Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7941/22.2T8SNT-D.L2-1
Relator: MANUELA ESPADANEIRA LOPES
Descritores: DESOCUPAÇÃO
CASA DE HABITAÇÃO
INSOLVENTE
RAZÕES SOCIAIS IMPERIOSAS
BOA-FÉ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I Atenta a remissão operada pelo artº 150º, nº1, do CIRE, é aplicável aos insolventes o benefício do deferimento da desocupação da casa de habitação previsto nos artºs 864º e 865º do C.P.Civil e ainda o regime dos nºs 3 a 5 do art. 863º, que prevê a suspensão das diligências executórias quando a diligência puser em risco a vida de pessoas que se encontram no local por razões de doença aguda.

IIA lei, no nº2 do referido artigo 864º, confia a decisão ao prudente arbítrio do tribunal, mas aponta critérios decisórios, prevendo que devem tomadas em consideração:
- as exigências da boa-fé;
- a circunstância de o insolvente não dispor, imediatamente, de outra habitação;
- o número de pessoas que com ele habitam;
- a sua idade;
- o estado de saúde e
- a situação económica e social das pessoas envolvidas.

IIIAs referidas "razões sociais imperiosas" não permitem, por si só, obter a tutela legal, que pressupõe a verificação de, pelo menos, um dos fundamentos condicionantes taxativamente previstos nas als. a) e b) do referido nº2, do art. 864°, ou seja:
a)-Que se verifique uma situação de carência de meios por parte do insolvente, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b)-Que o mesmo seja portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.

IVDentro das exigências da boa-fé não pode deixar de se atender ao tempo já decorrido desde o momento em que se tornou previsível a necessidade de obter uma alternativa para satisfazer a necessidade de habitação do insolvente.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:


***


IRELATÓRIO


J… L… e A… L…, apresentaram-se à insolvência em 05/05/2022 e deduziram pedido de exoneração do passivo restante.
Indicaram na petição inicial que residem na Rua …, morada onde lhes foi fixada residência na sentença, já transitada em julgado, onde foram declarados insolventes.
Tal imóvel (fracção autónoma designada pela letra T, destinada a habitação) foi apreendido para a massa insolvente em 11/07/2022, tendo os insolventes sido notificados do início do leilão para venda do imóvel apreendido.

Por decisão singular do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/06/2023 foi determinada a suspensão da entrega da fracção apreendida nos autos ao Administrador da Insolvência enquanto vigorasse o disposto no artigo 6.º-E, n.º 7, al. b) da Lei nº 1-A/2020, de 19/3, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril. 

Por requerimento apresentado em 17/08/2023, os insolventes vieram, nos termos do disposto no nº5 do art. 150º do CIRE e dos arts 864º e 865º do CPC, requerer o deferimento da entrega do imóvel por prazo não inferior a três meses.

Alegaram, em síntese, que, não obstante estarem activamente à procura de solução habitacional para a sua família, não lograram até à data encontrar qualquer imóvel, uma vez que o facto de estarem insolventes e de não terem fiador tem invalidado qualquer possibilidade de celebração de contrato de arrendamento.

Invocaram que habitam actualmente com os mesmos os seus filhos e os pais da requerente, os quais eram os primitivos proprietários do imóvel e que a situação de insolvência preenche o disposto na alínea a) do nº2 do art. 865º já que o rendimento disponível dos insolventes foi fixado pelo tribunal, tendo os mesmos ainda que custear as despesas com os filhos e com os pais da requerente.

A Administradora da Insolvência pronunciou-se no sentido do indeferimento do pedido efectuado pelos insolventes e que fosse ordenada a imediata entrega do imóvel e autorizado o acompanhamento policial na diligência de tomada de posse efectiva do imóvel.

A credora H…, SA e o Ministério Público pronunciaram-se igualmente no sentido do indeferimento do requerido pelos insolventes.   
 
