judicial de 14/09/2023, sob promoção do Ministério Público, foi concedida autorização ao GAB para proceder à venda antecipada deste veículo pelo valor da última avaliação – fls. 12027,a).
k. Em 13/10/2023 foi suspensa a autorização de venda antecipada do referido veículo até que seja proferida a decisão no presente recurso – fls. 12114.
l. Por requerimento do arguido BB de 24/04/2020 e da arguida aqui recorrente AA entrado em 27/04/2020, foram iniciados incidentes de aceleração processual nos termos previstos no art.º 276º do Código de Processo Penal, vindo a ser proferida em 30/04/2020 naquele primeiro incidente decisão do Senhor Vice-Procurador Geral da República, pela qual se concluiu e determinou o seguinte:
«(…).
Nos termos disposto no artigo 276.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, é de 12 meses o prazo para o encerramento do inquérito, contando-se tal prazo a partir do momento em que este passe a correr contra pessoa determinada ou se tiver verificado a constituição de arguido, a que acresce, no caso, o período de suspensão de contagem do prazo referido no n.º 5 do mesmo normativo.
Assim, tendo em conta aquele marco temporal, verifica-se que o prazo legal previsto para a duração do inquérito está, efetivamente, há muito ultrapassado, derivando não apenas da demora no cumprimento dos pedidos de cooperação judiciária internacional, mas também da falta de meios com quem se depara a Polícia Judiciária.
Tendo em consideração o estado atual da investigação, não pode deixar de entender-se que, em nome de uma boa e oportuna administração da justiça, deve o Ministério Público conceder prioridade ao encerramento dos presentes autos.
*
Nestes termos e na sequência do exposto, deferindo o pedido de aceleração:
a. Determina-se o encerramento do inquérito, no prazo de 12 meses, prazo que só poderá ser prorrogado, a título excecional, mediante requerimento prévio do magistrado titular e informação hierárquica;
b. Decorridos que estejam seis meses, deverá ser-nos remetida breve informação sobre o estado da investigação;
c. Tais prazos deverão ser contados a partir da data da cessação de efeitos do disposto no artigo 7.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03;
d. Não se considera justificada nem necessária, por ora, a adoção de quaisquer medidas de natureza disciplinar ou gestionária.».
Foi mantida esta decisão também em relação ao segundo incidente de aceleração processual requerido pela arguida aqui recorrente, por despacho de 04/05/2020.
Foram prestadas nesse apenso informações acerca do estado da investigação, vindo o prazo de 12 meses inicialmente concedido a ser sucessivamente prorrogado por igual período, por decisões de 27/05/2021, 26/05/2022 e de 24/05/2023, mediante requerimento formulado pelos Senhores Procuradores titulares do inquérito.
O último destes despachos do Senhor Vice-Procurador Geral da República, de 24/05/2023, tem o seguinte teor (transcrição):
«Vieram os Senhores Magistrados titulares dos autos de inquérito n.º 413/14.0TELSB, que corre termos no Departamento Central de Investigação e Ação Penal, decorrido que se mostra o prazo concedido no despacho datado de 26/05/2022, requerer que seja concedido novo prazo não inferior a 12 meses para a conclusão da investigação.
Para o efeito, invocam que se encontra a ser analisada peia Equipa Mista a vasta documentação transmitida em 10/04/2023, pelas autoridades francesas, em execução da D.E.I., com vista à seleção da que se afigure relevante para a prova dos factos em investigação e eventual tradução. Importará também concluir a seleção de todos os ficheiros de correio eletrónico apreendidos no decurso das buscas. Por outro lado, apesar terem sido inquiridas mais 30 testemunhas, será necessário proceder a novas inquirições
de testemunhas, cuja pertinência dependerá da referida análise em curso. Ainda, mostra-se necessário proceder à constituição como arguidos de, pelo menos, 16 pessoas (singulares ou coletivas) e ao interrogatório (inicial ou complementar) de cerca de 70 arguidos (pessoas singulares e coletivas).
Concluem salientando que a especial complexidade dos autos, compostos, por ora, por 33 volumes de autos principais, 128 apensos bancários, 80 apensos de busca e largas dezenas de apensos temáticos, designadamente relatórios periciais, interceções telefónicas, correio eletrónico, apensos do Gabinete de Recuperação de Ativos e outros de incidentes.
Alertam ainda para a necessidade de o número elevado de interrogatórios ainda a realizar, além da exigente preparação que demandam, poderem implicar tempo para deslocações em diferentes locais do território continental.
Requerem, pois, que seja concedido novo prazo de 12 meses para a conclusão da investigação, pedido que teve a concordância da hierarquia imediata.
Analisado, mais uma vez, o curso do procedimento não pode concluir-se que o atraso na conclusão do inquérito se deva a qualquer situação de manifesta incúria dos serviços do Ministério Público ou do órgão de polícia criminal coadjuvante, mas antes às vicissitudes próprias inerentes à investigação de factos, declarada de especial complexidade, a qual necessitará de um prazo em conformidade para a realização das diligências em falta, a que previsivelmente se seguirá a prolação do despacho final de inquérito.
