Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1440/21.7PAALM.L1-3
Relator: RUI MIGUEL TEIXEIRA
Descritores: DESOBEDIÊNCIA
OBRIGAÇÃO USO DE MÁSCARA
DIREITO DE RESISTÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: O direito de resistência é tendencialmente subsidiário, porque num Estado de direito deve ser através dos Tribunais que os direitos devem ser defendidos, sendo também irredutível, pois o reconhecimento do direito de resistência é ele próprio uma garantia contra o abuso do poder e agressões a particulares, onde haverá sempre situações da vida corrente em que se fará sentir a sua necessidade.
É sempre a ilegalidade da ordem que conforma o direito a resistir. É legitimo não cumprir, resistir (passivamente nada fazendo ou activamente exercendo precisamente o direito que se vê denegado) quando a ordem é ilegal (as situações de desobediência civil não é chamada para esta decisão).
Não é ilegal ou ilegítima a ordem de colocação de máscara numa unidade de saúde ou, em alternativa, de abandono da mesma quando o visado é um acompanhante de um doente e este doente tem outrem a acompanhá-lo nunca ficando assim desacompanhado.
Tal ordem não é ilegal do ponto de vista formal porque estribada em Lei formalmente correcta e materialmente compreensível dado que o exercício da liberdade individual não é absoluto devendo e podendo as liberdades individuais serem limitadas em razão de valores comunitários devidamente justificados.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
Inconformado com a decisão proferida pelo Tribunal da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal de Almada - Juiz 2 – em 02.10.2023, mediante a qual foi condenado pela prática, como autor material, de um crime de desobediência qualificado, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1 do Código Penal, com referência ao artigo 13.º B, n.º 1 alínea f) do Decreto–lei n.º 78.º A /2021. de 29 de Setembro e pelo ponto 10 da resolução do conselho de ministros n.º 135.º A/2021, de 29 de Setembro de 2021, na pena 140 dias de multa, á taxa diária de € 7,00, o que perfaz o montante de €980 (novecentos e oitenta euros), a qual não sendo paga voluntária ou coercivamente ou substituída por trabalho a favor da comunidade poderá importar o cumprimento pelo arguido de 93 (noventa e três) dias de prisão subsidiária, nos termos do artigo 49.º do Código Penal, apresentou-se a recorrer perante este tribunal da Relação de Lisboa o arguido AA, filho de BB e de CC, natural da freguesia e concelho de Alcochete, nascido a 16 de Setembro de 1977, casado, militar da GNR, portador do cartão de cidadão com o número …, emitido pela República Portuguesa, residente na ... formulando, após motivações, as seguintes conclusões:
“1 - Vem o presente recurso interposto da Douta sentença proferida pelo Tribunal “a quo” que condena o aqui Recorrente em Um crime de desobediência qualificado, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1 do Código Penal, com referência ao artigo 13.º B, n.º 1 alínea f) do Decreto –lei n.º 78.º A /2021. de 29 de Setembro e pelo ponto 10 da resolução do conselho de ministros n.º 135.º A/2021, de 29 de Setembro de 2021, na pena 140 dias de multa, á taxa diária de €7,00, ponderando quanto ao quantitativo diário a situação económica do arguido, julgada provada, o que perfaz o montante de €980 (novecentos e oitenta euros), a qual não sendo paga voluntária ou coercivamente ou substituída por trabalho a favor da comunidade poderá importar o cumprimento pelo arguido de 93 (noventa e três) dias de prisão subsidiária, nos termos do artigo 49.º do Código Penal.
-Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça devida em 2 Uc’s, atento o disposto no artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais, 513.º e 514.º ambos do Código de Processo Penal.
2 - O Arguido é uma pessoa integrada social, familiar e profissionalmente, tendo uma profissão digna e honrosa na GNR.
3 - Assim, entende-se como TOTALMENTE EXCESSIVA E DESAJUSTADA a pena aplicada.
4 - A discordância do arguido no que tange a Douta sentença recorrida prende-se com: A falta de elementos probatórios para decisão de facto considerada provada; As medidas concretas das penas aplicadas ao arguido são manifestamente excessivas e desproporcionais, devendo, por isso, ser reduzidas, ao abrigo do disposto nos art.º 40.º, 71.º e 77.º do Código Penal, atentas às condições de vida do arguido e às circunstâncias atenuantes existentes no caso “sub judice” que não foram consideradas.
5 - Entende o recorrente que a douta decisão está inquinada por deficiente valoração do material probatório sujeito à apreciação do tribunal. O mesmo é dizer-se que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não suporta o acervo fáctico dado como demonstrado pelo tribunal “a quo”.
6 – A Douta sentença proferida padece do vicio previsto no art.º 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, por insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
7- Em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, o aqui recorrente prestou declarações e fundamentou legalmente as razões da sua conduta à data dos factos.
8- Sendo que o Douto Tribunal “a quo”, referiu que formou a sua convicção quanto à determinação da matéria de facto dada como provada e não provada que resultou da conjugação e análise crítica da prova produzida em audiência de discussão e julgamento da prova documental constante dos autos,
9 - Na realidade ninguém foi lesado ou saiu prejudicado pelos actos do aqui Recorrente que se consideram dentro da Lei.
10 - O Douto Tribunal “a quo” errou manifestamente na apreciação da prova produzida, ainda que com toda a certeza que por manifesto lapso porquanto, não poderia o tribunal ancorar a sua convicção, quanto aos factos em causa nestes autos sem analisar todos os aspectos da Lei e das suas alterações por força da pandemia e no que se refere aos direitos humanos.
11 - Considera-se que, à data dos factos, não se encontrava declarado no território nacional, estado de sítio ou de estado de emergência, pois, como o nº 1 do art.º 19º da Constituição da República Portuguesa, assim o determina:
“Os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente, suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição”.
12 - E, em virtude de já não se ter efectuado a sua renovação, conforme consta no nº 5 do Art.º 19º da Constituição, “A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência é adequadamente fundamentada e contém a especificação dos direitos, liberdades e garantias cujo exercício fica suspenso, não podendo o estado declarado ter duração superior a quinze dias, ou à duração fixada por lei quando em consequência de declaração de guerra, sem prejuízo de eventuais renovações, com salvaguarda dos mesmos limites.”, e, pela alínea e) do Art.º 164º da CRP, que legitima a exclusividade da competência da Assembleia da República para legislar sobre essa matéria, ficando estes estados de excepção sem efeito executivo, caindo assim por terra a sua legitimidade.
13 - Para além do mais, no nº 6, do Art.º 19º da Constituição portuguesa, refere que:
“A declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afectar os direitos à vida, à integridade pessoal, à identidade pessoal, à capacidade civil e à cidadania, a não retroactividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciência e de religião.”
14 - Uma vez que o arguido e aqui Recorrente, se encontrava bem de saúde física, nunca poderia ocorrer, da sua parte, prejuízo do direito à vida a terceiros, nem prejuízo de quaisquer outros direitos, e conforme o explanado no Art.º 26º da CRP, Outros Direitos Pessoais, que indica o seguinte:
“1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.”, e a minha liberdade nunca poderia ser restringida, por força do Art.º 27º da CRP:
Mais ainda,
15 - “Direito à liberdade e à segurança”
1. Todos têm direito à liberdade e à segurança.
2. Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.
3. Exceptua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes:
a) Detenção em flagrante delito;
b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos;
c) Prisão, detenção ou outra medida coactiva sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão;
d) Prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente;
e) Sujeição de um menor a medidas de protecção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente;
f) Detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente;
g) Detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários;
h) Internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.
4. Toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos.
5. A privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer.”,
16 - Sendo por isso exercida, da parte do aqui Recorrente, o Direito de resistência, consagrado no Art.º 21º da CRP, recusando-se liminarmente à ordem ilegal emanada de um órgão de Polícia Criminal, que, o mesmo executou, pensando ele que estava a cumprir ordens legitimamente emanadas pelos seus superiores, desrespeitando o consagrado pelo art.º 22º da CRP, que indica o seguinte:
” Responsabilidade das entidades públicas
O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem.”
