Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6422/22.9T8FNC.L1-2
Relator: JOSÉ MANUEL CORREIA
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
RECLAMAÇÃO
RECURSO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PROCESSO TUTELAR CÍVEL
NOTIFICAÇÃO
RELATÓRIO SOCIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I.A nulidade fundada em violação do princípio do contraditório, tendo por base a não realização da audiência de julgamento ou a obstaculização da parte de participar ativamente no desenvolvimento do litígio e de influir nos elementos determinantes da decisão, constitui um vício que decorre do facto de o próprio juiz do processo, ao proferir a sentença, ter omitido uma formalidade de cumprimento obrigatório.

II.O meio adequado de reação à mesma é, assim, não a reclamação prevista no art.º 196.º do CPC, mas o recurso da sentença proferida, já que, tendo o vício sido revelado apenas com a prolação da decisão, exigir-se a sua reclamação prévia implicaria colocar o juiz do processo na contingência de poder revogar ou modificar a decisão que proferira, apesar de, com a sua prolação, se ter esgotado o seu poder jurisdicional quanto ao mérito da causa (art.º 613.º do CPC).

III.Ademais, decorrendo o conhecimento do vício pela parte prejudicada da prolação da sentença, a mesma nem sequer dispusera da possibilidade de arguir a nulidade processual correspondente à omissão do ato, sendo o recurso, assim, a única via adequada à recomposição da legalidade do processo.

IV.Assiste aos pais, em processo tutelar cível, o direito de conhecerem as informações, as declarações da assessoria técnica e outros depoimentos, processados de forma oral e documentados em auto, bem como relatórios, exames e pareceres constantes do processo e de pedirem esclarecimentos, juntarem outros elementos ou requererem a solicitação de informações que considerem necessárias, sendo-lhes garantido o contraditório relativamente às provas obtidas por qualquer um destes meios (art.º 25.º, n.ºs 1 e 3 do RGPTC).

V.Ordenada, pelo tribunal, a elaboração do relatório social previsto no art.º 21.º, n.º 1, al. e) do RGPTC, impõe-se que o mesmo, uma vez elaborado, seja, atento o regime supra traçado, levado ao conhecimento dos pais e que seja facultado a estes o exercício dos direitos previstos nos n.ºs 1 e 3 do citado art.º 25.º do RGPTC, o que, a não ocorrer, consubstancia a omissão de um ato prescrito na lei.

VI.Tal omissão é, também, suscetível de influir na decisão da causa, em se tratando de omissão de notificação de documento subjacente a cuja elaboração está, nos termos do n.º 5 do art.º 21.º do RGPTC, a sua ‘indispensabilidade’ para a decisão da causa e que, no caso concreto, constituiu o único meio de prova em que o tribunal, como decorre da motivação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida, estribou as considerações tecidas no elenco de factos provados sobre as condições de vida dos progenitores.

VII.Constitui a mesma, assim, uma nulidade nos termos do n.º 1 do art.º 195.º do CPC, que, de acordo com o n.º 2 deste preceito, implica a anulação da sentença recorrida, com o consequente dever do tribunal de ordenar a notificação do relatório social aos pais e de lhes facultar o exercício do contraditório nos termos e para os efeitos do supra citado art.º 25.º, n.ºs 1 e 3 do RGPTC.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa os Juízes Desembargadores abaixo identificados


I.Relatório


instaurou, nos termos do disposto nos art. ºs 3.º, al. c) e 42.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08/09, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 24/2017, de 24/05 – doravante, RGPTC), contra …, a presente ação de alteração do regime do exercício das responsabilidades parentais relativamente à criança, filha de ambos, … .
Como fundamento da ação invoca, em síntese, o seguinte.
Aquando do divórcio do Requerente e da Requerida entre si foi homologado o acordo quanto ao exercício das responsabilidades parentais relativas à criança, filha de ambos, …, nascida em … .
Desde o divórcio, a criança passa uma semana com cada progenitor alternadamente, o que é aceite por todos.

Por essa razão, pretende a alteração do acordo firmado quanto ao exercício das responsabilidades parentais no sentido de consagrar a guarda partilhada da criança, nos seguintes termos:
1.O filho menor residirá com o Pai e com a mãe, alternadamente, por períodos de uma semana, de sexta a sexta-feira.
2. Para os efeitos do estipulado no número anterior, o Pai ou a Mãe deverão, no final do período em que a criança estiver confiada ao outro Progenitor, ir recolher a criança à escola ou à casa do outro Progenitor, pelas 20h00, sem prejuízo da rotina diária e semanal do filho menor, que ambos se obrigam a respeitar.
Consequentemente, do acordo firmado devem, também, ser revogados: o 2.º parágrafo do art.º 1.º e os 1.º e 2.º parágrafos do art.º 2.º.
Acrescentou que é intenção da Requerida emigrar para os Estados Unidos da América a fim de refazer a sua vida pessoal e profissional, o que, podendo ser bom para a mesma, não o é para o filho.
Na verdade, além de passar uma semana com cada progenitor, o filho é próximo do pai.
Por outro lado, vive no Funchal desde os 4 anos de idade, frequenta uma creche onde tem os seus amigos e a sua vida pessoal e emocional está fortemente enraizada no Funchal.
Retirá-lo deste enquadramento pessoal, social e familiar e levá-lo para um país desconhecido, cuja língua desconhece, prejudicá-lo-á, pois, na sua formação e no seu crescimento.
Acresce que a Requerida pretende emigrar para aquele país sem promessa de trabalho, sem visto legal e sem certeza no futuro.
O interesse do filho de ambos é, pois, o de não acompanhar a mãe e manter-se no Funchal com o pai.

