Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | MAFALDA SEQUINHO DOS SANTOS | ||
Descritores: | TRIBUNAIS PORTUGUESES COMPETÊNCIA INTERNACIONAL ARRESTO PAÍS TERCEIRO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/09/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL EM SEPARADO | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
Sumário: | I–Carecem os tribunais nacionais de competência internacional para apreciar a pretensão de redução/levantamento parcial do arresto decretado por autoridade requerente de país terceiro em processo de cooperação judiciária internacional. (Sumário da responsabilidade da relatora) | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: * I–RELATÓRIO 2.–Inconformada com tal despacho, dele veio a AA interpor recurso, visando com o mesmo a revogação do despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que conheça dos pedidos por si formulados e autorize o levantamento do arresto preventivo quanto ao montante de 13.682.032,00€ (treze milhões, seiscentos e oitenta e dois mil e trinta e dois euros) de forma a poder realizar o pagamento à Autoridade Tributária (AT) e impugnar posteriormente a liquidação de IRC ou, em alternativa, autorize o levantamento do arresto quanto a parte das ações, tituladas pela AA na ..., a fim de as oferecer como garantia junto da AT. Termina, formulando as seguintes conclusões: «§1.-Existem duas questões essenciais a resolver no presente Recurso: a primeira, trata-se de questão prévia sobre a competência internacional dos Tribunais portugueses para decidir sobre o levantamento de arresto preventivo que foi decretado em cumprimento do pedido de auxílio judiciário da Justiça ...; a segunda, diz respeito aos fundamentos que permitem autorizar o referido levantamento. §2.-O Despacho Recorrido versa sobre o pedido formulado pela AA para que se procedesse ao levantamento do arresto preventivo anteriormente determinado, pelo que as questões em causa no Recurso são questões cujo conhecimento prejudica os trâmites subsequentes dos presentes autos e cujo efeito útil resultante da sua procedência depende da subida imediata e da atribuição de efeito suspensivo ao mesmo, nos termos do disposto nos artigos 407.°, n.° 1 - ou, no limite, no artigo 407.°, n.° 2, alínea c) -, e 408.°, n.° 3, do CPP. §3.-A subida diferida do presente Recurso implicaria a inutilidade do pedido, já que se verificaria o incumprimento da obrigação tributária que a AA pretende cumprir em prejuízo dos direitos da AA e dos interesses do próprio Estado Português. §4.-Nos termos conjugados do artigo 3.° da LCJIMP, e dos artigos 4.°, n.° 1, e 16.°, n.os 2 e 3, da Convenção CPLP, os pedidos de auxílio remetidos no âmbito da cooperação judiciária internacional, como é o caso, devem ser cumpridos de acordo com o direito do Estado Requerido (no caso, de acordo com o direito português). §5.-A aplicação do direito nacional resulta, ainda, dos artigos 145.°, n.° 1, e 146.°, n.° 1, da LCJIMP. §6.-O próprio Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17.02.2021, proferido no âmbito deste processo, sob a referência 16632458, reconheceu que “[n]o nosso regime, o Tribunal tem a disponibilidade sobre o destino a dar aos bens arrestados, nos termos do art.° 16.°, da Convenção CPLP, (...) sem que esteja a imiscuir-se na soberania do Estado requerente, porque a própria Convenção CPLP indica que a Lei processual aplicável é aqui a portuguesa”. §7.-Refira-se, aliás, que os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade (artigo 193.°, n.° 1, do CPP) respeitam não apenas ao momento da aplicação da medida de arresto preventivo, mas também ao momento da sua alteração, ou seja, podendo tal medida ser alterada ou revogada em função das necessidades processuais. §8.-E se os Tribunais portugueses têm competência para avaliar a aplicação da medida à luz desses princípios, “na medida em que a sua lei o permitir’'’, têm, inerentemente, competência de reavaliação desses princípios. §9.-O que acima se disse acerca da competência dos Tribunais portugueses para conhecer de pedidos relacionados com uma medida decretada ao abrigo de um pedido de auxílio emitido por outro Estado é tanto mais evidente se tivermos em consideração que, nos termos do já citado artigo 16.