17 - Ainda assim é de salientar que, a Direcção Geral de Saúde e o Infarmed não são entidades executivas, sendo entidades administrativas e por isso não podem emanar legislação com base em supostas premissas de pandemia, podendo, no entanto, efectuar recomendações para atenuar possíveis níveis de contágio viral, porque até ao momento, ainda não se conseguiu efectuar prova cabal e cientifica de que, realmente existiu um surto pandémico, motivo para o qual foi a espoleta de todas estas condicionantes sociais, porque, vejamos:
O processo 525/21.4 BELSB do Tribunal Administrativo de Lisboa, onde a intimação foi proposta contra o Ministério da Saúde, documento algum foi facultado e somente no ponto 18º, vem a referir que:
“Após análise da base réplica do SICO desde 01-01-2020 até 18.04.2021, conseguimos apurar até ao momento as seguintes distribuições:
Entre 2020 e 2021 foram emitidos 152 certificados de óbito pelos médicos que trabalham para a tutela Ministério da Justiça (INMLCF) cuja causa básica de morte foi devido a COVID 19 de acordo com a seguinte distribuição:
Dos 152 certificados de óbito, 132 óbitos a causa básica foi U071 (COVID19 – vírus identificado) e 20 óbitos a causa básica foi U072 (COVID 19 – não identificado laboratorialmente).
Dos 152 certificados de óbito, a 148 óbitos foi dispensada autópsia, sendo que 129 óbitos a causa básica de morte foi U071 e 19 óbitos a causa básica de morte foi U072.
Dos 152 óbitos, a 4 óbitos não foi dispensada autópsia, sendo que 3 óbitos a causa básica de morte foi U071 e 1 óbito a causa básica foi U072”.
18 - Nestes moldes, é possível então questionar: Onde se encontrava a pandemia??
19 - Pode-se então deduzir que existiu uma falsa premissa para que acções condicionantes e restritivas dos seus direitos fossem aplicadas à sociedade em geral e aos indivíduos em particular, fazendo-os julgar que estariam a fazer o bem comum, obrigando-os e submetendo-os a essa narrativa.
20 - Todos os “estudos científicos”, enumerados na altura, para que se pudesse condicionar a sociedade, e a acção humana, nunca foram comprovados por pares e assim confirmados pela ciência real, originando, por sua vez, o “Dogma Científico”, histérico, doutrinador e inquestionável.
21 - Por sua vez, a Comissão Nacional de Eleições, até efectuou a divulgação de Esclarecimentos Eleitorais, informando que “ninguém pode ser impedido de exercer o seu direito de voto”, inclusive, na Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais (Lei Orgânica nº 1/2001, de 14 de Agosto), vem referido no art.º 115º que, o eleitor tem de ser identificado e reconhecido:
“Modo como vota cada eleitor
4. O eleitor apresenta-se perante a mesa, indica o seu número de inscrição no recenseamento e o nome e entrega ao presidente o bilhete de identidade, se o tiver.
5. Na falta de bilhete de identidade a identificação do eleitor faz-se por meio de qualquer outro documento oficial que contenha fotografia atualizada ou ainda por reconhecimento unânime dos membros da mesa.
6. Reconhecido o eleitor, o presidente diz em voz alta o seu número de inscrição no recenseamento e o seu nome e, depois de verificada a inscrição, entrega-lhe um boletim de voto por cada um dos órgãos autárquicos a eleger.”
Ora,
22 - O que dá origem a que o eleitor tenha necessariamente de retirar a máscara, ora, existe aí um contra-senso, pois, se existe, alegadamente, uma gravíssima” pandemia” que a população tem a “obrigatoriedade” de tomar medidas para que seja contida, não se percebe o motivo das pessoas efectuarem a retirada das máscaras cirúrgicas ou equipamentos de protecção individual (EPI), assim designados.
23 - Deveria também ter sido esclarecido, já que, esses equipamentos eram “obrigatórios” e “imprescindíveis” e que ofereciam a adequada protecção sanitária e tidas como necessárias para evitar e conter o Covid-19, qual o melhor modelo de máscara para ser utilizado, porque, realmente, o que interessava no momento era a cara coberta, já que, eram utilizadas diferentes tipos de máscaras, inclusive feitas de pano e de renda, que, por sua vez, não ofereciam qualquer tipo de protecção, caindo por terra, o argumento falacioso da protecção e contenção da doença e o direito à vida e o direito da protecção da saúde pública. Mais ainda,
24 - Cabe ainda referir que, na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, de 2005, no seu Art.º 6º, nº 1, diz que:
”. Qualquer intervenção médica de carácter preventivo, diagnóstico ou terapêutico só deve ser realizada com o consentimento prévio, livre e esclarecido da pessoa em causa, com base em informação adequada.
Quando apropriado, o consentimento deve ser expresso e a pessoa em causa pode retirá-lo a qualquer momento e por qualquer razão, sem que daí resulte para ela qualquer desvantagem ou prejuízo.”
25 - O que quer dizer que, se as pessoas não são informadas convenientemente sobre todos os procedimentos médicos, incluindo, os procedimentos preventivos, ou que possam existir omissões, nunca poderiam ser obrigadas a usar máscaras cirúrgicas ou as denominadas de EPI, pois assim, o consentimento livre e informado nunca existiu, o que causa graves prejuízos aos seus direitos humanos, desclassificando-as de seres naturais, livres e autónomas.
26 - Não restaram dúvidas que o Tribunal “a quo” ficou na dúvida quanto à matéria dada como provada.
Atenta à natureza do crime, e posto um thema, as provas são os instrumentos empregues para demonstrá-lo segundo as regras do processo.
Ao thema corresponde os factos a provar, que são todos os factos juridicamente relevantes no processo.
27 - O princípio da presunção da inocência consagrado no art.º 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, não é mais um mero postulado ideal, mas um verdadeiro princípio de prova, directamente vinculante de todas as autoridades.
O princípio da presunção da inocência é antes de mais um princípio natural, lógico, de prova, com efeito, enquanto não for demonstrada, provada a culpabilidade do aqui recorrente não é admissível a sua condenação, pelo que no sentido de que um non liquet na questão da prova deva ser sempre valorado a favor do aqui recorrente, o que não o foi.
A dúvida sobre a culpabilidade é a razão de ser do processo.
28 - O processo in casu nasce porque uma dúvida esteve na sua base, e uma certeza deveria ser o seu fim.
29 - Dados porem, os limites do conhecimento humano, sucedeu que a dúvida inicial permaneceu até a final, não obstante todo o esforço para a superar, isto porque foram demasiados reconhecimentos negativos em que a dúvida permaneceu,
Ora dúvida sobre os factos resolve-se em função do princípio (in dubio pro reo).
30 - O tribunal “a quo”, não obteve a certeza dos factos, ficou claramente na dúvida, logo e, na aplicação do princípio “in dúbio pro réu” teria de rejeitar a posição da acusação, e assim resolver-se pela Absolvição do aqui recorrente, mas indo mais além atendendo à dúvida da sua participação culposa nas acções praticadas à data dos factos.
31 - Em conclusão, a verdade essa é obviamente só uma, é a verdade necessariamente, que inclusive viria naturalmente a absolver o recorrente pelo crime de que vinha acusado.
32 - Pelo que depois do Tribunal “a quo” ter produzido todos os meios de prova possíveis, ficou uma dúvida razoável, e assim não poderia dar como provados com base nas regras da “experiência comum” os factos pelo qual o recorrente estava acusado.
33 - Inexistindo, por isso, prova bastante para considerar a convicção do tribunal que possa permitir a fundamentação e motivação quanto os fatos dados como provados.
34 - Por falta de prova e / ou por dúvida insanável, não poderia o Douto Tribunal “a quo” ter considerado como provado, como o fez nos fatos provados.
35 - Sendo ainda que, uma correcta apreciação da prova produzida impõe que se considerem como não provados os fatos.
36 - Ou mesmo que assim se não entenda, o que não se concebe de todo, pelo menos, sempre será́ forçoso concluir estarmos perante uma dúvida insanável, que, nos termos do Princípio Geral de Direito In Dúbio Pro Reo, conduzirá igualmente a considerar não provado.
37 - Pelo que, e salvo o devido respeito, que é muito, o Douto Tribunal a quo analisou mal a prova produzida, violando o disposto nos artigos 127.º do CPP (Princípio da livre apreciação da prova) e 32.º n.º 2, 1ª parte da CRP (Princípio do In Dúbio Pro Reo).
38 - A verdade é que com base na prova produzida e existente nos autos não poderia o Douto Tribunal a quo ter considerado provados os fatos.
39 - Ao invés, uma correcta apreciação da prova produzida, impõe que se consideram NÃO provados os factos referidos provados da Douta Sentença recorrida.