Pretende, assim, e também, que o acordo quanto às responsabilidades parentais relativamente à criança seja alterado no sentido de que:
- Qualquer viagem ao estrangeiro pelo menor exige o consentimento escrito de ambos os progenitores, com a consequente revogação do art.º 5.º do acordo inicialmente firmado.
Finalmente, devem ser alteradas outras condições do acordo de modo a prever como será em caso de um progenitor não residir na ilha da Madeira.
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Uma vez citada, apresentou a Requerida a sua alegação, batendo-se pela alteração do regime do exercício das responsabilidades parentais relativamente ao filho de ambos nos seguintes termos:
- As responsabilidades parentais relativas ao menor … serão exercidas totalmente pela mãe, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores poderá agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível.
Para tanto, e em síntese, invocou o seguinte.
Após o divórcio, permitiu que, por algumas semanas, o Requerente levasse o filho consigo, sem, contudo, renunciar (a Requerida) ao acordado quanto à guarda do mesmo.
Discorda das alterações propostas pelo Requerente, porque este não cumpre com os deveres a que se comprometeu no acordo homologado respeitante ao exercício das responsabilidades parentais do filho.
Com efeito, o pai não pagou a prestação de alimentos acordada em qualquer dos meses subsequentes ao divórcio, sendo a mãe quem suporta todas as despesas com o menor, incluindo as inerentes à sua alimentação e saúde.
Reconhecendo que pretende, de facto, refazer a sua vida, retorquiu que, além de o ter transmitido de boa fé ao Requerente, isso é bom para o filho, já que o bem estar da mãe é certamente o bem estar daquele.
Isto, tanto mais que tem duas ofertas de contrato de trabalho, que irão proporcionar um projeto de vida melhor para si e para o filho, sendo falso que pretenda emigrar sem visto e sem certeza no seu futuro.
Ademais, no Funchal, vive só, com o filho menor, já que não tem outra família na região, sendo que trabalha para cobrir as despesas da vida de ambos, sem apoio de qualquer outra pessoa.
Salientou, ainda, que tem parte da sua família nos Estados Unidos da América, nomeadamente, os pais e os irmãos, que são cidadãos norte-americanos, além de tios e primos, com empresas próprias.
Também tenciona casar com o seu futuro marido, cidadão norte-americano residente nos Estados Unidos, com o qual pretende viver e ter o seu filho menor a seu cargo, sendo que, para o efeito, tem levado a cabo todas as diligências necessárias a fim de inscrevê-lo em escola e na Segurança Social daquele país.
O melhor para o seu filho é, pois, manter-se ao seu lado, sendo pessoa responsável e que, de resto, nunca coartou ao pai a possibilidade de contactar com o mesmo, tendo-se disposto, inclusive, a pagar a passagem de avião ao Requerente para visitá-lo.
Conclui, assim, pela alteração do regime das responsabilidades parentais vigente, mas no sentido por si propugnado e não no proposto pelo Requerente.                
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Realizada conferência de pais, gorou-se a obtenção de acordo entre Requerente e Requerida, em face do que:
i.-foram tomadas declarações a ambos;
ii.-foi proferido despacho a ordenar à Equipa Cível da Segurança Social a elaboração de relatório nos termos do disposto no art.º 21.º, n.º 1, alínea e) do RGPTC.
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Por despacho proferido em 22-06-2023, e em apreciação de requerimento da progenitora adrede formulado, foi decidido:
.- autorizar o menor …, nascido a …, a viajar com a Progenitora para os Estados Unidos da América, para um período de férias de verão, com data de regresso a Portugal no dia … .
Consequentemente,
.- Durante o período da viagem de férias, o Progenitor poderá contactar o menor diariamente através dos meios de comunicação à distância disponíveis, devendo a progenitora garantir esses contactos.
.- A Progenitora deverá informar o Progenitor do local onde o menor se encontra durante todo o período de férias.
.- A Progenitora deverá entregar o menor … ao Progenitor no dia … na Região Autónoma da Madeira, com vista a permitir que este passe com o pai o período de férias de verão acordado.
.- Caso surja algum motivo que impeça a Progenitora de viajar para Portugal na data supra referida, a Progenitora fica obrigada a adquirir e enviar para o Progenitor bilhetes de avião para o Progenitor e o menor, com vista a que aquele se desloque aos Estados Unidos para regressar com a criança a Portugal, a fim de poder passar os restantes dias de férias com a mesma.
Notifique os Progenitores, pela via mais expedita.
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Foi elaborado e junto aos autos o relatório social solicitado à Segurança Social.
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Agendada nova conferência de pais nos termos do art.º 35.º, n.º 1, ex vi art.º 42.º, n.º 5 do RGPTC, gorou-se novamente o acordo entre os progenitores, na sequência do que:
.- foram tomadas declarações ao Requerente e à Requerida;
.- foi ordenada a notificação de ambos para, no prazo de 15 dias, apresentarem alegações ou arrolarem até 10 testemunhas e juntarem documentos, nos termos do art.º 39.º, n.º 4 do RGPTC.
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Notificados Requerente e Requerida (no termo da diligência de conferência de pais), estes não apresentaram alegações, nem requereram a produção ou a junção de qualquer meio de prova.
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O Ministério Público, em vista do processo, emitiu parecer sobre a decisão final a proferir nos autos, designadamente, em sentido positivo quanto à alteração da residência da criança para os EUA com a mãe, e com a fixação de um regime de contatos com o pai nos moldes indicados no relatório social, isto é, contatos telefónicos através de videochamada, bem assim como que o menor passe alternadamente os períodos de férias de Natal/Fim-de-Ano e Páscoa com os progenitores, passe os períodos de interrupção letiva com o pai na Madeira e divida equitativamente o período de férias de Verão com os pais, em termos a combinar entre os pais até ao final de abril de cada ano.
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Seguidamente, foi proferida sentença, julgando a ação no sentido de:
1.º
Autorizar a alteração da residência do menor, com a mãe, para os Estados Unidos da América, ficando a mãe, … , autorizada a residir nos Estados Unidos da América com o menor, podendo deslocar o menor entre os Estados Unidos da América e Portugal sem necessidade de autorização do pai.

Em consequência, proceder à alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas ao menor …, na parte referente ao regime de convívios – cláusula 2.ª, mantendo-se o demais, nos seguintes termos:

2.º
1)- Caso se desloque aos Estados Unidos da América, o pai poderá ver e estar com o filho sempre que desejar, em termos a combinar com a mãe, com uma antecedência mínima de 8 dias, sem prejuízo dos horários escolares e de descanso do menor.
2)- O menor passará, de forma alternada, os períodos de férias de Natal/Fim-de-Ano e de Páscoa com cada um dos pais, iniciando-se o Natal/Fim-de-Ano de 2023 com a mãe e a Páscoa de 2024 com o pai, alternando nos anos seguintes.
3)- O menor passará metade das férias de Verão com cada um dos pais, em termos a combinar entre ambos até ao dia 30 de Abril de cada ano.
4)- Caso o menor beneficie de outros períodos de férias escolares, os mesmos serão passados com o pai.
5)- Os custos das viagens do menor para as estadias de férias em Portugal, com o pai, serão suportados por ambos os pais, suportando o pai os custos das viagens dos Estados Unidos da América para Portugal e a mãe os custos das viagens de Portugal para os Estados Unidos da América.
6)- A mãe deverá manter o pai informado sobre a vida do menor, designadamente sobre o percurso escolar, nomeadamente avaliação escolar e período de férias escolares, sobre a saúde, nomeadamente consultas médicas e problemas de saúde e ainda sobre quaisquer questões relevantes para a vida do menor.
7)- A mãe deverá providenciar para que o menor contacte regularmente com o pai, seja por chamadas telefónicas e/ou videochamadas, devendo para o efeito informar o pai de todos os contactos necessários para o efeito e quaisquer alterações dos mesmos.

