Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
28112/17.4T8LSB-H.L1-2
Relator: ORLANDO NASCIMENTO
Descritores: AVÓS
AUDIÇÃO DO MENOR
SUPRIMENTO DA NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (do relator):
1. Nos termos do disposto na al. c), do n.º 1, do art.º 4.º, do RGPTC, a criança “é sempre ouvidadesde que tenha “capacidade de compreensão dos assuntos em discussão” e esta deverá ser aferida pelo juiz como determina o n.º 2 do mesmo preceito.
2. A ausência de audição do menor e a ausência de decisão sobre essa mesma audição constitui a nulidade de sentença por omissão de pronúncia, prevista na al. d), do n.º 1, do art.º 615.º, do C. P. Civil, que que deverá ser conhecida e suprida pelo Tribunal da Relação, nos termos do disposto no n.º 1, do art.º 665.º, do C. P. Civil.
3. Convivendo o menor com os avós paternos, desde 2020, durante um dia por semana e tendo a decisão recorrida estabelecido que o menor pernoitaria também com os avós uma vez por semana, a audição do menor, agora com seis anos, não é necessária nem útil, não tendo o menor que ser ouvido, por não ter capacidade de compreensão dos assuntos em discussão.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes que constituem o Tribunal da Relação de Lisboa.

1. RELATÓRIO.
No âmbito do processo tutelar comum relativos ao menor, ... …, em que são requerentes V… … e M … e requeridos B … e B …, em Conferência de Pais e Avós Paternos foi nomeado defensor oficioso ao menor e ordenada a realização de relatório social “…atinente às condições pessoais e de vida da Criança, bem como ao seu atual estado físico e emocional e bem assim se avalie o seu relacionamento afetivo com a progenitora, com o pai e com os avós paternos, bem como se avalie as competências parentais de parte a parte de cada um dos progenitores em relação à Criança e, consequentemente, os laços afetivos não só com os progenitores, mas também, com aqueles que eventualmente existam ou não, com os avós paternos”, após o que foi estabelecido o seguinte Regime Provisório:
“…no primeiro sábado de cada mês, o ... pernoitará na casa dos avós paternos e com os mesmos ficando aos cuidados e responsabilidades destes, por forma a intensificar os laços afetivos com os avós paternos e também a poder conviver com o primo ... do lado da família paterna (os avós irão buscar a Criança a casa da mãe pelas 18:00 horas da tarde entregando a Criança na casa da mãe no domingo seguinte pelas 11:00 horas), regime que se fixa a título provisório e apenas nesta sede de visitas/convívios de pernoita com os avós paternos, ao abrigo do disposto no artigo 28.° do RGPTC”.
Inconformado com essa decisão, o menor dela interpôs recurso, recebido como apelação, pedindo a sua revogação, formulando para o efeito as seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso interposto da decisão judicial que fixa regime provisório, ao abrigo do art° 28° do RGPTC, impondo ao menor ..., aqui recorrente, a pernoita com os seus avós paternos, no primeiro Sábado de cada mês, ficando assim aos seus cuidados, a fim de intensificar os laços afectivos entre neto e avós, bem como com o seu primo ..., que o é pelo lado paterno.
II. A decisão que fixa o regime provisório, da qual agora se recorre, foi proferida ao abrigo do art° 28° do RGPTC nos termos já supra indicados, sem que o tribunal a quo tenha proferido qualquer despacho sob a (des)necessidade ou (in)conveniência da audição do menor ..., aqui recorrente.
III. O tribunal, antes de tomar a decisão (provisória e/ ou definitiva) a respeito da criança: ou a ouve, ou fundamenta porque é desaconselhável ouvi-la. O tribunal a quo não ouviu o recorrente nem justificou porque não o ouvia tendo em conta o seu superior interesse.
IV. O tribunal a quo tem conhecimento oficioso que o recorrente tem 6 anos de idade, e que lhe foi dado a conhecer que recusou estar com os avós paternos durante o verão, não tendo manifestado vontade em pernoitar com estes, quando confrontado com tal possibilidade, através de requerimento da sua mãe.
V. O recorrente já iniciou o ensino básico e com a idade de 6 anos não é de excluir que tenha capacidade para se pronunciar sobre esta questão, a pernoita com os avós paternos; até porque já o fez, conforme conclusão IV.
VI. A omissão da audição da criança sem despacho que a justifique, constitui, uma nulidade da decisão que fixa o regime provisório, uma vez que o tribunal a quo decide sobre matéria que lhe estava vedada pronúncia sem aquela audição nos termos e para os efeitos da alínea d) do n° 1 do art° 615° do CPC.
VII. O tribunal a quo ignorou in totum o princípio da audição da criança e sua participação nos processos judiciais que lhe dizem respeito, e por isso ao decidir fixar regime provisório sem promover a audição do aqui recorrente ou de justificar a sua desnecessidade, violou o disposto na alínea c) do n° 1 do art° 4° e o art° 28°, ambos do RGPTC, bem como a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU (art° 12°); a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (art° 24°); a Convenção sobre o exercício dos Direitos da Criança de 25/01/1996 (art° 3°, alínea b); art° 6, alínea b), §3); Regulamento (CE) n° 2201/2003 de 27/11 (Decisões em Matéria Matrimonial e Responsabilidade Parental).
VIII. Nestes termos, deverão V. Exas. deferir o presente recurso, anulando a decisão que fixa o regime provisório ao recorrente, e determinando-se a audição do menor ....
*
O Ministério Público contra-alegou, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
2. FUNDAMENTAÇÃO.
A) OS FACTOS.
A matéria de facto a considerar é a acima descrita, sendo certo que a questão submetida a decisão deste tribunal se configura, essencialmente, como uma questão de direito.