40 - E o Princípio Geral do In Dubio Pro Reu, totalmente desconsiderado pelo Doutro Tribunal a quo, assim o impõe também, de forma a fazer-se a esperada e costumada JUSTIÇA.
41 - O arguido considera excessiva e desproporcional a pena que lhe foi aplicada.
Tendo em consideração todo o exposto, sem prescindir do douto suprimento de Vossas. Exas. deve o presente recurso ser apreciado em conformidade, merecer provimento.
Revogar-se a Douta Sentença em crise, apreciar a prova efectivamente produzida em julgamento e pela verificação de dúvida razoável da actual postura e conduta do arguido perante a Lei.
Ou,
Ordenar-se:
O reenvio dos autos para novo julgamento, nos termos do art.º 426º do CPP a fim de serem supridos os vícios.
Para que possa ser reposta a verdade factual e assim ajudar à descoberta da verdade material, para que possa ser aferida, para a boa e melhor decisão da causa.
Nestes termos, sempre com o Douto provimento de V. Exªs, Venerandos Juízes Desembargadores, deverá conceder-se integral provimento ao presente recurso, e em consequência, deve a Douta Sentença recorrida ser revogada e substituída por outro que:
a. Aprecie a prova efectivamente produzida em julgamento e pela verificação de dúvida razoável, afastando a violação dos Princípios do In dúbio pro Reo, presunção de inocência e oralidade ou ordenar-se o reenvio dos autos para novo julgamento, nos termos do art.º 426º do CPP a fim de serem supridos os vícios.
Termos pelos quais deve ser concedido provimento ao presente recurso, com o que se fará, JUSTIÇA!”
Ao assim recorrido respondeu o Ministério Público sustentando que o recurso não merece provimento. Idêntica posição foi assumida pela Exmª Procuradora Geral Adjunta junto deste tribunal a qual lavrou parecer após a subida dos autos.
Estes – os autos – foram a vistos e à conferência.
*
II – Do âmbito do recurso e da decisão recorrida
Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, p. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, p.113).
Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.
Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
No caso concreto, face às conclusões recursais são as seguintes as questões a decidir:
- A existência do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art.º 410º nº 2 al. a) do C.P.P.).
- A existência de direito de resistência e sua influência na decisão;
- A existência de dúvida insanável demandando a aplicação do princípio in dubio pro reu.
- A questão da medida da pena.
A fim de dar resposta às questões colocadas recordemos os factos provados:
1) No dia 16 de Outubro de 2021, pelas 17h53m, o arguido encontrava-se no interior do Hospital Garcia da Orta, em Almada, mas concretamente, na zona das consultas externas, sem a máscara de protecção obrigatória.
2) Foram aí chamados a patrulha da PSP, e deslocaram-se ao referido local os agentes da P.S.P., DD e EE, que se encontravam devidamente uniformizados e no exercício das suas funções.
3) Face à actual conjuntura pandémica devido à doença COVID-19 e face à obrigatoriedade de uso de máscara em unidade hospitalar, o agente da PSP DD, questionou o arguido porque é que o mesmo ali permanecia sem máscara e sem autorização, uma vez que o arguido apenas estava a acompanhar um familiar, a uma consulta médica, que já teria outra pessoa a acompanhá-lo.
4) O arguido, de imediato, recusou colocar a máscara de protecção.
5) Mediante tal, o agente DD, solicitou ao arguido que colocasse uma máscara ou que abandonasse a instituição de saúde, o que o arguido recusou.
6) Após, o arguido foi esclarecido pelos dois referidos agentes da P.S.P. que estava a violar o artigo 13.º B, número 1., alínea f), do Decreto n.º 78-A/2021, de 29 de Setembro, que consagra o uso obrigatório de máscaras e viseiras em estabelecimentos e serviços de saúde, sendo que o arguido foi advertido que caso mantivesse tal comportamento incorreria na prática de um crime de desobediência, previsto e punido, pelo artigo 348º nº 1, alínea b), do Código Penal.
7) Ainda assim, devidamente elucidado, o arguido, manteve o seu comportamento, permanecendo na unidade hospitalar, sem qualquer justificação legal e, sem máscara.
8) Mais uma vez, o arguido, foi devidamente informado que se continuasse com tal atitude, e não acatasse a ordem da polícia, incorreria na prática de um crime de desobediência.
9) O arguido permaneceu na unidade Hospitalar nas circunstâncias acima descritas, desobedecendo, assim, às ordens legais e legítimas regularmente comunicadas e emanadas da autoridade competente.
10) O arguido só abandonou o estabelecimento hospitalar devido à intervenção de terceiros.
11. 1Ao actuar nas descritas circunstâncias de tempo, modo e lugar, o arguido, agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito firme e alcançado de, faltar à obediência devida a ordem legítima, regularmente comunicada e emanada da autoridade competente, bem sabendo, que a sua conduta era (é) proibida e criminalmente punida.
11) Do CRC do arguido nada consta registado.
12) O arguido exerce a profissão de militar da GNR, desde 2001 auferindo o montante mensal de cerca de €1.100. vive com a mulher e dois filhos de 21 e 19 anos de idade, estando ambos a estudar e a mulher sem actividade profissional remunerada. O arguido tem de escolaridade o 9. ano de escolaridade.
Factos não provados
Com interesse para a decisão a proferir não resultaram factos não provados.”
*
III – Da análise dos fundamentos do recurso
Como é sabido, e resulta do disposto nos art.º 368º e 369º ex-vi art.º 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.
Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto, e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e depois dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do Código do Processo Penal.
Por fim, das questões relativas à matéria de Direito.
Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas pelo recorrente.
Iniciando ….
O art.º 410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, estabelece a possibilidade de o recurso se fundamentar na insuficiência da matéria de facto provada para a decisão; na contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, ou no erro notório na apreciação da prova, «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito».
A apreciação destes vícios não implica qualquer sindicância à prova produzida, no Tribunal de primeira instância, porque envolve apenas a análise do texto da decisão recorrida, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, ainda que constem do processo. Apenas as regras de experiência comum podem servir de critério de aferição da sua existência.
A matéria de facto será insuficiente para a decisão, quando na exposição da matéria de facto exarada no texto da sentença, se constata a ausência de elementos de informação que, podendo e devendo ter sido obtidos e julgados provados ou não provados, são necessários para alicerçar com segurança o sentido da decisão, seja de condenação, seja de absolvição, o que se verificará quando o tribunal recorrido tenha deixado de investigar, como lhe competia, factos pertinentes ao objecto do processo, tal como configurado pela acusação e pela defesa, ou que resultem da discussão da causa, a ponto tal, que esse défice factual impede a aplicação do direito à situação de vida submetida à apreciação do Juiz (cfr. Acs. do STJ de 12.03.2015, proc. 40/11.4JAAVR.C2; de 24.02.2016, processo 502/08.0GEALR.E1.S1; de 12.07.2018, processo 172/17.5S7LSB.L1.S1 e de 06.02.2019, processo 1074/15.5PAOLH.E1.S1, in http://www.dgsi.pt; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 69 e Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição, Almedina, pág. 1274).
A insuficiência tem de transparecer de forma clara e notória, do próprio texto da decisão, por si só, ou em conjugação com as regras de experiência comum e significa que os factos apurados, tal como são descritos na da decisão recorrida não chegam para alicerçar a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções jurídicas possivelmente aplicáveis – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, – em virtude de o tribunal não se ter pronunciado sobre todos os factos que integram o objecto do processo, alegados pela acusação ou pela defesa, ou resultantes da discussão da causa e que possam e devam ser atendidos para a decisão nos termos consentidos pelos art.ºs 358º e 359º do CPP.
Verifica-se, em suma, quando a decisão de direito ultrapassa a decisão de facto.
Ora, lida a decisão não se alcança onde é que existe uma qualquer insuficiência por parte do Tribunal. Na verdade, não resulta do texto da decisão que o Tribunal “tenha deixado de investigar, como lhe competia, factos pertinentes ao objecto do processo, tal como configurado pela acusação e pela defesa, ou que resultem da discussão da causa, a ponto tal, que esse défice factual impede a aplicação do direito à situação de vida submetida à apreciação do Juiz”. E, diga-se, nem o recorrente o refere.
O que o recorrente refere é a sua profunda discordância com a norma, com a obrigação de usar máscaras em unidades de saúde e, principalmente, com a razão técnico-política que subjaz à norma.
