Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
32/17.0T8PTS.L1-6
Relator: MANUEL RODRIGUES
Descritores: CONTRATO DE COLONIA
DIREITO DE PROPRIEDADE SOBRE ÁGUAS
SERVIDÃO DE PASSAGEM
USUCAPIÃO
HERDEIRO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: IA extinção do regime da colonia operada pela Constituição da República de 1976, pela Lei n.º 77/77, de 29 de Setembro, e pelo Decreto Legislativo Regional n.º 13/77/M, de 18 de Outubro, impõe como necessário corolário a absoluta “desconsideração” dessa figura, inexistindo qualquer razão ou fundamento para a subsistência da cisão do direito de propriedade entre domínio útil e propriedade do solo (nua propriedade).

IIPratica actos de posse, susceptíveis de conduzir à aquisição do direito de propriedade sobre águas particulares estancadas num poço de rega e do direito de passagem (servidão de passagem) sobre o prédio rústico onde se encontra implantado esse poço de rega, quem, de forma continuada, pública e pacificamente, na convicção de exercer um direito próprio e de não lesar direitos de outrem, utiliza há mais de 20 anos as referidas águas para regar os seus prédios vizinhos, acompanhando a água pelas levadas, bem como o caminho desde o referido poço até aos seus prédios.

IIIO herdeiro sucede na titularidade das relações jurídicas patrimoniais que o autor da herança já detinha, ou seja, a posse aqui não surge ex novo, mas continua a ser a posse antiga, com as mesmas características (artigo 1255-º do Código Civil).

IVO sucessor não precisa sequer de praticar qualquer acto material de apreensão ou de utilização da coisa, como expressamente se declara no artigo 1255.º do Código Civil e se repete na parte final do n.º 1 do art.º 2050º do mesmo diploma legal, para ser havido, para todos os efeitos legais, como possuidor.

VTendo os autores demonstrado que, por si e antecessores, a posse se exerce há mais de 20 anos (posse pública, pacífica e contínua), temos que concluir, forçosamente, que a manutenção dessa posse faculta a estes possuidores a aquisição dos direitos de propriedade e de passagem a cujo exercício corresponde a sua actuação.
Decisão Texto Parcial:Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

IRelatório (1)

1.1.A e B, intentaram a presente acção de processo comum de declaração contra C, D e marido E, todos residentes na ..Ribeira Brava, pedindo que os Réus sejam condenados a:

a)-reconhecer que os que Autores são comproprietários, na percentagem de metade, do tanque de rega, com o direito de entancar água, conforme os usos e costumes;

b)-reconhecer o direito dos Autores de «entancar água no poço de rega» que se encontra implantado há mais de 100 anos no prédio rústico, que actualmente pertence aos Réus;

c)-que se declare que, sobre o aludido prédio dos Réus existe também uma servidão de passagem a favor dos prédios dos Autores com vista a estes sucessivamente «entancarem a água» no poço de rega e posteriormente acompanharem a distribuição dessa água desde o referido poço até aos prédios dos Autores;

d)-que se declare que os Autores por si e anteriormente através dos seus antecessores adquiriram, por usucapião, o direito de entancar a água bem como o direito de passagem pelo prédio dos Réus;

e)-que a posse da servidão de passagem e do uso ou utilização do «direito de entancar água no poço» seja restituída aos Autores nos exactos termos em que se verificava anteriormente à construção da canalização do tanque de rega e respectiva caixa com a torneira.

Para fundamentar os pedidos formulados, alegam, em síntese, que o tanque de rega, que serve para regar os prédios dos Autores, que identificam, está omisso na matriz e está inscrito no cadastro geométrico em nome de José …, foi construído pelos bisavós dos Autores há mais de 100 anos, e foi sempre utilizado pelos herdeiros, para regarem os prédios herdados, bem como outros que adquiriram, entretanto. Mais alegam que, apesar de comproprietários, os Réus e seus antecessores, nunca utilizaram o tanque ou procederam à sua manutenção, sendo os Autores e os seus antecessores a utilizarem e a procederem à sua manutenção. Os Réus apenas no Verão de 2015 procederam à limpeza do poço e colocaram um cadeado na bucha do mesmo. Houve uma troca de e’mails em que os Autores ficaram convencidos que as Rés iriam subscrever um documento a reconhecer a compropriedade do tanque por Autores e Réus. Após um período de tempo em que as Rés retiraram o cadeado da bucha do tanque e os Autores puderam utilizar o tanque, as Rés voltaram a colocar o cadeado e a vedar o acesso à bucha do tanque. Mais alegam que a aquisição também por usucapião se verifica, pois há mais de 100 anos que o tanque é utilizado pelos Autores e seus antecessores.

1.2.Os Réus foram citados, tendo as Rés C e D apresentado a contestação de fls. 48 e seguintes, alegando, em síntese que a providência cautelar requerida sob o n.º 135/16.8T8PTS caducou, uma vez que a acção principal foi intentada após 5 de Fevereiro de 2017. Quanto ao objecto dos autos, alegam que a parcela que os Autores indicam como pertencente aos Réus, parcela sob o n.º 35, pertence a José Raúl …, sendo o prédio dos Réus apenas a parcela sob o n.º 34, onde se encontra o tanque de rega e o remanescente do prédio rústico. Mais alegam que o tanque foi construído pelo avô da Ré C, José Maximiano …, que o deixou em herança, enquanto benfeitoria, à sua filha Agostinha …, pois a terra era da Confraria do Santíssimo Sacramento da Ribeira Brava. E foi a Ré C … quem procedeu à aquisição do terreno à Confraria, com dinheiro emprestado dos seus irmãos. Admitem as Rés que O …, antecessora dos Autores na utilização dos prédios que estes agora detêm, utilizou o tanque de rega, mas apenas por consentimento da irmã. Alegam também que nos 15 anos anteriores à data das obras realizadas pelos Réus, o poço não era utilizado, estando inutilizado e cheio de entulho e que só após a realização das obras pretenderam os Autores proceder à sua utilização. Negam que a Ré T.. tenha admitido a compropriedade do prédio pelos Autores.

Terminam concluindo pela improcedência dos pedidos dos Autores.

1.3.Os Autores apresentaram o requerimento de fls. 68 e seguintes, alegando que a providência não tinha caducado, uma vez que apenas se consideram notificados em 20 de Janeiro de 2017, pelo que a acção foi intentada em tempo.

1.4.Os Autores juntaram com a sua petição inicial os documentos de fls. 17 a 37 e os Réus juntaram os documentos de fls. 59 a 62 com a sua contestação

1.5.Foi proferido o despacho saneador de fls. 91 a 95, em sede de audiência prévia, nele se julgando improcedente a excepção de caducidade da providência cautelar invocada pelas Rés.

1.6.A audiência de discussão e julgamento decorreu com registo da prova e inspecção judicial ao local da questão, tendo sido respeitados os formalismos legais, conforme decorre da leitura das respectivas actas.

1.7.Posteriormente, em 13-11-2019, foi proferida sentença, com a referência 47672291 (de fls. 231 a 257 do processo físico), de cuja parte dispositiva consta:

«Pelo exposto, julgo a acção procedente e, consequentemente:

a)- declaro que o tanque implantado no prédio inscrito no serviço de finanças da Ribeira Brava sob o artigo 5882/013 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Ribeira Brava sob a ficha n.º 9433 pertence em partes iguais, na proporção de 50% aos dois Autores, A e B e 50% aos Réus, ou mais concretamente, à Ré C e D.

b)- Condeno os Réus C, D e marido E:

- ao reconhecimento do direito dos Autores de «entancar água no poço de rega» nos termos do artigo 1406º do Código Civil;

- ao reconhecimento da servidão legal de passagem dos Autores pelo prédio dos Réus inscrito no serviço de finanças da Ribeira Brava sob o artigo 5882/013 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Ribeira Brava sob a ficha n.º 9433 na estrita medida necessária para a utilização do tanque de rega neste implantado, de forma a estancar água para rega dos prédios dos Autores, nomeadamente, os prédios identificadas no cadastro geométrico sob os números 31, 32 e 33, que correspondem aos prédios inscritos no serviço de finanças sob o artigo 5894 e 5896 e descritos na conservatória do registo predial da Ribeira Brava sob as fichas n.º 1064 e 1065, pertencentes ao Autor A.. e a parcela identificada no cadastro geométrico sob o número 28 e que corresponde ao prédio inscrito no serviço de finanças da Ribeira Brava sob o artigo 5893 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Ribeira Brava sob a ficha n.º 1063 pertencente à Autora B.., devendo os Autores exercer a sua servidão de forma a causar o menor prejuízo possível ao prédio dos Réus (artigo 1565º do Código Civil).

- a restituir a posse da servidão de passagem e do uso ou utilização do «direito de entancar água no poço» aos Autores nos exactos termos em que se verificava anteriormente à construção da canalização do tanque de rega e respectiva caixa com a torneira.

c)- Mais se absolve os Réus dos demais pedidos.

d)- Condeno os Réus C, D e marido E como litigantes de má-fé em multa que fixo em 5UC.

As custas da acção são a cargo dos Réus

1.8.Inconformados com esta decisão, os Réus interpuseram o presente recurso de apelação, cujas alegações finalizaram com as seguintes conclusões:

«A.- Os Recorrentes socorrem-se da presente via para demonstrar a sua total discordância quanto à decisão ora em crise, pelo que desde já se antecipa o seu divergente entendimento no que diz respeito à matéria de facto dada como provada e não provada pela douta Sentença e, bem assim, aos evidentes erros na aplicação do direito ao caso sub judice.

B.-Há ausência de manifesta demonstração da procedência da ação, que se infere pela prova produzida em todo o processo (ausência essa que resulta, para além do mais, do pedido de realização de inspeção judicial ao local, mas também da própria prova testemunhal e, sobretudo, documental) e da falta de consistente invocação e prova de certos factos alegados pelos Autores, ora Recorridos.