Assim, determino:
a) nova prorrogação, por 12 (doze) meses, do prazo de encerramento do inquérito;
b) que tendo em conta a natureza do inquérito e o trabalho até aqui desenvolvido, não se considera justificada nem necessária, por ora, a adoção de quaisquer medidas de natureza disciplinar ou gestionária.
(…)».
m. O inquérito teve início em 16/10/2014 – fls. 2 -, tendo começado a correr contra pessoas determinadas desde 17/11/2014 – fls. 49 a 54.
n. Não é conhecido à data despacho final de encerramento do inquérito.
3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
3.1 QUESTÃO PRÉVIA
Importa ter presente o âmbito circunscrito do objeto do recurso, em conformidade com a questão única a decidir que formulamos.
Na verdade, está em causa a apreensão de veículos nos termos do disposto no art.º 178º do Código de Processo Penal ocorrida há mais de 6 anos atrás, por despachos há muito transitados em julgado.
Daí que não estejam em causa os fundamentos dessa apreensão, mas tão somente a demora no desfecho do processo como fundamento autónomo da revogação dessa apreensão.
Nessa medida, e muito embora recorrente e Ministério Público se tenham espraiado no recurso e resposta ao mesmo por questões várias, incluindo a da existência de prova indiciária dos factos investigados, nada disso será objeto da nossa apreciação que não pode deixar de se cingir ao recurso e à única questão que ressuma do mesmo por decidir.
3.2 DAS APREENSÕES EM PROCESSO PENAL – PRAZO MÁXIMO DE DURAÇÃO E DIREITOS DO VISADO
A recorrente vem na prática dizer ser incompatível com os seus direitos constitucionalmente protegidos, de propriedade, a um processo justo e equitativo e em que é presumida inocente, a apreensão durante mais de 6 anos e meio de várias viaturas automóveis de elevado valor, sem que o processo passe da fase de inquérito.
Recorre, por isso, do despacho que indeferiu o requerimento formulado junto do Senhor Juiz de Instrução Criminal para levantamento dessa apreensão e devolução das cauções entregues para reaver três dos veículos apreendidos.
O Ministério Público veio defender, em suma, que se mantém o interesse na apreensão, não haver prazos perentórios que tenham sido excedidos e que o processo tem excecional complexidade, reconhecida por despacho judicial, mostrando-se justificada tal demora. Mais aduz que nenhum dos direitos de defesa da recorrente resulta afetado, sendo que o direito de propriedade, apesar da tutela constitucional, não é um direito absoluto, cabendo dentro dos seus limites imanentes a privação de fruição derivada da apreensão em processo de inquérito pela prática de crimes.
Quid iuris?
Vejamos antes de mais o quadro legal.
A apreensão aqui em causa foi realizada por ordem do Ministério Público com fundamento no disposto nos arts. 178º do Código de Processo Penal e 110º e 111º, do Código Penal.
Ou seja: entendeu-se que se tratava de bens com relevo para a prova mas, ao mesmo tempo, de bens que, por se considerarem produto e vantagem da prática criminosa investigada, seriam suscetíveis de vir a ser declarados perdidos a favor do Estado.
Como resulta do estatuído no art.º 178º/1 do Código de Processo Penal, a apreensão de objetos, nos quais se incluem os documentos, visa, entre o mais, a preservação da prova do crime, garantindo a sua integridade e a conservação do seu valor comunicativo e probatório; processualmente, a apreensão visa ainda garantir a execução do confisco dos instrumentos, produtos e vantagens decorrentes da prática do crime.
Naquela primeira vertente, como nos diz João Conde Correia (10), a apreensão estabelece sobre os bens apreendidos um vínculo de indisponibilidade com vista à sua futura utilização processual, sem o qual esses bens podem ser destruídos, desaparecer ou ser adulterados, perdendo-se a aptidão probatória que encerram, assim prejudicando a descoberta da verdade e o consequente exercício do ius puniendi estadual.
Na outra vertente, a apreensão de bens visa garantir que, findo o processo, proferida decisão condenatória, o agente não tenha acesso aos instrumentos que lhe permitiriam prosseguir a prática criminosa, por um lado, e por outro, que não retire do crime vantagens, perdendo, pois, tudo quanto seja seu produto ou ganho, e assim tornando efetiva a máxima de que «o crime não compensa».
Neste quadro, estamos perante medida processual antecipatória da declaração de perda de bens a favor do Estado que, passando pela apreensão de bens pertencentes a suspeitos, arguidos ou terceiros, como previsto nos arts. 109º a 111º, do Código Penal, retirando-os das respetivas esferas de disponibilidade, tem tanto de necessário em vista da eficácia do processo penal, como de restrição grave do direito de propriedade privada.
Nos termos do art.º 62º/1 da Constituição da República Portuguesa, «A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição».
Preceitua ainda o art.º 1º do 1º Protocolo Adicional à Convenção Europeia dos Direitos Humanos que: «Qualquer pessoa singular ou coletiva tem direito ao respeito dos seus bens. Ninguém pode ser privado do que é sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições previstas pela lei e pelos princípios gerais do direito internacional.».