Ora, como é bom de ver, tal objecção não se pode traduzir no desrespeito da Lei, mas sim pode e deve ser actuada junto dos órgãos produtores da legislação os quais são, em última análise, o resultado do exercício democrático em eleições. E mais: o sistema legal permite a participação de cidadãos no processo legislativo sendo as consultas públicas e o direito de petição um exemplo desta realidade.
O recorrente refere ainda que a sua conduta é enquadrável no exercício de direito de resistência.
Dispõe o art.º 21º da Constituição que “Todos têm o direito de resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias e de repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.”
Ao atribuir aos particulares o direito de resistência, o artigo 21.º, primeira parte, da CRP concretiza o princípio da aplicabilidade directa dos direitos, liberdades e garantias, reafirmando o seu carácter obrigatório para as entidades públicas (artigo 18.º, n.º 1, da CRP), e justifica a resistência, dos cidadãos a ordens destas autoridades (assim, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Almedina, p. 342 e Assunção Esteves, A Constitucionalização do Direito de Resistência, Lisboa, 1989, p. 219 e 225 e s.).
«O direito de resistência é a ultima ratio do cidadão ofendido nos seus direitos, liberdades e garantias, por actos do poder público» (Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Almedina, p. 512), sendo-lhe apontada a nota inescapável da subsidiariedade, por referência às normas constitucionais – artigos 20.º, 202.º, n.º 2, e 268.º, n.ºs 4 e 5, e da CRP – que fazem do acesso aos tribunais e à justiça administrativa, de uma forma particular, o meio de defesa por excelência (neste sentido, Jorge Miranda, “O regime dos direitos, liberdades e garantias”, Estudos sobre a Constituição, 3.º volume, Livraria Petrony, 1979, p. 87, Vieira de Andrade, ob. cit., pp. 342 e 344 e ss., e Maria Margarida Mesquita, “Direito de resistência e ordem jurídica portuguesa”, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (160), 1989, p. 32 e ss.).
Como se trata de um meio não jurisdicional que só tem sentido como ultima ratio, Vieira de Andrade não deixa de concluir que o direito de resistência só justifica o comportamento de um particular que resista a «actos evidentemente inconstitucionais (nulos) das autoridades», devendo o particular fazer dele «uso prudente, quando esteja convencido, pela gravidade e evidência da ofensa, de que há violação do conteúdo essencial do seu direito fundamental, até porque o risco de erro corre por sua conta» (“A nulidade administrativa, essa desconhecida”, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 138.º, N.º 3957, p. 346 e ss. e, especificamente, nota 55). (AC. TC Processo n.º 937/13 2.ª Secção in www.tribunalconstitucional.pt )
O direito de resistência, jurídico-constitucionalmente, existe apenas quando se verificam comportamentos de cidadãos, ainda que sejam ilícitos e inconstitucionais, que apenas e em virtude da invocação do direito de resistência beneficiam de uma causa especial de justificação, isto porque o carácter extraordinário das formas e exercício desse direito, que a actual CRP não tipifica qualquer uma delas, constituindo, por exemplo, uma manifestação especial deste direito, a desobediência hierárquica, de acordo com o artigo 271º nº 3 da Constituição.
Característico do direito de resistência é precisamente o seu carácter de autotutela, em que quanto aos direitos, liberdades e garantias se exprime a aplicabilidade directa e, portanto, de garantias não jurisdicionais, fazendo desse mesmo carácter de uma garantia, ao mesmo tempo tendencialmente subsidiária e inalienável. Será tendencialmente subsidiária porque num Estado de direito é nos Tribunais que os direitos devem ser defendidos, sendo também irredutível que o reconhecimento do direito de resistência constitui ele próprio uma garantia, não só contra as agressões de particulares, mas sobretudo contra o abuso do poder do Estado, estando o direito de resistência limitado quanto aos seus titulares, isto porque, o sujeito do direito de resistência tanto poderia ser uma pessoa singular como também uma pessoa colectiva, por exemplo, a resistência de uma Associação à sua suspensão ou dissolução ilegal.
O direito de resistência é tendencialmente subsidiário, porque num Estado de direito deve ser através dos Tribunais que os direitos devem ser defendidos, sendo também irredutível, pois o reconhecimento do direito de resistência é ele próprio uma garantia contra o abuso do poder e agressões a particulares, onde haverá sempre situações da vida corrente em que se fará sentir a sua necessidade.
Quanto á efectivação e legitimação da faculdade ao recurso do direito de resistência, a nossa CRP acentua que este será sempre exercido contra ordens que ofendam os direitos daquele que resiste, neste caso, será de entender que o exercício do direito de resistência pressuporá sempre a titularidade do direito defendido, enquanto direito pessoal, pelo que, não está constitucionalmente garantido o exercício do recurso ao direito de resistência para a defesa de direitos de terceiros, tal não impedindo outras formas de intervenção nesse sentido, como sejam, e a titulo de exemplo, na apresentação de queixa ao Provedor de Justiça, habeas corpus, direito de petição, não estando, porém excluído o exercício colectivo de resistência quando estejam em causa direitos, liberdades e garantias de uma certa categoria de pessoas.
No seu significado mais antigo e restrito, o direito de resistência é sobretudo um direito de oposição a actos da autoridade pública, sendo que, a CRP delimita numa dupla referência à existência de uma “ordem” e da ofensa lesiva de direitos, liberdades e garantias, isto porque, quando a CRP fala de em resistência a “ordens”, em bom rigor abrange todos e quaisquer actos de poder, sejam eles actos administrativos ou de outras categorias, não se tratando de actos declarativos ou exequendos, mas também e até, por maioria de razão, de actos de execução, inclusive e execução de ordens por funcionários subalternos.
É sempre a ilegalidade da ordem que conforma o direito a resistir. É legitimo não cumprir, resistir (passivamente nada fazendo ou activamente exercendo precisamente o direito que se vê denegado) quando a ordem é ilegal (as situações de desobediência civil não é chamada para esta decisão).
O direito de resistência limita o dever de obediência, conformando consequentemente a relevância penal do comportamento do particular (sobre isto, Maria Margarida Mesquita, ob. cit., p. 35 e ss. e Assunção Esteves, ob. cit., p. 217 e ss.). Ponto é que tal ordem seja notória ou manifestamente ilegítima (assim, Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, Coimbra Editora, 2001, comentário ao artigo 347.º, § 15 e ss. Cf., ainda, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2010, anotação ao artigo 21.º, pontos VII e XI).
No caso concreto destes autos a ordem emitida não é claramente ilegítima e não é ilegal.
Na verdade, é perfeitamente perceptível para a generalidade das pessoas que o objectivo da Lei é a protecção de uma percentagem de indivíduos temporariamente mais fracos ao nível de saúde (os utentes da unidade de saúde) através da adopção de uma medida que se destina a não disseminar doenças. É esta percepção, que se entende genérica e acessível a todos os cidadãos, que permite afirmar que a medida não é, nem notória, nem manifestamente ilegítima.
A ordem não é ilegal do ponto de vista formal porque estribada em Lei formalmente correcta e materialmente compreensível dado que o exercício da liberdade individual não é absoluto devendo e podendo as liberdades individuais serem limitadas em razão de valores comunitários devidamente justificados.
Assim, não se verifica qualquer direito de resistência por parte do arguido.
Quanto à existência de dúvida insanável demandando a aplicação do princípio in dubio pro reu.
A dúvida insanável conducente à aplicação do princípio in dubio pro reu pode surgir por duas vias: 1) por análise da prova produzida e sua revisitação nos termos do art.º 412º nº 3 e 4 do C.P.P.; 2) através da leitura do texto da decisão e a constatação que a fundamentação da mesma indica a existência de dúvida insanável.
O princípio in dubio pro reo também pode e deve ser entendido objectivamente, ou seja, desgarrado da dúvida subjectiva ou histórica do julgador, postulando uma análise da sua violação já não como vício decisório, mas como erro de julgamento, nos termos regulados pelo art.º 412.º do Código de Processo Penal - sendo que, para que o Tribunal da Relação possa detectar a violação do in dubio pro reo, como erro de julgamento e segundo a concepção objectiva da dúvida, nos termos acima expostos, é preciso que o recorrente cumpra cabalmente os ónus primário e secundário de impugnação especificada de que o art.º 412.º faz depender o êxito da pretensão de reavaliação da prova produzida e de subsequente sindicância da convicção do Tribunal do julgamento sobre essa prova produzida em primeira instância, o que, como se viu, não fez.