Em 28/11/2023 foi proferido o seguinte despacho:
«Refª: 46322922 e Refª: 46854736: J… L… e esposa vêm nos termos do disposto no nº5 do art. 150º do CIRE que remete para o art. 862º do CPC requerer o diferimento de desocupação, previsto nos arts. 864º e 865º do CPC.
Alegam, em síntese, que, não obstante estarem, activamente, à procura de solução habitacional para a sua família não lograram até à presente data encontrar qualquer imóvel, uma vez que o facto de estarem insolventes e de não terem fiador tem invalidado qualquer possibilidade de celebração de contrato de arrendamento.
De acordo com o preceituado no art.º 150º, n.º 5, do CIRE, “À desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no art.º 862º do Código de Processo Civil.”.
Por seu turno, nos termos do art.º 862º do Código de Processo Civil, “À execução para entrega de coisa imóvel arrendada são aplicáveis as disposições anteriores do presente título com as alterações constantes dos art.ºs 863º a 866º.”.
E o art.º 864º do Código de Processo Civil que “1- No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
2– O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedida desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
- Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento de inserção;
- Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%.”
A lei deixa a decisão ao prudente arbítrio do tribunal e indica como fatores a ter em consideração “as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas.” – nº 2 do art. 864º, proémio.
Alegam os Requerentes que habitam actualmente com os insolventes os seus filhos e os Pais da Requerente, e que a situação de insolvência preenche, objectivamente, a alínea a) do nº2 do art. 865.º.
No presente caso, ainda que se aceite que os Insolventes apresentam alguma carência de meios (face à composição do seu agregado familiar), os € 2143,20 auferidos de rendimento líquido global não são valores exíguos se comparados com o salário mínimo nacional. Ao que ainda devemos acrescer que o valor fixado pelo tribunal para a exoneração do passivo restante é de 3 salários mínimos e ½, já tendo em conta precisamente a constituição do agregado familiar.
Acresce que a dilação requerida já não tem sequer actualidade visto que já não nos encontramos em agosto e já decorreram mais de 3 meses desde o requerido.
Mas a estes fundamentos deve ainda acrescer as exigências de boa fé, nomeadamente a circunstância dos Insolventes terem plena consciência de que a entrega e venda do imóvel é, o único e essencial, meio de pagamento dos valores em divida aos credores e que a dilação na venda apenas contribui para o avolumar dos prejuízos para a massa insolvente e, consequentemente, para os credores. Atente-se que os Insolvente nada pagam pela manutenção do imóvel na sua posse, e a massa insolvente terá que assegurar o pagamento das prestações de condomínio até à venda do mesmo.
Tendo a sentença de insolvência sido decretada em 05.07.2022 não é exigível aos credores que assegurem mais tempo este sacrifício.
Nestes termos indefere-se o requerimento apresentado de diferimento da desocupação do imóvel apreendido nos presentes autos de insolvência.
Determina-se a entrega imediata do imóvel à Srª Administradora, se necessário com recurso à autoridade policial.
Notifique”
*