E muito embora com a Constituição de 1976 este direito fundamental de propriedade haja sido deslocado do elenco dos direitos, liberdades e garantias para o dos direitos económicos, sociais e culturais, como nos diz Rui Medeiros, (11) «naquilo que representa um espaço de autonomia perante o Estado, o direito de propriedade reconduz-se a um direito de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias», compartilhando, pois, do seu regime específico por força do preceituado no art.º 17º da Constituição da República Portuguesa. (12)
Integra o conteúdo básico da garantia constitucional da propriedade enquanto direito fundamental, o direito de usar, fruir (que se considera não resultarem de forma expressa da previsão constitucional) e dispor, mas também o de não ser arbitrariamente privado da propriedade.
Não é, está bom de ver, um direito absoluto, desde logo na sua previsão constitucional, pois que é garantido «nos termos da Constituição», diferentemente, de resto, do que sucede com os direitos, liberdades e garantias que só podem ser restringidos «nos casos expressamente previstos na Constituição» (art.º 18º/2).
As apreensões em processo penal, quando justificadas nos termos da lei e ordenadas ou autorizadas pela autoridade judiciária, não podem, assim, deixar de constituir um limite imanente ao direito de propriedade, sendo, portanto, conformes à Constituição. (13).
Não, é, por isso, incompatível com a tutela constitucional da propriedade a compressão desse direito desde que seja identificável uma justificação assente em princípios e valores também eles com dignidade constitucional; ponto é que essas restrições se afigurem necessárias à prossecução de outros valores com tutela constitucional, e essas limitações se mostrem proporcionais em relação aos valores salvaguardados.(14)
Neste quadro, a limitação no uso e fruição desses bens pelo seu proprietário decorrente da sua apreensão em processo crime, não pode deixar de obedecer a critérios de necessidade e proporcionalidade, tal como qualquer restrição de direitos, liberdades e garantias, por força do art.º 18º/2 da Constituição da República Portuguesa ex vi do respetivo art.º 17º.
Norma nuclear na definição do regime constitucional específico dos direitos, liberdades e garantias, e a propósito da força dos mesmos na ordem jurídica, dispõe o art.º 18º da Constituição da República Portuguesa que:
«1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstrato e não podem ter efeito retroativo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.» (negrito nosso).
Dos citados nºs 2 e 3 do art.º 18º decorre que podendo haver por via de lei ordinária restrição aos direitos, liberdades e garantias, para que seja a mesma constitucionalmente legítima tem que cumprir cumulativamente as seguintes condições:
a) ser a restrição, ela própria, expressamente admitida ou imposta pela Constituição – nº 2, 1ª parte;
b) visar a restrição salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido – nº 2, in fine;
c) ser a restrição exigida por essa salvaguarda, apta para alcançar esse efeito e limitar-se à medida necessária para alcançar esse objetivo – nº 2, 2ª parte;
d) não aniquilar o direito restringido, atingindo o seu conteúdo essencial – nº 3, in fine.
A condição indicada em c) corresponde ao princípio da proporcionalidade, também chamado de princípio da proibição do excesso, que se desdobra em três subprincípios:
princípio da adequação ou da idoneidade - as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos;
princípio da exigibilidade, da necessidade ou da indispensabilidade - essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos onerosos para os direitos, liberdades e garantias para alcançar o mesmo desiderato;
princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou da justa medida - não poderão adotar-se medidas legais restritivas excessivas, desproporcionadas em relação aos fins obtidos.
Em qualquer caso, há um limite absoluto para a restrição de direitos, liberdades e garantias que consiste no respeito do conteúdo essencial do preceito que os consagra. (15)
Como decorre ainda do disposto no nº 1 do citado art.º 18º e no art.º 204º, da Constituição da República Portuguesa, inserido nos poderes públicos acometidos ao Estado, o poder jurisdicional, ou seja, o juiz, está obrigado a decidir o direito para o caso em conformidade com as normas garantidoras de direitos liberdades e garantias. (16)
Ora, a previsão legal da perda de bens a favor do Estado que constituam produto ou vantagem do crime associada à sua prática, constitui em boa verdade, não uma restrição, mas uma evicção do direito de propriedade sobre determinado bem, na medida em que dela resulta a desapropriação do bem, em homenagem a valores e exigências de realização da Justiça, de acordo com uma política criminal comunitariamente aceite e sujeita a finalidades prevenção geral da criminalidade, visando essencialmente demonstrar a efetividade do aforismo: «o crime não compensa». Trata-se de eliminar o benefício patrimonial ilicitamente obtido, operando «a restauração da ordenação dos bens correspondente ao direito.» (17)
Isto, no quadro de tutela do direito de todos à segurança, constitucionalmente consagrado, a par do direito à liberdade, no art.º 27º/1 da Constituição da República Portuguesa.
Nessa medida, está imediata e diretamente sujeita à regra da proporcionalidade, devendo limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, segundo o indicado princípio da proibição do excesso, em todas as dimensões elencadas.
Regra que vale também na vertente processual, de antecipação desta consequência do crime ou para efeitos de obtenção de prova, com a apreensão de bens decretada nos termos do art.º 178º do Código de Processo Penal, pela qual se opera uma primeira limitação ao direito de propriedade, privando o seu titular da respetiva utilização e fruição enquanto perdurar a medida, privação essa que, não visando a obtenção de prova, será antecipatória daquela desapropriação ou ablação definitiva do bem da sua esfera patrimonial, com o trânsito em julgado de decisão condenatória que assim o determinar.