No caso concreto, o recorrente não suscitou um recurso com base no art.º 412º nº 3 e 4 do C.P.P. pelo que esta via está-lhe vedada, ou melhor, está vedada a este Tribunal.
Por outro lado e como referido, a violação do princípio in dubio pro reo, a qual pode e deve ser conhecida como vício do texto da decisão, não se detecta na leitura da decisão recorrida, nomeadamente na fundamentação da matéria de facto pois que da leitura da mesma não ressalta qualquer dúvida quanto aos factos que se devia dar por provados ou não provados.
Salienta-se que o princípio in dubio pro reo corresponde a uma regra de decisão (e não de interpretação dos factos ou da prova), através da qual, após produção da prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, que tem de ser razoável e insuperável sobre a realidade dos factos, o juiz deva decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável. Ou seja, exige se que no espírito do julgador tivesse de subsistir uma dúvida positiva e invencível, efectivamente impeditiva da convicção do tribunal, depois de esgotado todo o iter probatório e feito o exame crítico de todas as provas, sobre a verificação, ou não, dos factos integradores de um crime ou relevantes para a pena.
No caso concreto, não é invocável o princípio in dubio pro reo, atenta a determinante prova produzida e que fundamentou a decisão da matéria de facto provada, sendo que, no caso em apreço, o tribunal a quo não teve, correctamente, qualquer dúvida quanto à veracidade dos factos dados como provados, nem deveria ter tido tal dúvida.
Improcede, pois, o recurso também nesta parte.
No que tange à medida da pena.
No que respeita à apreciação das penas fixadas pela 1ª Instância, a intervenção dos Tribunais de 2ª Instância deve ser parcimoniosa e seguir a jurisprudência exposta, quanto à intervenção do STJ, no Ac. do mesmo Tribunal Superior de 27.05.2009, relatado por Raul Borges, in www.dgsi.pt Proc. 09P0484, no qual se considera: "... A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que "no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada". (No mesmo sentido, Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, pág. 197, § 255).
Assim, só em caso de desproporcionalidade na sua fixação ou necessidade de correcção dos critérios de determinação da pena concreta, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso, deverá intervir o Tribunal de 2ª Instância alterando o quantum da pena concreta. Caso contrário, isto é, mostrando-se respeitados todos os princípios e normas legais aplicáveis e respeitado o limite da culpa, não deverá o Tribunal de 2ª Instância intervir corrigindo/alterando o que não padece de qualquer vício.
De tal resulta que, se a pena fixada na decisão recorrida, em todas as suas componentes, ainda se revelar proporcionada e se mostrar determinada no quadro dos princípios e normas legais e constitucionais aplicáveis, não deverá ser objecto de qualquer correcção por parte do Tribunal da Relação.
Ora, lidos os factos assentes, cotejados estes com o disposto no art.º 71º do Código Penal não vislumbramos onde é que o Tribunal a quo desrespeitou os comandos legais em termos de fixação de penas.
E, em bom rigor, o recorrente também não refere onde está o exagero e a desproporcionalidade antes se limitando a dizer que tal existe.
Diga-se mesmo, que a afirmação que a pena é exagerada é incoerente. Na verdade, o recorrente sustenta que não cometeu o crime, seja porque não se verifica o perigo para a saúde pública que se pretende prevenir com o uso da máscara, seja por agiu em direito de resistência, tudo questões que, se procedentes, levariam à sua absolvição e não a uma redução da pena.
Improcede, desta forma o recurso.
*
IV – Dispositivo
Por todo o exposto, acordam os juízes que compõem a 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em manter na íntegra a sentença recorrida.
Custas pelo arguido que se fixam em 3,5 (três e meia) U.C.
Notifique.
Acórdão elaborado pelo 1º signatário em processador de texto que o reviu integralmente sendo assinado pelo próprio e pelas Venerandas Juízes Adjuntas.

Lisboa e Tribunal da Relação, 20 de Março de 2024
Rui Miguel de Castro Ferreira Teixeira
Maria Elisa Marques
Maria Margaria Almeida
(com voto vencido infra)
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1. O ponto 11 mostra-se repetido embora o conteúdo dos dois pontos, sejam diferentes, razão pela qual, mantendo a numeração original se colocou ambos os pontos na transcrição.

Voto vencido
1. O arguido foi condenado pela prática, como autor material, de um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1 do Código Penal, com referência ao artigo 13-B, n.º 1 alínea f) do Decreto-lei n.º 78.º A /2021, de 29 de Setembro e pelo ponto 10 da resolução do conselho de ministros n.º 135.º A/2021, de 29 de Setembro de 2021.
a. O art.º 348 nº1 do C. Penal tinha à data – e tem presentemente – a seguinte redacção:
1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
b. O art.º 13-B, nº1, al. al. f) do Decreto-lei n.º 78-A/2021, que alterou o Decreto-Lei nº 10-A/2020, presentemente revogado, tinha a seguinte redacção:
1 - É obrigatório o uso de máscaras ou viseiras para o acesso ou permanência no interior dos seguintes locais:
a) Espaços e estabelecimentos comerciais, incluindo centros comerciais, com área superior a 400 m2;
b) Lojas de Cidadão;
c) Estabelecimentos de educação, de ensino e das creches, salvo nos espaços de recreio ao ar livre;
d) Salas de espetáculos, de exibição de filmes cinematográficos, salas de congressos, recintos de eventos de natureza corporativa, recintos improvisados para eventos, designadamente culturais, ou similares;
e) Recintos para eventos e celebrações desportivas;
f) Estabelecimentos e serviços de saúde;
g) Estruturas residenciais ou de acolhimento ou serviços de apoio domiciliário para populações vulneráveis, pessoas idosas ou pessoas com deficiência, bem como unidades de cuidados continuados integrados da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados e outras estruturas e respostas residenciais dedicadas a crianças e jovens;
h) Locais em que tal seja determinado em normas da Direção-Geral da Saúde.
c. O nº 10 desse mesmo artigo estipulava então:
10 - Sem prejuízo do número seguinte, em caso de incumprimento, as pessoas ou entidades referidas no n.º 8 devem informar os utilizadores não portadores de máscara que não podem aceder, permanecer ou utilizar os espaços, estabelecimentos ou transportes coletivos de passageiros e informar as autoridades e forças de segurança desse facto caso os utilizadores insistam em não cumprir aquela obrigatoriedade.
d.  O ponto 10 da resolução do conselho de ministros n.º 135- A/2021, de 29 de Setembro de 2021, já revogado, tinha a seguinte redacção:
10 - Reforçar que a desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas durante a vigência da situação de alerta e em violação do disposto no regime anexo à presente resolução, constituem crime e são sancionadas nos termos da lei penal, sendo as respectivas penas agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo, nos termos do n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de Julho, na sua redacção actual.
À data, Portugal não se encontrava já em estado de emergência, a declaração de calamidade havia já igualmente terminado, tendo sido declarada, pelo Governo, a situação de alerta, ao abrigo do art.º 8º nº1 al. a) da Lei n.º 27/2006, de 03 de Julho (LEI DE BASES DA PROTECÇÃO CIVIL).
2. Os factos que consubstanciaram, no entendimento do tribunal “a quo”, o preenchimento dos elementos do tipo, resumem-se à falta de uso de máscara em ambiente hospitalar, pelo arguido, quando acompanhava um familiar a uma consulta e na sua recusa em a colocar ou em sair, quando a autoridade policial lhe ordenou que assim fizesse, informando-o de que tal recusa determinaria a prática de um crime de desobediência.
3. Estamos perante proibição de carácter totalmente inovatório pois, até 2020 e depois de 2022, nunca no ordenamento jurídico português havia sido determinada a obrigatoriedade de uso de máscara, pela generalidade dos cidadãos, em hospitais ou outros locais de acesso público.
Assim a primeira questão que aqui se põe é a de saber se, existindo já previamente a essa nova exigência, um normativo penal que pune o crime de desobediência, daí decorre que, automaticamente e sem qualquer reservas, a tipificação de uma nova proibição comportamental que não venha a ser respeitada, após exigência do seu cumprimento pela autoridade pública, determina que se possa entender estarmos perante um ilícito validamente estabelecido e vigente, na nossa lei penal.