C.-A decisão toma nota da controvérsia existente entre os Autores/Recorrentes e os Réus/Recorridos que tem por objeto um tanque de rega, considerado aqui como benfeitoria que foi inserida no prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial da Ribeira Brava sob a ficha n.º 9433 e que se mostra inscrito na respetiva matriz sob o artigo 5882/013, cuja titularidade é inquestionavelmente atribuída aos ora Recorrentes.

D.-Impõe-se diversa decisão, em termos de reapreciação da prova gravada, dos factos 1, 7, 15 e 16 dos factos provados, por via da correta análise da prova testemunhal acima transcrita, a qual se mostra para este efeito, integralmente reproduzida, devendo os mesmos passar a ter a seguinte redação:

(…)

E. Já os factos considerados provados com os números 8 e 19 deverão passar a constar da lista de factos não provados, porquanto estão em direta contradição com os factos 46, 47 e 48, que se mostram provados por documento autêntico.

J.Finalmente, os factos considerados provados com os números 19, 21, 25, deverão ser julgados não provados, porquanto da fundamentação dos mesmos resulta apenas a sua admissão por acordo, por falta de impugnação na contestação, quando o seu teor resulta diretamente impugnado nos artigos 38º e 39º da contestação (aqui reproduzidos), não resultando outra fundamentação para a sua validação.

K.Entendem os Recorrentes que as gravações supra transcritas e bem assim a correta valoração probatória dos documentos carreados para os autos, importam decisão diversa sobre a matéria de facto provada e não provada, pelo que solicitam a sua correta valoração.

L.Os Recorrentes entendem ainda que a decisão ora em crise padece do vício previsto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC, “1-É nula a sentença quando: (…) c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”, o qual requerem seja devidamente conhecido nesta sede.

M.Pois, o Tribunal a quo, ao dar como provados os factos descritos sob os números 40), 42), 43), 44) e 45), determina a sua contradição com o sentido da sua decisão, nos termos da qual decidiu que o tanque de rega ora em apreço pertence em 40 partes iguais, na proporção de 50% aos Autores e de 50% aos Réus, em total oposição à prova documental produzida e aceite pelo Tribunal a quo, enquanto prova irrefutável da EXCLUSIVA titularidade dos Réus.

N.É evidente a existência de contradição insanável entre a decisão e a prova referida, porquanto dispõe o artigo 371.º, n.º 1 do Código Civil que “os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que nele são atestados com base nas perceções da entidade documentadora;(…)”

O.Assim, o tanque implantado no prédio inscrito no serviço de finanças da Ribeira Brava sob a ficha n.º 9433 pertence - exclusivamente - às Rés C e D (por herança de seu pai), em harmonia com a prova documental produzida nos autos e da conjugação do disposto no artigo 1644.º do Código Civil e da Lei que extinguiu o Regime da Colonia.

P.O Tribunal a quo reconhece o trato sucessivo do terreno identificado pela parcela n.º 34, no qual se mostra construído o tanque de rega em discussão, pois que, tal prédio onde o poço foi construído por José …, foi atribuído em partilha de bens à sua filha A …, conforme consta da escritura de 1942, junta à oposição do procedimento cautelar n.º 135/16.8T8PTS, sendo este documento prova plena da transmissão da benfeitoria existente ao abrigo do regime da colonia.

Q.Sendo Agostinha … falecida, foi a sua herdeira, a Recorrente C, quem foi chamada pelo Tesoureiro daquela pessoa coletiva, à Confraria do Santíssimo, para comprar a terra, conforme escritura de compra e venda junta aos autos e admitida pelo Tribunal a quo, fazendo prova plena da transmissão da terra.

R.Ora, com essa transmissão da propriedade, a mãe da Ré, A.. … adquiriu a benfeitoria construída pelo seu pai, constituída pelo tanque de rega ora em crise. E apenas por ser familiar dos Autores, lhes permitia usufruírem do mesmo, assim como também permitia a sua utilização por outros vizinhos, como já foi explicado na presente Alegação de Recurso.

S.O que estava em causa neste litígio era uma autorização dos Réus aos Autores no sentido de usufruírem do poço de rega, a qual era apenas verbal, não existindo qualquer contrato nem registo associado a essa permissão que, de resto, resultava dos costumes e da união familiar entre os Autores e os Réus.

T.Por conseguinte, a presente decisão enferma de nulidade nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC e viola o disposto nos artigos 371.º, n.º 1 do CC e 607.º, n.º 4 do CPC por ignorar a prova documental já mencionada, para além de ser inconstitucional e contrariar a jurisprudência dominante.

U.A decisão a quo pressupõe ainda – erradamente, com o devido respeito – que no prédio rústico ora em crise e que é propriedade dos Recorrentes, persiste uma situação de colonia, pelo que – inevitavelmente! - perpetua uma cisão do direito de propriedade entre domínio útil e propriedade do solo, que se visou extinguir com o Decreto Legislativo Regional n.º 13/77/M, de 18 de outubro.

V.Em face de todo exposto, se conclui pela necessária revogação da decisão ora em crise, pugnando-se pela sua substituição por uma que importe a atribuição exclusiva da propriedade plena do prédio rústico objeto do presente Recurso aos Recorrentes.

U.Salvo o devido respeito, a decisão a quonão procede a um correto silogismo judiciário, porquanto é do entendimento dos Recorrentes que não existiu qualquer comportamento de má-fé pela Recorrente, traduzido na alegação de factos falsos.

V.Na verdade, a própria essência do pedido formulado nos autos é tendente à formação de juízos distorcidos, decorrentes da intenção da utilização que é dada por determinada pessoa a um objeto: não é igual dizer-se que se é dono de um tanque de rega (ou de parte dele) ou dizer-se que se está autorizado a fazê-lo! E este é o cerne da questão formulada neste processo: saber se a utilização que os Autores, através dos seus ascendentes faziam do poço, era autorizada pelos proprietários ou se o usavam por serem seus legítimos coproprietários. Esta questão e a forma como é abordada, presta-se a entendimentos dúbios, certezas incertas, declarações prestadas no calor do momento, que não podem, de forma alguma, conduzir a um resultado jurídico de censura ou reprovação da conduta processual. Não é admissível que o Tribunal venha a valorar a declaração escrita num e’mail pessoal extrajudicial, como determinante para condenar uma parte como litigante de má fé, quando a mesma parte, no processo, nunca defendeu posições antagónicas ou agiu com falta de correção, honestidade e lealdade.

X.Quantos aos e’mails trocados entre a Recorrente e o Recorrido, aquela limita-se a informar o Recorrido daquilo que a sua mãe lhe transmitiu, além de que a posição assumida ao longo de todo o processo pela Recorrente foi sempre a mesma e é, aliás, a que se pretende fazer valer junto deste Tribunal ad quem.

Z.Em face de todo o exposto, o Tribunal a quo ao considerar como provada a cadeia de transmissões do prédio rústico e da benfeitoria, objeto deste litígio, dando como provada a propriedade dos Recorrentes, não se coaduna com uma decisão em que se declarou a compropriedade desse bem com os ora Recorridos, à revelia da prova documental produzida e de todas as leis que, na presente Alegação de Recurso, foram mencionadas.

Pelo que,

NESTES TERMOS, e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser revogada a decisão recorrida, substituindo-se por outra que:

(I)-Declare o tanque implantado no prédio inscrito no serviço de finanças da Ribeira Brava sob o artigo 5882/013 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Ribeira Brava sob a ficha n.º 9433, da titularidade exclusiva dos Recorrentes ou, mais concretamente, das Recorrentes C e D, por sucessão de seu pai;

(II)-Absolva os Recorrentes dos demais pedidos, designadamente, do pedido de condenação como litigantes de má-fé, por não provado.

Com o que se fará JUSTIÇA!»

*

1.9.-Os Autores apresentaram contra-alegações que remataram com as seguintes conclusões:

«A)-Os Recorridos interpuseram uma ação pedindo a condenação dos Recorrentes/Réus a: a) Reconhecer que os que Autores são comproprietários, na percentagem de metade, do tanque de rega, com o direito de estancar água, conforme os usos e costumes; b) Reconhecer o direito dos AA. de «entancar água no poço de rega» que se encontra implantado há mais de 100 anos no prédio rústico, que atualmente pertence aos RR. c) que se declare que, sobre o aludido prédio dos RR. existe também uma servidão de passagem a favor dos prédios dos AA. com vista a estes sucessivamente «entancarem a água» no poço de rega e posteriormente acompanharem a distribuição dessa água desde o referido poço até aos prédios dos AA.; d) que se declare que os AA. por si e anteriormente através dos seus antecessores adquiriram, por usucapião, o direito de entancar a água bem como o direito de passagem prédio dos RR.; e) que a posse da servidão de passagem e do uso ou utilização do «direito de entancar água no poço» seja restituída aos AA. nos exatos termos em que se verificava anteriormente à construção da canalização do tanque de rega e respectiva caixa com a torneira.

(…)

D)-Salvo o devido respeito, que é muito por este Tribunal, importa antes de mais louvar a Mui Douta Sentença do Tribunal a quo, decidindo como decidiu, fazendo uma correcta e adequada aplicação do Direito,

E)-De facto, a Douta Sentença encontra-se superiormente fundamentada e assenta de forma clara e precisa, em factos provados e relevantes para a decisão de mérito da causa, não merecendo, portanto, ao nível da sua estrutura, de qualquer reparo e muito menos das críticas vertidas nas Alegações da Recorrente.

F)-(…)

M)-Acresce a tudo isto, que os recorrentes em sede de recurso não impugnaram a decisão proferida sobre a matéria de facto dada como provada em relação ao facto provado número 40, apenas impugnaram os factos vertidos nos números 7, 8, 20 e 21, 25.

N)-Mais, na Região Autónoma da Madeira existem milhares de tanques de rega, cujo os proprietários dos prédios rústicos, onde está implantado o tanque de rega, são destintos dos proprietários dos tanques de rega.