A observância da proporcionalidade ou da proibição do excesso deve verificar-se a dois níveis: o da previsão legal, geral e abstrata, e do caso concreto ao qual essa previsão se aplica.
Assim, em abstrato, evidencia-se a necessidade, a adequação e a proporcionalidade da previsão da medida processual de apreensão de bens tendo em vista estes desígnios de prova e de prevenção da criminalidade, posto que sem a disponibilidade do bem numa fase mais precoce do processo, resultaria desde logo comprometida a descoberta da verdade; por outro lado, caso se deixasse para final a execução do decretamento de perda de vantagens e produtos do crime, seria de esperar o esvaziamento patrimonial daquele que pudesse vir a responder por essa perda, permitindo-lhe beneficiar de vantagens adquiridas ilicitamente; interesses de descoberta da verdade e realização da Justiça, na garantia a todos do direito constitucionalmente protegido à segurança, justificam, assim, a restrição implicada na apreensão de bens decretada em processo penal.
Em concreto, a restrição imposta aos titulares dos bens sujeitos a apreensão deverá cingir-se ao estritamente necessário para prossecução dos desígnios que serve, de conservação da prova e de garantia da perda a favor do Estado, a final, do produto e da vantagem do crime, quer quanto à sua extensão, quer quanto à forma de execução, quer ainda quanto à duração da indisponibilidade sobre o bem.
No que concerne especificamente à duração da indisponibilidade do bem, importa notar que inexiste norma legal que imponha um prazo máximo de duração da mesma, nomeadamente, em função das várias fases processuais, como se verifica no caso das medidas de coação, mediante o disposto nos arts. 215º e 218º, do Código de Processo Penal.
Na mesma senda, inexiste qualquer indexação da duração da apreensão aos prazos de duração máxima do inquérito, previstos no art.º 276º do Código de Processo Penal em função da situação processual do arguido, da gravidade dos crimes ou da excecional complexidade do próprio processo.
De resto, conforme é hoje pacífico na doutrina(18) e na jurisprudência(19), os prazos máximos de duração do inquérito não são perentórios, sendo válidos os atos processuais praticados ainda que depois de findo o prazo legal previsto para a duração do inquérito; o mesmo é dizer, o termo do prazo não tem qualquer efeito preclusivo, mormente no que respeita à apreensão de bens que houver sido decretada ou qualquer outro ato processual (seja de recolha de prova, de aplicação de medidas de coação ou de garantia patrimonial).
Neste sentido, veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional 294/2008(20) que concluiu pela não inconstitucionalidade do art.º 276º do Código de Processo Penal quando interpretado no sentido de que a apreensão de bens se mantém válida não obstante praticada para lá do prazo máximo do inquérito e ainda que não tenha sido deduzida acusação.
Temos, assim, que as consequências do decurso do prazo de inquérito sem que seja proferido despacho final são de ordem meramente administrativa, restringindo-se à possibilidade de fixação de um período necessário para conclusão do inquérito ou avocação do processo, num e noutro caso, pelo superior hierárquico imediato do titular do processo, ou de despoletar incidente de aceleração processual, nos termos dos arts. 276º/6 a 8 e 108º e sgs., do Código de Processo Penal; uma outra consequência, será a do fim do segredo de justiça interno nos termos do art.º 89º/6, do Código de Processo Penal.
E tal não bule necessariamente com o respeito pela proporcionalidade inerente a qualquer restrição de direitos fundamentais e análogos, seja à luz da Constituição da República Portuguesa, como já analisado, seja ainda à luz da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
Assim é que, também com referência ao art.º 1º do Protocolo Adicional à CEDH, o confisco de bens adquiridos ilicitamente como garantia de que «o crime não compensa» (crime does not pay), tem vindo a merecer apoio na jurisprudência de Estrasburgo como essencial no combate à criminalidade económico-financeira e organizada, conforme resulta patente, entre outros, nos casos LL c. Estónia, 2015, §103 e Yildirim c. Itália (decisão), 2003, e Veits c. Estónia, 2015, § 71; mais recentemente, o caso Ulemek c. Sérvia (dec), 2021, §65.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos procura, no entanto, delimitar as restrições admissíveis ao direito de propriedade em contexto de procedimento criminal com recurso também aos princípios da necessidade e da proporcionalidade.
Assim, para aferir da proporcionalidade da medida de apreensão de bens à luz das obrigações decorrentes para os Estados do art.º 1º do Protocolo nº 1, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, pressuposta a observância de determinadas regras procedimentais, (21) erige como fator fundamental a sua duração, (22) mas também:
- a necessidade de manter a medida tendo em conta o decurso e fase do procedimento criminal e as consequências para as partes interessadas; (23)
- o comportamento processual do titular do bem afetado, por um lado, e da autoridade estadual responsável pela ingerência, pelo outro; (24)
- a existência de remédios efetivos, incluindo o acesso a tribunais, pelos quais a pessoa afetada possa desafiar a manutenção da medida apreensora. (25)
Vê-se, assim, que também a jurisprudência de Estrasburgo não confere valor definitivo e absoluto à duração da medida de apreensão do bem como fator de aferição da proporcionalidade da manutenção da mesma; antes tende a, tomando esse ponto de partida, escrutinar outros fatores de contexto que, em conjugação com a duração da medida, permitem extrair conclusões sobre a observância da proporcionalidade na restrição do direito de propriedade implicada nessa apreensão. (26).