A resposta é, neste caso, uma negativa simples, pois houve lugar à aprovação de um até então inédito tipo legal de crime de desobediência.
4. Diga-se aliás que, nesse preciso sentido, se pronunciou já respondeu o Tribunal Constitucional, em vários arestos, dentro da problemática, precisamente, do crime de desobediência, cometido por não acatamento de normas inovatoriamente impostas, ao abrigo das chamadas leis da pandemia (questões relacionadas com encerramento de estabelecimentos ou questões relativas a não obediência a ordens de confinamento, por exemplo).
E respondeu julgando inconstitucional uma série de normas a tais questões relativas, sendo certo que as razões em que funda tal juízo são aplicáveis, mutatis mutandis, à situação em apreciação nos autos.
Em apertada síntese, entendeu o T.C. que cabia no âmbito dos poderes da Assembleia da República, a criação da norma inovatória, que passou a punir uma conduta específica, nunca antes sujeita a qualquer imposição ou sancionamento, sendo certo que no âmbito da situação de calamidade (no caso dos presentes autos, de alerta, mas ambas decorrentes do regime consignado na Lei da Protecção Civil), o Governo não tem competência para aprovar uma norma como a que aqui se aprecia sem que para tanto estivesse autorizado pela Assembleia da República.
Inexistindo tal autorização, a norma padece de inconstitucionalidade orgânica.
5. Assim, e porque melhor não sabemos dizer, procederemos à transcrição de excertos do Acórdão do T.C. nº 350/2022, processo n.º 460/21, 3.ª secção, de 12 de Maio de 2022 (consultável em tribunalconstitucional.pt) que descreve as razões que levaram a tal declaração de inconstitucionalidade, cujo conteúdo subscrevemos na íntegra, designadamente[2]:
Como se constata, o crime de desobediência previsto no n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal integra duas hipóteses, correspondentes às suas duas alíneas. Tais hipóteses, apresentando embora importantes denominadores comuns que justificam a sua inclusão num mesmo preceito incriminatório, exibem significativas diferenças. Do lado das semelhanças, como foi já aflorado, verifica-se que é em ambos os casos, necessário que uma pessoa falte à obediência devida a uma ordem ou mandado legítimos que tenham sido regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente. É a formulação que consta do proémio daquele n.º 1, a qual se desdobra em distintos e relativamente autónomos elementos típicos, cada um dos quais tem um sentido e um alcance próprios (cf. CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, “Artigo 348.º (Desobediência)”, in Jorge de Figueiredo Dias (dir.), Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial. Tomo III. Artigos 308.º a 386.º, Coimbra Editora, 2001, pp. 351 ss.; FRANCISCO BORGES, O Crime de Desobediência à Luz da Constituição, Almedina, 2011, pp. 51ss.), embora para os presentes efeitos não se imponha dissecá-los a todos. A alínea a) prevê então que haverá crime quando, estando tais elementos verificados, uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples. A alínea b), que haverá crime quando, estando tais elementos verificados e não existindo disposição legal que comine aquela punição, uma autoridade ou um funcionário fizerem a correspondente cominação.
Embora não haja consenso em torno dos termos utilizados para exprimir a distinção, a segunda hipótese referida – a da alínea b) – é frequentemente designada de desobediência em sentido próprio: “próprio”, porque a conduta tem lugar depois de uma autoridade ou funcionário cominarem a punição. Já a hipótese da alínea a) tende a ser designada de desobediência em sentido impróprio, porque é de uma (outra) disposição legal que a cominação resulta. Aqui, é a própria lei que descreve a conduta que, se cometida após a emissão de uma ordem legítima e reunidos os demais elementos previstos no proémio do n.º 1, constituirá um crime desobediência – no caso, a conduta de manter aberto, para lá das 20 horas, na Área Metropolitana de Lisboa, um estabelecimento de comércio a retalho e de prestação de serviços.
No plano dos interesses protegidos, poderá dizer-se que, enquanto a desobediência prevista na alínea b) protege primacial ou mais diretamente a autonomia intencional do Estado, a teleologia da norma decorrente da alínea a) aproximar-se-á da proteção do interesse subjacente à própria disposição que descreve a conduta proibida e comina a punição da desobediência (neste sentido e tendo como pano de fundo o específico âmbito da pandemia Covid-19, SUSANA AIRES DE SOUSA, “Sobre a proteção penal da saúde em tempos de pandemia: «isto já não é o que nunca foi»”, Revista do Ministério Público – Número Especial Covid-19, 2020, pp. 156 ss.; SANDRA OLIVEIRA E SILVA, “Entre a desobediência e a propagação de doença: como se punem as condutas «irresponsáveis» de contágio?”, idem, p. 217; NUNO BRANDÃO, “Um «take» sobre a desobediência no estado de emergência”, itercriminis.blog, 8 de maio de 2020, § 3 e n. 6). No caso, um interesse de natureza sanitária. Isto sem embargo de, por um lado, a alínea a) não deixar de se reconduzir ainda à proteção da autonomia intencional do Estado e, por outro, de este conceito poder, ele próprio, entender-se já como um «bem jurídico extenso», desdobrável em várias «vertentes» que, pelas suas especificidades, poderão até considerar-se, em si mesmas, «verdadeiros bens jurídicos» (FRANCISCO BORGES, op. cit., pp. 88 ss.).
10. A norma aqui em causa, decorrendo de uma articulação da alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal com preceitos aprovados através de Resolução do Conselho de Ministros, afigura-se ferida de inconstitucionalidade orgânica, uma vez que, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo – que no caso não teve lugar –, legislar sobre a definição dos crimes. A norma apenas ficaria resguardada de inconstitucionalidade orgânica se o seu conteúdo consistisse numa mera replicação ou concretização não inovatória do de outra norma já em vigor no ordenamento jurídico que satisfizesse as referidas condições orgânicas. Não apresentando caráter inovatório, o conjunto de preceitos em causa porventura nem faria emergir uma autêntica norma para efeitos de fiscalização concreta da constitucionalidade.
As bases legais expressamente invocadas pelo Conselho de Ministros para a aprovação da Resolução n.º 45-B/2020 foram os artigos 12.º e 13.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, na sua redação atual, por força do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na sua redação atual, do artigo 17.º da Lei n.º 81/2009, de 21 de agosto, do artigo 19.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual, e da alínea g) do artigo 199.º da Constituição. Compulsados esses diplomas, conclui-se que o único de que poderia já resultar a criminalização da conduta aqui em questão seria a Lei n.º 27/2006 – a Lei de Bases da Proteção Civil –, cuja redação atual foi dada pela Lei n.º 80/2015, de 3 de agosto. Não do seu artigo 19.º, invocado na Resolução – que se limita a estabelecer, sob a epígrafe «(c)ompetência para a declaração de calamidade», que «[a] declaração da situação de calamidade é da competência do Governo e reveste a forma de resolução do Conselho de Ministros» –, mas eventualmente de outros preceitos respeitantes a matérias de natureza penal, mais especificamente os seguintes.
O artigo 6.º da Lei de Bases da Proteção Civil, onde se prevê, para o que aqui mais releva, o seguinte:
«Artigo 6.º
(Deveres gerais e especiais)
1 - Os cidadãos e demais entidades privadas têm o dever de colaborar na prossecução dos fins da proteção civil, observando as disposições preventivas das leis e regulamentos, acatando ordens, instruções e conselhos dos órgãos e agentes responsáveis pela segurança interna e pela proteção civil e satisfazendo prontamente as solicitações que justificadamente lhes sejam feitas pelas entidades competentes.
(...)
4 - A desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em situação de alerta, contingência ou calamidade, são sancionadas nos termos da lei penal e as respetivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo.»
Por outro lado, o seu artigo 11.º, onde se prevê o seguinte:
«Artigo 11.º
(Obrigação de colaboração)
1 - Declarada uma das situações previstas no n.º 1 do artigo 8.º (sc. de alerta, de contingência ou de calamidade), todos os cidadãos e demais entidades privadas estão obrigados, na área abrangida, a prestar às autoridades de proteção civil a colaboração pessoal que lhes for requerida, respeitando as ordens e orientações que lhes forem dirigidas e correspondendo às respetivas solicitações.
2 - A recusa do cumprimento da obrigação estabelecida no n.º 1 corresponde ao crime de desobediência, sancionável nos termos do n.º 4 do artigo 6.º.»