O)-Os recorrentes em sede de recurso trazem uma versão que não alegaram em sede de contestação, ou seja, o facto de terem adquirido o prédio rústico passam automaticamente a serem proprietários do tanque de rega e recurso/alegações devem incidir sobre os factos trazido a lume, discutidos e que foram objecto de sentença, e não sobre matérias que não foram alegadas pela recorrente em sede de contestação e ao longo de toda a tramitação do processo.

(…)

1.10.Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II)-Delimitação e objecto do recurso:

De acordo com o disposto nos artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1, do Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este Tribunal da Relação adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. Tal limitação objectiva da actuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, contanto que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. artigo 5º, n.º 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.(2)

Assim, e face ao teor das conclusões formuladas, no confronto com a decisão recorrida, e às excepções peremptórias invocadas, a solução jurídica a alcançar pressupõe a ponderação das seguintes questões:

- Da invocada nulidade da sentença, por oposição entre os fundamentos de facto e a decisão (art.º 615.º, n.º 1.º, alínea c), do CPC);

- Saber se o Tribunal a quo incorreu em erro na apreciação dos meios de prova que imponha a alteração da decisão relativa à matéria de facto, nos termos pretendidos;

- Saber se na sentença recorrida se incorreu em erro de interpretação e aplicação do direito que imponha a sua revogação e substituição por outra que julgue a acção improcedente;

- Da litigância de má-fé.

III)Fundamentação:

A)Motivação de facto:

Na 1ª instância julgaram-se provados e não provados os seguintes factos:

A.1. Factos provados:

1– Existe uma benfeitoria urbana, constituída por um tanque de rega, implantada sobre o prédio que no cadastro geométrico consta sob o número 34, estando as benfeitorias desse prédio inscritas no referido cadastro em nome de José ....

2–O tanque de rega referido em 1 pode ser utilizado para estancar água para rega dos prédios dos Autores.

3O Autor A é proprietário das parcelas identificadas no cadastro geométrico sob os números 31, 32 e 33, que correspondem aos prédios inscritos no serviço de finanças sob o artigo 5894 e 5896 e descritos na conservatória do registo predial da Ribeira Brava sob as fichas n.º 1064 e 1065

4– A Autora B, casada com M..…, é proprietária da parcela identificada no cadastro geométrico sob o número 28 e que corresponde ao prédio inscrito no serviço de finanças da Ribeira Brava sob o artigo 5893 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Ribeira Brava sob a ficha n.º 1063.

5–As Rés são proprietárias do prédio rústico que corresponde à parcela sob o n.º 34 e que corresponde ao prédio inscrito no serviço de finanças da Ribeira Brava sob o artigo 5882/013 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Ribeira Brava sob a ficha n.º 9433.

6–O tanque de rega referido em 1 foi construído pelos bisavós dos Autores e avós da Ré C, José … e mulher V.. …, há mais de cem anos.

7–O tanque de rega foi construído para rega dos prédios de José …, nos quais se inclui os prédios dos Autores, identificados em 3 e 4.

8–Desde a data da sua construção e até ao presente litígio, o tanque de rega foi utilizado para estancar água e regar também os prédios dos Autores.

9– J..… e V.. … tiveram quatro filhas: (…)10 – O … casou com (..)11 – 13(..)

14O …, alienou a parcela de terreno, à sua irmã, A.. …, parcela identificada no cadastro geométrico sob o número 26.

15O poço de rega, acima referido, servia os dois terrenos que anteriormente haviam sido propriedade do construtor do tanque e agora eram das duas irmãs, O.. …e …, as quais passaram a partilhar do uso do mesmo.

16–J.. … e Olívia …, adquiriram os prédios identificados no cadastro geométrico sob os números 31 (trinta e um), 33 (trinta e três) e 32 (trinta e dois), prédios que são regados através do poço de rega.

17Os falecidos O.. … e J.. …, deixaram como herdeiros dos prédios identificados com os números 28 (vinte e oito), 31 (trinta e um), 33 (trinta e três) e 32 (trinta e dois), C.. …, casada que foi no regime de comunhão geral de bens com M...

18Os falecidos, A.. … e J..… deixaram como herdeiros da parcela 26 e 35, à Ré C, casada que foi com o falecido J..…, tendo deixado como herdeiros o cônjuge e a 2ª Ré.

19Durante mais de 100 anos, o poço foi utilizado para entancar água de rega, servindo os terrenos acima identificados à exceção do terreno identificado no cadastro geométrico sob o número 34, dado o declive natural deste terreno.

20Em vida dos herdeiros de J.. e O.. … os Réus nunca utilizaram o tanque de rega.

21A manutenção, arranjos, limpeza e demais tarefas de manutenção do tanque foram sempre realizadas pelos ascendentes dos Autores, supra-referidos, já falecidos, a expensas unicamente suas.

22Com o falecimento de M… - casado que foi com C.. … - procedeu-se à divisão da herança da parte deste, para os seus descendentes.

23Os Réus no verão de 2015, mais precisamente nos meses de Julho/Agosto desse ano, unilateralmente, procederam à limpeza do poço e colocaram um cadeado na bucha deste mesmo poço.

24Os Autores interpelaram a Ré C, sobre a razão de terem colocação o cadeado e esta disse que ia entregar uma chave do cadeado aos Autores.

25–Os Réus reconheceram que os pais dos Autores fizeram obras no poço por duas vezes, e que o tubo de ferro, que foi colocado pelo …, foi pago pelos pais dos Autores.

26Os Réus não entregaram a chave de cadeado.

27–No dia 15 de Outubro de 2015, o Autor ….enviou um email à Ré D do qual consta, além do mais, o seguinte: (…) 35.(…)

36No dia 24 de Dezembro de 2015, véspera de Natal, pelas 15 horas e trinta minutos, A e B deslocaram-se ao local e retiraram o cadeado, bem como a estrutura em ferro de suporte ao mesmo, como, também, a corrente que ligava o cadeado à referida estrutura.

37Abriram a bucha do poço e regaram as culturas presentes nos seus terrenos.

38–…) 39.(..)

40–O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da Ribeira Brava sob a ficha n.º 9433 e que se mostra inscrito na respectiva matriz sob o artigo 5882/013 tem a seguinte descrição predial: “terreno agrícola”, com a área de 40m2 e na matriz consta como “benfeitoria rústica de batata doce”.

41O prédio identificado com o número 35 no cadastro geométrico, é da titularidade de José Raúl ….

42O prédio onde o poço foi construído por José Maximiano Pestana foi atribuído em partilha de bens à sua filha Agostinha ....

43– O prédio referido em 40) (3) estava sujeito ao regime da colonia sendo senhorio a Confraria do Santíssimo Sacramento da Ribeira Brava, pessoa colectiva canonicamente erecta, pelo que J… deixou à sua filha a benfeitoria e esta continuou a pagar ao senhorio a contraprestação devida, mesmo após a morte do pai.

44Com o fim da Lei da Colonia, sendo a dita Agostinha … já falecida, foi a sua herdeira, a Ré C, quem foi chamada pelo Tesoureiro daquela pessoa colectiva, à Confraria do Santíssimo, para comprar a terra.

45O terreno foi comprado e devidamente registado.

46O dito poço foi-se degradando com os anos e deixou de ser usado devido ao mau estado em que se encontrava.

47O poço tinha peças de ferro velho aí colocado por terceiros.

48O poço não armazenava qualquer água de rega, pois que pura e simplesmente não tinha condições para tal armazenamento.

49Em 2015, decidiu a Ré mandar consertar o poço, reabilitando-o à sua função original de armazenamento da água de rega, para poder estancar a água.

50– Os Réus contrataram mestres, compraram material de construção e ali fizeram a obra de beneficiação do poço de rega que, actualmente se acha em perfeito estado de utilização.

A.2.Factos não provados:

O Tribunal considerou não provados os seguintes factos com relevância para a presente decisão:

a)-As Rés são proprietárias do prédio rústico que corresponde à parcela sob o n.º 35.

b)-Olívia …, de entre o conjunto de terrenos que herdou pela morte de seus pais, recebeu duas parcelas no Sítio da Cova, identificadas com os números 28 (vinte e oito) e 26 (vinte e seis).

c)-Agostinha … recebeu a parcela de terreno identificada com o número 35 (trinta e cinco), parcela sobre a qual foi edificada a benfeitoria urbana correspondente ao tanque de rega.

d)-Quanto ao tanque de rega, e dada a natureza orográfica e declive natural do terreno contíguo (uma vez que o mesmo foi escavado abaixo da linha de nível), ficou para o regadio dos terrenos herdados por O.. ….

e)-Olívia … partilhavam o uso do tanque de rega em partes iguais.

f)-Por volta do dia 20 de novembro de 2015, o cadeado e a corrente foram retirados e os Autores A e B passaram a regar os seus terrenos com água do tanque de rega objeto da lide.

g)-Na segunda semana do mês de Dezembro os Réus voltaram a colocar o cadeado na bucha do poço.

h)-Em vida dos falecidos José de Abreu …e Oliva … os antecessores dos Réus nunca utilizaram o tanque de rega.

i)-José … (avô da Ré C) integrou o poço que construiu no seu prédio inscrito na matriz sob o artigo 5882/13.

j)- Há mais de 15 anos, antes da intervenção recente que ali foi efectuada pela Ré Á ..., tal poço estava inútil, destruído e impróprio para armazenamento de águas.

k)- Foi necessário recorrer a uma grua para retirar o entulho depositado no tanque, aquando das obras de beneficiação que decorreram recentemente.

B)Motivação de direito – do mérito do recurso:

B.1)- Da nulidade da sentença

Os Réus e Recorrentes, nas conclusões L) a T) invocam que a sentença recorrida padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPC, por considerarem que os fundamentos de facto estão em oposição com a decisão, designadamente por os factos dados como provados sob os n.ºs 40), 42), 43), 44) e 45) estarem em contradição com a decisão de que “o tanque de rega ora em apreço pertence em partes iguais, na proporção de 50% aos Autores e de 50% aos Réus.”

Alegam, ainda, a existência de contradição insanável entre a decisão e a prova documental produzida e aceite pelo Tribunal a quo, que, na sua leitura, faz prova irrefutável de que o tanque ou poço de rega em disputa nos autos é da exclusiva titularidade dos Réus.