Fixar o valor da causa, nos termos do disposto nos art.ºs 303.º, n.º 1 e 306.º do Código de Processo Civil, em € 30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo).
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Inconformado com esta decisão, veio o Requerente interpor recurso, formulando as seguintes conclusões, que assim se transcrevem:
1.º-O recorrente … veio requerer a alteração da regulação das responsabilidades parentais, pedindo ao Tribunal que fosse definido um regime de guarda partilhada, residência alternada do menor … .
2.º-Após a realização de duas conferências os progenitores do menor não chegaram a um acordo.
3.º-Não houve audiência de julgamento.
4.º-O tribunal a quo decidiu no sentido de autorizar a alteração da residência do menor, com a mãe, ingressando para os Estados Unidos da América, e ficando a progenitora, …, autorizada a residir nos Estados Unidos da América com o menor e podendo deslocar o menor entre os Estados Unidos da América e Portugal sem necessidade de autorização do pai.
5.º-Em consequência, procedeu à alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais relativas ao menor …, na parte referente ao regime de convívios – cláusula 2.ª.
6.º-Certo é que o Tribunal a quo se baseou unicamente nas declarações da ora recorrida, conjugado com o assento de nascimento do menor, a ata da conferência da Conservatória do Registo Civil do Funchal e o relatório social.
7.º-Desconsiderando as declarações do pai.
8.º-Não foi produzida prova suficiente nem qualquer prova testemunhal que se demonstrasse que a alteração da residência do menor para os Estados Unidos da América com a mãe, fosse o mais adequado e o melhor para o interesse superior da criança.
9.º-À data (e no momento) em que a douta sentença recorrida foi proferida, não se verificou nem se provou qualquer facto ou circunstância superveniente que justificasse a alteração do regime anteriormente fixado, pelo que este se deveria ter mantido, em qualquer caso inalterado, nomeadamente em relação a residência.
10.º-O recorrente alega nulidade por violação do princípio do contraditório [(a qual é suscetível de influir sobre a decisão da causa).
11.º-Sustenta enfaticamente o ora recorrente que deveria haver audiência de julgamento, com produção de prova suficiente, testemunhal ou documental, tendo assim sido desrespeitado, nomeadamente o art.º 3 do CPC.
12.º-Sendo que o contraditório é entendido como uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.
13.º-Bem como o Princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º- da Constituição da República Portuguesa.
14.º-Quando, o Tribunal recorrido privilegiou claramente e indevidamente os interesses da requerente mãe do menor em detrimento do superior interesse da criança e do progenitor.
15.º-A decisão recorrida fez má aplicação da lei e decidiu mal ao determinar que o menor deve ir para os Estados Unidos viver com a mãe, esquecendo dos direitos que assistem ao progenitor
16.º-Violando ainda, entre outros, o artigo 4°, n° 1 do RGPTC, do qual deve resultar uma interpretação que, antes de mais nada, privilegie a proteção do superior interesse da criança, no caso da criança … em detrimento de outros interesses, ainda que relevantes e legítimo e ainda interpretou e aplicou incorretamente o disposto nos artigos 1906°, n. º7 do Código Civil e 40° do RGPTC, ao não atender convenientemente ao superior interesse da menor , filho menor do ora recorrente.
17.º-Na verdade, a douta sentença em recurso significa uma intolerável e injustificada desestabilização da vida do menor, passando esta, com autorização do Tribunal, a residir nos Estados Unidos da América, país longínquo, afastada do seu núcleo familiar mais próximo e, sobretudo, do progenitor pai.
18.º-Em consequência, a douta sentença recorrida "legitima" em nome dos interesses laborais da mãe da menor e dos interesses familiares daquela nomeadamente da reconstrução da vida com outro companheiro noutro país, o desenraizamento total da vida do menor, afastando-a (quase) definitivamente de toda a sua família
19.º-E sobretudo, em nome dos interesses (laborais e familiares) da progenitora mãe, ao menor verá doravante definitivamente afastada da sua vida o seu pai, o ora recorrente, e restringidos os contactos regulares com este, que se limitarão no futuro e caso seja mantida a decisão em recurso, a meros telefonemas ou videochamadas, com todos os prejuízos daí decorrentes na relação entre pai e filho.
20.º-Não se concorda com o enquadramento que o Tribunal recorrido faz do interesse superior da criança no caso concreto;
21.º-O menor reside de forma alternada o pai, com quem mantém uma relação afetiva muito próxima e gratificante, que convém manter e fortalecer.
22.º-O ora recorrente se assumiu como alternativa para assumir a guarda e cuidados do seu filho, reunindo condições para o efeito, conforme se pode verificar no relatório social.
23.º-Ora, encontrando-se demonstrado que a pretensão da progenitora está justificada e é necessária para a sua própria estabilidade e interesse e não interesse superior da criança, entende-se que a decisão do tribunal a quo não deveria ter sido aquela, não se alterando a residência do menor com a mãe para os Estados Unidos, aliás, como sempre foi dito pelo progenitor.
24.º-Não foi defendido o superior interesse da criança, mandando-a para os Estados Unidos da América, desterrando-a da família.
25.º-É do seu superior interesse que fique a viver com o pai e não com a mãe, num país diferente integrando um agregado familiar diferente do seu, gente diferente, língua diferente e fica longe.
26.º-Entendemos ainda que a mudança da residência do menor para os Estados Unidos da América deve ser colocada como um entrave para o percurso escolar do menor.
27.º- Na verdade, será muito difícil a reintegração social e escolar desmotivadora; Mais, cremos ser um sacrifício para a criança e para o progenitor, que quer assumir o seu papel de pai sem reservas, pelo que pretende que seja aletrado o que foi decidido quanto à alteração da residência do menor Victor.
28.º-Assim, deste modo, entende o ora recorrente que todos os direitos da criança não convergem com os da mãe, sendo que no caso, o melhor para o menor é permanecer junto do pai.
29.º-Desta forma, sempre estaria acautelado o supremo interesse do Victor, nomeadamente à segurança na continuidade em residir com o seu pai, continuação da escola entre outros, acautelando deste modo a estabilidade na vida do menor.
30.º-A douta sentença ainda interpretou e aplicou incorretamente o disposto nos artigos 1905° e 1906° do Código Civil e 40° do RGPTC, ao não atender convenientemente ao superior interesse da menor, filho menor do ora recorrente.
31.º-Por isso, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que mantenha inalterado o regime de regulação das responsabilidades parentais do menor anteriormente fixado, especialmente no que diz respeito à sua residência em Portugal, com todas as consequências legais.
32.º-O Tribunal a quo decidiu mal quando considerou em primeiro lugar a estabilidade profissional e do no agregado familiar da mãe e não considerou o que deveria ter primazia: o Interesse Superior da Criança.
33.º-A referida sentença deverá ser declarada nula, nos termos do artigo 615.º n.º 1 do CPC.