Inconformados os insolventes interpuseram recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1–A errónea aplicação do Direito ao caso concreto, dando procedência às diligências com vista à venda/entrega do imóvel, que constitui casa morada de família dos ora Recorrentes, coloca, como não poderia deixar de colocar, os últimos em clara situação de risco, a favor dos interesses dos credores, constituídos maioritariamente por banca e empresas de compra de dívidas.
2–Ora, não obstante tais entidades merecerem protecção, as mesmas não se pronunciaram – aceitando – o pedido dos insolventes, sendo certo que numa justa ponderação se deverá sempre ter em conta a parte mais fraca, os insolventes, os seus filhos e os avós maternos destes estarão em clara posição de fragilidade – facto que decisão a quo ignorou.
3–Não obstante o respeito que as decisões judiciais merecem não se conformam os ora Recorrentes com o despacho que decidiu “(…) Nestes termos indefere-se o requerimento apresentado de diferimento da desocupação do imóvel apreendido nos presentes autos de insolvência. Determina-se a entrega imediata do imóvel à Sr.ª Administradora, se necessário com recurso à autoridade policial”, com o principal fundamento em que “(…) No presente caso, ainda que se aceite que os Insolventes apresentam alguma carência de meios (face à composição do seu agregado familiar), os € 2143,20 auferidos de rendimento líquido global não são valores exíguos se comparados com o salário mínimo nacional. Ao que ainda devemos acrescer que o valor fixado pelo tribunal para a exoneração do passivo restante é de 3 salários mínimos e 1/2, já tendo em conta precisamente a constituição do agregado familiar.
Acresce que a dilação requerida já não tem sequer actualidade visto que já não nos encontramos em Agosto e já decorreram mais de três meses desde o requerido.
Mas a estes fundamentos deve ainda acrescer as exigências de boa-fé, nomeadamente a circunstância dos Insolventes terem plena consciência de que a entrega e venda do imóvel é, o único e essencial, meio de pagamento dos valores em dívida aos credores e que a dilação na venda apenas contribui para o avolumar dos prejuízos para a massa insolvente e, consequentemente, para os credores. Atente-se que os Insolventes nada pagam pela manutenção do imóvel na sua posse, e a massa insolvente terá que assegurar o pagamento das prestações de condomínio até à venda do mesmo.
Tendo a sentença de insolvência sido decretada em 05.07.2022 não é exigível aos credores que assegurem mais tempo este sacrifício”.
4–O Tribunal a quo violou o procedimento legal previsto nos artigos 865.º e seguintes, porquanto não obstante o pedido urgente formulado pela insolvente ter acolhimento nas diversas alíneas do n.º 1 do citado preceito (a) a c)), a Mm.ª Juiz a quo decidiu não receber a petição de Diferimento de desocupação do locado.
Ora, qualquer decisão de valor quanto ao mérito do pedido apenas poderia ter sido conhecida após o recebimento e notificação das partes contrárias para contestar, querendo.
5–Considerando a verificação da totalidade dos requisitos (a lei basta-se apenas com um), outra solução o Tribunal a quo não teria de receber a petição, o que decidiu não fazer.
6–Veja-se que se encontra já em fls. relatórios médicos que comprovam os problemas de saúde dos pais da Recorrente, bem como as despesas do agregado dos insolventes (em Portugal e França).
Os quais apenas se viram ainda mais reduzidos em valores efectivos face aos aumentos contínuos dos preços da energia e alimentação dos últimos dois anos, realidade à qual o Tribunal a quo não pode ser alheio.
7–O despacho recorrido não procede a uma correcta leitura e aplicação das normas contidas no n.º 5 do art.º 150 do CIRE, e artigos 864.º e 865.º do CPC, levando, salvo o devido respeito, a uma errónea aplicação do Direito ao caso concreto, dando procedência às diligências com vista à venda/entrega do imóvel, que constitui casa morada de família dos ora Recorrentes, colocando os últimos em clara situação de risco.
8–O artigo 864.º do CPC determina que, por razões sociais imperiosas, pode o executado requerer o diferimento da desocupação, devendo o Juiz, na sua decisão, ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, (…) a situação económica das pessoas envolvidas, sendo concedido caso “(…) tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção”.
9–Os Recorrentes continuam insistentemente à procura de uma solução de habitação. Porém, não obstante as diligências efectuadas nesse sentido, a crise habitacional que se tem vindo a verificar nos últimos tempos em Portugal, aliada à carência económica dos Recorrentes, não permitiu que os mesmos tivessem sucesso no seu objectivo de encontrar nova casa para si e para a sua família.
10– Pelo exposto, verifica-se o requisito enunciado no art.º 864, uma vez que, por conta da crise à habitação que se faz sentir no nosso país, os Recorrentes, apesar dos esforços nesse sentido, ainda não conseguiram encontrar uma casa para morar, e cujas despesas com o arrendamento da mesma lhes permita ter uma vida condigna, porquanto têm carência de meios económicos.
11–É ainda de referir que com os Recorrentes vivem os seus filhos e os pais da Recorrente, de idade já avançada e estado de saúde frágil, conforme já devidamente documentado nos autos.
12–Nestes termos, é imperativo deferir o requerimento de diferimento da desocupação do locado, uma vez que a entrega imediata do imóvel, nos termos do douto despacho, colocariam seriamente em risco a saúde dos pais da Recorrente, bem como colocariam em causa o desenvolvimento dos filhos.
13–De outro modo, e face às dificuldades económicas que os Recorrentes e a sua família atravessam, não será possível garantir uma vida condigna aos mesmos.
14–É ainda de ter em conta que o valor atribuído é baixo tendo em conta não só as despesas do Recorrente, marido, em França, como também as despesas da Recorrente, esposa, com o agregado familiar e os pais.
15–Além do mais, nunca foi dada abertura por parte da Agente de Insolvência para o pagamento de qualquer compensação à massa insolvente pela ocupação do imóvel, o que prontamente teria feito ou fará.
16–Salvo o devido respeito por melhor entendimento, interpretação diversa à presente exposta levaria a uma clara violação do n.º 5, art.º 150 CIRE, dos artigos 864.º e 865.º do CPC, bem como a uma violação gravíssima do art.º 65 da CRP, que, sob a epígrafe direito à habitação, determina que Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserva a intimidade pessoal e a privacidade familiar” (sublinhado nosso).
17– De outro modo, os Tribunais não se podem abster de julgar e devem obediência à Lei, tal como resulta do art.º 8.º do Código Civil em leitura conjugada com o art.º 203.º da Constituição da República Portuguesa quando se refere que os tribunais estão apenas sujeitos à lei”.
Terminaram peticionando que o despacho recorrido seja revogado e substituído por outro que decrete procedente o pedido de diferimento da desocupação do imóvel, casa morada de família dos recorrentes.
*