°, n.° 3, alínea c), da Convenção CPLP, caberá a estes Tribunais decidir o destino final dos bens arrestados. §10.-Assim, a competência dos Tribunais portugueses não se esgota com o decretamento de uma qualquer medida ao abrigo de um pedido de auxílio realizado por um outro Estado, mantendo-se, pelo menos, até que haja uma decisão final sobre o destino a dar aos bens arrestados. §11.-A AA foi notificada da Liquidação n.° ... emitida pela AT para proceder ao pagamento do montante total de € 13.682.032,00 (treze milhões, seiscentos e oitenta e dois mil e trinta e dois euros) a título de Retenções na Fonte de IRC. §12.-Nesse sentido, impõe-se, desde logo, uma reavaliação das condições não só do próprio arresto, como também dos pressupostos subjacentes ao cumprimento do pedido de auxílio do Estado requerido, uma vez que houve uma alteração das circunstâncias que determinaram, ab initio, o decretamento do arresto. §13.-Verificando-se, em momento posterior ao decretamento do arresto preventivo (independentemente do facto tributário ser anterior) uma notificação de Liquidação que exige o cumprimento de obrigações tributárias do próprio Estado requerido, há que ponderar se tal circunstância não consubstancia uma causa para recusar o auxílio e, assim, proceder ao levantamento do arresto, como concretização de tal imposição legal. §14.-Uma das causas de recusa de auxílio prevista na alínea e) do n.° 1 do artigo 3.° da Convenção CPLP, ocorre “quando o cumprimento do pedido ofende a segurança do Estado, a sua ordem pública ou outros princípios fundamentais” artigo 3.°, n.° 1, alínea e), da Convenção CPLP). §15.-Considerando que com o pagamento dos impostos se visa prover às necessidades globais da comunidade, tendo em vista a realização da igualdade e justiça tributárias, impossibilitar o cumprimento das obrigações tributárias ao Estado português pressupõe, por tudo quanto se disse, uma ofensa aos seus princípios fundamentais ínsitos na CRP (cf. artigos 101.° e ss. da CRP), constituindo causa de recusa de auxílio e uma causa que impõe uma reavaliação das condições do mesmo, in casu. §16.-Ainda que assim não fosse - o que não se admite - note-se que, como já referido, o pedido de auxílio deve, nos termos do disposto nos artigos 4.°, n.° 1, e 16.°, n.° 3, da Convenção CPLP - ser cumprido de acordo com a Lei do Estado requerido (no caso, com a Lei Portuguesa). §17.-E cabe ao Estado português a decisão final sobre o destino a dar aos objetos ou produtos do crime, podendo considerar, se tal lhe for pedido, a sua restituição ao Estado requerente, mas sempre na medida em que a Lei nacional o permita (cf. artigo 16.°, n.° 3, da Convenção CPLP). §18.-Recorda-se ainda o disposto do artigo 28.°, n.° 3, da LCJIMP, que prevê que, nos casos de pedido de cooperação relativo a entrega de objetos ou valores, ficam ressalvados os direitos de terceiros de boa-fé (in casu, devem ficar ressalvados os interesses de todos os contribuintes portugueses como terceiros de boa-fé) e os do próprio Estado. §19.-Acresce que, para além de este crédito fiscal ser à data de hoje certo e exigível - o que não será o caso do crédito meramente eventual e contencioso que fundou os ditos arrestos - o Estado beneficia quanto a este crédito tributário (e juros) de um privilégio mobiliário geral ao abrigo do artigo 736.°, n.° 1 do Código Civil. §20.-Significa isto que o Estado, em concurso com os demais credores, designadamente o eventual credor que requereu os arrestos em referência, terá um privilégio mobiliário a seu favor, pelo que deverá ver satisfeito o seu crédito com preferência sobre os demais. §21.-Ora, admitir que um direito de crédito do Estado Português - que goza de privilégio mobiliário, prevalecendo, à luz da legislação interna, sobre todos os outros créditos -, cede perante um crédito de um Estado terceiro, seria admitir a prática de um ato contra o disposto na lei interna, em violação do disposto no artigo 4.°, n.° 1, e 16.°, n.° 3, da Convenção CPLP. §22.