Conterá algum destes preceitos uma norma segundo a qual, para efeitos do disposto no artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, constitui crime de desobediência o incumprimento de uma obrigação de encerrar determinado estabelecimento a partir de determinada hora durante uma situação de calamidade, independentemente de cominação por autoridade competente?
11. Começando pelo n.º 4 do artigo 6.º da Lei de Bases da Proteção Civil, limita-se o mesmo, praticamente, a estabelecer uma agravação de um terço nos limites mínimo e máximo da pena aplicável aos factos que integrem um crime de desobediência, não se apresentando como uma norma incriminatória. De facto, a primeira parte do preceito («[a] desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em situação de alerta, contingência ou calamidade, são sancionadas nos termos da lei penal»), em si mesma, pouco acrescenta ao disposto nessa mesma «lei penal» para cuja aplicação remete. É a leitura que ficou já sugerida, embora num âmbito distinto, no Acórdão n.º 352/2021 (cf. os seus pontos 6 e 7). É a parte final do preceito, fundamentalmente, que apresenta conteúdo inovador, determinando uma consequência jurídica de medida mais grave para a desobediência cometida no âmbito daqueles estados de exceção administrativa: «as respetivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo».
O único elemento diferenciador da primeira parte do artigo 6.º, n.º 4, da Lei de Bases da Proteção Civil, relativamente ao proémio do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal é a indicação dos estados de exceção administrativa. As condutas de desobediência e resistência contempladas naquela Lei de Bases são as que forem praticadas em algum daqueles estados e são essas que atraem a agravação estatuída na segunda parte do artigo 6.º, n.º 4. Trata-se de uma especificação que pouco contribui para o recorte do comportamento proibido: esse artigo 6.º, n.º 4, esclarece que em estado de exceção administrativa opera o agravamento da pena, mas não especifica um conjunto de concretas condutas para cujos efeitos essa disposição constituísse cominação bastante. Por outras palavras: se o proémio do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal não basta para determinar suficientemente a conduta proibida, o artigo 6.º, n.º 4, da Lei de Bases da Proteção Civil, não vai mais longe, pois limita-se praticamente a replicar o conteúdo do primeiro (ademais imperfeitamente, já que não contém sequer todos os seus elementos típicos) e a enquadrá-lo num dado estado de exceção administrativo.
É certo que o referido enquadramento no âmbito de um estado de exceção já concretiza em algum grau a conduta proibida, na medida em que requeira que a desobediência se refira a uma ordem relevante à luz das finalidades que determinaram a declaração daquele estado. Além disso, poderá considerar-se que, em face da complexa estrutura do artigo 348.º, n.º 1, do Código Penal, a lei cominadora a que a sua alínea a) se refere não carece de um grau de determinação tal que devesse detalhar as precisas condutas a que associa a punição da desobediência, como a circulação ou permanência em espaço frequentado pelo público em grupo superior a um dado número de pessoas, a venda de bebidas alcoólicas em área de serviço ou posto de abastecimento de combustíveis, a manutenção de estabelecimento comercial aberto para lá de determinada hora, etc. Com efeito, é bastante plausível que o n.º 4 do artigo 6.º da Lei de Bases da Proteção Civil não tenha pretendido abranger a desobediência a toda e qualquer ordem emitida durante um estado de exceção administrativa ainda que nada tenha que ver com ele – pense-se numa ordem para cessar a emissão de ruído depois de determinada hora –, mas que tenha, antes, pretendido cingir-se à desobediência a ordens materialmente relacionadas com o estado de exceção em causa e com as específicas razões que o determinaram. Isso é, aliás, sugerido pela referência feita no n.º 1 desse mesmo artigo 6.º aos «fins da proteção civil». Simplesmente, mesmo interpretado dessa forma, mais restrita do que outras que ainda seriam admitidas pela sua letra, o artigo 6.º, n.º 4, da Lei de Bases da Proteção Civil, continua a mostrar-se demasiado vago para satisfazer as exigências de determinabilidade da lei penal.
12. Desde logo, o referido artigo 6.º, n.º 1, embora contribua para o enquadramento da desobediência relevante para os efeitos do n.º 4, não deixa de se mostrar, ele próprio, bastante amplo, referindo-se a um genérico dever de colaborar na prossecução dos fins da proteção civil e de observar quaisquer disposições preventivas das leis e regulamentos, de acatar ordens, instruções e conselhos dos órgãos e agentes responsáveis pela segurança interna e pela proteção civil e de satisfazer prontamente as solicitações que justificadamente lhes sejam feitas. O mesmo vale para o disposto no artigo 11.º da Lei de Bases, em cujo n.º 1 se prevê um dever de prestar às autoridades de proteção civil a colaboração pessoal que lhes for requerida, respeitando as ordens e orientações recebidas que lhes forem dirigidas (novamente, quaisquer ordens e orientações) e correspondendo às respetivas solicitações, o que não se mostra mais definido do que o dever de obedecer às ordens legítimas referido no artigo 6.º, n.º 4, para o qual, de resto, o próprio artigo 11.º remete no seu n.º 2.
Uma vez que um estado de exceção administrativo pode ser declarado por razões muito distintas – sc. a verificação de um acidente grave suscetível de atingir pessoas e outros seres vivos, os bens ou o ambiente, ou de uma catástrofe suscetível de provocar elevados prejuízos materiais e, eventualmente, vítimas, afetando intensamente as condições de vida e o tecido socioeconómico em áreas ou na totalidade do território nacional (cf. os artigos 1.º, n.º 1, e 3.º da Lei de Bases da Proteção Civil) –, nenhum preceito constante desta Lei de Bases traz já ínsitas em si as concretas razões que presidem à declaração de um concreto estado de exceção. Só esta declaração pode conferir a tais preceitos o sentido final com que eles hão de aplicar-se durante a sua vigência, sendo que essa declaração não envolve um «complexo mecanismo de interdependência» entre órgãos de soberania (J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 1104) minimamente comparável àquele que preside à declaração de um estado de exceção constitucional. Não envolve, desde logo, qualquer intervenção da Assembleia da República, sendo antes, no caso da situação de calamidade, da exclusiva competência do Governo, por meio de Resolução do Conselho de Ministros (cf. o artigo 19.º da Lei de Bases da Proteção Civil). Em momento algum e de modo algum é a Assembleia da República – cuja atuação é indispensável à satisfação do princípio da legalidade criminal na vertente de lei formal – convocada a intervir nesse processo legiferante que gera normas novas e concorre para a determinação do sentido de preceitos já existentes sobre tais estados de exceção administrativos.
O contexto em que a situação de calamidade em causa foi declarada e o próprio facto de o ter sido na sequência de um período em que vigorou um estado de emergência terá, decerto, alguma relevância fáctica, no sentido de que torna absolutamente razoável a presunção de que os potenciais destinatários de tais normas estariam cientes da razão de ser daquela concreta situação de calamidade. Porém, não jurídica, já que não existe nenhuma ligação objetiva entre as normas relativas àquele estado de emergência e as relativas a esta situação de calamidade, nos termos do qual as primeiras pudessem de algum modo emprestar o seu sentido material e a sua legitimidade formal às segundas. A própria estratégia de levantamento das medidas de confinamento que se seguiu foi adotada por Resolução do Conselho de Ministros (n.º 33-C/2020), concomitantemente com a declaração da situação de calamidade (pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020), ambas emanadas ainda durante a vigência do estado de emergência, mas pelo Governo, ao abrigo do artigo 199.º, alínea g), da Constituição. Assim, uma análise das normas da Lei de Bases da Proteção Civil feita com vista a apurar se delas resulta uma cominação para os efeitos do artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, relativamente à conduta aqui em causa, tem de ser independente dos concretos motivos e contexto que subjazem a esta específica situação de calamidade – e valeria para outras, com distintos motivos e contextos subjacentes.
13. Repare-se que o artigo 6.º da Lei de Bases da Proteção Civil não contém sequer uma referência à violação das regras previstas na declaração do estado de exceção administrativo, em contraste com o que acontece, no que ao estado de emergência diz respeito, com o artigo 7.º do Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência, aprovado pela Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, na redação introduzida pela Lei Orgânica n.º 1/2012, de 11 de maio, nos termos do qual: «A violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respetivos autores em crime de desobediência». Aquele artigo 6.º não permite, assim, ensaiar uma análise idêntica à que consta do Acórdão n.º 921/2021, onde acabou por se concluir pela não inconstitucionalidade da norma contida no artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, por referência ao disposto no artigo 3.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, da Presidência do Conselho de Ministros, no segmento em que pune como crime de desobediência a violação da obrigação de confinamento.