*
Aqui chegados, a questão que se põe com referência ao caso em mãos é então a de saber se, não sendo perentórios nem preclusivos os prazos máximos de duração do inquérito, tão pouco existindo prazos máximos de duração da medida processual de apreensão de bens adotada nessa fase, pode revogar-se a apreensão de bens ocorrida há 6 anos e 9 meses atrás por não ter sido ainda proferido o despacho final de encerramento do inquérito com fundamento na violação do princípio da proporcionalidade na restrição assim imposta ao direito de propriedade, do direito a um processo justo e equitativo, e do princípio da presunção de inocência?
Ora, nas circunstâncias concretas verificadas nos presentes autos, pese embora a reconhecida dilação temporal na conclusão do inquérito, entendemos que esta questão merece ainda uma resposta negativa.
Mas vejamos melhor, tendo presente que uma decisão nesta matéria não prescinde da avaliação dos detalhes do caso concreto, na perspetiva de poder, ou não, verificar-se uma situação de violação de direitos fundamentais e garantias de defesa do visado com a apreensão.
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3.3 O CASO EM MÃOS
Desde logo, importa afastar a finalidade probatória que justificou também a apreensão cuja manutenção é objeto do recurso, a qual há muito se encontra postergada, como demonstra a circunstância de dois dos veículos apreendidos terem sido afetados ao uso público e três outros terem sido devolvidos à recorrente contra o pagamento do valor em que foram avaliados, nos termos do art.º 12º/4 da L. 45/2011, de 24/06, que dispõe: «O proprietário ou legítimo possuidor de um bem que não constitua meio de prova relevante pode requerer à autoridade judiciária competente a sua entrega contra o depósito do valor da avaliação à ordem do IGFEJ, I. P.» (negrito nosso).
De resto, instada a Polícia Judiciária, Unidade Nacional de Combate à Corrupção, encarregue da investigação, a pronunciar-se acerca da afetação de utilidade pública ou venda antecipada dos veículos, em informação de 23/09/2020, exarou expressamente que:
«No entendimento da investigação, não existe qualquer impedimento em termos
probatórios que obste à afetação de utilidade pública ou venda antecipada dos quatro veículos identificados.
Encontram-se já carreados para os autos elementos probatórios suficientemente
indiciadores da prática dos crimes de fraude na obtenção de subsídio e da utilização do produto da sobrefaturação da ... na aquisição dos veículos apreendidos nos autos, existindo a elevada probabilidade de virem a ser declarados perdidos a favor do Estado.» - cfr. fls. 10822.
O Ministério Público secundou esta informação, manifestando a sua concordância por despacho de fls. 10829.
Assim, afastado o interesse probatório justificativo da apreensão destas viaturas, podemos concluir que, com a manutenção dessa apreensão, está apenas em causa a garantia da perda do produto e vantagem do crime, nos termos do disposto no art.º 110º do Código Penal.
E quanto a esta finalidade, dúvidas não podem restar de que se mantém necessária e adequada a apreensão decretada.
Importa ter presente, como já referido, que não está em causa apreciar neste recurso da verificação de indícios da prática de crimes ou do despacho que decretou a apreensão dos veículos reclamados pela recorrente, mormente a associação dos mesmos à prática criminosa (conclusão 8.), posto que as decisões há muito tomadas sobre essa matéria, transitaram em julgado, como é, de resto, reconhecido em 44º da motivação do recurso em análise.
A tónica do recurso é, nesta senda, o tempo de demora no desfecho do inquérito e seus reflexos na manutenção da apreensão de bens que afeta a recorrente.
Ora, ao contrário do que genericamente vem afirmado no recurso, essa demora não arreda «a existência de indícios concretos e bastantes da prática de qualquer crime que sequer tivessem efectivamente justificado a apreensão em si.» - 45º da motivação do recurso.
Assim, o decurso do tempo não tem o condão de anular, nem os indícios recolhidos ao tempo das decisões tomadas com base neles, nem os indícios posteriormente recolhidos em reforço dos primeiros, muito menos aquelas decisões que, como referido, transitadas em julgado, se mostram vigentes.
Não será despiciendo notar a este propósito que foi já proferido nos autos, em 25/05/2017, despacho judicial, transitado em julgado, de aplicação de medidas de coação, com sujeição de BB a prisão preventiva, segundo se indicia - e não vem contrariado no recurso, como se vê nas conclusões 8. e 9. -, o beneficiário efetivo das viaturas; a sociedade recorrente, conforme se considerou fortemente indiciado, apesar de ter como gerente a sua ex-mulher, CC, seria controlada também pelo próprio, tendo os veículos aqui em causa sido apreendidos na sua posse, e na residência comum do casal – factos indiciados em 24., 347. a 365., e autos de busca e apreensão.
Uma das viaturas devolvidas contra o depósito do valor da sua avaliação, foi entregue a BB - fls. 11352 – e as notificações relativas ao destino da viatura de marca ..., têm vindo a ser-lhe também dirigidas - fls. 11958 e sgs..