-Por tudo quanto foi exposto, deve este Venerando Tribunal revogar a decisão recorrida e substituí-la por outra que tenha na base uma reavaliação da medida aplicada de arresto preventivo, à luz dos princípios constitucionais de contribuição tributária, reavaliação essa que é permitida a todo o tempo pelas disposições processuais aplicáveis, dos pressupostos daquele. §23.-Admitindo-se, em consequência, o pedido para que seja autorizado o levantamento do arresto em causa quanto ao montante de € 13.682.032,00 (treze milhões, seiscentos e oitenta e dois mil e trinta e dois euros), depositado na conta da ..., permitindo desta forma o cumprimento da descrita obrigação fiscal. §24.-Acrescenta-se que, não tendo sido o levantamento parcial do arresto autorizado até ao dia de 16 de outubro, deve ainda àquela quantia do imposto devido até à data- limite de pagamento acrescerem juros moratórios devidos ao Estado desde essa data até à data em que venha a ser realizado o pagamento da dívida fiscal, na sequência do levantamento do arresto de cuja decisão de indeferimento ora se recorre. §25.-Subsidiariamente, a fim de permitir o exercício do seu direito de impugnar a liquidação de IRC promovida pela AT, sem incorrer, entretanto, no incumprimento das suas obrigações fiscais, deve ser levantado o arresto quanto a parte das ações tituladas pela AA na ... arrestadas à ordem dos presentes autos, por forma a que as mesmas possam servir como garantia (dadas em penhor) ao cumprimento da obrigação fiscal que impende sobre a AA, em sede do processo de impugnação de liquidação de IRC.» 3.–Por despacho proferido em 16.01.2023, o recurso foi admitido, por legal e tempestivo, com subida imediata, em separado e efeito suspensivo. 4.–O Ministério Público apresentou resposta pugnando pela improcedência do recurso, concluindo nos seguintes termos: «Questão prévia: I.-O despacho recorrido limitou-se a declarar a incompetência da Justiça portuguesa para apreciar e decidir o levantamento parcial do arresto preventivo decretado pela ... e aceite e executado pela Justiça portuguesa, e, logicamente, não apreciou/não se pronunciou sobre o requerido levantamento parcial do arresto preventivo. II.-Sucede que a recorrente pede ao Venerando Tribunal que não só revogue o despacho recorrido e declare a alegada competência internacional do Mmo. JIC para apreciar o requerimento de levantamento parcial do arresto preventivo, como pede a substituição por outro despacho que “autorize o levantamento do arresto”. III.-Pede, pois, a recorrente que o Venerando Tribunal se pronuncie sobre matéria não apreciada no douto despacho recorrido. Tal pretensão deverá ser rejeitada por manifesta improcedência, nos termos do art. 420.° n.° 1 al. a) do CPP e do Assento do STJ n.° 10/1992. Breve síntese cronológica: IV.-Com vista a contextualizar o recurso a que ora se responde, elencam-se na tabela infra os seguintes eventos relevantes:
Decretamento do arresto versus aceitação e execução do arresto V.-A ora recorrente confunde o decretamento do arresto preventivo das acções ... (com inerente privação do direito a receber dividendos) com a aceitação e execução desse mesmo arresto. VI.-O arresto preventivo em causa foi decretado pela ... não pela Justiça de Portugal. À Justiça portuguesa coube apenas o papel de aceitar ou recusar executar em território português o arresto preventivo em questão. VII.-O Estado requerido pode rejeitar um pedido de auxílio judiciário em matéria penal por se verificar um dos motivos de recusa de cooperação elencados no art. 3.° da CONVENÇÃO CPLP, e, “ exigir que um pedido formalmente irregular ou incompleto seja modificado ou completado” caso falte algum dos requisitos descritos no art. 9.° n.° 1 da CONVENÇÃO CPLP, mas - não se verificando nenhuma dessas situações expressamente previstas pelos Estados Contratantes da CONVENÇÃO CPLP - está vedado ao Estado requerido sindicar a decisão e/ou actuação do Estado requerente, sob pena de violação da própria CONVENÇÃO CPLP, dos princípios da soberania e da confiança (princípios fundamentais da cooperação jurídica penal internacional) e ainda do art. 8.° n.os 1 e 2 da CRP. VIII.-Tendo o rogado por ... passado pelo crivo dos arts. 3.° e 9.° da CONVENÇÃO CPLP, Portugal aceitou e mandou executar o arresto preventivo em questão. IX.-À Justiça portuguesa apenas competia/compete a apreciação e a decisão sobre a observância e/ou a violação da legislação portuguesa na aceitação e na execução do arresto preventivo. * Da incompetência internacional da Justiça portuguesa para unilateralmente levantar um arresto preventivo decretado pela Justiça ... X.-Está vedado ao Estado requerido, neste caso Portugal, alterar os termos de um arresto preventivo aceite e executado no âmbito da CONVENÇÃO CPLP, à revelia do Estado requerente que o decretou, neste caso ..., sob pena de violação da CONVENÇÃO CPLP, dos princípios da soberania e da confiança e do art. 8.°n.os 1 e 2 da CRP. XI.-“O princípio da soberania decorre da capacidade e legitimidade exclusiva dos Estados em se autodeterminarem e auto vincularem”. A cooperação não é, nem implica, substituição de um poder jurisdicional por outro, concretamente, o do Estado requerente pelo do requerido. XII.-“O princípio da confiança comporta a garantia da previsibilidade e estabilidade das relações jurídicas entre os Estados. Sem confiança entre os Estados não há possibilidade de cooperação, nas suas diversas dimensões”. XIII.-Por ser um país soberano, Portugal decide o que deve ou não ser praticado no seu território, mas, se voluntariamente escolheu aderir a um instrumento internacional de cooperação judiciária penal internacional, vinculando-se à prática de determinados actos que lhe sejam solicitados, às suas autoridades só resta dar execução às mesmas solicitações, cumpri-las por força do princípio “pacta sunt servanda”, cumpri-las de boa-fé, e, não as alterar/revogar/subverter posteriormente de forma unilateral e à revelia da Autoridade Rogante. XIV.-Tendo sido a ... a decretar o arresto preventivo em questão, é à ... que caberá decidir do levantamento (total ou parcial) de tal medida ou a decretar a perda a favor do Estado ...no dos activos arrestados. Após (e só após), caberá então a Portugal aceitar ou recusar - à luz dos arts. 3.° e 9.° da CONVENÇÃO CPLP - a execução da decisão que vier a ser tomada por ... relativamente aos bens actualmente arrestados preventivamente. XV.-Não se vislumbra que impossibilidade de facto ou de direito possa impedir a ora recorrente de apresentar as suas pretensões junto da Justiça de .... XVI.-A norma resultante dos termos conjugados do disposto nos arts. 4.° n.° 1 e 16.° n.° 3 da CONVENÇÃO CPLP, interpretados no sentido de que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para apreciar e decidir, unilateralmente, um requerimento de levantamento parcial de um arresto preventivo decretado por um Estado Contratante, aceite pelo Estado português e cumprido de acordo com a legislação portuguesa, é materialmente inconstitucional por violação do art. 8.° n.os 1 e 2 da CRP.» 5.–Neste Tribunal, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta apresentou parecer no sentido da improcedência do recurso, acompanhando a fundamentação apresentada na 1ª instância. 6.–Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Cód. Processo Penal, respondeu a recorrente referindo, em síntese, que não visa o presente recurso o mérito da decisão inicial de decretamento do arresto solicitado pelo ... no âmbito da carta rogatória que deu início aos presentes autos. Está em causa, refere, a manutenção e destino a dar aos bens arrestados, o levantamento dos bens arrestados, para o qual o Tribunal nacional dispõe de competência, sendo aplicável as normas da Convenção CPLP, concretamente o art. 4.º, n.º 1 e 16.º. E sendo aplicável, também, a LCJMP, em concreto os arts. 28.º, n.º 3, 145.º e 146.º, dúvidas não restam de que é ao Estado Português que cumpre adotar e respeitar os procedimentos e requisitos previstos na sua legislação interna no que respeita a eventuais medidas de apreensão de instrumentos, produtos ou vantagens relacionadas com a prática de um facto ilícito típico que lhe sejam pedidas por outro Estado, o mesmo se devendo entender quanto a quaquer decisão que aprecie os fundamentos referentes a um eventual levantamento do arresto preventivo, até que uma decisão final seja tomada por um Tribunal do Estado requerente. Mais sustenta que, o Estado requerido deve apenas, ao abrigo do princípio da lealdade previsto no art. 3.