Defendem os Recorrentes que, mostrando-se provada, por documento autêntico, a titularidade da benfeitoria (ao abrigo do extinto regime da colonia) em nome da Agostinha …, da qual a filha, a Ré B, veio posteriormente a adquirir a terra, através da competente escritura de remissão de colonia, consolidou-se em si o direito de propriedade sobre a totalidade do prédio, que deixa de ser considerado distintivamente como terra e benfeitoria.

Concluem, assim os Recorrentes, que a sentença recorrida enferma de nulidade, por oposição entre os fundamentos e a decisão, viola o disposto nos artigos 371.º, n.º 1, do Cód. Civil e 607.º, n.º 4, do CPC, por ignorar a prova documental já mencionada, para além de ser inconstitucional e contrariar a jurisprudência dominante.

Vejamos então,

O artigo 615º do CPC, sob a epígrafe «Causas de nulidade da sentença», dispõe:

1.- É nula a sentença quando:

a)- Não contenha a assinatura do juiz;

b)- Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;

c)- Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d)-O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e)- O juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.”

As nulidades previstas nas alíneas b) e c) reconduzem-se a vícios formais que respeitam à estrutura da sentença e as previstas nas alíneas d) e e) referem-se aos seus limites.

Ao juiz cabe especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão que profere, nos termos do disposto no art.º 607 n.ºs 3 e 4, do CPC, de forma a que a decisão que profere seja perceptível para os seus destinatários, cabendo-lhe nessa tarefa analisar criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convenção.

Atribuem os Recorrentes à sentença impugnada o vício da nulidade, por oposição entre os fundamentos e a decisão.

Cabe aqui salientar que constitui entendimento pacífico da doutrina e da nossa jurisprudência que a nulidade prevista no artigo 615º, n.º 1, al. c) do CPC (correspondente ao art.º 668º, n.º 1, al. c), anterior à reforma introduzida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho) só se verifica quando os fundamentos invocados na sentença devessem, logicamente, conduzir a uma decisão diversa da que a sentença expressa, ou seja, o raciocínio do juiz aponta num determinado sentido e o dispositivo conclui de modo oposto ou diferente (cf.. Prof. Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, pág. 141; acórdãos do STJ de 23/11/2006, proc. nº. 06B4007 e da RE de 19/01/2012, proc. nº. 1458/08.5TBSTB e de 19/12/2013, proc. nº. 538/09.4TBELV, Ac. do T.R.E. de 25/06/2015, Proc. nº 855/15.4T8PTM.E1 todos acessíveis em www.dgsi.pt), sabido que essa contradição remete-nos para o princípio da coerência lógica da sentença, pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica.

Realidade distinta desta é o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta, ou seja, quando - embora mal - o juiz entenda que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, o que existe é erro de julgamento e não oposição nos termos aludidos (4).

Vejamos, então, se no caso sub judice ocorre o apontado vício da contradição entre os fundamentos e a conclusão (decisão).

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes concretos pontos da matéria de facto:

«40)-O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial da Ribeira Brava sob a ficha n.º 9433 e que se mostra inscrito na respetiva matriz sob o artigo 5882/013 tem a seguinte descrição predial: “terreno agrícola”, com a área de 40m2 e na matriz consta como “benfeitoria rústica de batata doce”.

42)-O prédio onde o poço foi construído por José … foi atribuído em partilha de bens à sua filha Agostinha ….

43)-O prédio referido em 40) estava sujeito ao regime da colonia sendo senhorio a Confraria do Santíssimo Sacramento da Ribeira Brava, pessoa coletiva canonicamente erecta, pelo que José … deixou à sua filha a benfeitoria e esta continuou a pagar ao senhorio a contraprestação devida, mesmo após a morte do pai.

44)-Com o fim da Lei da Colonia, sendo a dita A.. … já falecida, foi a sua herdeira, a Ré C, quem foi chamada pelo Tesoureiro daquela pessoa coletiva, à Confraria do Santíssimo, para comprar a terra.

45)- O terreno foi comprado e devidamente registado

O Tribunal a quo motivou a sua convicção relativamente a esta factualidade nos seguintes termos(…)

A fls. 81 do apenso (providência cautelar) consta um print da certidão permanente do registo predial relativa ao prédio identificado no n.º 40 dos factos provados da qual decorre a inscrição, a favor da C, desde 13/11/2015 (e marido), por compra à Confraria do Santíssimo Sacramento da Ribeira Brava, da propriedade do referido prédio rústico.

Do teor da certidão judicial constante a fls. 135 e segs, decorre o que consta provado sob o n.º 42.

Por sua vez, do atestado na escritura de compra junta de fls. 59 a 62 resulta a demonstração dos factos considerados provados sob os n.ºs 43, 44 e 45.

Os documentos mencionados foram devidamente valorados pelo Tribunal a quo, pois atendeu-se ao respectivo valor probatório, em conformidade com o prescrito nos artigos 369.º e 371.º, n.º 1, do Código Civil.

Do teor de tais documentos tem de concluir-se, como defendem os Recorrentes, que a benfeitoria de construção feita no prédio que foi colonizado, constituída pelo tanque de rega, pertence em exclusivo aos Réus ou mais concretamente à Ré C e marido pela singela razão de serem comprovadamente os proprietários do prédio rústico onde o referido tanque de rega foi construído e está implantado (n.ºs 40, 42, 44 e 45 dos factos provados). A tal conclusão também se chega por via do princípio da elasticidade ou da consolidação, próprio dos direitos reais, “segundo o qual todo o direito sobre as coisas tende a abranger o máximo de utilidades que propicia um direito dessa espécie: ou seja, todo o direito sobre as coisas tende a expandir-se (ou reexpandir-se) até ao máximo de faculdades que abstractamente contém” (Orlando de Carvalho, “Direito das Coisas”, Coimbra Editora, pág. 175.). Tal princípio tem consagração legal no artigo 1344.º do Código Civil.

É consensual na doutrina e na jurisprudência que a extinção do regime da colonia operada pela Constituição da República Portuguesa de 1976 e pela Lei 77/77, de 29 de Setembro, determinando que ficassem cristalizadas as situações preexistentes, impede a transmissão isolada de um dos direitos reais daquela integrantes.

Por efeito da extinção da colonia e como consequência da escritura de compra e venda, de remissão de colonia, celebrada em 9 de Maio de 1972 (cfr. fls. 60 e segs.), extinguiu-se a colonia, não subsistindo mais o sistema bipartido de tenência e de exploração da propriedade, tendo-se consolidado o direito de propriedade, em toda a sua plenitude, na adquirente do prédio rústico em causa (n.º 40 dos factos provados), a Ré C.

A colonia constituía um regime de aproveitamento agrícola, levado a efeito na Ilha da Madeira, em que o dono de um prédio rústico contratava com outrem o seu cultivo, reservando-se metade das colheitas e outra metade para o colono (cfr. Acórdão do STJ, de 24/06/2010).

"O contrato de colonia é específico da Região Autónoma da Madeira.

Verifica-se quando um terreno pertencente a uma pessoa - senhorio - foi dado a cultivar a outra - colono -, sendo este proprietário das benfeitorias rústicas ou urbanas desse terreno. O contrato de colonia tem a sua origem já há séculos, numa altura em que havia muita terra a arrotear e os donatários do arquipélago obtiveram a colaboração de colonos com o aliciante de as benfeitorias lhes ficarem a pertencer.

Guardaram, porém, os donos da terra para si a faculdade, unilateral e discricionária, de pôr fim ao contrato sempre que quisessem. Ao colono, por outro lado, era facultada a possibilidade de vender as benfeitorias, passando o comprador a ser o novo colono.” - cfr. preâmbulo do Decreto Regional nº13/77/M, de 18 de outubro de 1977.

Daí decorreu, por via consuetudinária, uma espécie de direito real menor, nos termos do qual se operou a cisão entre a propriedade do solo, que se mantinha na esfera jurídica do dono da terra, e a titularidade do direito do gozo e das benfeitorias (de plantas ou construções), pertencentes ao colono, que as podia alienar ou transmitir aos herdeiros. - cfr. Acórdão do STJ, de 26 de fevereiro de 2015.

Tendo-se consolidado o direito de propriedade sobre a totalidade do prédio rústico descrito no n.º 40 dos factos provados (nua propriedade e benfeitorias), deixou este de ser considerado distintivamente como terra e benfeitoras, constituídas por batata doce e tanque de rega.

A tudo acresce que não há notícia nos autos de que os Autores ou os seus antecessores, mais concretamente a sua mãe, tivessem exercido, no prazo para o efeito legalmente concedido (art.º 13° Dec. Reg. 13/77/M, de 18/10), o respectivo direito de remição, relativamente à parcela em causa sujeita ao regime de colonia, não obstante se arrogarem compossuidores da benfeitoria nele construída (tanque de rega).

O direito de propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei (art.º 1316.º do Cód. Civil).

A sentença recorrida baseia a decisão de reconhecer os Autores como comproprietários do tanque de rega, na proporção de 50%, e de lhes reconhecer o direito a «entancar água» no poço de rega, bem como o direito de passagem pelo prédio dos Réus naquilo que designa de «história familiar» espelhada nas missivas trocadas entre as partes cujo texto foi levado aos factos provados sob os n.ºs 27, 28 e 29, ou seja, com base no direito consuetudinário que deixou de ter aplicação com a extinção da colonia e a celebração da escritura compra e venda de remição pela Ré Á ... através da qual adquiriu a propriedade plena (nua propriedade e benfeitorias).

Na decisão em crise não se invoca sequer uma fonte legal de aquisição da (com)propriedade, designadamente a usucapião invocada pelos Autores e tão pouco se aprecie da verificação dos respectivos pressuposto.

No entanto, não estamos perante a invocada nulidade de sentença, por oposição ente os fundamentos e a decisão (art.º 615.º/1-c) do CPC), vício que traduz o vício real no raciocínio lógico do julgador, consistente em a fundamentação pontar num sentido e a decisão seguir caminho oposto, ou pelo menos, direcção diferente.