Vejamos,

34.º-Relativamente ao concreto pedido aduzido pela recorrente/recorrida, no que toca a alteração da regulação das responsabilidades parentais, está em oposição com a decisão do tribunal a quo.
35.º-O que o ora recorrente pediu foi a alteração da regulação das responsabilidades parentais, nomeadamente a guarda/residência alternada, de maneira a que o menor … ficasse a residir uma semana com cada um dos progenitores, o que efetivamente já acontece e aconteceu na prática.
36..º-A recorrida requer uma autorização do menor viajar para os Estados Unidos da América de ferias.
37.º-O Tribunal a quo por sua vez, autoriza a alteração da residência do menor, com a mãe, para os Estados Unidos da América, e autorizando a sua residência junto à mãe naquele país.
38.-Bem como procedeu uma alteração da regulação das responsabilidades parentais relativas ao menor …, na parte referente ao regime de convívios.
39.-O que foi decidido foi diferente do elencado no início do processo, diferente do que foi peticionado, ou seja, o Tribunal a quo decidiu diferente do pedido.
40.-Segundo a referida alínea c) do citado art. 615º, nº 1 do Código Processo Civil, a sentença será nula quando “os fundamentos estejam em oposição com a decisão”, e bem assim quando “ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”. obviamente que quando se fala, a tal propósito, em “oposição entre os fundamentos e a decisão”, está-se a aludir à contradição real entre os fundamentos e a decisão;
41.-No caso concreto, a fundamentação apontou num sentido e a decisão seguiu caminho oposto.
42.-Na verdade, o que está em causa nesse normativo é a contradição resultante de a fundamentação da sentença apontar num sentido e a decisão (dispositivo da sentença) seguir caminho oposto ou direção diferente
43.-Inserindo-se no quadro dos vícios formais da sentença, tal como elencados nos artigos 667º e 668º do Código Processo Civil e atualmente nos artigos 614º e segs. do Código Processo Civil, sem contender, pois, com questões de substância, que, como tais, já se prendem com o mérito, e não com o âmbito formal.
44.-O recorrente sustenta igualmente o desacerto da decisão sobre a matéria de facto,
45.-assim como um erro na decisão, ao autorizar-se a alteração da residência do menor, com a mãe, para os Estados Unidos da América, ficando com a mãe, bem como alterar-se a regulação das responsabilidades parentais relativas ao menor …, na parte referente ao regime de convívios.”
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O Ministério Público respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
I.Dispõe o art. 39º, nº 5, do RGPTC que Findo o prazo das alegações previsto no número anterior e sempre que o entenda necessário, o juiz ordena as diligências de instrução, de entre as previstas nas alíneas a), c), d) e e) do n.º 1 do artigo 21.º”
II.E o seu nº 6 que De seguida, caso não haja alegações nem sejam indicadas provas,  ouvido o Ministério Público, é proferida sentença.
III.O recorrente pai não foi limitado o exercício do contraditório, porquanto teve a oportunidade em expor a sua posição em duas conferências de pais, foi ouvido pela Equipa Cível que efetuou o relatório social, e, notificado nos termos do art. 39º, nº 4, do RGPTC, não apresentou alegações nem indicou prova.
IV.A salvaguarda do superior interesse do … impõe que se alcance a solução vivencial que melhor promova o seu harmonioso desenvolvimento físico, intelectual e moral, bem como sua a estabilidade emocional, tendo em conta a idade, o seu enraizamento ao meio sociocultural e a disponibilidade e capacidade dos progenitores em assegurar tais objetivos, o que passa pela garantia de condições materiais, sociais, morais e psicológicas que tornem possível o são desenvolvimento da sua personalidade à margem das tensões e dos conflitos que eventualmente ocorram entre os progenitores, e que viabilizem o estabelecimento de um relacionamento afetivo contínuo entre ambos.
V.O projeto de vida apresentado pela mãe nos EUA apresenta uma maior consistência a todos os níveis, seja habitacional, económico, familiar e profissional.
VI.Quer a mãe quer o marido têm atividade profissional, dispõem de habitação própria, com espaço próprio para o menor.
VII.Ademais, a mãe possui retaguarda familiar nesse país, seja da sua família seja da família do marido.
VIII.E, principalmente, o … poderá crescer em proximidade com a irmã recém nascida.
IX.A mãe nunca limitou os contatos da criança com o pai.
X.A mãe sempre favoreceu a proximidade da criança com o pai, seja na execução de um regime de residência alternada antes e depois do pai requerer a alteração das responsabilidades parentais, seja regressando dos EUA após ter sido autorizada pelo Tribunal a deslocação, viabilizando que a criança passasse o resto das férias com o pai.
XI.Contrariamente, o pai tentou impedir que a criança beneficiasse da experiência positiva da viagem e do contato com os demais familiares residentes nos EUA, fazendo prevalecer os seus receios.
XII.A nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la. Ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente.
XIII.No caso concreto os argumentos utilizados na decisão conduzem, em termos lógicos, à conclusão da decisão, pelo que não há qualquer contradição.
XIV.Saber se a decisão (de facto ou de direito) está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma.
XV.Assim, não se verifica a nulidade prevista na al. c) do nº 1, do art. 615º, do CPC.
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A Requerida não respondeu ao recurso.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 32.º do RGPTC e 637.º, 639.º e 644.º, n.º 1, al. a) e 645.º, n.º 1 do CPC, e assim recebido nesta Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
No despacho que admitiu o recurso, o tribunal a quo pronunciou-se sobre as nulidades nele imputadas à sentença proferida, concluindo que a sentença não padecia de qualquer dos vícios invocados.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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I.Das questões a decidir

.- O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art. ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art. ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).