Mesmo o conteúdo do artigo 7.º do Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência foi ali considerado «amplo e abrangente», sendo entendimento de alguns autores que ele não permite sustentar aquele crime de desobediência (v.g. ALEXANDRE AU-YONG OLIVEIRA, “O(s) crime(s) de desobediência no atual estado de emergência, em especial no domínio das restrições ao direito de deslocação e fixação – breves notas”, in Estado de Emergência – COVID-19 Implicações na Justiça, 2.ª ed., Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 2020, pp. 501 ss.). No Acórdão n.º 921/2021 concluiu-se que o conteúdo desse artigo 7.º «não é, à partida, indeterminado ou indeterminável», mas com base num entendimento segundo o qual existe «uma linha de continuidade lógico-jurídica – rectius, um encadeamento legitimador – entre o RESEE, o ato de autorização parlamentar, a Declaração do Estado de Emergência pelo Presidente da República e o Decreto do Governo que lhe dá execução, que permite estabelecer e compreender, sem desvios, uma relação entre a conduta proibida e os atos legislativos restritivos que, no quadro do Estado de Emergência, conduzem à proibição».
Esse entendimento não é transponível para os presentes efeitos. Além de, conforme se referiu já, o artigo 6.º, n.º 4, da Lei de Bases da Proteção Civil, não prever a violação do disposto na declaração do estado de exceção em causa, esta declaração (no caso, a declaração do estado de calamidade operada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020 e prorrogada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 40-A/2020) não foi, como não carecia de ser, aprovada pela Assembleia da República. Assim como o não foi a Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-B/2020, de 22 de junho, que definiu as regras especiais para a Área Metropolitana de Lisboa no âmbito desse estado de calamidade. Sobra então, como único preceito suscetível de satisfazer a exigência de lei incriminatória formal, o artigo 6.º, n.º 4, da Lei de Bases, que, como vimos, no plano da conduta proibida, apenas acrescenta ao proémio do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal a especificação do estado de exceção administrativo em que a desobediência ali em causa é praticada; que tem como função essencial ou até exclusiva agravar a pena aplicável a uma conduta cujo recorte confia à «lei penal», para a qual remete, de tal modo que aquela especificação menos clarifica este recorte do que qualifica um tipo legal de crime que supõe recortado por outras normas.
Aliás, outro entendimento equivalerá a admitir que poderia punir-se, exclusivamente com base nos artigos 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e 6.º, n.º 4, da Lei de Bases da Proteção Civil, uma conduta desobediente materialmente relacionada com esta concreta situação de calamidade mas não proibida por qualquer norma constante das Resoluções do Conselho de Ministros que a declararam ou prorrogaram e que definiram o seu regime.
14. Que uma imagem suficientemente nítida das condutas puníveis não é dada pelo n.º 4 do artigo 6.º da Lei de Bases da Proteção Civil parece, de resto, corresponder ao entendimento do próprio legislador, expresso num duplo momento.
Em primeiro lugar, na Resolução do Conselho de Ministros n.º 33-A/2020, que declarou a situação de calamidade, em cujo ponto 10 (mantido, de resto, em algumas Resoluções subsequentes) se determinou «(r)eforçar que a desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas durante a vigência da situação de calamidade e em violação do disposto no regime anexo à presente resolução, constituem crime e são sancionadas nos termos da lei penal, sendo as respetivas penas agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo, nos termos do n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho, na sua redação atual». Embora se comece por sugerir que tais condutas já constituiriam crime (o que a Resolução viria apenas «(r)eforçar»), acrescenta-se depois ao n.º 4 do artigo 6.º da Lei de Bases da Proteção Civil uma exigência que (como a Resolução desse passo reconhece) dele não consta: a de que a desobediência tenha sido praticada «em violação do disposto no regime anexo à presente resolução».
Em segundo lugar, e de modo mais concludente, no ponto 4 da Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-B/2020, que é diretamente convocado pela questão de constitucionalidade aqui em apreço. Determinou-se aí que «a publicação da presente resolução constitui para todos os efeitos legais cominação suficiente, designadamente para o preenchimento do tipo de crime de desobediência», o que infirma a ideia de que tais condutas já constituíam crime. Estivesse o legislador convicto de que o artigo 6.º, n.º 4, da Lei de Bases da Proteção Civil seria bastante para os efeitos do artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, desnecessário se lhe teria afigurado aprovar uma disposição a que atribuiu a função de cominar a punição da desobediência. Bastar-lhe-ia continuar a “reforçar” que essa cominação já decorria daquele artigo 6.º, n.º 4, caso em que, como já se sugeriu, nem poderia porventura considerar-se que tal disposição preenchesse o conceito de norma relevante para os efeitos da fiscalização concreta da constitucionalidade (cf. o Acórdão prolatado no âmbito do processo n.º 324/2021).
Em conclusão, a Lei de Bases da Proteção Civil não contém uma disposição que comine a punição da desobediência, para os efeitos do artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, para a conduta, cometida em situação de calamidade, de desobedecer a ordem ou comando no sentido de que seja encerrado determinado estabelecimento a partir de determinada hora. Não tem a definição necessária para poder considerar-se uma norma incriminatória já suficientemente determinada a que o n.º 2 do artigo 5.º-B, introduzido pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 45-B/2020, tivesse vindo apenas dar maior nitidez. Uma tal cominação veio a ser realizada somente pelo ponto 4 daquela Resolução, conjugadamente com o referido artigo 5.º-B, n.º 2, que introduz elementos centrais para a definição da conduta proibida, pelo que careceria, ele próprio, de revestir os atributos exigidos pelo princípio da legalidade na vertente de lei formal (cf. os Acórdãos n.º 256/2002, n.º 187/2009, n.º 397/2014 e n.º 149/2017).
No âmbito da situação de calamidade é inequívoco que o Governo não tem competência para aprovar uma norma como a que aqui se aprecia sem que para tanto estivesse autorizado pela Assembleia da República. Em termos idênticos aos sustentados nos Acórdãos n.º 424/2020, n.º 88/2022, n.º 89/2022 e n.º 90/2022, assim como no âmbito dos processos n.º 594/2021, n.º 663/2021 e n.º 740/2021 – todos relativos a matérias integradas na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República e todos relativos a normas aprovadas no âmbito da situação de calamidade –, para cuja fundamentação, portanto, se remete, com as necessárias adaptações.
6. Fazendo uso do que acima se mostra dito, também aqui se dirá que a norma aqui em causa, decorrendo de uma articulação da alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal com preceitos aprovados através de Decreto-Lei e de uma Resolução do Conselho de Ministros, afigura-se ferida de inconstitucionalidade orgânica, uma vez que, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, é da exclusiva competência da Assembleia da República, salvo autorização ao Governo – que no caso não teve lugar –, legislar sobre a definição dos crimes.
A norma apenas ficaria resguardada de inconstitucionalidade orgânica se o seu conteúdo consistisse numa mera replicação ou concretização não inovatória do de outra norma já em vigor no ordenamento jurídico que satisfizesse as referidas condições orgânicas.
O que não é o caso.
7. Pelas razões acabadas de expor, aplicáveis, mutatis mutandis, à questão ora em apreciação, entendo padecer de inconstitucionalidade orgânica a norma decorrente do artigo 13-B, n.º 1 alínea f) do Decreto-lei n.º 78.º A /2021, de 29 de Setembro, e pelo ponto 10 da resolução do conselho de ministros n.º 135.º A/2021, de 29 de Setembro de 2021, com o artigo 348.º, n.º 1, do Código Penal, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição.
8. Em consequência, dá-se provimento ao recurso, revogando-se a decisão proferida pelo tribunal “a quo” e, em consequência, absolve-se o arguido da prática do crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1 do Código Penal, com referência ao artigo 13.º B, n.º 1 alínea f) do Decreto –lei n.º 78.º A /2021. de 29 de Setembro e pelo ponto 10 da resolução do conselho de ministros n.º 135.º A/2021, de 29 de Setembro de 2021, em virtude da inconstitucionalidade acima declarada.
Maria Margarida Ramos Almeida
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[2] Vide, em sentido similar, ACÓRDÃO Nº 557/2022, Processo n.º 497/2021, 1.ª Secção, de 20 de Setembro de 2022, entre outros).