Da leitura da petição inicial resulta que os Autores invocam, quer o direito consuetudinário (usos e costumes), quer a usucapião, como títulos de aquisição dos direitos reais de compropriedade de que se arrogam sobre o tanque de rega e a água nele estancada, bem como do direito de passagem sobre o prédio dos Réus (servidão de passagem).

Com base no direito consuetudinário (1.ª causa de pedir) peticionaram: o reconhecimento de que os Autores são comproprietários do tanque de rega, na percentagem de metade (alínea a); o reconhecimento do direito dos Autores a estancar água no poço de rega, implantado no prédio rústico actualmente pertença dos Réus (alínea b); e que se declare que sobre o aludido prédio dos Réus, existe também uma servidão de passagem a favor dos prédios dos Autores, com vistas a estes sucessivamente entancarem a água do poço de rega e posteriormente acompanharem a distribuição dessa água desde o referido poço até aos prédios dos Autores (alínea c).

Por sua vez, com fundamento na usucapião (2.ª causa de pedir) peticionaram: que se declare que os AA. por si e anteriormente através dos seus antecessores adquiriram, por usucapião, o direito de entancar a água bem como o direito de passagem prédio dos Réus (alínea d).

Pela sentença recorrida julgaram-se procedentes, com fundamento precisamente no direito consuetudinário (usos e costumes), os pedidos formulados nas alíneas a), b) e c), reconhecendo-se aos Autores o direito de compropriedade sobre o tanque ou poço de rega, na percentagem de metade, bem como o direito de comunhão, na mesma proporção, das águas estancadas no referido tanque ou poço de rega e a constituição de uma servidão de passagem a favor dos prédios dos Autores, com vistas a estes sucessivamente entancarem a água do poço de rega e posteriormente acompanharem a distribuição dessa água desde o referido poço até aos prédios dos Autores. E também se julgou procedente o pedido formulado na alínea e), ordenando-se a restituição aos Autores da posse da servidão de passagem e do uso ou utilização do «direito de entancar água no poço», nos exactos termos em que se verificava anteriormente à construção da canalização do tanque de rega e respectiva caixa com a torneira.

Não existe incongruência entre os fundamentos da sentença recorrida e a parte decisória propriamente dita.

Por isso, salvo melhor opinião, a sentença recorrida não padece de nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão (art.º 615.º/1-c), do CPC).

Sem embargo, entendemos que na mesma se incorreu em erro de julgamento, traduzido na incorrecta interpretação da lei e/ou indevida aplicação dela aos factos, como se procurará demonstra mais adiante.

Termos em que se indefere a arguição de nulidade.

*

B.2) Da impugnação da decisão relativa à matéria facto:

Os Recorrentes discordam da decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto, por considerarem que houve incorrecta valoração da prova e, consequentemente erro de julgamento nesta matéria.

Segundo os Recorrentes, por via da correcta análise da prova testemunhal indicada, impõem-se as seguintes alterações:

i) os factos provados sob os n.ºs 1, 7, 15 e 16 devem passar a ter a seguinte redacção:

(…).

*

Nos termos exarados no artigo 607º do CPC vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido.

Além deste princípio, que só cede perante situações de prova legal - prova por confissão, por documentos autênticos, por certos documentos particulares e por presunções legais -, vigoram ainda os princípios da imediação,da oralidade e da concentração, pelo pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto, ampliados pela reforma processual operada pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, e mantidos pela reforma processual operada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados

Perante o disposto no artigo 712º do CPC, a divergência quanto ao decidido pelo Tribunal a quo, na fixação da matéria de facto só assumirá relevância no Tribunal da Relação se for demonstrada, pelos meios de prova indicados pelo recorrente, a verificação de um erro de apreciação do seu valor probatório, sendo necessário, qua tais elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo apelante (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26-06-2003, acessível em www.dgsi.pt).

Não se trata de possibilitar um novo e integral julgamento, mas a atribuição de uma competência residual ao Tribunal da Relação para poder proceder a uma reapreciação da matéria de facto.

A utilização da gravação dos depoimentos em audiência não modela o princípio da prova livre ínsito no direito adjectivo, nem dispensa operações de carácter racional ou psicológico que gerem a convicção do julgador, nem substituem esta convicção por uma fita gravada.

O que há que apurar é da razoabilidade da convicção probatória do primeiro grau de jurisdição face aos elementos agora apresentados, ou seja, a modificação da matéria de facto só se justifica quando haja um erro evidente na sua apreciação.

Porém, uma coisa é a compreensão da fundamentação e outra diferente a concordância ou não com a mesma, já que, há que fazer a destrinça entre a convicção objectiva do julgador e, outra muito diferente, a vontade subjectiva da parte que pretende alcançar a sua própria verdade, sem uso de um espírito crítico.

A este propósito refere-se lapidarmente no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 25.Nov.2005 (proc. 1046/02), disponível in www.dgsi.pt., que “a possibilidade de alteração da matéria de facto deverá ser usada com muita moderação e equilíbrio, ainda que toda a prova esteja gravada em áudio ou vídeo, devendo tao só o erro grosseiro ou clamoroso na apreciação da prova ser sindicado pela Relação com base na gravação dos depoimentos”.

Por erro notório deve entender-se “aquele que é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores; em que o homem médio facilmente dá conta de que um facto, pela sua natureza ou pelas circunstâncias em que pode ocorrer, em determinado caso, não pode ser dado como provado ou não é dado como provado e devia sê-lo – por erro na apreciação da prova(5).

Ou, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.Jul.1997 (proc. 97P612), disponível in www.dgsi.pt., “o erro notório na apreciação da prova é um vício de raciocínio na apreciação das provas evidenciado pela simples leitura da decisão. Erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de qualquer exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica ou excluindo dela algum facto essencial”.

Sem embargo, como afirma Abrantes Geraldes (6) , “se a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro deve proceder à correspondente modificação da decisão”.

*

Na sentença em crise, relativamente aos factos a que se refere a impugnação dos Autores, a Senhora Juíza a quo expressou a motivação da sua convicção nos seguintes termos:

(…)

Vejamos, então,

- Quanto ao facto provado sob o n.º 1Existe uma benfeitoria urbana, constituída por um tanque de rega, implantada sobre o prédio que no cadastro geométrico consta sob o número 34, estando as benfeitorias desse prédio inscritas no referido cadastro em nome de J.. ….”:

Como bem alegam os Recorrentes, por via da reunião na mesma pessoa da benfeitoria existente ao abrigo do regime da colonia e do solo a ela correspondente, matéria que se mostra provada sob os n.ºs 42, 43, 44 e 45, deixou de ser correcta a referência ao poço ou tanque de rega como benfeitoria do imóvel.

Na verdade, hoje em dia o conceito de benfeitoria reporta-se unicamente às despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa - artigo 216º do Código Civil.

O poço/tanque de rega está implantado naquele prédio há mais de 100 anos e era benfeitoria per se, no tempo em que sobre esta propriedade subsistia o regime da colonia em que era perfeitamente possível distinguir o proprietário do solo e o proprietário da obra ali existente.

Como já se referiu supra, com a aquisição pelo colono (no caso a Ré C, do solo correspondente à benfeitoria, deixa de haver substrato legal para que se continue, ainda hoje, a considerar a existência de uma benfeitoria, pois que nesta situação, não existem fundamentos para tal distinção.

Assim, neste segmento, a impugnação terá de proceder, alterando-se formulação do n.º 1 dos factos provados nos termos requeridos que melhor espelha a realidade matricial e jurídica do prédio em causa.

*

- Quanto ao facto provado sob o n.º 7 - O tanque de rega foi construído para rega dos prédios de José …, nos quais se inclu[em] os prédios dos Autores, identificados em 3 e 4”:

Consideram os Recorrentes que este facto se apresenta conclusivo e não tem em conta o por si alegado no artigo 15.º da contestação e ainda que, para além da parcela inscrita no art.º 34.º que configura o objecto deste litígio, as Recorrentes C e D são também herdeiras dos prédios rústicos identificados pelas parcelas n.ºs 26 e 35, conforme facto provado n.º 18.

Pretendem, assim, que se adite a este facto que o tanque de rega também é destinado à rega destes prédios rústicos pertencentes às Rés.

Salvo o devido respeito, o facto não é conclusivo e o aditamento pretendido é inócuo para a boa decisão da causa.

Além do mais, trata-se de facto admitido por acordo, uma vez que não foi impugnado pelos Recorrentes (confrontar artigos 2.1.º e 2.2.º da petição inicial com artigo 38.º da contestação).

Assim, mantem-se inalterado o n.º 7 dos factos provados.

- Quanto aos factos provados sob os n.ºs 15 e 16, a saber:

15O poço de rega, acima referido, servia os dois terrenos que anteriormente haviam sido propriedade do construtor do tanque e agora eram das duas irmãs, Olívia …e Agostinha …, as quais passaram a partilhar do uso do mesmo.

16–J..… e O.. …, adquiriram os prédios identificados no cadastro geométrico sob os números 31 (trinta e um), 33 (trinta e três) e 32 (trinta e dois), prédios que são regados através do poço de rega.”

Consideram os Recorrentes, face à prova produzida, que os Autores estão munidos de outras formas de regar os seus terrenos, que não o tanque de rega ora em crise, pois são proprietários de outro tanque de rega que se encontra próximo dos seus prédios, assim como utilizam água de regadio para uso imediato, quando ela existe – seja de 10 em 10 dias ou de 20 em 20 dias – ou para estancar essa mesma água de regadio no poço que provaram ser proprietários.

Apoiam esta sua conclusão nas declarações de parte prestadas pela testemunha José Raúl …, mestre que foi contratado pelos Recorrentes para fazer as obras de beneficiação do poço em 2015.