Neste pressuposto, as questões que, neste recurso, importa apreciar e decidir são as seguintes:
1.-saber se há nulidade atendível por violação do princípio do contraditório, pelo facto de não ter sido realizada audiência de julgamento e de não ter sido garantida ao Recorrente a participação efetiva no desenvolvimento do litígio e a possibilidade de influir nos elementos relevantes para a decisão da causa;
2.-saber se há nulidade da sentença recorrida pelo facto de esta ter conhecido uma questão de que não podia tomar conhecimento (alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC);
3.-saber se há nulidade da sentença recorrida pelo facto de os fundamentos desta estarem em oposição com a decisão (alínea c) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC);
4.-saber se deve ser conhecida a impugnação da decisão quanto à matéria de facto constante da sentença recorrida e, na afirmativa, se tal decisão deve ser alterada nos termos propugnados pelo Recorrente;
5.-saber se o regime do exercício das responsabilidades parentais relativas à criança, filha do Recorrente e da Recorrida, mais adequado aos interesses desta é, no que toca à sua residência, a sua permanência em Portugal com o pai e não nos EUA com a mãe.
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III.Da Fundamentação

III.I.-Na sentença proferida em 1.ª Instância e alvo deste recurso foram considerados provados os seguintes factos:
1.- … nasceu em … e é filho de … e de … .
2.- Por decisão proferida em …, no âmbito do Processo de Divórcio por mútuo consentimento n.º …, que correu termos na Conservatória do Registo Civil do Funchal, foi homologado o seguinte acordo de regulação das responsabilidades parentais do menor:
1.º
a)-As responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do menor serão exercidas em comum por ambos os progenitores, salvo nos casos de urgência manifesta, em que qualquer dos progenitores poderá agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível.
b)- O exercício das responsabilidades parentais relativas aos actos da vida corrente do menor cabe à mãe, com a qual este ficará a residir habitualmente, ou ao pai, quando com ele se encontre temporariamente; porém, o pai ao exercer as suas responsabilidades, não deverá contrariar as orientações educativas mais relevantes, tal como elas são definidas pela mãe.
2.º
Por seu lado, o pai poderá ter consigo o filho sempre que acordarem, salvo no caso de aquele não poder, caso em que entrará em contato com a mãe com antecedência, avisando-a desse facto e salvaguardando os horários escolares.
O menor passará os fins de semana de forma alternada com o pai, devendo este ir buscá-lo à escola ou casa da mãe na sexta-feira e entregá-lo no domingo à noite na casa da mãe.
Nas férias e interrupções escolares o menor estará com ambos os progenitores em tempo igualitário, Férias de Verão, Páscoa e Carnaval.
Nas Férias de Natal o menor passará alternadamente o dia 24 e 3t de Dezembro com um progenitor e 25 de Dezembro e L Janeiro com outro progenitor, alternando-se nos ano subsequentes, sem prejuízo de acordo diverso entre os progenitores.
3.º
Os alimentos devidos são fixados em 100€ mensais e devem ser depositados pelo pai dia 8 de até ao cada mês na conta aberta no banco caixa Gerar de Depósitos, com o n …, em nome da mãe.
4.º
As despesas com saúde, escola e vestuário, serão repartidas em partes iguais por ambos os progenitores, mediante a apresentação dos respectivos documentos comprovativos, devendo o progenitor que realizou a compra comunicá-las no prazo de quinze dias ao outro progenitor para o mesmo proceder ao pagamento no prazo de 30 dias após a comunicação/apresentação da  despesa.
5.º
Os progenitores autorizam a que o filho possa viajar de férias, ainda que para o estrangeiro, com o outro progenitor, pelo período máximo de 30 dias, devendo o progenitor que efectuar a viagem informar o outro com pelo menos 30 dias de antecedência do destino, período de duração e formas de contatos, devendo garantir os contatos com o outro progenitor.
6.º
Esta pensão de alimentos será actualizada anualmente em Janeiro de cada ano, segundo  os índices de inflação, a publicar pelo Instituto Nacional de Estatística. A primeira actualização deverá ser efetuada em Janeiro de 2023.