º, n.º 3 da Convenção CPLP informar o Estado requerente da sua decisão de não dar cumprimento, no todo, ou em parte, a um pedido de auxílio. * Teve lugar a Conferência. * II–OBJETO DO RECURSO Assim, atentas as conclusões apresentadas, as questões que a requerente, por via do presente recurso, pretende ver decididas reconduzem-se (i) à apreciação da competência do Estado Português para conhecer dos pedidos por si formulados em 16/10/2023, (ii) ao deferimento da pretensão da recorrente com autorização de levantamento do arresto preventivo quanto ao montante de 13.682.032,00€ (treze milhões, seiscentos e oitenta e dois mil e trinta e dois euros) depositados na conta da ... de forma a poder realizar o pagamento à AT e impugnar posteriormente a liquidação de IRC ou, em alternativa (iii) que se autorize o levantamento do arresto quanto a parte das acções tituladas pela AA na ..., a fim de as poder oferecer como garantia junto da AT. Mau grado, resulta do art. 402.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal que o recurso abrange toda a decisão, mas esse é também o seu limite. Como referem Simas Santos e Leal-Henriques1, “…visando os recursos modificar as decisões impugnadas e não criar decisões sobre matéria nova, não é lícito na motivação ou nas alegações invocar questões que não tenham sido objecto das decisões recorridas, isto é, questões novas.”. Ora, no caso dos autos, a recorrente declarou o seu propósito de recorrer da decisão proferida em 25.10.2023, que, versando sobre o requerimento apresentado em 16.10.2023, declarou que as questões suscitadas nesse requerimento deveriam ser colocadas perante a Justiça ..., que determinou o arresto preventivo, que a Justiça Portuguesa, enquanto autoridade rogada, executou. A decisão recorrida não tomou, pois, qualquer posição quanto à verificação dos pressupostos para redução ou levantamento parcial dos valores ou ações arrestadas invocada pela requerente, pelo que não pode a mesma, em consequência, ser conhecida por este Tribunal ad quem. O âmbito do recurso terá de restringir-se, assim, à matéria efetivamente tratada na decisão de que foi interposto recurso, encontrando-se pela mesma limitados os poderes de cognição deste Tribunal. Cumpre, por isso, apreciar apenas a competência do Tribunal nacional para apreciação da pretensão da recorrente. * III–DECISÃO RECORRIDA “Requerimento apresentado pela requerente “AA” de fls. 6047 a 6053: No requerimento em análise, veio a requerente pedir que seja autorizado o levantamento do arresto quanto ao montante de € 13.682.032,00 (actualizado nos termos do artigo 12. do requerimento), de forma a poder realizar o pagamento descrito à Autoridade Tributária e Aduaneira e impugnar posteriormente a liquidação de IRC, e, para o caso de o requerido não proceder, peticiona, subsidiariamente, que seja autorizado o levantamento do arresto quanto a parte das acções, tituladas pela AA na ... a fim de que a AA as ofereça como garantia junto da ... e aduaneira enquanto decorre o processo de impugnação de liquidação de IRC. Como salienta o Ministério Público, a fls. 6058 a 6060 da promoção que antecede, tendo o arresto preventivo que visou acções da ..., indirectamente detidas por BB e o arresto preventivo que visou acções AA indirectamente detidas por BB sido determinadas pela ..., cuja execução foi aceite e executado pela Justiça Portuguesa (em 11 e 26/03/2020 e em 06/11/2020), no estrito cumprimento do rogado pelas autoridades judiciárias …, o requerimento apresentado não pode ser apreciado e decidido pela Justiça portuguesa, sob pena de violação da Convenção CPLP, dos princípios da soberania e da confiança, e tendo presente o disposto no art. 8.º, n.ºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa. Termos em que, por carecer de fundamento legal, não se aprecia o requerido, devendo a requerente dirigir à ..., a quem já foram devolvidos os autos principais da Carta Rogatória 210/20.4TELSB e os Apensos já findos, todos os requerimentos que impliquem uma alteração dos termos dos arrestos preventivos em questão». * B)–Outras circunstâncias processuais relevantes: 1–Em 24/01/2020, o Tribunal Supremo da República da ... decretou o arresto preventivo de bens e direitos dos arguidos BB, CC, DD E EE, “com vista a assegurar o pagamento do valor das vantagens que não foi possível apropriar em espécie”, então estimado em 1.268.145.608,10 USD. Além do mais, decretou o arresto preventivo: a)-das participações sociais que a arguida BB detém na ... (via AA e via ... .V. e ...); e, b)-de todas as contas bancárias domiciliadas em Portugal em que os arguidos BB e CC (considerado o braço-direito daquela) surjam como titulares, cotitulares, procuradores ou autorizados. 2–Em finais de Janeiro de 2020, a Justiça … rogou à Justiça Portuguesa a execução do arresto preventivo, dando origem à Carta Rogatória n.º 210/20.4TELSB. 3–Em 5/03/2020, após vicissitudes processuais, este Tribunal da Relação de Lisboa determinou que se desse “estrito cumprimento ao rogado pelas autoridades judiciárias …” (Apenso A). 4–Nessa sequência, em 11 e 26/03/2020, o JIC do TCIC, aceitou e mandou executar, além, do mais, o arresto: (i)- das participações sociais que a arguida BB indiretamente detém na ..., com inerente privação do exercício do correspondente direito de voto por parte da acionista AA e do seu direito a receber dividendos, estes últimos a depositar na ...; e, (ii)-da conta com o IBAN ..., domiciliada na ... e movimentada pelo arguido CC, que posteriormente se veio a apurar ser titulada pela AA. 5–Em 27/05/2020, na sequência de adenda efetuada pela Justiça ..., aceite pelo Mmo. JIC, este autorizou o exercício do direito de voto por parte da AA correspondente aos 26,075% do capital social da ... indiretamente detido por BB. 6–Em 30/09/2020, O Tribunal Supremo da República da ... decretou o arresto preventivo de 50% do capital social da AA, detido indiretamente pela arguida BB. 7–Nessa sequência, em 6/11/2020, o JIC junto do TCIC aceitou e mandou executar o arresto preventivo de 50% do capital social da AA, detido indiretamente pela arguida BB. 8–Em 02/03/2021, a Autoridade Rogante solicitou a devolução da Carta Rogatória, caso já estivesse integralmente cumprida. 9–Por despacho proferido em 12/03/2021, o Mmo. JIC considerou “cumprida a presente Carta Rogatória no que aos actos rogados da competência do Juiz de Instrução Criminal se refere”. 10–No dia 14/04/2021, os autos principais da Carta Rogatória 210/20.4TELSB e os Apensos já findos foram devolvidos à Autoridade Rogante. * IV–FUNDAMENTAÇÃO E estas são decisões transitadas que se nos impõem, não tendo sentido invocar neste momento processual e perante a entidade rogada qualquer causa de pretensa recusa de cooperação. Esse momento mostra-se ultrapassado. E, como acima se assinalou, a única questão de que este Tribunal de recurso pode tomar conhecimento, é a de saber se o Tribunal recorrido estava obrigado a apreciar o requerimento da recorrente, que, recordamos, veio solicitar o levantamento do arresto preventivo quanto ao montante de 13.682.032,00€ (treze milhões, seiscentos e oitenta e dois mil e trinta e dois euros) de forma a poder realizar o pagamento solicitado pela ... ou, em alternativa, o levantamento do arresto quanto a parte das ações por si tituladas na ..., a fim de as oferecer como garantia junto da AT. Mas a resposta não pode deixar de ser negativa, ponderando as circunstâncias processuais acima enunciadas. Concordando com o que já se referiu na decisão proferida no Apenso “BC”, pendente nesta secção, desde logo, há que reconhecer o óbvio: inexiste qualquer processo pendente perante os Tribunais portugueses no âmbito do qual possa ser tomada qualquer decisão com o âmbito pretendido pela recorrente. E salientando também aqui o que vem sendo referido nas decisões tomadas nos apensos, nomeadamente por este Tribunal da Relação: a Justiça Portuguesa, o TCIC, não decretaram qualquer arresto no âmbito destes autos – a ordem de arrestar, o âmbito da mesma e as razões que a determinaram pertencem à ... O TCIC (após decisão desta Relação que determinou a validade e exequibilidade do rogado) limita-se a aceitar o pedido e executar o arresto previamente decretado e de acordo com a lei aplicável. E sendo certo que o pedido de auxílio é cumprido em conformidade com o direito do estado requerido - o que ressalta do disposto nos arts. 4.