Estando em causa nos autos a aquisição pelos Autores, por via da usucapião, da compropriedade do tanque de rega e do direito à co-utilização das águas entancadas, bem como a constituição de uma servidão de passagem pelo prédio dos Réus para aceder ao referido tanque, as alterações e aditamentos pretendidos aos n.ºs 15 e 16 dos factos provados, afiguram-se-nos, irrelevantes para a boa decisão da causa.

Para a sorte destes autos é completamente inócuo saber se os Autores têm ou não formas alternativas de regar os seus prédios ou

Por outro lado, a pretendida alteração/aditamento do n.º 16 dos factos provados não tem qualquer cabimento por encerrar afirmação controvertida e conclusiva – “… através de água entancada no tanque de rega das Rés”. A questão de saber se o tanque de rega pertence em exclusivo às Rés ou a estas e aos Autores em compropriedade terá de ser dirimida em sede de fundamentação de direito.

Termos em que se mantêm inalterados os n.ºs 15 e 16 dos factos provados.

*

- Quanto aos factos provados sob os n.ºs 8 e 19, a saber:

8– Desde a data da sua construção e até ao presente litígio, o tanque de rega foi utilizado para estancar água e regar também os prédios dos Autores.

19Durante mais de 100 anos, o poço foi utilizado para entancar água de rega, servindo os terrenos acima identificados à exceção do terreno identificado no cadastro geométrico sob o número 34, dado o declive natural deste terreno.”

Impetram os Recorrentes que os referidos factos devem passar a constar do elenco de factos não provados, porquanto estão em directa contradição com os factos provados sob os n.ºs 46, 47 e 48, que resultam demonstrados por documentos autênticos.

Sob os n.ºs 46, 47 e 48 deu-se como provado:

46- O dito poço foi-se degradando com os anos e deixou de ser usado devido ao mau estado em que se encontrava.

47- O poço tinha peças de ferro velho aí colocado por terceiros.

48- O poço não armazenava qualquer água de rega, pois que pura e simplesmente não tinha condições para tal armazenamento.”

Ora, bem vistas as coisas, a factualidade provada sob os n.ºs 8 e 19 é ambígua e está efectivamente em conflito com o provado sob os n.ºs 46, 47 e 48 e não espelha a realidade de facto tal como resultou da prova por declarações de parte e testemunhal produzida em audiência de julgamento.

Enquanto no primeiro conjunto de factos se afirma que desde a sua construção há mais de 100 anos e “até ao presente litígio”, o poço foi utilizado para estancar água e regar também o prédio dos Autores, do segundo grupo de factos afirma-se que o poço se foi degradando com os anos e deixou de ser utilizado.

Corresponde à realidade factual resultante da prova produzida que os Autores e os seus antecessores utilizaram o poço de rega em causa e a água nele estancada na rega dos seus prédios, desde a sua construção, há mais de 100 anos e que os referidos ascendes dos Autores cuidaram da manutenção, arranjos e limpeza do tanque a expensas unicamente suas, facto que foi, aliás, reconhecido pelos Réus (n.ºs 21 e 25 dos factos provados).

Nas suas declarações de parte, o Autor A admitiu, ainda que de forma titubeante, que devido a doença prolongada, o seu pai, M…, deixou cultivar as parcelas e de utilizar o poço a partir de 2003/2004 ficando o mesmo sem utilização até Julho/Agosto de 2015, altura em que os Réus procederam à limpeza do poço e colocaram um cadeado na bucha do mesmo poço (facto provado n.º 23). Asseverou, ainda, que ajudava o pai no tratamento da terra, aos fins-de-semana nas férias. Mais asseverou que não foram os únicos a não utilizar o poço, daí que se tenha degradado e ficado cheio de entulho.

Por sua vez, do depoimento da testemunha …, irmã dos Autores, resulta que o referido ascendente comum deixou de cultivar as parcelas pelo menos desde o ano de 1997. Estas declarações merecem-nos maior credibilidade por se revelarem circunstanciadas, objectivas e consistentes, sem se olvidar que a testemunha não é parte na acção, embora familiar dos Autores.

Entendemos, assim, que a redacção dos n.ºs 8 e 19 dos factos provados deverá ser alterada de modo a deles constar que a utilização do poço pelos Autores e antecessores ocorreu desde a sua construção há mais de cem anos, até ao ano de 1997.

*

- Quanto aos factos provados sob os n.ºs 21 e 25, a saber:

21-A manutenção, arranjos, limpeza e demais tarefas de manutenção do tanque foram sempre realizadas pelos ascendentes dos Autores, supra-referidos, já falecidos, a expensas unicamente suas.

25-Os Réus reconheceram que os pais dos Autores fizeram obras no poço por duas vezes, e que o tubo de ferro, que foi colocado pelo Sr… …, foi pago pelos pais dos Autores.”

Finalmente, consideram os Recorrentes que os factos provados em questão devem ser julgados como não provados, porquanto da fundamentação dos mesmos resulta apenas a sua admissão por acordo, por falta de impugnação na contestação, quando o seu teor resulta directamente impugnado nos artigos 38.º e 39.º da contestação, não resultando outra fundamentação para a sua validação.

Dizer, antes de mais, que apenas relativamente ao facto provado sob o n.º 25 não se expressou outra fundamentação para além do mencionado acordo das partes. O mesmo não sucedeu relativamente à factualidade provada sob o n.º 21 que foi motivada pela Senhora Juíza a quo.

A factualidade em causa, relacionada com a realização de obras de manutenção no poço a expensas dos pais dos Autores mostra-se alegada no artigo 3.12.º da petição inicial, que foi impugnado no artigo 38.º da contestação. Por sua vez, o reconhecimento pelos Réus da realização, por duas vezes, de obras no poço, mostra-se alegado no artigo 3.17.º da petição inicial, tratando-se de matéria que não foi impugnada nem contraditada pelos Réus, ao contrário do que afirmam.

Assim sendo, o n.º 25 dos factos provados, respaldado no acordo das partes, deverá manter-se inalterado, improcedendo, nesta parte a impugnação.

Inalterado manter-se-á também o facto provado sob o n.º 21, por resultar da valoração conjugada e crítica, às luz da lógica e das regras de experiência de vida, dos depoimentos prestados pelas testemunhas (…), que foi o pai dos Autores, .., quem, até pelo menos 1997, cultivou os prédios que agora pertencem aos Autores, utilizando o tanque de rega para estancar água e regar os mesmos e que até à reparação de 2015, nunca a Ré C ou os seus familiares tinham utilizado o tanque.

Ora, se foi o pai dos Autores quem fez utilização exclusiva do tanque de rega até 1997, retirando dele água para regar as suas parcelas, e se foi reconhecido pelos próprios Réus que, pelo menos em duas ocasiões, o mesmo fez obras no poço e suportou o respectivo custo, obras essas necessárias à manutenção do poço, bem andou o Tribunal em concluir como concluiu no n.º 21 de que “[a] manutenção, arranjos, limpeza e demais tarefas de manutenção do tanque foram sempre realizadas pelos ascendentes dos Autores, supra-referidos, já falecidos, a expensas unicamente suas.”

*

No artigo 5.2.º da petição inicial, os Autores alegaram:

“5.2.º - Os Autores, por si e juntamente com os seus antecessores, há mais de 100 anos, que utilizavam as águas do poço entancadas acompanhando a água pelas levadas, bem como o caminho desde o referido poço até aos seus prédios, exercendo a posse usufruindo-a como coisa própria, à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem a oposição de quem quer que fosse, de boa fé, e fizeram-no sempre na convicção de exercer um direito próprio.”

Atendendo à configuração da causa de pedir e ao pedido, esta matéria assume manifesta relevância para a boa decisão da causa. Considerando a factualidade provada em 6, 7, 8, 19 e 21, ou seja, que ficou efectivamente demonstrado que os Autores, por si e juntamente com os seus antecessores actuaram sobre o referido poço a água nele estancada e o prédio dos Réus, desde a construção do referido poço e até 1997, a factualidade alegada em 5.2.º da p.i em de ser aditada ao elenco de factos provados sob o n.º 19.1., com excepção do período temporal, nos termos apurados (artigo 666.º, n.º 1, do CPC).

A prova da referida factualidade resulta da conjugação das declarações de parte do Autor A com os depoimentos prestados pelas testemunhas (…).

*

Pelo exposto, na parcial procedência da impugnação, decide-se:

a)-alterar os n.ºs 1, 8, 19. dos factos provados, que passam a ter a seguinte redacção:

«1- No prédio inscrito no cadastro geométrico com o número 34 (indicação meramente demonstrativa e não jurídica), mostra-se construído um poço, tendo sido inscritas umas benfeitorias ao tempo do extinto regime da colonia, em nome de José…”;

8Desde a data da sua construção há mais de 100 anos e até 1997, o tanque de rega foi utilizado para estancar água e regar também os prédios dos Autores.

19Durante esse período de tempo, o poço foi utilizado para entancar água de rega, servindo os terrenos acima identificados à exceção do terreno identificado no cadastro geométrico sob o número 34, dado o declive natural deste terreno

b)-aditar aos factos provados o n.º 19.1 com a seguinte redacção:

«19.1- Desde a data da construção do poço ou tanque de rega e até 1997, os Autores, por si e juntamente com os seus antecessores, utilizavam as águas nele entancadas acompanhando a água pelas levadas, bem como o caminho desde o referido poço até aos seus prédios, faculdades que exerciam à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem a oposição de quem quer que fosse e na convicção de exercerem um direito próprio».

*

B.3)Da incorrecta interpretação e aplicação da lei

Fixados os factos, importa apreciar se na sentença recorrida se incorreu ou não em erro de julgamento traduzido na incorrecta interpretação e aplicação da lei.

A resposta a esta questão tem de ser afirmativa, por se entender que a sentença recorrida pressupõe que no prédio rústico identificado no n.º 40 dos factos provados persiste uma situação de colonia, de cisão do direito de propriedade entre domínio útil e propriedade do solo (nua propriedade), situação que a CRP de 1976, a Lei n.º 77/77, de 29 de Setembro e o Decreto Legislativo Regional n.º 13/77/M, de 18 de Outubro, visaram extinguir.