3.- O agregado familiar do pai é constituído … .
4.- O agregado familiar reside em habitação … .
5.- O menor e o pai … .
6.- O espaço habitacional está dotado de … .
7.- O requerente e os pais pretendem realizar obras… .
8.- A habitação possui … .
9.- O requerente desempenha as funções de … , auferindo mensalmente … .
10.- Apresenta como despesas mensais e anuais mais significativas: … .
11.- E como despesas mensais e anuais mais significativas do menor: … .
12.- Na Região Autónoma da Madeira, o agregado familiar da requerida é constituído … .
13.- Residem em apartamento … .
14.- O menor permanece … .
15.- No ano de 2022, aquando das férias de verão de junho a julho, com o filho, nos Estados Unidos da América, … .
16.- Em 25 de janeiro de 2023, a requerida casou com … .
17.- Em … , nasceu a filha de … e da requerida.
18.- Nos Estados Unidos da América, o agregado familiar da requerida é constituído … .
19.- Residem no Estado da …, em habitação … .
20.- O menor dispõe de um quarto … .
21.- Nos Estados Unidos da América a requerida tem ofertas de emprego.
22.- A requerida desempenha as funções de … .
23.- A requerida apresenta os seguintes rendimentos: … .
24.- E como despesas mensais mais significativas: … .
25.- E do menor: … .
26.- Nos Estados Unidos da América a requerida apenas assegura as suas despesas pessoais e as inerentes às necessidades de … .
27- Os pais mantêm uma comunicação interparental fluída e positiva, com a partilha das decisões inerentes ao processo de crescimento e desenvolvimento do menor.
28.- Após alguns meses do divórcio, os pais passaram para um regime de residência alternada do menor, com transferências diárias entre a casa materna e a casa paterna, aproveitando a vantagem da proximidade das duas residências, conseguindo conciliar os respetivos horários de trabalho com as necessidades e horários do infantário do filho.
29.- Continuaram a repartir entre si os períodos de férias escolares e época festiva de Natal e fim de ano, conforme tinham acordado na regulação das responsabilidades parentais.
30.- O pai tem transferido a pensão de alimentos fixada, sensivelmente há quatro meses, mas ambos sempre comparticiparam as despesas extra da criança, previamente acordado entre si.
31.- Desde o nascimento do menor, ambos os pais são presentes e envolvidos nos seus cuidados, acompanham e participam ativamente nas suas rotinas e no processo socioeducativo, de modo consistente.
32.- Ambos acompanham o percurso educativo do filho, são atentos aos conteúdos programáticos, mobilizando-se para incutir aprendizagens e valorizando os progressos do filho.
33.- Partilham as decisões escolares, de saúde e do processo de desenvolvimento do filho.
34.- Ambos promovem as vivências familiares que existiam durante a vivência comum, continuando a dinamizar convívios do filho com as famílias de origem materna e paterna.
35.- O menor é descrito pelos pais como sendo muito bonito, carinhoso, inteligente, e com gosto pela escola e grande capacidade de aprendizagem nos vários domínios, curioso e motivado por novos conhecimentos, com autonomia para realizar atividades em básicas diárias, e iniciativa para ajudar os pais em pequenas tarefas, bem-comportado e estabelecendo boa relação com os pares.
36.- No ano letivo … o menor frequentou o … .
37.- A avaliação final no ano letivo … foi positiva nas três grandes áreas: formação pessoal e social, área de expressão e comunicação, e conhecimento do mundo.
38.- Na localidade da residência da mãe … .
39.- Na visita domiciliária realizada à casa paterna, o menor mostrou-se comunicativo e à vontade com a técnica, participando na apresentação desta aos vários elementos da família.
40.- Apresentou as várias divisões da casa, sobretudo o seu quarto e cozinha, mostrando os diversos utensílios, enquanto descrevia a sua participação nas rotinas familiares.
41.- Revelou um grande à-vontade com vários conhecimentos no âmbito da natureza e interesse pela agricultura.
42.- No decorrer da visita, houve diversas trocas de afeto entre o menor e o pai.
43.- Na visita domiciliária realizada à casa materna, o menor mostrou-se comunicativo e à vontade.
44.- Apresentou a irmã recém-nascida, manifestando uma atitude de carinho e cuidado.
45.- Demonstrou estar confortável e familiarizado com o ambiente na casa materna.
46.- Não descreveu as suas vivências nas férias, nos Estados Unidos da América.
47.- Relativamente ao início do ano letivo, mostrou contentamento, dizendo que vai para uma nova escola nos Estados Unidos da América e lá irá conhecer amigos, referenciando também a possibilidade de frequentar uma escola na Madeira, quando se deslocasse para estar com o pai.
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.- Nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 607.º, n.ºs 1, 3 e 4, ex vi art.º 663.º, n.º 2 do, ambos do Código de Processo Civil, considera-se, ainda, provados os seguintes factos, resultantes dos autos e, portanto, de conhecimento oficioso do tribunal:
48.- Na conferência de pais realizada nestes autos no dia … foi proferido despacho a ordenar, em conformidade com promoção do Ministério Público nesse sentido, a elaboração, pela Equipa Cível da Segurança Social, do relatório social previsto no art.º 21.º, n.º 1, al. e), do RGPTC, de modo a avaliar as condições habitacionais, sociais e laborais dos progenitores, com vista a definir a situação da criança.
49.- Elaborado o relatório social, foi ele junto aos autos em …, não tendo sido, nessa altura, ou em qualquer outra fase do processo, notificado ao Recorrente e à Recorrida.
50.- O Ministério Público teve conhecimento do teor do relatório social elaborado em vista do processo aberta em … .
51.- Por despacho de …, foi, nos termos promovidos pelo Ministério Público, designada data para nova conferência de pais.
52.- Realizada tal diligência em …, foram tomadas declarações ao Recorrente e à Recorrida e, porque não houvesse acordo entre ambos, foi proferido despacho a ordenar a notificação das partes para, no prazo de 15 dias, apresentarem alegações ou arrolarem até 10 testemunhas e juntarem documentos, nos termos do artigo 39.º, n.º 4 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, despacho este notificado às partes finda a diligência.
53.- Decorrido o prazo de 15 dias e concluído o processo, foi proferido despacho a ordenar, nos termos do 39.º, n.º 6 do RGPTC, que o processo fosse com vista ao Ministério Público, para emissão de parecer sobre os termos da alteração do regime do exercício das responsabilidades parentais relativas à criança, filha do Recorrente e da Recorrida.
54.- O Ministério Público, em vista do processo, emitiu, em …, o parecer que reputou adequado.
55.- Concluso novamente o processo, foi proferida, em 21 de novembro de 2023, a sentença da qual foi interposto o presente recurso.
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III.II.Do objeto do recurso

.- Da nulidade por violação do princípio do contraditório
Invoca o Recorrente, nas suas conclusões de recurso, a ocorrência de nulidade por violação do princípio do contraditório.
Segundo o mesmo, tal vício adviria do facto de a sentença recorrida ter sido proferida sem que tivesse a precedê-la a realização da audiência de julgamento e, bem assim, sem que lhe tivesse sido garantida a possibilidade de participar efetivamente no desenvolvimento do litígio e de influir nos elementos relevantes para a sua decisão.
A este propósito, cumpre salientar, em jeito liminar, que a nulidade em causa, estribada que está na não realização de atos processuais que, nos termos alegados, deveriam ter precedido a prolação da sentença, não constitui qualquer vício dessa mesma sentença.
Seria de questionar, assim, considerando o que resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 195.º e 196.º do CPC, se o recurso era a sede própria de arguição de tal vício, ou se o mesmo deveria ter sido invocado por via de reclamação dirigida ao tribunal a quo.
Tal não é, contudo, o caso, sendo o recurso, de facto, o meio adequado à invocação e ao conhecimento da concreta nulidade invocada.
Na verdade, tendo por base a não realização da audiência de julgamento ou a obstaculização do Recorrente de participar ativamente no desenvolvimento do litígio e de influir nos elementos determinantes para a decisão, o vício invocado por aquele diz respeito a uma nulidade que decorre do facto de o próprio juiz do processo, ao proferir a sentença, ter omitido uma formalidade de cumprimento alegadamente obrigatório.
Trata-se aqui, assim, de um caso em que, como refere António Santos Abrantes Geraldes, a invocada “nulidade é revelada apenas através da prolação da decisão com que a parte é confrontada”, pelo que exigir-se a sua reclamação prévia poderia implicar, pelas repercussões que essa reclamação poderia ter para a subsistência da sentença proferida, que o próprio juiz do processo - que, nos termos do art.º 613.º do CPC, vira extinto o poder jurisdicional relativamente ao mérito da causa -, pudesse revogar ou modificar a sua própria decisão.
O recurso é, por conseguinte, o meio adequado para se reagir de um vício com tais características, tanto mais que, decorrendo o seu conhecimento pela parte prejudicada da prolação da própria sentença, a mesma, de acordo com o mesmo autor, “nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual correspondente à omissão do ato, [sendo o recurso, assim], a via ajustada a recompor a situação, integrando-se no seu objeto a arguição daquela nulidade” (in Recursos em Processo Civil, 2022, p. 26).
Nada obsta, pois, ao conhecimento da nulidade em apreço neste recurso.