No aludido despacho judicial concluiu-se pela verificação de fortes indícios da prática por aquele arguido, por si e através das sociedades comerciais criadas para o efeito, entre as quais a aqui recorrente, de factos subsumíveis aos crimes de fraude na obtenção de subsídio previsto e punido pelos arts. 3º, 8º e 36º/1, a), 2, 3 e 5, a) do D.L. 28/84, de 20/01, com referência ao art.º 11º do Código Penal, punido com pena de prisão de dois a oito anos e a pena acessória de dissolução da sociedade; e do crime de branqueamento, p e o no art.º 368º-A, nº1 (com referência ao art.º 1º da L. 36/94 de 29/9) e 2, do Código Penal, punido com pena de prisão de dois a doze anos – cfr. fls. 4597 a 4735.
Veja-se em particular a factualidade indiciada sob os pontos 347. a 365.
Os desenvolvimentos ulteriores do processo, como decorre do escrito pelo Ministério Público na oposição ao requerido levantamento da apreensão formulado junto do Juiz de Instrução Criminal, reiterado na resposta ao recurso, levam a crer que com grande probabilidade será posto fim ao inquérito com dedução de acusação pública.
*
Dito e posto isto, não pode escamotear-se que, mesmo havendo nos autos fortes indícios de que estão em causa viaturas adquiridas com o produto do crime investigado, constituindo essa aquisição em si mesma também a prática de um crime de branqueamento, a sua apreensão sem a dedução de uma acusação dura por tempo excessivo em relação às regras legais relativas aos prazos máximos de duração da fase de inquérito, mas também em relação à normalidade das situações.
A verdade é que, como resulta dos incidentes de aceleração processual ainda pendentes, foram esgotados e ultrapassados todos os prazos legais de conclusão do inquérito, assim como os prazos concedidos pela hierarquia do Ministério Público para a sua finalização.
Todavia, à parte essa objetiva demora no encerramento do inquérito, não cremos poder extrair-se desse facto, enquadrado pelo demais circunstancialismo que envolve a manutenção da apreensão posta em crise, uma violação dos direitos e garantias processuais que assistem à recorrente, mormente os enunciados no recurso:
- princípio da presunção de inocência previsto pelo art.º 32º/2 da Constituição da República Portuguesa - «Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa» - e art.º 6º/2 da CEDH - «Qualquer pessoa acusada de uma infração presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada»;
- direito a um processo justo e equitativo com previsão nos arts. 20º/4 da Constituição da República Portuguesa - «Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo» e 6º/1, 1ª parte, da CEDH - «Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. (…).». (27)
Isto porque, tratando-se de medida provisória antecipatória da definitiva declaração de perda a favor do Estado, não resulta da sua aplicação e manutenção no decurso da investigação qualquer comprometimento ou violação do princípio da presunção de inocência, posto que, feita em homenagem aos interesses da descoberta da verdade e realização da Justiça, também eles constitucionalmente tutelados, apoia-se na verificação de indícios da prática de um crime, ainda sem caráter definitivo, mas tendo em vista probabilidade da definitividade de uma decisão final condenatória, que fará por fim cessar aquela presunção; constitui ademais a única forma de garantir a eficácia prática desse mesma decisão.
Por fim, não se divisa em que é que a apreensão decretada e sua manutenção diminua ou comprometa o direito a um processo justo e equitativo, posto que não deixam de estar assegurados à recorrente mecanismos de proteção dos seus direitos, nomeadamente do seu direito de propriedade, como ocorre com a sua audição acerca da avaliação e afetação dos veículos apreendidos à utilização pública ou sobre a sua venda antecipada – arts. 12º e 13º da L. 45/2011, de 24/06; sobressai ainda a faculdade que lhe é concedida de recuperar a disponibilidade do bem contra o depósito do valor correspondente resultante da sobredita avaliação – art.º 12º/4 -, estando em qualquer caso assegurado um direito indemnizatório caso a decisão a final lhe seja favorável e implique a restituição do bem – art.º 18º.
Ainda nesse âmbito das garantias de um processo justo e equitativo se pode enquadrar a pendência a requerimento da recorrente, desde abril de 2020, de dois incidentes de aceleração processual, em que a um nível hierárquico superior do titular do inquérito é feito um criterioso e regular acompanhamento da evolução do processo e das razões da sua não conclusão dentro dos prazos que vão sendo concedidos.
Por fim, o requerimento que a aqui recorrente formulou junto do Juiz de Instrução Criminal para revogação da apreensão e o recurso que interpôs para esta Relação da decisão de indeferimento aí proferida, que agora apreciamos, são reveladores de um acesso amplo ao processo e à garantia de poder desafiar a manutenção da medida de apreensão, nomeadamente com base na demora excessiva de uma decisão final de encerramento do inquérito.
Inexiste, pois, neste particular, até ao momento presente, violação do direito a um processo justo e equitativo.
Conquanto, continue a ser permitido à recorrente suscitar a questão perante o Tribunal caso se prolongue temporalmente a situação processual atual, por forma a obviar à perpetuação inconsequente desse status quo, tudo sem embargo de eventual responsabilização do Estado por prejuízos que decorram para as pessoas afetadas da demora do processo, por violação, entre outros, do direito a que esta causa seja objeto de decisão em prazo razoável, nos termos previstos nos arts. 6º/1 da CEDH e 20º/4, da Constituição da República Portuguesa.