Como se conclui no sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de, 28.03.2019, proc. n.º 1041/07.2TBSCR.L1.S1, citado pelos Recorrentes e disponível em www.dgsi..pt., que trata de situação com contornos análogos aos dos autos, no qual se cita basta jurisprudência, “I - A extinção legal e constitucionalmente levada a efeito no tocante ao instituto da colonia impõe como necessário corolário a absoluta “desconsideração” dessa figura, inexistindo qualquer razão ou fundamento para a sua pretendida perduração/subsistência no tocante às situações em que tal previsto direito de remição - pelo colono ou pelo senhorio - não haja sido exercido.

Face à comprovada aquisição pela Ré C ao senhorio, por escritura de 9.05.1972, da nua propriedade do prédio descrito sob o n.º 40 e posterior registo dessa aquisição e bem assim à extinção do regime anacrónico da colonia tem de se entender que a propriedade plena do referido prédio se consolidou na titularidade da Ré C, pois que a existência de uma benfeitoria do tipo do regime de colonia é incompatível com a propriedade plena resultante da reunião na mesma pessoa da benfeitoria e solo.

Assim sendo, tem de se concluir que o terreno e o tanque nele implantado constituem uma propriedade única da titularidade dos Réus e, consequentemente, pela improcedência dos pedidos formulados sob as alíneas a), b) e c) do petitório, nessa parte de revogando a sentença recorrida.

Subiste para apreciar a subquestão de saber se os Autores podem usucapir o (co)direito de estancar água do poço ou tanque de rega, bem como o direito de passagem pelo prédio dos Réus.

De acordo com o art.º 1251.º do Código Civil, a posse é concebida como o poder de facto que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.

A lei portuguesa veio consagrar, assim, a concepção subjectivista (7) de posse seguindo de perto Savigny, sendo possuidor aquele que, actuando por si ou por intermédio de outrem (art.º 1252° n° l CC), além do “corpus” possessório tem também o “animus possidendi” que se caracteriza pela intenção de exercer sobre a coisa um direito real próprio.

Distingue a lei diferentes espécies de posse - titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta (art.º 1258.º do Cód. Civil) - a cada uma delas ligando efeitos também diversificados.

Segundo o artigo 1287.º do Cód. Civil, “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião”.

A usucapião é uma forma de aquisição originária de direitos reais, designadamente do direito de propriedade e de direitos reais menores como o de passagem e apoia-se numa situação de posse - corpus e animus - exercida em nome próprio, durante os períodos estabelecidos na lei e revestindo os caracteres que a lei lhe fixa, pública, contínua, pacífica, titulada e de boa fé.

O prazo de usucapião é diferente consoante a natureza da coisa de cuja aquisição se trate e varia conforme as características da posse sobre ela exercida.

Neste enquadramento legal e apreciando o caso concreto temos que, sendo a posse exercida sobre coisas imóveis (art.º 204.º, n.º 1-b e 2, do CC) e presumivelmente de má-fé é de 20 anos- artigos 1258.º, 1259.º, 1260.º, n.º 1, e 1296.º do CC - o prazo capaz de legitimar a aquisição do direito de compropriedade sobre a água do poço ou tanque de rega, bem como do direito de passagem pelo prédio dos Réus.

Presumindo-se de má fé a não titulada (art.º 1260.º, n.º 2, 2.ª parte, do CC). A posse adquirida com violência é sempre de má fé (art.º 1260.º, n.º 2 e 3, do CC).

A posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem (art.º 1260.º, n.º 1, do C. Civil), ou seja, o possuidor, quando começa a gozar a coisa, não merece que seja apodado de malfazejo se actua na convicção de que não está a prejudicar outrem.

Como afirma Menezes Cordeiro (8) é de boa fé a posse que, não sendo, na sua origem, violenta, se tenha constituído pensando o possuidor:

- que tinha, ele próprio, o direito;

- que ninguém tinha direito algum sobre a coisa.

Como é comummente sabido e resulta da lei, a aquisição da propriedade, por usucapião está dependente da verificação destes requisitos legalmente exigidos: - a posse em nome próprio do bem, ininterruptamente, por determinado período de tempo (de cinco a vinte anos), à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém (corpus) e na convicção de que é o seu exclusivo dono (animus, que se presume verificado que seja o corpus).

Neste contexto jurídico-positivo está comprovado que desde a data da construção do poço ou tanque de rega, há mais de 100 anos, e até 1997, os Autores, por si e juntamente com os seus antecessores, utilizavam as águas nele entancadas acompanhando a água pelas levadas, bem como o caminho desde o referido poço até aos seus prédios, faculdades que exerciam à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem a oposição de quem quer que fosse e na convicção de exercerem um direito próprio (n.ºs 6, 7, 8, 19, 19.1).

Está igualmente demonstrado que a manutenção, arranjos, limpeza e demais tarefas de manutenção do tanque sempre foram realizadas (até 1997 leia-se) pelos ascendentes dos Autores e a expensas unicamente suas (n.º 21).

Esta posse é ininterrupta desde 1921 até 1997, exerceu-se à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de que eram comproprietários das águas estancadas no poço e de que tinha direito de passagem sobre o prédio dos Réus, desde e para o tanque/poço de rega bem como de encaminhar as águas pelo mesmo até aos prédios dos Autores, para efeitos de rega.

É uma posse que se presume de má-fé, pela falta de título (a partilha não é justo título – cfr. RLJ, 105.º - 204), apesar de os Autores (pelo menos até 2015) e, por maioria de razão, os seus antecessores ignorassem que, ao utilizarem e encaminharem as águas estancadas no poço para a rega dos seus prédios e que ao passarem pelo prédio dos Réus, lesavam o direito de outrem.

Ponderando este circunstancialismo factual podemos confirmar que, exercendo os Autores, por si e juntamente com os seus antecessores, a referida posse de boa-fé desde 1921 até 1997, isto é, durante mais de 20 anos, adquiriram, por usucapião, ainda antes da aquisição do prédio pela Ré C, em 9 Maio de 1972, o reivindicados direitos de compropriedade das águas estancadas no poço de rega e de passagem sobre o prédio dos Réus, desde e para o tanque/poço de rega bem como de encaminhar as águas pelo mesmo até aos prédios dos Autores, para efeitos de rega.

Perdurando a posse muito para além de 20 anos (desde 1921 até 997), a aquisição de tais direitos pelos Autores, por usucapião, assenta ainda no disposto no art.º 1296.º do Cód. Civil.

Com o falecimento do pai do Autor, M…, este, como herdeiro, sucede na titularidade das relações jurídicas patrimoniais que o autor da herança já detinha, ou seja, com a morte do pai, o Autor manteve a posição que aquele já tinha.

A posse aqui não surge ex novo, mas continua como sendo a mesma, continua a ser a posse antiga, com as mesmas características, ocorrendo apenas uma sucessão na posse pelo herdeiro. Desde logo, por efeito do art.º 1255º do CC ao dispor que “por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa”.

Nas palavras de Antunes Varela e Pires de Lima “continuando a posse do de cujus no sucessor, há que admitir como consequência necessária, que o sucessor não precisa de praticar qualquer acto material de apreensão ou de utilização da coisa, como expressamente se declara neste artigo e se repete na parte final do n.º 1 do art.º 2050º, para ser havido, para todos os efeitos legais, como possuidor; ele pode inclusivamente ignorar a existência da nova posse. Em segundo lugar, há que concluir que a posse não é nova. A posse continua a ser a antiga com todos os seus caracteres” (Código Civil Anotado, I, anotação ao art.º 1255º, pág. 13).

Tendo a posse dos bisavós dos Autores se iniciado em 1921 (n.º 6 dos factos provados) e seguindo na sua posse o pai do Autor e este próprio, que nela sucedeu, ou seja, por um período muito superior a 15 anos, estão reunidos todos os pressupostos que conduzem à aquisição dos referidos direitos reais.

Deste modo, por força do art.º 1317° c) do CC, a aquisição de tais direitos de compropriedade e de passagem deu-se em 1936 (reportando-se ao início da posse).

É certo que o possuidor perde a posse, além do mais que no caso espécie não releva, pelo abandono ou pela posse de outrem, mesmo contra a vontade do antigo possuidor, se a nova posse houver durado um ano e um dia (art.º 1267º, n.º 1, alíneas a) e d) do CC).

O referido abandono implica necessariamente a extinção do corpus e do animus da posse por virtude de acto material intencionalmente dirigido à rejeição da posse ou da coisa possuída, não se confundindo com a simples inacção do titular que não cuida da coisa, como sucedeu no caso em apreço com os Autores apos 1997 e até 2015.

Com efeito, nos autos não está minimamente demonstrado terem os Autores praticado qualquer acto material com a intenção de rejeitar o seu direito. Mas, para além de inexistência de actos configuradores da figura do “abandono”, o direito de propriedade sobre imóveis não pode ser abandonado. Por outro lado, invocada que foi a usucapião, os seus efeitos retroagem a 1936 (1921+15 anos de posse) – art.º 1288.º do CC -, pelo que em 1997 os Autores já eram titulares dos direitos originariamente adquiridos por esta via.

Ou seja, o retroativo do reconhecimento da usucapião nos termos do art.º 1288º do CC determinou a ineficácia relativa dos efeitos translativos da venda efectuada à Ré Á… relativamente à parcela em causa, pela escritura de 9 de Maio de 1972. Tendo os Autores provado nos autos que adquiriram, por usucapião, a compropriedade das águas estancadas no poço de rega e o direito de passagem (servidão de passagem) sobre o prédio dos Réus, tal aquisição faz ilidir a presunção que, na parte correspondente, decorria do registo a favor dos Réus.

Assim é porque a base de toda a nossa ordem jurídica no que ao imobiliário respeita assenta, não no registo, mas na usucapião, que em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais, valendo inteiramente por si, de modo que havendo um conflito entre direitos incompatíveis sobre o mesmo prédio, valerão as regras substantivas. O que significa que o registo favorece quem o possui a seu favor, embora funcione limitadamente, porque afinal apenas vale contra quem não tiver registo nem beneficie de usucapião.