Ora, conhecendo-se tal nulidade, afigura-se-nos que a mesma se verifica.
Na verdade, constituem estes autos uma ação de alteração do regime do exercício das responsabilidades parentais relativamente à criança, filha do Recorrente e da Recorrida, e, portanto, uma ação instaurada nos termos do disposto nos art. ºs 3.º, al. c) e 42.º do RGPTC.
Dispõe o art.º 25.º, n.º 1 deste diploma legal que as partes têm direito a conhecer as informações, as declarações da assessoria técnica e outros depoimentos, processados de forma oral e documentados em auto, relatórios, exames e pareceres constantes do processo, podendo pedir esclarecimentos, juntar outros elementos ou requerer a solicitação de informações que considerem necessárias.
Por seu turno, preceitua o n.º 3, que é garantido o contraditório relativamente às provas que forem obtidas pelos meios previstos no n.º 1.
Tais preceitos estão em linha com aquilo que, em matéria de admissão e de produção de meios de prova, se dispõe em termos gerais no art.º 415.º, n.º 1 do CPC, preceito este que, sendo aplicável ao processo tutelar cível por força da remissão operada pelo art.º 33.º, n.º 1 do RGPTC, dispõe que, salvo disposição em contrário, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas.
Subjacente a tais dispositivos legais está a consagração do princípio do contraditório, mormente na sua conceção ampla, que, como se refere no Acórdão da Relação de Guimarães de 19-04-2028, o liga à “ideia de participação efetiva das partes no desenvolvimento do litígio e de influência na decisão” e em que o “o processo [é] visto como um sistema de comunicações entre as partes e o tribunal”.
Ou seja, sendo o direito de acesso à justiça um direito fundamental do cidadão (cfr. art.º 20.º, n.º 1 da CRP), assiste-se hoje, de acordo com o mesmo aresto, e por força do princípio do contraditório, “a uma crescente tendência de substituição de um processo estritamente individualista, privatístico, por um direito processual mais justo e socialmente mais aberto, sendo notória a mudança das linhas de orientação adjetiva, passando o juiz a ser visto, não como um mero garante das regras do jogo honesto, mas, antes, empenhado na solução concreta do conflito e mais aberto na consideração das consequências das soluções, tendo sempre o dever de fundamentar a sua decisão e deixando-se às partes o direito de a influenciar.” (Acórdão proferido no processo n.º 533/04.0TMBRG-K.G1, disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
O princípio do contraditório é, como se infere do regime fixado pelos sobreditos normativos legais, especialmente saliente no que diz respeito aos aspetos atinentes à produção da prova, a isso se devendo, de resto, a obrigatoriedade fixada no citado art.º 415.º de que as provas sejam admitidas ou produzidas em audiência contraditória.
Isto é, como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “quanto ao princípio do contraditório subjaz a ideia de que repugnam ao nosso sistema processual civil decisões tomadas à revelia de algum dos interessados, regra que apenas sofre desvios quando outros interesses se sobreponham” (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2023, p. 21).
Assim, caso não seja facultada às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre quaisquer as provas apresentadas nos autos, “a prova é invalidamente constituída, podendo tal situação gerar uma nulidade nos termos do art.º 195.º, n.º 1” do CPC (ibidem,p. 528).

Reportando-nos ao caso dos autos, o Recorrente invoca a nulidade decorrente da violação do princípio do contraditório de um ponto de vista ‘amplo’, nela abrangendo, por um lado, o facto de a sentença recorrida ter sido proferida sem a realização prévia de julgamento e, por outro lado, o facto de não lhe ter sido facultada a possibilidade de intervir e de influir na apreciação dos elementos relevantes para a decisão da causa.
Ora, no que diz respeito à não realização da audiência de julgamento previamente à prolação da sentença proferida, tal não constitui, por si só, vício gerador de nulidade.
Na verdade, tratando-se, como se viu, de ação de alteração do regime do exercício das responsabilidades parentais que prosseguiu os seus termos normais após os ‘articulados’, é-lhe aplicável, por força do n.º 5 do art.º 42.º do RGPTC, o regime previsto nos art.ºs 35.º a 40.º do mesmo diploma legal.
Por seu turno, nos termos do n.º 4 do art.º 39.º, realizada a conferência de pais a que aludem o art.º 35.º e o n.º 3 do art.º 39.º e nela não sendo obtido acordo entre os pais, são estas notificadas para, em 15 dias, apresentarem alegações ou arrolarem até 10 testemunhas e juntarem documentos.
Finalmente, segundo o n.º 5, o juiz, findo o prazo das alegações, ordena a realização das diligências de instrução que tenha por pertinentes de entre as previstas nas alíneas a), c), d) e e) do n.º 1 do art.º 21.º, sendo que, uma vez realizadas tais diligências, nos termos dos n.ºs 6 e 7,  das duas uma: (i) se forem apresentadas alegações ou apresentadas provas, tem lugar a audiência de discussão e julgamento no prazo máximo de 30 dias; (i) caso não haja alegações nem sejam indicadas provas pelos pais, é, depois de ouvido o Ministério Público, proferida sentença.