A Administradora da Insolvência apresentou resposta ao recurso, em articulado subscrito pela própria.

Cumpre desde já conhecer da seguinte questão prévia:
Nos termos do disposto no artº 40º, nº1, c), do C.P.Civil, aplicável ex vi do artº 17º, nº1, do CIRE, é obrigatória a constituição de advogado nos recursos.
Assim e não se encontrando a resposta ao recurso subscrita por advogado, não pode este tribunal atender à mesma
*

A Mmo Juiz a quo proferiu despacho admitindo o recurso, como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
*

II–OBJECTO DO RECURSO

É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Assim, em face das conclusões apresentadas pelos recorrentes, importa decidir se se encontram reunidos os pressupostos estabelecidos na lei para que a pretensão de “diferimento de desocupação do imóvel” formulada pelos insolventes seja deferida.
*

III–FUNDAMENTAÇÃO

A)–De Facto
Com relevância para a decisão, encontram-se provados os factos vertidos no relatório que antecede e cujo teor aqui se dá por reproduzido e ainda, atentos os elementos que resultam dos autos, os seguintes:
- Em 23/11/2022 foi proferido despacho, determinando que os autos prosseguem para liquidação do activo, nos termos prescritos no art.º 158º e ss. do CIRE.
- Nessa mesma data foi admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes e determinado que o rendimento disponível que os devedores venham a auferir, no prazo de 3 anos a contar da data de encerramento do processo de insolvência, no período da cessão, se considera cedido ao fiduciário com exclusão da quantia mensal equivalente a três salários mínimos nacionais e meio, 12 meses por ano, destinada ao sustento dos Insolventes.
- Em 02/01/2023 a Administradora da Insolvência apresentou nos autos requerimento com o seguinte teor:
“… vem informar o tribunal e os credores que teve início no dia 28/12/2022 o leilão eletrónico para venda do imóvel apreendido.
O leilão findará no dia 01/02/2023, pelas 11 horas.
(…)”
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B)–O Direito
Estabelece o artº 150º do CIRE sob a epígrafe “Entrega dos bens apreendidos”, que:
1-O poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador da insolvência diligenciar, sem prejuízo do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 756.º do Código de Processo Civil, no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário, regendo-se o depósito pelas normas gerais e, em especial, pelas que disciplinam o depósito judicial de bens penhorados.
(…)
5-À desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no artigo 862.º do Código de Processo Civil”.
Dispõe o supra aludido artigo 862º:
“À execução para entrega de coisa imóvel arrendada são aplicáveis as disposições anteriores do presente título, com as alterações constantes dos artigos 863.º a 866.º”

Deste modo, sempre que “razões sociais imperiosas” o justifiquem, o insolvente tem a possibilidade de deduzir pretensão de diferimento da desocupação do imóvel em que habita, “devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três” (nº 1 do art. 864.º). O pedido é decidido em função dos critérios estabelecidos no nº 2 do art. 864.º, seguindo-se, com as necessárias adaptações, a tramitação estabelecida no art. 865.º .