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Ainda quanto à suscitada violação do princípio da proporcionalidade na restrição do direito de propriedade consagrado no art.º 62º/1 da Constituição da República Portuguesa e no art.º 1º do 1º Protocolo adicional da CEDH, tal como acima se expendeu, encontra-se constitucionalmente legitimada a sua compressão quando em causa estão normas que tutelam interesses de política criminal e de realização da justiça na prevenção e punição da criminalidade, protetoras do direito de todos à segurança, constitucionalmente, a par do direito à liberdade, como previsto no art.º 27º/1 da Constituição da República Portuguesa.
Importa, outrossim, que essa compressão se faça dentro dos limites traçados pelos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, por aplicação do disposto no art.º 18º/2 da Constituição da República Portuguesa (ex vi do art.º 17º), os quais estão também subjacentes aos fatores considerados pela jurisprudência de Estrasburgo nesta matéria, acima enunciados.
Como resulta do que ficou já dito, mantém-se no momento atual a necessidade da apreensão decretada em maio de 2017 para os fins do processo, enquanto garantia da perda a final a favor do Estado do produto e vantagem do crime, a qual continua a ser adequada a alcançar essa finalidade.
E embora se reconheça como excecional a duração da apreensão sem que seja deduzida uma acusação, cremos estar ainda assegurada no momento presente a proporcionalidade da sua manutenção, sem prejuízo de reavaliação futura caso a fase de inquérito se venha a prolongar e perpetuar além do momento em que se completarem 10 anos sobre o seu início, a 17/11/2024.
Expliquemos porquê, tendo presentes os úteis critérios fornecidos pela jurisprudência de Estrasburgo, acima enunciados.
Assim, para além do referido quanto a ter sido assegurado à recorrente o direito a um processo justo e equitativo, não pode descurar-se que houve já uma pronúncia judicial acerca dos factos, julgando-os fortemente indiciados, com aplicação de medidas de coação.
Por outro lado, se é verdade que não vemos na conduta processual adotada pela recorrente, contributo significativo na demora registada quanto ao desfecho do processo, também não vemos do lado do Ministério Público, que titula o processo nesta fase, qualquer tipo de inércia inexplicável ou indícios de um intuito de perpetuação da medida apreensora decretada, sem qualquer justificação.
Conforme se pode colher das informações que têm sido prestadas pelos Magistrados titulares do inquérito no âmbito do incidente de aceleração processual, as razões desta dilação processual, prendem-se com fatores de variada ordem, que vão desde a necessidade de recurso a instrumentos de cooperação judiciária internacional, como cartas rogatórias e Decisões de Investigação Europeia, de execução consabidamente demorada, até à necessidade de tratamento técnico especializado dos muitos documentos já recolhidos, passando pela falta de recursos humanos e materiais, como é assumido na primeira dessas informações:
«6.8. Em suma, podemos concluir, em face do expendido que a falta de meios humanos nas unidades da Polícia Judiciária referidas tem sido a principal causa da pouca celeridade da investigação, sendo que a baixa por doença da senhora funcionária judicial que tramitava o processo também não pode ser ignorada, tendo em conta que os funcionários judiciais que a têm substituído se depararam com um processo de grandes dimensões que desconheciam e daí algumas dificuldades, tanto mais que não deixaram de tramitar outros processos.» - fls. 21 do apenso de aceleração processual.
Na verdade, estes fatores associados à excecional complexidade do processo traduzida no volume processual acumulado de documentação física e eletrónica, com necessidade de cruzamento de dados, que teve pelo meio os constrangimentos derivados da Pandemia Covid 19(28), os quais perdurariam por cerca de um ano e meio, sem olvidar a assinalada necessidade de recurso a instrumentos de cooperação judiciária internacional – carta rogatória e Decisão Europeia de Investigação – mercê da transnacionalidade da factualidade investigada (para o que o legislador nacional prevê inclusivamente suspensão dos prazos de duração do inquérito nos termos do nº 5 do art.º 276º do Código de Processo Penal), estarão na origem deste inusitado prolongamento da investigação por mais de 9 anos.
Neste quadro circunstancial, tendo também presente os mecanismos de salvaguarda da integridade e uso dos bens apreendidos, implementados no caso concreto por aplicação da L. 45/2011, de 24/06, entendemos que no momento atual, sempre sem prejuízo de ulterior reavaliação a manter-se este estado de coisas, a demora assim registada no andamento do processo, não se apresenta num excesso violador da proporcionalidade na restrição ao direito de propriedade da recorrente.
Somos, por isso, a entender manter-se o juízo de necessidade, adequação e, no momento atual, ainda o de proporcionalidade quanto à medida de apreensão de bens da recorrente decretada nos termos do disposto no art.º 178º do Código de Processo Penal e executada a .../.../2017, como antecipação e garantia da futura declaração de perda a favor do Estado por via do estatuído no art.º 110º do Código Penal, no pressuposto de que essa perda ocorrerá com grande probabilidade e que a fase de inquérito terá para breve o seu desfecho, assegurando-se à recorrente, caso tal não suceda, a faculdade de voltar a suscitar a questão junto do Tribunal.
Pelo que, e em face de tudo o exposto, improcede o recurso.
III- DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam as Juízas do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, mantendo-se o despacho recorrido.
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Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a 3 (três) unidades de conta - arts. 513º/1 do Código de Processo Penal, 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma.
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Lisboa, 05 de março de 2024
Ana Cláudia Nogueira
Mafalda Sequinho dos Santos
Ester Pacheco dos Santos
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(1) Cfr. acórdão de fixação de jurisprudência 7/95 do STJ, de 19/10/1995, in Diário da República – I Série, de 28/12/1995.
(2) A que foi, primacialmente, bebera nossa Constituição e de acordo com a qual devem ser interpretados (e aplicados em conformidade) preceitos legais e mesmo constitucionais.
(3) Enquanto um dos direitos mínimos a indubitavelmente efectivar para que se possa considerar que seja ou tenha sido assegurado um processo justo e equitativo, em concretização do princípio e direito fulcrais plasmados no n.º 1 do artigo 69 da Convenção.
(4) Em que, para além do princípio e direito basilares, também se destaca, na alínea a) do n.º 3, o que configura garantia mínima, concretizadora do que importe ao respeito pela exigida equidade processual e pelo princípio da presunção de inocência.
(5) Enquanto reforço do que são princípios, direitos e garantias elementares (direitos humanos) a atender e efectivar, e atentando já no que decorria (e decorre) da Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e do Tribunal de Justiça da União Europeia.
(6) Doravante GAB.
(7) Doravante IGFEG, I.P.
(8) O recurso a uma instância judicial nacional, no seio do próprio processo criminal, à revelia do que se estabelece no já aludido artigo 13º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
(9) Vide João Conde Correia, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 3ª ed. Tomo II, Almedina, pág. 638.
(10) In Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra Editora/Wolters Kluwer, págs. 1242 e 1252.
(11) Além de Jorge Miranda e Rui Medeiros, in ob. e loc. cit. na nota anterior, Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª ed. revista, Coimbra Editora, pág. 802.
(12) Rui Medeiros, in ob. cit., pág. 1255, citando os acórdãos do TC 7/87, 340/87 e 294/08, os quais se encontram acessíveis em https://www.tribunalconstitucional.pt/ .
(13) Acórdão do TC 391/2002, acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20020391 .
(14) Seguindo de perto a lição de Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra Editora, 4ª ed. revista, 2007, págs. 388 e 392.
(15) Gomes Canotilho e Vital Moreira, in ob. cit., pág. 383.
(16) Neste sentido, Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, Aequitas, 1993, págs. 614 e 632 e sg., que distingue o fundamento da perda de instrumentos – prevenção especial – da perda de vantagens – prevenção geral; também Maria do Carmo Silva Dias, in O Novo Regime de Recuperação de Ativos à luz da Diretiva 2014/42/EU e da Lei que a Transpôs, ..., 1ª edição, Imprensa Nacional/PGD Porto, pág. 92 e sg..
(17) Vide, Souto de Moura, Inquérito e Instrução, in O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1991, pág. 102, Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 17.ª ed., pág. 659, Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 970, e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da CEDH, UCE, 4.ª ed., pág. 738; Germano Marques da Silva, in Princípio da Celeridade e Prazos de Inquérito, Revista Julgar, n.º 34, ..., págs. 139 e sg..
(18) Vide, por todos, o acórdão do STJ de 21/08/2018, relatado por Francisco Caetano no processo 85/15.5GEBRG-N.S1, acessível em www.dgsi.pt .
(19) Publicado in DR, 2ª S., nº 125, de 01/07/2008.
(20) Veja-se o caso G.I.E.M. S.R.L. e outros c. Itália (mérito) (GC), ..., § 302, acessível in https://hudoc.echr.coe.int/ .
(21) Vejam-se os casos O Avrora Maloetazhnoe Stroitelstvo c. Rússia, 2020, § 69; Stołkowski c. Polónia, 2021, §§ 73-77; İpek Société à responsabilité limitée c. Turquia, 2022, §§ 92-94; e Akshin Garayev c. Azerbeijão, 2023, §§ 55-56, acessíveis in https://hudoc.echr.coe.int/ .
(22) Veja-se o caso Lachikhina c. Rússia, 2017, § 59, acessível in https://hudoc.echr.coe.int/ .
(23) Veja-se o caso Forminster Enterprises Limited c. República Checa, 2008, § 75), acessível in https://hudoc.echr.coe.int/.
(24) Veja-se o caso Benet Czech, spol. s r.o. c. República Checa, 2010, § 49, acessível in https://hudoc.echr.coe.int/ .
(25) O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos condenou já o Estado português por violação do art.º 1º do Protocolo 1º da CEDH, no caso Filkin contra Portugal por duração excessivamente prolongada no tempo - 3 anos - de congelamento de contas bancárias, mas o visado não tinha sido sequer constituído arguido, conforme acórdão consultável na versão francesa em https://hudoc.echr.coe .
(26) Na mesma senda, os arts. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 14º/1, 1ª parte do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, e art.º 47º§2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, invocados pela recorrente.
(27) Cfr. As medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 aprovadas pela L. 1-A/2020, de 19/03, prolongadas pela L. 4-B/2021, de 01/02, que estabelece um regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais decorrente das medidas adotadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19, alterando aqueloutra.