Ora, no caso em apreço, o Recorrente e a Recorrida foram, após a realização da segunda conferência de pais no dia 12 de outubro de 2023, e porque não houvesse acordo entre ambos, notificados, no supra apontado prazo, para apresentarem alegações ou indicarem prova.
Todavia, não o fizeram, pelo que os autos foram com vista ao Ministério Público para emissão de parecer, ao qual se seguiu, tal como previsto no n.º 5 do citado art.º 39.º, a prolação de sentença.
O tribunal a quo proferiu a decisão final sem a realização prévia do julgamento escudado, portanto, na lei, daí não advindo, por conseguinte, vício gerador de nulidade.
Há, contudo, violação – clara – do contraditório relativamente (pelo menos) ao Recorrente, pelo facto de não lhe ter sido facultada a possibilidade de intervir e de influir na apreciação de um elemento absolutamente essencial e determinante da decisão da causa, que foi o relatório social elaborado pela Segurança Social.
Na verdade, a elaboração de tal relatório social foi determinada pelo tribunal a quo no final da conferência de pais realizada em 6 de junho de 2023 e visou reunir elementos relevantes para a boa decisão da causa como sejam os atinentes às condições de vida do Recorrente e da Recorrida.
O documento em causa é, na economia do RGPTC, um documento de extrema relevância e, mesmo, de ultima ratio, só devendo ser ordenada a sua realização quando o tribunal, como se infere do n.º 5 do art.º 21.º, o reputar ‘indispensável’ enquanto meio de prova para a decisão da causa.
Uma vez elaborado e junto aos autos, contudo, só foi dado a conhecer ao Ministério Público e não às partes, isto é, à pai e ao pai da criança cujo superior interesse é critério norteador de decisão do processo, mãe e pai que, por conseguinte, se viram privadas, não só de dele tomarem conhecimento, como, também, de pedirem esclarecimentos sobre o seu conteúdo, de juntarem outros elementos ou de requererem a solicitação de informações que considerassem necessárias ou simplesmente de exercerem o contraditório sobre o documento elaborado.
Ou seja, não tendo sido levado ao conhecimento dos pais o teor do relatório social em questão, estes ficaram privados de exercer os direitos processuais previstos nos n.ºs 1 e 3 do citado art.º 25.º do RGPTC, com a consequente violação do princípio do contraditório acima enunciado, mormente, quanto ao progenitor que, neste recurso, se insurge contra a violação de tal princípio.
Ora, a não notificação do relatório social e a privação do Recorrente de exercer o contraditório sobre ele constitui a omissão de um ato que, como se viu, a lei prescreve.
O ato omitido era, por outro lado, absolutamente essencial e determinante para a decisão da causa, na certeza de que se tratava de documento no qual eram expostos factos relativos às condições de vida dos pais, tendo em vista a tomada de decisão sobre o futuro do filho de ambos.
A essencialidade do documento é revelada, aliás, pelo próprio teor da sentença recorrida, da qual resulta, tendo por base aquilo que dela consta em sede de motivação da decisão da matéria de facto, que foi única e exclusivamente no dito relatório social que se estribou todas as considerações tecidas no elenco de factos provados sobre as condições de vida dos progenitores (o tribunal a quo, nessa motivação, não alude sequer às declarações dos pais prestadas nas duas conferências de pais realizadas, o que evidencia que fez tábua rasa delas e que se limitou a acolher - aliás, sem cuidar de fazer qualquer apreciação crítica sobre o seu conteúdo, como lhe era exigido nos termos do n.º 4 do art.º 607.º do CPC -, o vertido no relatório social a respeito das condições de vida daqueles).
De resto, subjacente a estes autos está a questão de saber se o filho do Recorrente e da Recorrida poderá ir residir com esta definitivamente para os Estados Unidos da América e, portanto, a decisão de uma decisão com um impacto incomensurável na vida pessoal da criança e na sua interação com os progenitores, em razão do que se mostra essencial que o documento em causa, dada a sua relevância, possa ser escrutinado e contraditado por estes.
Estamos, pois, perante vicissitude suscetível de incluir no exame ou na decisão da causa, o mesmo é dizer perante uma nulidade nos termos previstos no art.º 195.º, n.º 1 do CPC.

Neste mesmo sentido foi decidido no Acórdão da Relação do Porto de 21-02-2022, em cujo sumário se pode ler, expressamente, que:
I.- Nos termos dos art.ºs 3.º, n.º 3, 415.º do CPC e 25.º do RGPTC, cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório, não sendo lícito admitir ou produzir provas sem contraditório das partes.
II.- É nula a sentença de regulação das responsabilidades parentas cuja motivação se apoia em relatórios do ISS de cujo teor as partes não foram notificadas.
III.- Perante decisão que tenha sido proferida com desrespeito pelo princípio do contraditório, a sua impugnação deve ser feita através da interposição de recurso, se e quando este for admissível, ou mediante arguição de nulidade da decisão, nos demais casos(Acórdão proferido no processo n.º 5748/20.0T8MTS.P1, também disponível na internet, no sítio com o endereço acima referenciado).
Ora, quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se, também, de acordo com o n.º 2 deste último preceito, os termos subsequentes que dele dependam absolutamente, sendo que a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes.
Em face do exposto, impõe-se anular a sentença recorrida, devendo o tribunal a quo ordenar a notificação do relatório social aos pais, facultando-lhes o exercício do contraditório nos termos e para os efeitos do supra citado art.º 25.º, n.ºs 1 e 3 do RGPTC, seguindo-se, depois, os normais termos dos autos, em função da posição que venha a ser adotada pelas partes quanto ao documento em questão.
Procederá, pois, nessa medida, o recurso, com o que fica prejudicada a apreciação das restantes questões nele suscitadas e acima enunciadas sob os n.ºs 2 a 5 no elenco de questões a decidir.
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IV.Decisão

Termos em que se decide julgar procedente o presente recurso e, consequentemente:
i.- anular a sentença recorrida;
ii.- determinar que o tribunal a quo providencie pela notificação às partes do relatório social elaborado pela Segurança Social e que lhes faculte a possibilidade de exercerem o contraditório sobre o seu teor, exercendo, nomeadamente, os direitos que lhes assistem nos termos dos n.ºs 1 e 3 do art.º 25.º do RGPTC;
ii.-que os autos, cumprido o referido em ii, sigam os seus termos normais, em função da posição adotada pelas partes na sequência da notificação do relatório social.
Custas pela parte vencida a final.
Notifique.
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Lisboa, 21 de março de 2024



José Manuel Monteiro Correia
Inês Moura
Vaz Gomes

(assinado eletronicamente)