Este artigo dispõe: 
1 A petição de diferimento da desocupação assume caráter de urgência e é indeferida liminarmente quando:
a)- Tiver sido deduzida fora do prazo;
b)- O fundamento não se ajustar a algum dos referidos no artigo anterior;
c)- For manifestamente improcedente.
(…)
4O diferimento não pode exceder o prazo de cinco meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder”.

Em sede de execução – salientando-se que se trata de execução para entrega de coisa certa –, o pedido de diferimento da desocupação deve ser formulado no prazo para dedução da oposição (art. 864.º, nº1).
Independentemente do entendimento segundo o qual o pedido de diferimento da desocupação da casa de habitação por parte do insolvente ao abrigo do disposto no art. 864.º do CPC, com a invocação de “razões sociais imperiosas”, na sequência do que dispõe o art.150.º nº5 do CIRE, só é oportuno quando formulado na fase da apreensão de bens, a que aludem os arts. 149.º a 152.º, do CIRE e não já depois de encetada a fase da liquidação e no decurso desta – cfr neste sentido Acs do TRP de 14-05-2020, Processo: 3910/06.8TBSTS-L.P1, relator: Aristides Rodrigues de Almeida) e do TRL de 28-02-2023, Processo: 2160/22.0T8SNT-E. L1, relatora: Isabel Fonseca, ora 1ª adjunta, ambos acessíveis in www.dgsi.pt, no caso sub judice tão pouco, como entendeu o tribunal a quo, os elementos que resultam dos autos permite o deferimento da desocupação.
Vejamos.
Prevê o artigo 864º do CPC, sob a epígrafe «Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação»:
1No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar, até ao limite de três.
2O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos:
a)- Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b)-Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %.
3No caso de diferimento decidido com base na alínea a) do número anterior, cabe ao Fundo de Socorro Social do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social pagar ao senhorio as rendas correspondentes ao período de diferimento, ficando aquele sub-rogado nos direitos deste.

A lei estabelece que a decisão é tomada de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, mas apontando ainda critérios decisórios, prescrevendo que devem ser tomadas em consideração “as exigência da boa-fé, a circunstância de o insolvente/arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que com ele habitam, a sua idade, estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas”.