B) O DIREITO APLICÁVEL.
O conhecimento deste Tribunal de 2.ª instância, quanto à matéria dos autos e quanto ao objecto do recurso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente como, aliás, dispõem os art.ºs 635.º, n.º 2 e 639.º 1 e 2 do C. P. Civil, sem prejuízo do disposto no art.º 608.º, n.º 2 do C. P. Civil (questões cujo conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras e questões de conhecimento oficioso).
Atentas as conclusões da apelação, acima descritas, a questão submetida ao conhecimento deste Tribunal pelo apelante consiste, tão só, em saber se a decisão recorrida é nula, nos termos do disposto na al. d), do n.º 1, do art.º 615.º, do C. P. Civil, por não ter sido precedida da audição do menor recorrente nem ter fundamentado essa omissão.
Conhecendo.
A audição e participação da criança no âmbito das decisões que lhe digam respeito configuram-se como um dos princípios orientadores do processo tutelar cível, como tal estabelecido pela al. c), do n.º 1, do art.º 4.º, do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC), aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08 de Setembro.
Nos termos do disposto na al. c), do n.º 1, do art.º 4.º, do RGPTC, a criança “é sempre ouvidadesde que tenha “capacidade de compreensão dos assuntos em discussão” e esta deverá ser aferida pelo juiz em despacho fundamentado, como é apanágio das decisões judiciais, como determina o n.º 2, do art.º 4.º, citado.
Como é pacífico nos autos, o menor não foi ouvido pelo tribunal a quo nem este se pronunciou sobre a sua capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, a saber, grosso modo, sobre a sua relação de família com os avós paternos, quer do ponto de vista legal, quer do ponto de vista social, mas sobretudo na sua essência e realização.
A ausência de audição do menor e a ausência de decisão sobre essa mesma audição constitui nulidade de sentença por omissão de pronúncia, prevista na al. d), do n.º 1, do art.º 615.º, do C. P. Civil, que agora deverá ser conhecida e suprida, nos termos do disposto no n.º 1, do art.º 665.º, do C. P. Civil, o qual determina que “Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação”.
Analisados os autos, constatamos que neles está, essencialmente, em causa a convivência do menor com os avós paternos, no âmbito da relação de parentesco que os une e que não está compreendida na sua disponibilidade, uma vez que nem os requerentes nem o menor poderão alijar os direitos e deveres que lhe decorrem da ordem jurídica em que se inserem.
No âmbito dessa relação, como dos autos também consta, desde 2020 que, por acordo homologado pelo tribunal e exercitado com o contributo dos intervenientes, o menor tem vindo a conviver com os avós paternos um dia por semana.
A decisão sob recurso, com a fundamentação que dela consta na perspectiva da relação familiar em causa, que envolve o interesse dos requerentes, dos requeridos e pela ordem natural das coisas, essencialmente, o interesse do menor, estabeleceu agora que o menor pernoitaria com os avós uma vez por semana, o que, aliás, nenhum dos progenitores/requeridos questiona, pelo menos frontalmente.
Com este regime provisório, tendo o menor 6 anos de idade, a realização da relação de parentesco entre ele e os avós paternos não só se situa ainda a um nível mínimo, como se desconhecem indícios nos autos de qualquer obstáculo para que este pequeno avanço pudesse, razoavelmente, ser evitado, não podendo considerar-se como tal a referência, imputada à progenitora, a uma “recusa de verão”.
Nestas circunstâncias, a audição do menor pelo tribunal a quo configurar-se-ia como um ato processualmente inútil porque a mesma se não destinaria a auscultar a vontade da menor no concreto exercício da parentalidade, já que a mesma é ineficaz relativamente à existência da relação familiar em si mesma, mas eventualmente a discorrer sobre generalidades para as quais é irrelevante também a “capacidade de compreensão dos assuntos em discussão” do menor.
Não podemos, pois, deixar de concluir que a audição do menor não é necessária nem útil, prefigurando-se até como desaconselhável em tudo o que excedesse um diálogo de circunstância, pelo que o menor não devia e não deve ser ouvido por não ter capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, o que agora se decide em substituição ao tribunal de 1ª instância, nos termos do disposto no n.º 1, do art.º 665.º, do C. P. Civil
Improcede, pois, esta primeira questão da apelação e com ela a própria apelação.
C) SUMÁRIO
1. Nos termos do disposto na al. c), do n.º 1, do art.º 4.º, do RGPTC, a criança “é sempre ouvidadesde que tenha “capacidade de compreensão dos assuntos em discussão” e esta deverá ser aferida pelo juiz como determina o n.º 2 do mesmo preceito.
2. A ausência de audição do menor e a ausência de decisão sobre essa mesma audição constitui a nulidade de sentença por omissão de pronúncia, prevista na al. d), do n.º 1, do art.º 615.º, do C. P. Civil, que que deverá ser conhecida e suprida pelo Tribunal da Relação, nos termos do disposto no n.º 1, do art.º 665.º, do C. P. Civil.
3. Convivendo o menor com os avós paternos, desde 2020, durante um dia por semana e tendo a decisão recorrida estabelecido que o menor pernoitaria também com os avós uma vez por semana, a audição do menor, agora com seis anos, não é necessária nem útil, não tendo o menor que ser ouvido, por não ter capacidade de compreensão dos assuntos em discussão.

3. DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo apelante

Lisboa, 04-04-2024,
Orlando Santos Nascimento
Higina Castelo
Inês Moura