º e 16.º da Convenção CPLP, bem como do art. 146.º da LCJI-, tal não significa que este adquira competência para determinar a medida. Apenas significa que na sua execução regem as normas de direito interno. O processo foi devolvido à autoridade rogante, ficando em território nacional um mero “traslado”, com reinício do procedimento eletrónico para efeitos administrativos, destinado à prática de atos de mero expediente relacionados com a gestão dos bens subsequente aos arrestos decretados e que possam reclamar intervenção judicial. Manifestamente não se reconduz a essa natureza os atos cuja prática a recorrente pretende. Está em causa pedidos de levantamento/revogação (parcial) do arresto. Mas os arrestos das ações e conta bancária da recorrente foram decretados em mera execução do pedido de auxílio internacional formulado pela ... ao abrigo da Convenção CPLP2. Aos Tribunais portugueses, enquanto autoridade judiciária do Estado requerido, cabia, em conformidade com o disposto no art. 8.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e nos artigos 2.º e 3.º da Convenção CPLP, apreciar se o pedido de auxílio estava em condições de ser executado e/ou se existia motivo de recusa do auxílio requerido. Ultrapassada essa fase – tendo-se decidido que inexistia fundamento para recusar o pedido de auxílio formulado pelo Estado requerente – e materialmente executadas as diligências solicitadas, está concluída a tarefa da autoridade rogada. Todas as questões pertinentes à regularidade da decisão de decretar o arresto preventivo, à subsistência do mesmo ou respetiva redução, têm de ser apresentadas perante a autoridade judiciária que determinou tal medida, ou seja, perante os Tribunais ...nos, pois que o Sr. Juiz de 1ª instância perdeu jurisdição internacional logo que a carta rogatória foi considerada cumprida. E não existindo ainda, no âmbito do processo que corre termos em ..., decisão final, não estamos no momento previsto no n.º 3, al. b) do art. 16.º da Convenção CPLP. Apenas no termo do processo, definido o que seja objeto ou produto do crime, caberá ao Estado requerido decidir o destino a dar aos bens que se encontrem em território nacional. Concorda-se, por isso, que a partir de 14/04/2021, Portugal deixou de ter jurisdição para apreciar e decidir qualquer requerimento que contenda com o que foi rogado, aceite e executado (e o fundamento enunciado para o levantamento de parte da quantia arrestada – pagamento das obrigações tributárias ao Estado Português – não interfere com este juízo, que sempre será prévio). Não se cura aqui e agora de saber se tal devolução deveria ter ocorrido nos termos em que ocorreu, pois tal constitui facto consumado que, neste momento, se nos impõe. E o princípio da confiança, da boa fé, e do respeito pela soberania dos Estados que voluntariamente escolheram vincular-se a instrumentos de cooperação internacional em matéria penal, determina-os (com contadas exceções que habilitam a recusa) à prática de atos que, por essa via, lhe sejam solicitados. Cabe, por isso, ao Estado requerido a execução do solicitado, não alterando ou revogando de modo unilateral o definido pela autoridade requerente, só assim se respeitando o disposto no art. 8.º da CRP. Por isso, a pretensão da recorrente, de redução do arresto decretado, deve ser apresentada junto da ..., por significar uma alteração à decisão tomada pela Autoridade requerente. Não justifica, aliás, a recorrente o motivo pelo qual tal se mostre inviável ou incapaz de salvaguardar os respetivos direitos e que, por isso, como alega, esteja postergado o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva (art. 20.º, n.º 4 CRP), o que não se deteta. Em face do exposto, carecendo o Tribunal de Instrução Criminal nacional de jurisdição no caso vertente – porque não se trata de decisão proferida pelos tribunais nacionais – o recurso não pode proceder. * V–DECISÃO Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art. 513.º, n.º 1 do Cód. Processo penal, 8.º, n.º 9 do RCP e Tabela III anexa ao mesmo). Notifique. * Lisboa, 9 de abril de 2024
Mafalda Sequinho dos Santos -(Relatora) 1.Recursos Penais, 9ª ed., Rei dos Livros, 2020, pág. 88. |