Mas a invocação das referidas “razões sociais imperiosas” não vale, só por si, para obter a tutela legal, sendo necessária a verificação de pelo menos um dos fundamentos condicionantes taxativamente previstos nas als. a) e b) do preceito. Com efeito, o juiz só será chamado a apreciar as primeiras, no uso do poder discricionário que a lei lhe concede (cf. n.º 4, in fine do art.º 152.º do CPC), se verificada uma de duas situações atinentes à pessoa do arrendatário ou, para o que aqui releva, do insolvente, ou seja:
a)-carência de meios, a qual se presume relativamente a beneficiário do subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b)-ser portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% (cf. n.º 2 do art.º 864.º).
E tais pressupostos condicionantes terão de se verificar, nos termos da lei, na pessoa do arrendatário/insolvente, irrelevando para este efeito a situação económica e social ou condições de saúde daqueles que com ele residam, razões que só poderão/deverão ser ponderadas se forem alegados e demonstrados factos que permitam subsumir a situação a alguma das referidas alíneas - cfr. Ac. TRC de 17/01/17, relatora Maria Domingas Simões e ainda Ac. TRL de 27/04/21, relatora Fátima Reis Silva, subscrito pela ora relatora enquanto 2ª adjunta, ambos in www.dgsi.pt.
No que respeita à alínea b), está afastada a sua aplicação, não tendo sido alegada a existência por parte dos insolventes de algum grau de incapacidade.
No requerimento inicial da insolvência, os ora apelantes invocaram que a requerente passou a viver com os pais por não ter “condições económicas para continuar a residir sozinha com os filhos menores” e que suportavam despesas com água, electricidade e gás, telecomunicações, condomínio e transportes, no valor total de € 340,00.
O rendimento indisponível dos insolventes, atendendo ao seu agregado familiar constituído pelos próprios e por dois filhos menores e despesas a seu cargo, foi fixado em três salários mínimos nacionais e meio, o que, actualmente, corresponde a € 2.870,00. No despacho que fixou tal rendimento, foi considerado como demonstrado que o insolvente auferia mensalmente o rendimento líquido de 1.700,00 € e que a insolvente auferia a remuneração declarada de 443,20 €.  
É certo que os apelantes, na sequência da sua apresentação, foram declarados insolventes, o que tem subjacente a impossibilidade de os mesmos cumprirem as suas obrigações vencidas, sendo também do conhecimento geral as dificuldades que actualmente atravessa o mercado da habitação em Portugal.     
Todavia, além da carência de meios, a lei manda atender, entre outros elementos, à exigência da boa-fé e à circunstância de o insolvente/arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação.
Dentro das exigências da boa-fé não pode deixar de se atender ao tempo já decorrido desde o momento em que se tornou previsível a necessidade de obter uma alternativa para satisfazer a necessidade de habitação dos insolventes. No caso concreto, os insolventes apresentaram-se à insolvência em 05/05/2022 e em 16/05/2022 apresentaram um plano de pagamentos do qual declararam desistir em 27/06/2022. Nessa sequência, em 05/07/2022, foi proferida sentença declarando a sua insolvência e determinando a apreensão dos bens dos insolventes e a entrega dos mesmos à Administradora da Insolvência, apreensão essa que veio a ter lugar em 11/07/2022 e na qual se inclui a fracção habitada pelos insolventes.
Em 07/03/2023 o tribunal a quo indeferiu o requerimento apresentado pelos insolventes requerendo a suspensão da entrega do imóvel ao abrigo do art.º 6.º-E, n.º 7, al. b), da Lei n.º 1-A/2020 de 19.03 na redacção da Lei n.º 13-B/2021 de 05.04, despacho esse dos quais os mesmos interpuseram recurso.
Por decisão singular do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/06/2023 foi determinada a suspensão da entrega da fracção apreendida nos autos ao Administrador da Insolvência enquanto vigorasse o disposto no artigo 6.º-E, n.º 7, al. b) da Lei nº 1-A/2020, de 19/3, aditado pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de Abril. O artº 2º da Lei nº 31/2023, de 04/07, procedeu à revogação daquelas leis e desta esta data que os insolventes sabem que não poderia deixar de estar iminente a venda da identificada fracção.
Dado o tempo decorrido, não se pode concluir que assiste aos recorrentes o direito que pretendem lhes seja reconhecido ao diferimento da desocupação.
Tão pouco se encontram preenchidos os requisitos para que pudesse haver lugar à suspensão da entrega ao abrigo do disposto no artº 863º, nº3, do C.P.Civil, segundo o qual, no caso de arrendamento para habitação, o agente de execução suspende as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda”, desde logo por que não foram alegados factos susceptíveis de serem subsumíveis neste normativo.
Se é verdade que o direito à habitação goza de tutela constitucional, conforme o disposto no artº 65.° da Constituição da República Portuguesa, o qual no seu nº1 prescreve o seguinte: "Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar", o dever de assegurar tal direito fundamental de natureza social é incumbência do Estado e não de particulares, no caso dos credores da insolvência (cfr. nºs 2, 3 e 4 do mesmo preceito constitucional).
Deste modo, em nosso entender e contrariamente ao invocado pelos insolventes, o entendimento supra referido não enferma de inconstitucionalidade.
Impõe-se, pois, a confirmação da decisão recorrida.
*

IV–DECISÃO

Em face do exposto, acordam as juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso improcedente, mantendo o despacho recorrido.
Custas pelos apelantes
Registe e Notifique.   

                                                          

Lisboa,09/04/2024


Manuela Espadaneira Lopes
Isabel Fonseca
Renata Linhares de Castro