Em suma, teria de ser declarada improcedente, por não provada a acção, quanto aos pedidos formulados sob as alíneas a), b) e c) do petitório e procedente, por provada relativamente ao pedido deduzido sob a alínea d).

No que concerne à decretada procedência do pedido formulado sob a alínea e), a sentença recorrida nenhum reparo nos merece, pois que os mesmos visam tornar efectivo o gozo e fruição pelos Autores dos direitos que adquiriram e lhe são reconhecidos.

*

B.4)Da litigância de má-fé

Discordam, finalmente, os Recorrentes da sua condenação como litigantes de má-fé em 5UCs de multa, por considerarem que a decisão recorrida não procede a um correto silogismo judiciário, porquanto não existiu qualquer comportamento de má-fé da Recorrente T…, traduzido na alegação de factos falsos.

Dispõe o artigo 542º do Código de Processo Civil:

«1 - Tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.

2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:

a)- Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b)- Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

c)- Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d)- Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão».

Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 27º do Regulamento das Custas Processuais, nos casos de condenação por litigância de má-fé a multa é fixada entre 2 UC e 100 UC.

A litigância de má-fé, tendo como limite inultrapassável a garantia constitucional de acesso aos tribunais, tem como pressuposto a impossibilidade de, ao abrigo de tal garantia, as partes quererem fazer valer teses infundadas, injustas, ilegais, com o manifesto propósito de descredibilizar a Justiça e obstaculizar à célere resolução dos conflitos.

Assim, se é verdade, que não se pode vedar ao cidadão o acesso á Justiça e aos tribunais, também é verdade que estes têm o dever de acatar as decisões judiciais, e, previamente, de formular pretensões justas e fundadas no direito.

O paradigma do instituto da litigância de má-fé, relativamente ao elemento subjectivo, foi alterado com a revisão do Código de Processo Civil operada em 1995.

Enquanto no regime anterior se considerava ser a litigância de má-fé aplicável apenas à situação de dolo material ou instrumental, o introduzido com a reforma de 1995, cuja formulação se mantém no diploma actualmente em vigor, passou a abarcar também as situações de litigância negligente ou culposa.

Refere MENEZES CORDEIRO (9)No direito processual – 1995/96 e, agora, 2013 - valem o dolo e a negligência grave: não a comum. A jurisprudência, ainda que sublinhando o alargamento que a relevância agora dada à negligência (grave) significa, restringe esse alargamento às prevaricações substanciais; nas processuais – art.º 456º/2, d), hoje 542º/2-, d) – apenas relevaria o dolo. Na mesma linha restritiva a sanção pela negligência grave é considerada excepcional, não se aplicando aos processos iniciados antes de 1-jan-1997. A própria negligência grave é entendida como “imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesto aos olhos de qualquer um”.

Nas palavras de RODRIGUES BASTOS (10), “[a] parte tem o dever de não deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; de não alterar a verdade dos factos ou de não omitir factos relevantes para a decisão da causa; de não fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão; de não praticar omissão grave do dever de cooperação, tal como ele resulta do disposto nos arts. 266.º e 266º-A. Se intencionalmente, ou por falta da diligência exigível a qualquer litigante, a parte violar qualquer desses deveres, a sua conduta fá-lo incorrer em multa, ficando ainda sujeito a uma pretensão indemnizatória destinada a ressarcir a parte contrária dos danos resultantes da má-fé.”.

A má-fé traduz-se, em última análise, na violação do dever de cooperação que os artigos 6, 7º e 542º, n.º 2, alínea d), todos do CPC, impõem às partes.

Aliás, no intuito de moralizar a actividade judiciária, o artigo 542º, nº 2, do CPC, oriundo da revisão de 1995, procedeu mesmo, como já se referiu, ao alargamento do conceito de má-fé de forma a abranger a negligência grave, o que não pode deixar de considerar-se significativo.

Enquanto, anteriormente, a condenação como litigante de má-fé pressupunha uma actuação dolosa, isto é, com consciência da falta, a conduta processual da parte está agora sancionada civilmente mesmo que se caracterize apenas por negligência grave.

O Tribunal a quo, para fundamentar a decisão de condenação dos Réus, ora Recorrentes, por litigância de má-fé, considerou que estes deduziram pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar, porquanto a Ré T.. defendeu na contestação uma posição que sabia não corresponder à verdade dos factos, pois em conversações directas entre as partes e escritas assumira uma posição contrária à veiculada naquele articulado, tendo admitido saber que o tanque não era da sua propriedade.

Ou seja, no entendimento do Tribunal a quo, as declarações escritas pela Recorrente D nos e’mails cujo teor se mostra reproduzido nos n.ºs 28, 35 e 38 dos factos provados, equivale a ter admitido saber que o tanque não era da sua propriedade, sendo que em sede de contestação, e através do seu mandatário defende posição contrária.

Ora, salvo o devido respeito, não podemos acompanhar este entendimento, desde logo, porque como bem referem os Recorrentes nas suas alegações de recurso qualquer das afirmações produzidas pela Recorrente D nos referidos emails é apenas uma demonstração de opiniões pessoais, que não pode, de forma alguma, vir a ter consequências jurídicas. Bem vistas as coisas, o que a Ré D admitia, por contraposição com o terreno cuja aquisição estava titulada por registo, era a falta a falta de título ou de descrição do tanque no título de propriedade e, eventualmente.

Esta questão da utilização/posse/propriedade do poço que era considerado benfeitoria à luz do extinto regime da colonia presta-se a entendimentos dúbios pelos que as declarações prestadas na fase extrajudicial pela Ré D, não consentem um resultado jurídico de censura ou reprovação da conduta processual assumida posteriormente já sob patrocínio de um Advogado.

De todo o modo, entendemos que a postura anteriormente assumida pela Ré D não é antagónica da postura conjunta assumida pelos Réus na presente acção e que, em qualquer caso, no que concerne à propriedade do tanque, os Réus lograram ganho de causa e o reconhecimento do direito dos Autores a estancarem a água no poço e à comunhão do seu aproveitamento e bem assim à passagem pelo prédio dos Réus apenas veio a ser reconhecido por este acórdão com fundamento na usucapião.

Assim sendo, e bem vistas as coisas, a conclusão que se pode extrair é que não se atingiu a certeza necessária de existir um pré-conhecimento pela Ré D da inerente realidade que a levasse a deduzir, com dolo ou grave negligência (art.º 542º, n.º 2, alínea a) do CPC), pretensão cuja falta de fundamento não devia razoavelmente ignorar.

Face a estes pressupostos, a conclusão que se impõe é a de que não há fundamento para a condenação dos Réus e Recorrentes por litigância de má-fé.

Termos em que se conclui não poder subsistir a decisão de condenação dos Recorrentes por litigância de má-fé.

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Termos em que procede parcialmente a apelação.

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As custas da acção e do recurso serão suportados pelos Autores/Recorridos e pelos Réus/Recorrentes na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente - artigo 527.º do CPC.

IVDecisão:

Pelo que ficou exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revogar a sentença recorrida, que substituem pelo presente acórdão que:

a)-declara que os Autores, por si e juntamento com os seus antecessores, adquiriram, por usucapião, que retroage a 1936, o direito de estancar a água do poço/tanque existente no prédio dos Réus identificado no n.º 40 dos factos provados;

b)-declara que os Autores, por si e juntamento com os seus antecessores, adquiriram, por usucapião, desde 1936, uma servidão legal de passagem a pé pelo referido prédio dos Réus, na estrita medida necessária para a utilização do poço/tanque de rega neste implantado, de forma a estancar água para rega dos prédios dos Autores, nomeadamente, os prédios identificadas no cadastro geométrico sob os números 31, 32 e 33, que correspondem aos prédios inscritos no serviço de finanças sob o artigo 5894 e 5896 e descritos na conservatória do registo predial da Ribeira Brava sob as fichas n.º 1064 e 1065, pertencentes ao Autor A e a parcela identificada no cadastro geométrico sob o número 28 e que corresponde ao prédio inscrito no serviço de finanças da Ribeira Brava sob o artigo 5893 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Ribeira Brava sob a ficha n.º 1063 pertencente à Autora B, devendo os Autores exercer a sua servidão de forma a causar o menor prejuízo possível ao prédio dos Réus (artigo 1565º do Código Civil);

c)-condena os Réus a restituir a posse da servidão de passagem e do uso ou utilização do «direito de entancar água no poço» aos Autores nos exactos termos em que se verificava anteriormente à construção da canalização do tanque de rega e respectiva caixa com a torneira;

c)-absolve os Réus dos demais pedidos;

d)-dá sem efeito a condenação dos Réus, por litigância de má-fé.

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Custas da acção e do recurso pelos Autores/Recorridos e Réus/Recorrentes, na proporção de 1/3 e 2/3, respectivamente - artigo 527.º do CPC.

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Registe e notifique.

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Lisboa, 22 de Abril de 2021

Manuel Rodrigues

Ana Paula A. A. Carvalho

Nuno Lopes Ribeiro

(1)-Com aproveitamento do relatório da sentença recorrida, ao qual introduzimos ligeiras rectificações e alterações de estilo e conteúdo.

(2)-Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil. Almedina, 2017, 4ª edição revista, pág. 109.

(3)- Por lapso que se corrige, escreveu-se 47

(4)-Cfr. LEBRE DE FREITAS, A Acção Declarativa Comum, 2000, pg. 298.

(5)-Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 3.Dez.1997, proc. 9710990, disponível in www.dgsi.pt.

(6)-Obra citada, pp. 287.288.

(7)-Vide a tese defendida por Menezes Cordeiro no sentido de uma orientação objectivista do nosso Código Civil - in A Posse; Perspectivas Dogmáticas Actuais; pág. 54 e segs.

(8)-Obra citada, p. 675.

(9)-LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ, ABUSO DO DIREITO DE ACÇÃO E CULPA “IN AGENDO”, pág. 26.

(10)-NOTAS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, vol. II, 3ª Edição, págs. 221 e 222.

Decisão Texto Integral: