Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
646/21.3PCRGR.L1-5
Relator: CARLA FRANCISCO
Descritores: FALTA DE RELATÓRIO SOCIAL
IMPUGNAÇÃO AMPLA DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ART.º 31.º
DO DECRETO-LEI N.º 15/93
DE 22 DE JANEIRO
TRÁFICO DE DROGA
PREVENÇÃO GERAL POSITIVA
JUÍZO DE PROGNOSE FAVORÁVEL
ART.º 35.º
DO DECRETO-LEI N.º 15/93
DE 22 DE JANEIRO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I - Está suficientemente fundamentada a decisão que faz referência a todos os documentos e depoimentos que considerou pertinentes para o apuramento de cada um dos factos provados, articulou a prova pericial e os autos de busca e apreensão com os depoimentos dos arguidos e das testemunhas e explicou, de uma forma lógica, racional e completa, o que cada um disse e em que medida é que o Tribunal lhes conferiu, ou não, credibilidade.
II - O relatório social é uma fonte de informação, está sujeito ao princípio da livre apreciação da prova e não é de elaboração obrigatória, podendo o juiz solicitá-lo quando o considere necessário.
III - Não há insuficiência da matéria de facto para a decisão sobre a medida concreta da pena de prisão a aplicar aos arguidos decorrente da falta de elaboração de relatório social, quando o Tribunal recolheu os elementos de prova que considerou necessários das declarações dos arguidos e das testemunhas.
IV - Não cumpre as exigências legais da impugnação ampla da matéria de facto o recorrente que não indica os concretos pontos que considera terem sido mal julgados, não especifica quais as testemunhas cujos depoimentos foram mal valorados, não concretiza quais as passagens desses depoimentos é que fundamentam a falta de prova dos factos e não indica as partes da gravação dos depoimentos que o Tribunal de recurso deveria ouvir.
V - As circunstâncias previstas no art.º 31º do D.L. nº 15/93 não determinam automaticamente a atenuação especial das penas aplicadas aos arguidos, havendo que ponderar se se verificou uma diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena que justificasse uma resposta punitiva atenuada.
VI - No crime de tráfico de droga são muito elevadas as exigências de prevenção geral positiva, por o crime gerar um forte sentimento de repúdio pela comunidade, sobretudo numa comunidade pequena de uma ilha dos Açores.
VII - Apesar de os arguidos não terem antecedentes criminais, não é possível a formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao seu comportamento futuro, que justifique a suspensão da pena de prisão aplicada, quando os arguidos não assumiram integralmente os seus comportamentos, não manifestaram arrependimento, nem consciência do desvalor das suas condutas e das consequências das mesmas, não têm meios de subsistência, não trabalham e fazem da venda de droga modo de vida.
VIII - A perda do dinheiro apreendido aos arguidos a favor do Estado opera “ope legis”, sendo o regime resultante do art.º 35º, nº 1 do DL nº 15/93, de 22/01, diferente e menos exigente do que o regime geral previsto nos arts.º 109º a 111º do Cód. Penal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1– Relatório
No processo nº 646/21.3PCRGR do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, Juízo Local Criminal da Ribeira Grande, consta da parte decisória da sentença datada de 28/03/2023, o seguinte:
Nos termos expostos, julga-se a acusação, totalmente procedente por totalmente provada e, em consequência, decide-se:
1. Condenar o arguido AA, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de Estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º a) do Decreto Lei 15/93 de 22 de Janeiro, por referência ao artigo 21.º n.º do mesmo diploma, na pena de prisão de 2 (dois) anos.
2. Condenar a arguida BB, pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de Estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º a) do Decreto Lei 15/93 de 22 de Janeiro, por referência ao artigo 21.º n.º do mesmo diploma, na pena de prisão de 2 (dois) anos.(…)
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Inconformado com a decisão condenatória, veio o arguido AA interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
I- O arguido ora recorrente foi condenado pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de Estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º a) do Decreto-lei 15/93 de 22 de Janeiro, por referência ao artigo 21.º n.º do mesmo diploma, na pena de prisão de 2 (dois) anos.
II- Verifica-se contradição insanável da fundamentação entre, por um lado, o facto 2 e os factos 5 e 6, vicio a que se refere a alínea b) do nº 2 do artigo 410º do CPP, devendo ordenar-se o reenvio do processo para novo julgamento (nº 1 do artigo 426º do CPP);
III- Há erro notório na apreciação da prova no respeitante à caracterização do dolo, designadamente face à Lei nº 25/2021, de 11 de maio, configurando-se o vício da alínea c) do nº 1 do artigo 410º do CPP, devendo o processo ser reenviado para novo julgamento (nº 1 do artigo 426º do CPP);
IV- Constata-se também insuficiência da matéria de facto, impondo-se, designadamente ao abrigo do disposto nos artigos 340º, nº 1 e 370º, nº 1, pedir o Relatório social, inquirir o irmão do arguido de seu nome CC, definir grau de pureza apreendida ao arguido, configurando-se o vício da alínea a) do nº2 do CPP, devendo o processo ser reenviado para novo julgamento (artigo 426º nº 1 do CPP);
V- Muito embora o tribunal a quo tenha fundamentado o teor dos factos 2 a 7 nos depoimentos das testemunhas DD e EE, testemunhas estas de reduzida credibilidade, não consta em absoluto o exame crítico das provas exigido pelo nº 2 do artigo 374º do CPP, pelo que se suscita a nulidade da decisão (artigo 379º, nº 1,alinea a) do CPP);
VI- O tribunal a quo ignorou completamente o depoimento das testemunhas indicadas pelo arguido AA com fundamento em que uma era prima do arguido, duas suas vizinhas e outra sua conhecida, tendo sido violados os artigos 131º e 374º, nº 2 do CPP, e o artigo 20º nº 4, da Constituição, o que configura a nulidade prevista pela alínea c) do nº 1 do artigo 379º do CPP que se suscita;
VII- Na determinação da medida da pena houve errada avaliação das circunstâncias apuradas, designadamente quanto ao dolo, a qualidade de produto estupefaciente no que respeita ao grau de pureza da mesma, sendo certo que é diminuta a quantidade de produto estupefaciente apreendida ao arguido, não tendo o arguido averbada qualquer condenação no seu registo criminal, pelo que se impunha a aplicação do regime de atenuação de pena previsto no artigo 31º da Lei nº 15793, nunca devendo ser superior ao limite legal, tendo sido violado o artigo 71º do CP, pelo que deve a decisão, nesta parte, ser revogada;
VIII- O tribunal a quo ao não suspender a execução da pena de prisão, errou na interpretação dos pressupostos previstos no artigo50º do CP, por designadamente não ter valorado adequadamente o facto de o arguido não ter antecedentes criminais, de ser muito diminuta a quantidade de produto estupefaciente apreendida não em posse do arguido mas no quarto de casal, não tendo sido tida em conta a ter existido, o carácter rudimentar da atividade delituosa - na residência -, de não lhe ser conhecida qualquer atividade delituosa desde a apreensão, circunstâncias que impunham diferente decisão, no caso, a suspensão da execução da pena de prisão a que foi o arguido sentenciado, mostrando-se violado o artigo 18º, nº 2, da constituição, pelo que deve a sentença ser revogada nesta parte.
IX- O tribunal a quo decidiu declarar perdida a favor do estado a quantia monetária apreendida, sem que conste da matéria dada como provada que a mesma seja proveniente de qualquer ilícito criminal, designadamente do de tráfico de estupefacientes, pelo que foi violado o artigo 36º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, devendo a sentença ser revogada nesta parte.
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Também inconformada com a decisão condenatória, veio a arguida BB, interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
“ 1. Verifica-se a contradição insanável da fundamentação entre por um lado o facto 2 e os factos 5 e 6, vício a que refere a alínea b) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, devendo ordenar-se o reenvio do processo para novo julgamento (n.º 1 do art.º 426.º do CPP);
2. Há um erro notório na apreciação da prova na caracterização do dolo, designadamente face à entrada em vigor da Lei n.º 25/2021, de 11 de maio, configurando-se o vicio da alínea c) do n.º 1 do art.º 410.º do CPP, devendo o processo ser reenviado para novo julgamento (n.º 1 do art 426.º do CPP);
3. Constata-se também insuficiência da matéria de facto, impondo-se que designadamente, ao abrigo do disposto nos art.º 340 n.º 1 e 370 n1.º, pedir o Relatório Social, inquirir o ex-marido da arguida e o filho CC, definir o peso liquido do produto estupefaciente apreendido e o seu grau de pureza, configurando-se o vicio da alínea a) do art.º 2 do CPP, devendo o processo ser reenvidado para novo julgamento (artigo 426.º n.º 1 CPP);
4. Embora o Tribunal a quo tenha fundamentado o teor dos factos 2 a 7 nos depoimentos das testemunhas DD e EE, testemunhas, aliás, de reduzida credibilidade, não consta em absoluto o exame critico da provas exigido pelo n.º 2 do art.º 374.º do CPP, pelo que se suscita a nulidade da decisão (art.º 379.º n.º 1 alínea a) do CPP).
5. Na determinação da medida concreta da pena houve errada avaliação das circunstancias apuradas, designadamente quanto ao dolo, a quantidade e qualidade do produto estupefaciente, sendo certo que, é diminuta a quantidade e qualidade do produto estupefaciente, sendo certo que é diminuta a quantidade apreendida, parte do qual foi entregue voluntariamente pela arguida, constatando-se ausência de antecedentes criminais, pelo que se impõe a aplicação do regime da atenuação da pena previsto no art.º 31.º da LeI 15/93, tendo sido violado o artigo 71.º do CP, pelo que deve a decisão, nesta parte ser revogada;
6. O Tribunal a quo ao não suspender a execução da pena de prisão, errou na interpretação dos pressupostos previsto no artigo 50.º do CP, designadamente não valorou adequadamente o facto de não haver antecedentes criminais (particularmente o facto de a arguida estar prestes a completar os 63 anos de idade), de ser mínima a quantidade de produto estupefaciente apreendida, e parte ter sido entregue voluntariamente pela mesma, da rudimentar atividade caracterizada no processo, (na residência), não se lhe conhecendo qualquer atividade ilícita desde a apreensão do produto estupefaciente, circunstancias que impunham diferente decisão, a suspensão da pena, mostrando-se violado o artigo 50.º do CP e o art.º 18.º n.º 2 da CRP, pelo que, deve a sentença ser revogada, nesta parte.
7. Ora, um dos princípios em que assenta o processo penal é o princípio acusatório ou da acusação, consagrado no artº 32º, nº5, da CRP, nos termos do qual o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
8. Como salienta Figueiredo Dias in “Direito Processual Penal” lições coligidas, 1988-9, p.99, a imparcialidade, a objetividade e a independência em que deve assentar a decisão judicial, só são asseguradas quando o julgador “...possa apenas investigar e julgar dentro dos limites que lhe são postos por uma acusação fundamentada e deduzida por um órgão diferenciado (em regra o MP ou um juiz de instrução)”.
9. Assim, continua o autor, ob. Cit. P. 102, “A dedução da acusação é pressuposto de toda a atividade jurisdicional de investigação, conhecimento e decisão”.
10. Perante todo o já exposto, deve a pena privativa da liberdade de 2 anos de prisão ser diminuída para pena de prisão perto do seu limite mínimo, em primeiro lugar;
11. E consequentemente ser suspensa na sua execução, ainda que sujeita a regime de prova, ou seja, através de acompanhamento pelos serviços de reinserção social, por cumprir os pressupostos constantes do artigo 50.º do Código Penal.
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Os recursos foram admitidos, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O Ministério Público apresentou resposta aos recursos dos arguidos, sem formular conclusões, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da decisão recorrida.
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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, nos seguintes termos:
“Vêm os arguidos, mãe e filho entre si, BB e AA, condenados, em co-autoria material, pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art 25º, a), DL 15/93, 22.01, na pena de prisão, efectiva, de 2 A, dissentindo da douta Sentença, em vários segmentos, dela interpor Recurso, cujo conteúdo é comum, mais, decalcado e, assim absolutamente coincidente nas censuras direccionadas àquela.
Cumpre dizer que o arguido consigna, na abertura do seu Recurso, que a impugnação se cinge estritamente à matéria de direito, embora depois, contraditoriamente, se alongue e espraie por matéria de facto, quer na vertente impugnatória ampliada (art 412º,3, CPP), quer pela de “revista alargada” (art 410º,2, CP).
Assim sendo, quanto a si, natural e processualmente, a factualidade mostra-se cristalizada, definitiva e indiscutível, tal como assente nos “factos provados” pelo Julgador, isto sem embargo do Tribunal “ad quem”, detendo poderes oficiosos de cognição, poder intervir correctivamente sobre eventuais “erros decisórios” (art 410º,1 e 2, CPP).
Porém, e sem conceder, dir-se-à que, ainda que seja possível conhecer e apreciar a impugnação “ampliada” (antes renunciada, recorde-se), jamais o ritualismo procedimental (art 412º,3,a) a c), e 4, CPP) foi observado, o que concorre, também, por essa razão, para a rejeição do Recurso, nesse domínio (arts 417º,3, e 420º, CPP).
Dessa sorte, entremos na impugnação (comum) da matéria de facto, na forma de “revista alargada” (art 410º,2, CPP), elaborada pelos recorrentes, cujos erros de decisão, antecipemos, não descortinamos, em momento algum, pela leitura do texto recorrido (mesmo com a convocação das regras da normalidade, da racionalidade ou do conhecimento humano e científico), e seria dele, e só dele, que deveria decorrer a propalada viciação na génese do raciocínio judicial.
Quanto à “insuficiência da matéria provada para a decisão final, de direito (art 410º,2, a), CPP), traduzida, “grosso modo”, na indagação e apuramento deficitários da factualidade, inabilitando a conformidade da Decisão final com o Direito, não se vê onde está a incompletude dos “factos provados”, para sustentar a apregoada insusceptibilidade de emissão do juízo de censura ético-penal.
Bem ao invés, flui uma actividade exaurida e exaustiva de recolha de prova, em Audiência, que permitiu, a final, julgar verificados os elementos típicos, objectivos e subjectivos, da infracção por que vieram a ser ambos condenados, fruto dum escrutínio rigoroso e criterioso do acervo probatório alcançado, emergindo um indesmentível silogismo judiciário (arts 97º,5, 474º,2, 355º, CPP, e 205º, CRP).
Por outro lado, ficcionam os recorrentes haver contradição, e insuprível, da fundamentação (concretamente, entre o “facto provado” 2, a um tempo, e, por outro, os sob os números 5 e 6, tornando-se mutuamente inconcatenáveis as asserções neles vertidas.
Ora trata-se duma argumentação falaciosa, pois que facilmente se intui que o Julgado consignou (“facto provado” 2) que a actividade delituosa decorreu em 2021, desde data não determinada, até 11.10, desse mesmo ano, descrevendo depois, noutros “factos provados” (3 a 7) como, quanto, por quanto e a quem cederam onerosamente as substâncias estupefacientes que detinham e manipulavam.
Significa que os “factos provados” 5 e 6 devem ser correlacionados com o “factos provado” 2, de modo a calendarizar o fluxo de vendas operadas, que, nada despiciendo, ocorriam a um ritmo diário (assim abrangendo o período da entrada em vigor do , até ao momento da intercepção (inopinada) policial, ou seja, até ao dia das revistas e busca domiciliária, revelando-se a objecção erguida recursoriamente incapaz de demonstrar a apontada incongruência (art 410º,2,b, CPP), afinal.
Por fim, o “erro grosseiro” de avaliação da prova (art 412º,2, c), CPP), consistindo na imponderação do Tribunal quanto à entrada em vigor da Lei 25/21, que introduziu a substância apreendida no conceito legal de droga, e que iniciou a sua vigência (criminalização) a 12.05.21, o que, a nosso ver, deixa sem sentido a pretendida exclusão (que só ocorreria sobre vendas antes dessa data, mas não depois, e que se prolongaram diariamente, repete-se, até ao dia da busca e detenções (em 11.10.21).
Nem se esgrima, como o fazem os recorrentes, quando agitam com o desconhecimento duma incriminação (à data) recente, que, razoavelmente, era desconhecida das pessoas (incluindo traficantes, diremos).
Sucede que a invocada ignorância da lei não lhes é aproveitável (arts 16º e/ou 17º, CP), sendo que a sua actuação evidencia, justamente, o contrário, essa consciência da ilicitude, daí que exercessem a actividade sob o recato da casa, mediante as “cautelas de estilo”, mediante prévios e sigilosos contactos, para depois fazerem os aviamentos fugazmente (entrega e recebimento).
Mais, utilizavam recortes de sacos de plásticos para acondicionar o produto, tudo num “déjá vu” relativamente ao exercício de todo e qualquer traficante, assumindo os riscos dos seus actos, que sempre tentaram manter longe dos “olhos” da autoridade e até de terceiros, não adquirentes.
Não vingam, pois, aqui, quaisquer erros ostensivos na aferição probatória, nem sobra espaço para nenhum “non liquet”, dado que o Tribunal recorrido superou, pela prova produzida, sustentadamente, a presunção de inocência com que iniciou o Julgamento (art 32º,2, CRP), irrelevando alguma dúvida que subsista ainda no espírito dos sujeitos processuais, afinal destinatários da administração da Justiça, que não órgãos decisores.
Tal como inexiste qualquer nulidade da Sentença, dada a efectiva fundamentação, partilhada (arts 374º,2, e 379º,1, a), CPP), como acima se assinalou, tal como se não percebe que omissão de pronúncia possa ter ferido letalmente a Decisão condenatória (art 379º,1,c), CPP), quando o Tribunal se pronunciou por todas as questões nucleares para a posição final, ora trazidas pela Acusação, pela defesa ou decorrentes da discussão da causa, sendo que não estava obrigado o Mmº Juíz “a quo” a debater e abordar opiniões, teses, conjecturas ou argumentos que não tivessem aquele perfil de essencialidade.
Aqui nos questionamos que importância processual poderia ter o relatório social (da DGRSP, assente em entrevistas apos visados), quando os próprios arguidos e outras testemunhas corroboraram as suas condições pessoais? Tratar-se-ia, mesmo, de acto/diligência inócua e inútil proibida por lei (arts 4º, CPP, e 130º, CPC), cuja (im)prescindibilidade está sempre no critério do Tribunal (art 340º, CPP).
Mais surpreendente, ainda, a reclamação do estatuto de “arrependido”, e do benefício de atenuante especial (art 31º, DL 15/93, 22.01), que até julgámos, à primeira leitura, atribuível a mero lapso (importação informática indesejada doutro processo), cujos pressupostos estão a “anos luz” de se verificarem, dispensando-nos doutras considerações mais pormenorizadas, cremos.
Quanto ao perdimento do valor económico (arts 35º e 39º, DL 15/93. 22.01), que decorre da conclusão de ser receita auferida da actividade ilícita conjunta, de mãe e filho, durante meses, quadro que ressalta da factualidade e apurada e reiterada na fundamentação da matéria de facto (mormente quando se refere que o dinheiro estava guardado numa carteira, no mesmo espaço em que estavam os demais objectos apreendidos), opera “ope legis”, observada a ligação ao tráfico, sem margem de intervenção judicial (diferenciando-se e sendo menos exigente, mais automático, que o regime geral: arts 109 a 111º, CP).
A rematar, a questão do “direito penal reeducativo-pedagógico”, que a pena concreta não obstaria (art 50º,1, CP), mas que razões materiais impedem, claramente, aliás sobeja e proficuamente enunciadas na Sentença.
À cabeça a postura autocentrada e desresponsabilizante que assumiram em Julgamento, atribuindo a titularidade da droga sintética a um membro do agregado, filho da arguida e irmão do recorrente, toxicodependente, ao mesmo tempo que se assumiram como não consumidores, para o efeito, alegando que esconderam o produto àquele, quando se esperaria que destruíssem a substância, traduzindo a razão da sua intervenção em prol do bem estar daquele familiar.
Igualmente não têm hábitos laborais, ambos desempregados de longa duração, sem quaisquer valências e competências, pessoais, cívicas e outras, não hesitando em traficar, a partir da habitação, quando têm um consumidor em casa e menores à sua guarda (cujas idades o recorrente, como pai, ignora!!!), potenciando riscos incalculáveis, para o bem estar deles.
Aqui chegados, à pergunta sobre a viabilidade da suspensão da execução da pena de prisão corresponde, vinculativamente e por inevitabilidade, um imediato juízo fortemente céptico quanto à ressocialização em liberdade, tamanhos são os níveis de prevenção geral (arts 1º,j), CPP, e arts 4º e 5º, L 55/20, de 27.08) e especial (pese a primariedade, que não esbate a impreparação para se comportarem normativamente), a que se soma a medida da culpa, também intensa.
Em suma, somos a sugerir a validação do judiciosamente decidido.”
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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo os recorrentes vindo acrescentar ao já por si alegado.
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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.
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2 – Objecto do Recurso
Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
À luz destes considerandos, são as seguintes as questões que cumprem apreciar:
- Nulidade da sentença recorrida por falta de exame crítico da prova;
- Nulidade da sentença recorrida por verificação dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do Cód. Proc. Penal;
- Erro de julgamento;
- Violação do princípio in dubio pro reo;
- Qualificação jurídica dos factos;
- Medida da pena;
- Suspensão da execução da pena de prisão;
- Destino do dinheiro apreendido.
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3- Fundamentação:
3.1. – Fundamentação de Facto
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:
FACTOS PROVADOS:
Da acusação Pública
1- Os arguidos AA e BB são mãe e filho e residem ambos na ....
2- Desde data não concretamente apurada, mas que se situa durante o ano de 2021 e pelo menos até ao dia 11 de outubro de 2021, atuando de comum acordo entre si e na execução de decisão por ambos tomada, os arguidos dedicaram-se, à venda de produtos estupefacientes, nomeadamente, droga sintética designada por “Alfa-PHP” a terceiros, que concretizavam na sua residência.
3- Com o objetivo de adquirirem tais produtos estupefacientes aos arguidos, os terceiros adquirentes, deslocavam-se à residência dos identificada em 1., a fim de receberem dos arguidos tais produtos e procederem ao seu pagamento.
4- Os arguidos tinham na sua residência o produto estupefaciente que preparam à medida que os consumidores os procuravam e que acondicionavam em pacotes, mediante as contrapartidas monetárias de 5,00€, 10,00€, 20,00€, 30,00€ e 50,00€, conforme a quantidade do produto estupefaciente solicitado e vendido.
5- Em datas não concretamente apuradas, mas com frequência diária, durante o ano de 2021, os arguidos AA e BB entregaram droga sintética designada por “Alfa-PHP” a DD, para seu consumo, mediante a contrapartida monetária de 5,00€ (cinco euros) por cada pacote.
6- Em datas não concretamente apuradas, mas com frequência diária, durante o ano de 2021, os arguidos AA e BB entregaram pacotes de droga sintética designada por “Alfa-PHP”, a EE, para seu consumo, mediante a contrapartida monetária de 5,00€ (cinco euros) por cada pacote.
7- A arguida BB recebeu igualmente da consumidora EE, como contrapartida da venda do produto estupefaciente, produtos alimentares como massa, arroz, salchichas e atum.
8- No dia 11 de outubro de 2021, cerca das 9.10h, a arguida BB detinha na sua posse 10 (dez) embalagens com 0,45 gr de droga sintética designada por “Alfa-PHP” que entregou à PSP.
9- E o arguido AA detinha no interior do seu quarto na residência identificada:
- 3 (três) embalagens, com 0,13 gr de droga sintética designada por “Alfa-PHP”
- 1 (um) telemóvel, de marca Huawei, com o IMEI n.º ...;
- 2 (notas) notas no valor de 100,00€ (cem euros) cada do Banco Central Europeu;
- 14 (catorze) notas no valor de 50,00€ (cinquenta euros) cada do Banco Central Europeu;
- 10 (dez) notas no valor de 20,00€ (vinte euros) cada do Banco Central Europeu;
- 24 (vinte e quatro) notas no valor de 10,00€ (dez euros) cada do Banco Central Europeu;
- 50 (cinquenta) notas no valor de 5,00€ (cinco euros) cada do Banco Central Europeu;
num total de 1.590,00€ (mil quinhentos e noventa euros).
10- No anexo da habitação encontravam-se:
- 2 (dois) recortes em plástico, utilizados embalar o produto estupefaciente;
- 1 (uma) tesoura, de marca Milan, de cor verde;
11- Para além disso, ainda estavam no anexo e no lixo doméstico, diversas sobras dos recortes em plástico em que acondicionavam as doses individuais que preparavam e vendiam.
12- Os arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços e no desenvolvimento da atividade por ambos desenvolvida, com o propósito concretizado de terem consigo e venderem o mencionado produto estupefaciente, cujas características, natureza e quantidade conheciam.
13- Os arguidos destinavam os produtos estupefacientes que detinham, nas circunstâncias de tempo e de lugar supra descritas, à venda e cedência a terceiros consumidores dos mesmos, nos termos supra descritos.
14- Os arguidos conheciam a natureza, qualidade, quantidade e composição estupefaciente dos produtos por si adquiridos, detidos e cedidos, bem sabendo que a sua aquisição, detenção e cedência a qualquer título sem autorização legal são proibidas.
15- Os arguidos atuaram sempre de forma livre, voluntária e consciente sabendo em todos os momentos que as suas condutas proibidas e punidas por lei penal, e tinham capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
Mais se apurou que:
16- O arguido AA tem o 7.º ano de escolaridade.
17- Tem 5 filhos, dos quais 4 desconhece a idade, residindo com um, com cerca de 02 anos e pelo menos, com outro menor, filho de sua companheira que, igualmente, reside consigo.
18- Encontra-se desempregado, pelo menos há 01 ano, quando trabalhava como ....
19- A arguida BB, não trabalha.
20- Na mesma habitação dos arguidos reside, ainda, outro filho da arguida, toxicodependente.
21- Os arguidos não têm antecedentes criminais registados.
FACTOS NÃO PROVADOS
Não resultaram factos não provados para a boa decisão da causa.
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Não se fixam quaisquer outros factos, por irrelevantes, jurídicos ou meramente conclusivos.
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MOTIVAÇÃO:
A convicção do Tribunal adveio da ponderação crítica do conjunto da prova produzida e analisada em audiência de discussão e julgamento.
Assim:
Desde logo se diga que foi pretensão dos arguidos prestar declarações. Ambos assumiram o circunstancialismo e enquadramento dos factos descritos na acusação, no que concerne à posse dos produtos, bens, dinheiro e objetos apreendidos, nos moldes descritos na peça acusatória. O que ultrapassa essa questão foi liminarmente negado por ambos os arguidos, indicando, nomeadamente, não terem jamais vendido qualquer produto estupefaciente. Os mesmos imputam a propriedade do produto estupefaciente, a CC, irmão do arguido, que ali, também reside. Acresce que, segundo o arguido, o dinheiro localizado no seu quarto, tinha origem estritamente lícita, nomeadamente advindo dos rendimentos de trabalho de sua namorada e de entregas que a avó daquela fazia à mesma, para que lhe guardasse o dinheiro, evitando assim ser assaltada novamente, justificando a posse de tal montante, porquanto se previa o batizado do filho do arguido.
Ora o exposto, permite, sem margem para qualquer dúvida, comprovar a factualidade referida nos pontos 1 e 8 a 11, tanto que, é a mesma iluminada pelos autos de busca e apreensão existentes no processo.
Analisemos, primeiramente, as declarações dos arguidos, unicamente quanto ao seu teor, ainda sem o amparo de qualquer outra prova analisada.
No imediato, ressalta um Himalaia de coincidências, todas concorrentes, em termos de tempo e de lugar e de circunstâncias e, ainda, todas em prejuízo de ambos os arguidos.
Indicou o arguido AA (secundado pela companheira FF), que o produto estupefaciente se encontrava no seu quarto, porquanto houve uma discussão com o seu irmão CC, no sentido que o arguido não gostaria que o mesmo consumisse produtos estupefacientes. Ao envolver-se fisicamente com o irmão CC, este deixou cair o produto estupefaciente em causa, que acabou por ser guardado no quarto do arguido. Ora, desde já se aponta que, qualquer toxicodependente, e compreensivelmente, tudo tentará fazer para não ficar desapossado do produto de que tem adição. Poderia, eventualmente, CC, não se ter apercebido de ter “perdido” tal produto. É uma das coincidências que infortunadamente atingiu o arguido, como a coincidência sobre a coincidência de, precisamente, no dia seguinte, ter sido realizada a busca domiciliária que detetou a existência no produto que o arguido guardava no seu quarto, sem prejuízo de, segundo o próprio e sua companheira, não ser consumidor, o que tornaria mais lógica, a destruição do produto estupefaciente e jamais a detenção no seu próprio quarto.
Situação de azar similar, sucedeu com a arguida BB, que justificou a posse de produto estupefaciente, que seria do seu filho CC, por tê-lo encontrado no seu quarto, eventualmente, querendo CC esconder os seus consumos de AA. É assinalável, a coincidência do evento, que não só ocorre em momento anterior da busca domiciliária, como em concorrência temporal, com a desavença entre CC e AA no dia anterior, ficando, ainda, por explicar, porque razão, não destruiu a arguida o produto em causa.
A concorrer com tais coincidências, dá-se o infortúnio de a avó da companheira do arguido, ter sido já assaltada e, receando novos assaltos, pedir a esta que faça custódia do seu dinheiro. O que a companheira do arguido, segundo diz, faz. Todavia, de modo algo incongruente, parece encontrar-se todo o dinheiro junto numa carteira (segundo declarações do agente da PSP GG, que detetou a existência do dinheiro em causa), não sendo assim, possível diferenciar que quantias pertencem, e a quem, não trazendo luz, a esse nível, os documentos juntos pela defesa, tanto que, as datas e valores ali inscritos, não são, sequer, minimamente coincidentes.
Reparou-se que, o infortúnio dos arguidos, não se bastou na existência de produto estupefaciente e de quantias monetárias. É que, indicou o arguido AA que até o telemóvel detetado, não era originariamente seu, antes tendo sido encontrado pela sua companheira, no estabelecimento comercial “poupadinha”, acrescentando nós, nova coincidência: o esquecimento de proceder à devolução.
Por último, não se pode deixar de notar acerca da existência, na habitação, de recortes de plástico, absolutamente habituais na atividade de venda de estupefacientes, de modo a albergaram doses individuais. Seria de julgar que, não estando, qualquer um dos arguidos, relacionados com o mundo da droga, imputassem a existência de tais recortes, também a CC. Todavia, voltou o acaso a prejudicar os arguidos sobrepondo novo evento que os penaliza, na medida em que, segundo BB, tais recortes foram efetuados, a título de brincadeira, pelo filho menor, da companheira do arguido, sendo então, coincidente que os tenha realizado em altura anterior e necessariamente próxima, da busca domiciliária efetuada.
Ora, esta aparente inverosimilidade das versões apresentadas pelos arguidos, que explode no espírito após o circunstancialismo supra descrito, não faz ultrapassar a presunção de inocência nem as regras da experiência comum, tanto que, a experiência comum, baseia-se em probabilidades, isto é, em situações que sucedem em número maior que outras, resultando assim, que exceções, são também possíveis.
Ademais, é sempre de reter, que não é aos arguidos que cabe efetuar qualquer tipo de prova.
Contudo, sendo até discutível que e se a mera posse dos produtos e dinheiro apreendidos nas circunstâncias em que o foram, seria passível de comprovar a atividade ilícita dos arguidos, certo é que a prova aqui existente é absolutamente destronadora da versão dos mesmos. Vejamos:
Não espanta que, HH, negasse o facto indicado em 22 (razão pela qual se deu o mesmo como não provado). É que, além de ser possível que tal facto não tenha apoio na realidade, atentou-se que esta testemunha, é prima dos arguidos, o que impõe temperança na valoração do que é dito.
Não espanta, igualmente, que II, JJ (vizinhas dos arguidos) e FF (conhecida dos arguidos), indicassem desconhecer que os arguidos vendiam produtos estupefacientes. É que a atividade em causa, quer-se camuflada, sigilosa, muito mais, quando é desempenhada na própria habitação, disso só devendo ter conhecimento, nomeadamente, os compradores de produtos estupefacientes, o que não era o caso de tais testemunhas.
Por oposição, era precisamente o caso das testemunhas DD e EE. A muito custo – sabendo-se da dificuldade de “denunciar” um vendedor de produto estupefaciente, com todas as consequências negativas que advêm para o “delator”-, confirmaram a ocorrência da factualidade indicada em 2 a 7. O simples facto de as testemunhas em causa, terem que ter comparecido apenas com mandados de detenção e vacilarem nas informações prestadas em Tribunal, sendo apenas mais explicitas quando alertadas da possibilidade de cometimento de crime, emprega a tais declarações fiabilidade e credibilidade acrescida. Estas declarações, associadas, à prova documental e pericial junta aos autos, e ainda, à inverosimilidade das declarações dos arguidos e, por fim, às regras da experiência comum, compravam, com clareza, os factos mencionados.
Os factos de natureza subjetiva enunciados em 12 a 15, decorrem também já do exposto, sendo extraídos e inerentes à factualidade objetiva já dada como provada. Não podiam, pois, os arguidos desconhecer as características dos produtos que detinham (sem prejuízo de os mesmos terem assumido tal conhecimento), nem saber que lhe estavam vedadas, por lei as suas condutas, tanto que, disso são espelho as suas declarações, procurando, ainda que com implausibilidade, justifica-las.
Os factos referentes às condições sociais, pessoais e económicas dos arguidos, bem como da situação de toxicodependência de outro filho da arguida, resultaram das informações pelos mesmos prestadas, em tudo amparadas, ou pelos elementos colhidos em audiência através do contacto direto com os arguidos ou pelas indicações fornecidas pelas demais testemunhas.
Teve o Tribunal ainda em consideração os CRC’s junto aos autos.”
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3.2.- Mérito do recurso
Quanto ao conhecimento dos vários fundamentos dos recursos interpostos nestes autos, importa seguir uma sequência lógica, começando pelos fundamentos que importam a nulidade da decisão recorrida e que são a falta de exame crítico da prova, nos termos dos arts.º 374º, nº 2 e 379º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, e a existência dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do mesmo diploma, seguindo-se depois a apreciação das demais questões invocadas pelos recorrentes.
Cumpre ainda referir que, não obstante terem recorrido separadamente, as questões abordadas pelos recorrentes são quase todas as mesmas, pelo que serão os recursos apreciados conjuntamente, sempre que possível.
A) Nulidade da sentença recorrida por falta de exame crítico da prova
Nos presentes autos vêm ambos os recorrentes alegar que, embora o Tribunal a quo tenha fundamentado o teor dos factos 2 a 7 nos depoimentos das testemunhas DD e EE, testemunhas que consideram de reduzida credibilidade, não consta em da sentença recorrida o exame crítico da provas exigido pelo nº 2 do art.º 374º do Cód. Proc. Penal, pelo que suscitam a nulidade da decisão, nos termos previstos no art.º 379º, nº 1, alínea a) do mesmo diploma.
O recorrente AA acrescenta ainda que o Tribunal a quo ignorou completamente o depoimento das testemunhas por si indicadas, com fundamento em que uma era sua prima, duas suas vizinhas e outra sua conhecida, tendo sido violados os artigos 131º e 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, e o art.º 20º, nº 4 da CRP, o que configura a nulidade prevista pela alínea c) do nº 1 do art.º 379º do Cód. Proc. Penal.
Vejamos se lhes assiste razão.
Quanto aos requisitos da sentença, dispõe o art.º 374º, nºs 1 e 2 do Cód. Proc. Penal o seguinte:
“1 - A sentença começa por um relatório, que contém:
a. As indicações tendentes à identificação do arguido;
b. As indicações tendentes à identificação do assistente e das partes civis;
c. A indicação do crime ou dos crimes imputados ao arguido, segundo a acusação, ou pronúncia, se a tiver havido;
d. A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada.
2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. (…)”
A fundamentação da sentença penal é, assim, composta por dois grandes segmentos:
- Um, que consiste na enumeração dos factos provados e não provados;
- Outro, que consiste na exposição, concisa, mas completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal.
O dever de fundamentação das decisões judiciais é hoje um imperativo constitucional, previsto no art.º 205º, nº 1 da CRP, onde se estabelece que as decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
A fundamentação deve revelar as razões da bondade da decisão, permitindo que ela se imponha dentro e fora do processo, sendo uma exigência da sua total transparência, já que através dela se faculta aos respectivos destinatários e à comunidade, a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador.
É também através da fundamentação da sentença que é viabilizado o controlo da actividade decisória pelo Tribunal de recurso designadamente, no que respeita à validade da prova, à sua valoração e à impugnação da matéria de facto.
O dever de fundamentação encontra-se igualmente consagrado no art.º 97º, nº 5 do Cód. Proc. Penal, onde se prevê que os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
Segundo o art.º 379º, nº 1, alíneas a) e c) do mesmo diploma, é nula a sentença penal quando não contenha as menções previstas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art.º 374º ou quando o Tribunal deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Quanto ao conteúdo do dever de fundamentação da sentença ou do acórdão, escreveu-se no Ac. RL de 18/01/2011, proferido no processo nº 1670/07.4TAFUN-A.L1-5, em que foi relator Vasques Osório, in www.dgsi.pt, em moldes que subscrevemos:
“ A enumeração dos factos provados e dos factos não provados, mais não é do que a narração de forma metódica, dos factos que resultaram provados e dos factos que não resultaram provados, com referência aos que constavam da acusação ou da pronúncia, da contestação, e do pedido de indemnização, e ainda dos factos provados que, com relevo para a decisão, e não constando de nenhuma daquelas peças processuais, resultaram da discussão da causa. É esta enumeração de factos que permite concluir se o tribunal conheceu ou não, de todas as questões de facto que constituíam o objecto do processo.
A exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão deve ser completa mas tem que ser concisa, contendo e enunciação das provas que serviram para fundar a convicção alcançada pelo tribunal – o que não exige, relativamente à prova por declarações, a realização de assentadas tendo por objecto os depoimentos produzidos em audiência – bem como a análise crítica de tais provas. Esta análise crítica deve consistir na explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação das razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova, foram valorados num certo sentido e outros não o foram ou seja, a explicação dos motivos que levaram o tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e a considerar outros meios de prova como inidóneos e/ou não credíveis, e ainda na exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais, utilizados na apreciação efectuada.”
Os motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados, nem os meios de prova, mas os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência ( neste sentido cf. , por exemplo, o Ac. RP de 15/07/2009, proferido no Processo nº 1090/04.2JAPRT.P1, in www.dgsi.pt ).
Ora, não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo (cfr. Acs. STJ de 12.04.2000, Proc. 141/2000, in SASTJ nº 40, 48, de 11.10.2000, Proc. 2253/2000 – 3ª, in SASTJ nº 44, 70, de 26.10.2000, Proc. 2528/2000 – 5ª, SASTJ nº 44, 91 e de 07.02.2001, Proc. 3998/00 – 3ª, SASTJ nº 48, 50).
O exame crítico da prova tem como objecto apenas e tão só, os factos essenciais para a qualificação jurídico-criminal do ilícito, para a definição do seu circunstancialismo relevante e para a determinação da responsabilidade do agente (cfr. Ac. STJ de 26/10/2000, no Proc. nº 2528/2000 – 5ª, SASTJ nº 44, 91).
Porém, a fundamentação da sentença, na parte que respeita à indicação e exame crítico das provas, não tem de ser uma espécie de “assentada” em que o Tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética, sob pena de se violar o princípio da oralidade que rege o julgamento (cfr. Ac. STJ de 7/02/2001, no Proc. nº 3998/00 – 3ª, SASTJ nº 48, 50).
Como se refere, de forma clara, no Ac. do STJ de 30/01/02, proferido no processo nº 3063/01 – 3ª, SASTJ nº 57, 69: “A disposição do artigo 374º-2 do CPP sobre o exame crítico das provas não obriga os julgadores a uma escalpelização de todas as provas que foram produzidas e, muito menos, a uma reprodução do tipo gravação magnetofónica dos depoimentos prestados na audiência, o que levaria a uma tarefa incomportável com sadias regras de trabalho e eficiência, e ao risco de falta de controlo pelos intervenientes processuais da transposição feita para o acórdão. A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não por outra das versões apresentadas, se as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos, documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção”.
Esse exame crítico das provas corresponde, no fundo, à indicação dos motivos que determinaram a que o Tribunal formasse a convicção probatória num determinado sentido, aceitando um e afastando outro, e porque é que certas provas são mais credíveis do que outras, servindo de substracto lógico-racional da decisão (neste sentido, Ac. STJ de 17/03/2004, proferido no processo nº 4026/03 – 3ª).
Ora, analisando a fundamentação de facto da decisão recorrida, verifica-se que da mesma consta não só a indicação de todos os elementos de prova, testemunhais, documentais e periciais, que alicerçaram a convicção do julgador, como o exame crítico de todas as provas e a explicação, através dos elementos probatórios, do entendimento a que o Tribunal a quo chegou quanto aos factos provados.
Na verdade, o art.º 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal não exige que se autonomize e se escalpelize a razão de decidir sobre cada facto, nem exige que em relação a cada meio de prova se descreva a dinâmica da sua produção em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir numa tarefa impossível.
No entanto, a decisão recorrida faz referência a todos os documentos e depoimentos que considerou pertinentes para o apuramento de cada um dos factos provados, da forma supra descrita, designadamente articulou a prova pericial e os autos de busca e apreensão com os depoimentos dos arguidos e das testemunhas inquiridas em audiência, explicando o que cada um disse e em que medida é que o Tribunal lhes conferiu, ou não, credibilidade e porquê.
Constata-se, assim, que a decisão recorrida individualizou os elementos de prova relevantes para a formação da convicção, analisou-os e relacionou-os entre si, explicando de uma forma lógica, racional e completa o processo de apuramento dos factos, explicação essa que, relacionada com as regras da experiência comum, permite compreender como os factos ocorreram, bem como permite sindicar a formação dessa convicção.
O julgador goza de ampla liberdade de movimentos ao eleger, de entre a globalidade da prova produzida, os meios de que se serve para fixar os factos provados, de harmonia com o princípio da livre convicção e da apreciação da prova.
Por isso mesmo, pode suportar o seu juízo num determinado conjunto de provas e preterir outras por não lhes reconhecer credibilidade.
Conforme se decidiu no acórdão do STJ de 15/11/2005, proferido no processo nº 05A3168, em que foi relator Fernandes Magalhães, in www.dgsi.pt: “ A “convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e das lacunas, das contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, olhares, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos".
Elementos que a transcrição não fornece e de que a reapreciação em sede de recurso não dispõe.
Verifica-se, assim, que não assiste razão ao recorrente AA quando alega que o Tribunal a quo ignorou a prova produzida pelas testemunhas por si indicadas e com isso a decisão recorrida violou o nº 4 do art.º 20º e os nºs 1 e 2 do art.º 32º da CRP, não havendo qualquer inconstitucionalidade da decisão recorrida a registar.
Posto isto, o que resulta da análise da decisão recorrida é que de todos os elementos de prova produzidos, elencados e apreciados criticamente, resultaram provados factos dos quais decorre o preenchimento pelos arguidos do elemento objectivo do crime em apreço.
Do preenchimento do elemento objectivo do tipo legal de crime, conjugado com as regras da lógica e da experiência comum, decorre o preenchimento do elemento subjectivo do mesmo ilícito, como consequência lógica e necessária.
Impõe-se, assim, concluir que a decisão recorrida se acha suficientemente fundamentada, não assistindo, neste tocante, razão aos recorrentes.
B) Nulidade da sentença recorrida por verificação dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do Cód. Proc. Penal
Quanto a estas questões, estabelece o art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do Tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) O erro notório na apreciação da prova.
Tratam-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto que são vícios da própria decisão, como peça autónoma, e não vícios de julgamento, que não se confundem nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida.
Estes vícios são também de conhecimento oficioso, pois têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 16ª ed., pág. 873; Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., pág. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6ª ed., 2007, pág. 77 e seg.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).
Há insuficiência da matéria de facto para a decisão quando os factos dados como assentes na decisão são insuficientes para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição, ou seja, são insuficientes para a aplicação do direito ao caso concreto.
No entanto, tal insuficiência só ocorre quando existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito, porque não se apurou o que é evidente e que se podia ter apurado ou porque o Tribunal não investigou a totalidade da matéria de facto com relevo para a decisão da causa, podendo fazê-lo.
Esta insuficiência da matéria de facto tem de existir internamente, no âmbito da decisão e resultar do texto da mesma.
Neste sentido decidiu o STJ no Ac. de 5/12/2007, proferido no processo nº 07P3406, em que foi relator Raúl Borges, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: Ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando esta se mostra exígua para fundamentar a solução de direito encontrada, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Ou, como se diz no acórdão deste STJ de 25-03-1998, BMJ 475.º/502, quando, após o julgamento, os factos colhidos não consentem, quer na sua objectividade, quer na sua subjectividade, dar o ilícito como provado; ou ainda, na formulação do acórdão do mesmo Tribunal de 20-12-2006, no Proc. 3379/06 - 3.ª, o vício consiste numa carência de factos que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis e que impede que sobre a matéria de facto seja proferida uma decisão de direito segura.”
No mesmo sentido se decidiu no Ac. do TRC de 12/09/18, proferido no processo nº 28/16.9PTCTB.C1, em que foi relator Orlando Gonçalves, in www.dgsi.pt, onde se escreveu que: O art.410.º n.º 2 do Código de Processo Penal, estatui que «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter por fundamento, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
ou c) O erro notório na apreciação da prova.».
Como resulta expressamente mencionado nesta norma, os vícios nela referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente a segmentos de declarações ou depoimentos prestados oralmente em audiência de julgamento e que se não mostram consignados no texto da decisão recorrida. O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada existe quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos para a decisão de direito, considerando as várias soluções plausíveis, como sejam a condenação (e a medida desta) ou a absolvição (existência de causas de exclusão da ilicitude ou da culpa), admitindo-se, num juízo de prognose, que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração de direito. Existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto se houver omissão de pronúncia pelo tribunal sobre factos relevantes e os factos provados não permitem a aplicação do direito ao caso submetido a julgamento, com a segurança necessária a proferir-se uma decisão justa. – Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 7/04/2010 (proc. n.º 83/03.1TALLE.E1.S1, 3ª Secção, in www.dgsi.pt) de 6-4-2000 (BMJ n.º 496 , pág. 169) e de 13-1-1999 (BMJ n.º 483 , pág. 49) e os Cons. Leal- Henriques e Simas Santos , in “Código de Processo Penal anotado”, vol. 2.º, 2ª ed., pág.s 737 a 739.”
Veja-se ainda, a título de exemplo, o Ac. deste TRL de 22/09/20, no processo nº 3773/12.4TDLSB.L1-5, em que foi relator Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt, onde se decidiu que: “ Estabelece o artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P. que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. Trata-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto - vícios da decisão e não de julgamento, não confundíveis nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida -, de conhecimento oficioso, que, como já se adiantou, hão-de derivar do texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, sendo os referidos vícios intrínsecos à decisão como peça autónoma. Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador. Dito de outra forma, este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objecto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos …, 6.ª ed., 2007, p. 69; Acórdão da Relação de Lisboa, de 11.11.2009, processo 346/08.0ECLSB.L1-3, em http://www.dgsi.pt).
Quanto à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, prevista no artigo 410º, nº 2, alínea b) do Cód. Proc. Penal, a mesma consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada, porquanto todos os vícios elencados neste artigo se reportam à decisão de facto e consubstanciam anomalias decisórias, ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto (cfr., neste sentido, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6ª ed., 2007, págs. 71 a 73).
Especificamente quanto ao vício da contradição insanável, decidiu o STJ, no acórdão de 12/03/2015, proferido no processo nº 418/11.3GAACB.C1.S1 - 3.ª Secção, que: «[o] vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito».
Pode, assim, afirmar-se que há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto.
A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por sua vez, ocorrerá quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão.
Ainda nas palavras de Simas Santos e Leal Henriques, in “ Código de Processo Penal Anotado”, II volume, 2ª Edição, 2000, editora Rei dos Livros, Lisboa, pág. 379: «por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do n.º 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.»
No que concerne ao erro notório na apreciação da prova, segundo o disposto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Penal, o mesmo releva como fundamento de recurso desde que resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.
Pese embora a lei não o defina, o «Erro notório» tem sido entendido como aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade e que ressalta do teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, só podendo relevar se for ostensivo, inquestionável e percetível pelo comum dos observadores ou pelas faculdades de apreciação do «homem médio».
Há «erro notório» quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum e ainda quando determinado facto provado é incompatível, inconciliável ou contraditório com outro facto, positivo ou negativo, contido no texto da decisão recorrida (cf. neste sentido, Leal-Henriques e Simas Santos, in “Código de Processo Penal anotado”, II volume, 2ª edição, 2000, Rei dos Livros, pág. 740).
Este é um vício do raciocínio na apreciação das provas, de que nos apercebemos apenas pela leitura do texto da decisão, o qual, por ser tão evidente, salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental, em que as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu uma ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial (cf. entre muitos outros, Acs. TRC de 09.03.2018, proferido no processo nº 628/16.7T8LMG.C1, em que foi relatora Paula Roberto, e de 14.01.2015, proferido no processo nº 72/11.2GDSRT.C1, em que foi relator Fernando Chaves, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Quanto ao que se deva entender por erro notório na apreciação da prova, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Civil, discorreu largamente o STJ, no seu Ac. de 7/07/21, proferido no processo nº 128/19.3JAFAR.E1.S1, em que foi relator Nuno Gonçalves, onde cita vária jurisprudência (in www.dgsi.pt) e onde se pode ler: “ (…) A decisão de julgar provado um acontecimento da vida na convicção de que foi demonstrado por uma versão que é manifestamente ilógica, contrariada pelas regras da física e ao mesmo tempo pelas máximas da experiência, padece do vício que o legislador consagrou no art.º 410º n.º 2 al.ª c) do CPP. Este é, como os demais aí previstos, um defeito da decisão em matéria de facto. Não devendo confundir-se nem com a errada aplicação do direito aos factos, nem com a escassez da prova para suportar o julgado. A sua deteção ou verificação não permite o recurso a elementos externos ao texto da decisão recorrida. Não assim, evidentemente, ao que constar da motivação do julgamento da matéria de facto. Se é certo que um determinado facto ou acontecimento da vida, simplesmente pelo modo como vem narrado, pode apresentar-se visivelmente irracional, notoriamente impossível, manifestamente desconforme às regras da experiência comum, todavia, mais comumente o erro notório na apreciação da prova deteta-se pela motivação do julgamento da facticidade, designadamente pelo exame critico dos elementos de prova.
Como sustenta Pereira Madeira, no erro notório “estão incluídas, evidentemente, as hipóteses de erro evidente, escancarado, de que qualquer homem médio se dá conta. Porém, a ser assim, com um alcance tão restrito, o preceito acabaria por perder grande parte do seu interesse prático, acabando afinal por deixar encobertas situações de erro clamoroso, ainda que porventura não acessíveis ao cidadão comum. Impor-se-à, assim, uma leitura algo mais abrangente que não acoberte situações de julgamento erróneo (…) que numa visão jurídica consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista e, naturalmente, ao tribunal de recurso, assegurar sem margem para dúvidas que a prova foi erroneamente apreciada. Certo que o erro tem de ser «notório». Mas basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha de ser devidamente escrutinada (…) e sopesada à luz das regras da experiência, Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem.” ( in Código de Processo Penal comentado, 3ª ed. Revista, Almedina, 2021, pag. 1293/1294.) (…).
Nos presentes autos, alegam os recorrentes que existe insuficiência da matéria de facto para a decisão, impondo-se, designadamente, pedir o Relatório Social, inquirir o ex-marido da arguida e o filho CC e definir o peso líquido do produto estupefaciente apreendido e o seu grau de pureza.
Relativamente ao relatório social, dispõe o art.º 370º, nº 1 do Cód. Proc. Penal que:
“O tribunal pode em qualquer altura do julgamento, logo que, em função da prova para o efeito produzida em audiência, o considerar necessário à correcta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada, solicitar a elaboração de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, ou a respectiva actualização quando aqueles já constarem do processo.”(sublinhados nossos)
Em face desta norma, verifica-se que o relatório social é apenas uma fonte de informação e não uma perícia, que contribui para a determinação da pena a aplicar ao arguido e está sujeito ao princípio da livre apreciação da prova, nos termos do art.º 127º do Cód. Proc. Penal.
O relatório social não é de elaboração obrigatória e, como já se pronunciou o TC no seu acórdão nº 182/99, de 22/03, não há nenhuma inconstitucionalidade na não obrigatoriedade da sua elaboração.
O relatório social é, assim, apenas um instrumento de auxílio do juiz, que o “pode” solicitar, caso o considere necessário.
Nem outra podia ser a solução, atento o texto da lei, de onde não resulta nenhuma obrigatoriedade de elaboração do relatório social, nem nenhuma cominação para a sua não junção aos autos, muito menos a nulidade pretendida pelos recorrentes.
Neste sentido, refere Fernando Gama Lobo, in “Código de Processo Penal Anotado”, 4ª edição, Almedina, pág. 834 que: “(…) nada impede que os elementos habitualmente constantes de um relatório social ou de uma informação social, possam ser colhidos em audiência por declarações dos intervenientes. Igualmente pode o Instituto de Reinserção Social (IRS) que eventualmente, por qualquer razão, acompanhe um arguido, por sua iniciativa, se o julgar conveniente, remeter ao processo o relatório social.”
Quanto à insuficiência da matéria de facto para a decisão decorrente da falta de elaboração de relatório social, verifica-se que a mesma não ocorre, porquanto o Tribunal a quo não considerou necessária a elaboração de relatório social para a determinação da medida concreta da pena de prisão a aplicar a cada um dos arguidos, tanto mais que não se punha a opção entre pena de prisão e multa e se considerou não ser de suspender a execução da pena de prisão aplicada, por razões sobre as quais adiante nos pronunciaremos, tendo recolhido os elementos de prova que considerou necessários e suficientes das declarações dos arguidos e das testemunhas.
Neste sentido, veja-se, entre muitos outros, os seguintes acórdãos, todos disponíveis em www.dgsi.pt:
- Acórdão do STJ de 20/10/10, proferido no processo nº 845/09.6JDLSB, em que foi relator Raul Borges: (…) V - O que há é omissão do relatório social, elemento de trabalho eventual, relatório que não assume valor pericial, subordinado ao princípio da livre apreciação da prova, que não tendo chegado ao processo em tempo útil, do mesmo veio a prescindir o colectivo, por no caso em apreciação não ter considerado a sua necessidade, ou por entender que no caso não assumia o documento em falta carácter imprescindível. O tribunal avançou para a determinação da medida da pena sem que se mostrasse junto o relatório, porque não o considerou necessário à correcta determinação da sanção, e como se sabe, a requisição obedece ao critério de necessidade.
VI - Acresce que não se vislumbra que se esteja face a vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pois que a facticidade assente ancora de forma bastante a medida das penas aplicadas ao recorrente. Improcede, pois, a arguição de nulidade.(…)”;
- Acórdão do TRC de 13/12/17, proferido no processo nº 269/16, em que foi relator Heitor Bernardo Cardoso Vasques Osório: “I - A realização de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, como é entendimento maioritário, não é uma diligência obrigatória, apenas devendo ser determinada quando se torne necessária para a correcta determinação da pena ou da medida de segurança a aplicar.
II - Quando a realização do relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social seja relevante para a boa decisão da causa, a sua omissão constitui uma irregularidade, sujeita ao apertado regime de arguição previsto no art. 123.º, n.o 1, do CPP.(…)”
- Acórdão do TRG de 13/07/20, proferido no processo nº 414/19.2GAEPS.G1, em que foi relatora Teresa Coimbra: “1.A junção de relatório social a um processo é facultativa, na medida em que só se for entendido “necessário à correta determinação da sanção” ( art. 370º do CPP) é que o tribunal deverá diligenciar por obter tal meio de prova. Tal significa, portanto, que a necessidade da sua junção tem de ser casuística e concretamente avaliada.(…)”;
- Acórdão do STJ de 26/05/21, proferido no processo nº 293/07.2GACBT.S1, em que foi relator Sénio Alves: “(…) II - Atenta a natureza facultativa do relatório social, a omissão da sua realização poderá, quando muito, constituir uma irregularidade prevista no art. 123.º do CPP (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª ed., 950, Acs. STJ de 8/11/2018, Proc. 2760/14.2T3SNT.L1.S1, de 18/4/2018, Proc. 29/18.2YRPRT.S1 ou de 15/6/2011, Proc. 721/08.0GBSLV.E2.S1); e a ser assim, só determinará a invalidade do acto “quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado”.
III - Estando o defensor do arguido presente na sessão da audiência onde foi determinada a não realização do relatório social relativo a um arguido, atenta a sua ausência no estrangeiro, tendo tal defensor sido notificado da decisão e contra ela não reagido, sanada está a eventual irregularidade decorrente da omissão de realização do relatório social.”
Constata-se, assim, que a omissão do relatório social não configura insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do artigo 410º, nº 2, alínea a) do Cód. Proc. Penal.
Por outro lado, também não se verifica este vício em qualquer outra parte da decisão recorrida, pois a omissão das diligências probatórias requeridas pelos recorrentes não traduz uma insuficiência da matéria de facto para a decisão, sendo certo que este vício não resulta da leitura da decisão apenas em si mesma considerada e conjugada com as regras da experiência, nem a omissão das referidas diligências probatórias é fundamento de recurso, pois os recorrentes não solicitaram a produção desses meios de prova nas suas contestações, que era o momento e o local próprios para o terem feito, em obediência ao disposto no art.º 311º-B, nºs 1 e 3 do Cód. Proc. Penal.
Os recorrentes alegam também haver uma contradição insanável da fundamentação entre os factos provados 2 e os 5 e 6, porquanto em 2 se considerou provado que durante o ano de 2021, e pelo menos até ao dia 11 de outubro de 2021, os arguidos se dedicaram à venda de produtos estupefacientes, mas em 5 e 6 não foi feita a delimitação temporal até 11 de outubro de 2021.
Sucede, porém, que também neste tocante não têm os recorrentes razão, porquanto os factos 5 e 6 surgem após o facto 2, no seguimento descritivo do mesmo, sendo perceptível pela simples leitura do texto da decisão, considerada no seu conjunto, que os arguidos não são responsabilizados nos presentes autos por terem desenvolvido qualquer actividade de venda de produto estupefaciente após 11 de Outubro de 2021, tanto mais que foi nesse dia que foi efectuada a busca à sua residência, foi apreendido o produto estupefaciente e restantes objectos descritos em 8, 9, 10 e 11 dos factos provados e foram os recorrentes constituídos como arguidos.
Verifica-se, assim, que não existe qualquer contradição, muito menos insanável, entre os factos provados e a sua fundamentação, não se registando aqui nenhuma nulidade da decisão.
Invocam ainda os recorrentes que existe um erro notório na apreciação da prova quanto à caracterização do dolo e quanto à sua culpa, designadamente face à entrada em vigor da Lei nº 25/2021, de 11/05.
Alegam, para tanto, que o Tribunal a quo deu como provado nos factos 14 e 15 que os arguidos conheciam a natureza, qualidade, quantidade e composição estupefaciente dos produtos por si adquiridos, detidos e cedidos, bem sabendo que a sua aquisição, detenção e cedência a qualquer título sem autorização legal eram proibidas e que atuaram sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo em todos os momentos que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, e que tinham capacidade e liberdade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
Mais alegam que o único tipo de estupefaciente referenciado nos autos, a vulgarmente conhecida por “droga sintética”, designada por “Alfa-PHP”, apenas foi introduzida na Tabela II-A, anexa ao D.L. nº 15/93, de 22/01, através da Lei nº 25/21, de 11/05, que entrou em vigor em 12/05/21, o que significa que, até ao dia 11/05/21, a aquisição e cedência de tal produto não constituía qualquer crime, designadamente, o de tráfico de estupefacientes, havendo, neste tocante, um erro notório na apreciação da prova.
Relativamente a esta matéria, como supra se referiu, importa atentar em que os recursos se cingem à impugnação restrita da matéria de facto, conforme decorre da letra do art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, não sendo possível fundamentar a existência de erro notório, para efeitos de nulidade da decisão, através da invocação de questões de direito, como sejam a consciência da ilicitude, a culpa ou o erro sobre a ilicitude, que, por sinal, os recorrentes não invocaram.
Não obstante, na parte da qualificação jurídica dos factos apurados, pronunciar-nos-emos sobre a responsabilização criminal dos recorrentes pela prática do crime de tráfico do tipo de produtos estupefacientes em apreço.
Porém, o que decorre da argumentação dos recorrentes, nesta sede, é que os mesmos invocam todos os vícios constantes do art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, porquanto não se conformam que se tenha dado como provado o preenchimento quanto a si do elemento subjectivo do crime de tráfico de estupefacientes, nem com o facto de não se terem suspendido as penas de prisão que lhes foram aplicadas.
Em suma, pretendem ser absolvidos ou, pelo menos, não serem presos.
Na verdade, os arguidos limitam-se a discordar da apreciação da prova feita pelo Tribunal a quo, no que concerne à sua condenação e à não suspensão da execução das penas de prisão aplicadas, sem, no entanto, concretizarem em que consiste cada um dos vícios agora em causa, como se viu.
Ora, analisada a decisão recorrida, não decorre da mesma a verificação de nenhum dos vícios invocados.
Mais à frente apreciaremos se existem ou não fundamentos para a condenação e para a suspensão das penas de prisão aplicadas aos arguidos.
Neste momento cumpre apenas referir que a factualidade apurada e descrita nos autos permite concluir, por si só, pelo preenchimento pelos arguidos dos elementos objectivo e subjectivo do crime pelo qual foram condenados, razão pela qual não se verifica a invocada insuficiência da matéria de facto apurada para a decisão.
A sentença recorrida descreve de forma lógica e ordenada os factos apurados, fundamenta os factos de forma coerente, justificando as razões que levaram a tal, e tira as ilações jurídicas dessa factualidade, no tocante à condenação de cada um dos arguidos nas respectivas penas, sem que em momento algum resulte do texto da decisão qualquer contradição, muito menos insanável.
Também no que concerne ao erro notório não se descortina a sua verificação na decisão recorrida, porquanto os factos estão descritos de forma clara e perceptível, não existe qualquer contradição entre a matéria de facto provada e não provada, todos os factos se mostram fundamentados, de forma lógica, e a decisão do Tribunal funda-se na prova produzida, estando em conformidade com a mesma.
Não se tendo apurado a existência de um qualquer vício de raciocínio evidente para um observador médio ou uma qualquer desconformidade intrínseca e evidente no raciocínio exposto na decisão do Tribunal recorrido, o que também não foi alegado pelos recorrentes, impõe-se julgar ambos os recursos improcedentes quanto a estes fundamentos, sem necessidade de mais considerandos.
C. Erro de julgamento
A reapreciação da matéria de facto poderá ser feita no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, onde, a verificação dos mesmos tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas sem recurso a quaisquer elementos exteriores, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, feita nos termos do art.º 412º, nos 3, 4 e 6 do mesmo diploma, caso em que a apreciação se estende à prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente.
Quanto à impugnação ampla da matéria de facto, o recurso não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, mas apenas a correcção de eventuais erros da decisão recorrida relativamente à forma como apreciou a prova e sempre em relação aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Para esse efeito, deve o Tribunal de recurso verificar se os concretos pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa ( neste sentido, cf. Ac. STJ de 14.03.2007 (no processo nº 07P21, Relator: Conselheiro Santos Cabral), de 23.05.2007 (no processo 07P1498, Relator: Conselheiro Henriques Gaspar), de 03.07.2008 (no processo nº 08P1312, Relator: Conselheiro Simas Santos), de 29.10.2008 (no processo nº 07P1016, Relator: Conselheiro Souto de Moura) e de 20.11.2008 (no processo nº 08P3269, Relator: Conselheiro Santos Carvalho), todos disponíveis em www.dgsi.pt).
No recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto o art.º 412º, nº 3 do Cód. Proc. Penal impõe ao recorrente a obrigação de indicar:
“ a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados.
A especificação das «concretas provas» implica a indicação do conteúdo do meio de prova ou de obtenção de prova e a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Por seu turno, a especificação das provas que devem ser renovadas impõe a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda e das razões para crer que aquela renovação permitirá evitar o reenvio do processo previsto no art.º 430º do mesmo diploma.
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência. Havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao que tiver sido consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens das gravações em que fundamenta a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou de vários depoimentos, pois são essas passagens concretas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo Tribunal de recurso, como é exigido pelo art.º 412º, nºs 4 e 6 do Cód. Proc. Penal.
A este respeito, importa ter em atenção que o STJ, no seu Ac. nº 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, Nº 77, de 18 de abril de 2012, já fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
Na verdade, o poder de apreciação da prova da 2ª instância não é absoluto, nem é o mesmo que o atribuído ao juiz do julgamento, não podendo a sua convicção ser arbitrariamente alterada apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo quanto à mesma.
Verifica-se, assim, que só se pode alterar o decidido se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida, mas já não quando tais provas apenas permitirem uma outra decisão, a par da decisão recorrida.
Neste último caso, havendo duas, ou mais, possíveis soluções de facto, face à prova produzida, se a decisão da primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções, face às regras da experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, porquanto foi proferida em obediência ao previsto nos art.ºs 127º e 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal ( cf., Ac. TRL de 02.11.2021, proferido no processo nº 477/20.8PDAMD.L1-5, em que foi relator Jorge Gonçalves, in www.dgsi.pt.).
Segundo o previsto no art.º 127º do Cód. Proc. Penal, o Tribunal deve fixar a matéria de facto de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador, desde que não se esteja perante prova vinculada.
Pese embora o ato de julgar tenha sempre, necessariamente, um lado subjetivo, as regras da experiência, complementadas pelo disposto no art.º 374º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, determinam que aquele acto não possa ser um acto arbitrário ou discricionário.
Verifica-se, pois, que a livre convicção não se confunde com a íntima convicção do julgador, dado que a lei lhe impõe que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, devendo a avaliação da prova ser efectuada com sentido de responsabilidade e bom senso.
Em consequência, sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve-se acolher a opção do julgador da 1ª instância, sobretudo porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova ( cf., neste sentido, Ac. STJ de 13/02/08, proferido no processo nº 07P4729, em que foi relator Pires da Graça, in www.dgsi.pt ).
Sucede que: «O recorrente não impugna de modo processualmente válido a decisão proferida sobre matéria de facto se se limita a procurar abalar a convicção assumida pelo tribunal recorrido, questionando a relevância dada aos depoimentos prestados em audiência.» ( cf. Ac. do TRP de 6/10/2010, proferido no processo nº 463/09.9JELSB.P1, em que foi relatora Eduarda Lobo, in www.dgsi.pt).
No mesmo sentido, se decidiu no Ac. do TRG de 28/06/2004 ( proferido no processo nº 575/04-1, em que foi relator Heitor Gonçalves, in www.dgsi.pt ), onde se refere que: “(…) Cremos que o recorrente pretende substituir essa convicção do julgador pela sua própria convicção, “escolhendo” os depoimentos que vão de encontro aos seus interesses processuais, quando é sabido que são os julgadores em primeira instância que detêm o poder/dever de apreciar livremente a prova, apreciação que, de todo o modo, no dizer do Prof. Figueiredo Dias, há-de ser, como foi no caso concreto, “recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo”. Uma decisão errada, ilegal ou arbitrária não pode ser sustentada numa simples alegação da discordância entre a convicção do recorrente e a convicção que o julgador livremente formou com base na prova produzida em audiência de julgamento, antes passa necessariamente pela demonstração inequívoca de que o tribunal que a proferiu contrariou as regras da experiência e desrespeitou princípios basilares do direito probatório (v.g. prova legalmente vinculada, provas proibidas etc.). Quando o recorrente pretende apenas pôr em causa a livre apreciação da prova, o recurso estará irremediavelmente destinado à improcedência. É que, como se referiu, o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente, como é o caso. Cumprida essa exigência, a livre convicção do juiz torna-se insindicável, até porque a documentação dos actos da audiência não se destina a substituir, nem substitui, a oralidade e a imediação da prova. Defender-se uma outra solução, o tribunal de recurso acabaria “por proceder a um juízo, mas com inversão das regras da audiência de julgamento ou então, numa espécie de juízos por parâmetros” (Damião da Cunha, O caso julgado Parcial, 2002, pág. 37).(…)”.
De tudo o exposto, conclui-se que o recorrente tem que apontar na decisão recorrida os segmentos que impugna e colocá-los em relação com as provas, concretizando as partes da prova gravada que pretende que sejam ouvidas, se for o caso, quais os documentos que pretende que sejam reexaminados, bem como quais os outros elementos probatórios que pretende ver reproduzidos, demonstrando a verificação do erro judiciário a que alude.
Ora, nos presentes autos vem a recorrente BB impugnar a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida, defendendo que houve uma inapropriada valoração da prova produzida e que a decisão recorrida resulta de uma referência inexata dos factos ao Direito.
Para tanto, limitou-se a alegar que:
- foi condenada por um crime de tráfico apenas com base em depoimentos testemunhais;
- a versão trazida na acusação pública e corroborada apenas por alguns depoimentos testemunhais (sem mais qualquer prova para o efeito) não poderia ter merecido o acolhimento do Tribunal de Primeira Instância;
- quase todas as testemunhas arroladas pelo Ministério Público apresentaram discursos pouco claros, confusos e nada esclarecedores;
- para além destas duas testemunhas, dos depoimentos das restantes testemunhas não se pode extrair qualquer corroboração desses depoimentos.
Conclui, referindo que “todos os factos acima já enunciados” deveriam ter sido considerados como não provados por força do princípio de direito fundamental no nosso processo penal “in dúbio pro reo” que decorre da presunção constitucional de inocência e, em consequência, ser a recorrente absolvida.
Desta alegação resulta que a recorrente não cumpriu minimamente as exigências legais da impugnação da matéria de facto previstas no art.º 412º, nºs 3 e 4 do Cód. Proc. Penal.
Começou logo por não indicar os concretos pontos da matéria de facto que considera terem sido mal julgados, remetendo para toda a factualidade apurada relativa ao preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual foi condenada, sem qualquer discriminação facto por facto.
Seguidamente, limitou-se a alegar que o Tribunal a quo avaliou mal os depoimentos das testemunhas inquiridas, sem especificar quais testemunhas e sem indicar as concretas passagens desses depoimentos que, no seu entendimento, fundamentam a falta de prova dos factos, nem que partes da gravação dos depoimentos é que este Tribunal de recurso deveria ouvir.
Também não diz a recorrente em que medida é que os factos genericamente indicados estão mal julgados, qual a versão dos factos que seria a correcta e em que provas se alicerçaria a versão correcta desses factos.
Como se deixou expresso, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àquela outra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução dos factos e entende que devia ter sido provada, como vem esta recorrente aqui fazer.
No caso sub judice, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão quanto à factualidade julgada provada nos termos supra transcritos, procedendo a um resumo das declarações que considerou relevantes prestadas pelos diversos intervenientes e esclarecendo em que medida é que cada um deles foi considerado credível ou não, expondo de forma clara as razões que levaram a que se convencesse, ou não, da veracidade dos relatos, e fazendo, para o efeito, apelo às regras da razoabilidade e da experiência comum, articulando tais relatos com toda a restante prova documental e pericial produzida nos autos.
O Tribunal a quo teve perante si os arguidos e as testemunhas, viu-os, ouvi-os e apercebeu-se de muitos pormenores de atitude e postura que só a imediação permite, tendo, segundo o princípio da livre apreciação das provas, relevado e considerado os depoimentos e declarações que, justificadamente, se lhe afiguraram mais coerentes e credíveis e não tendo ficado com a convicção de que as testemunhas pudessem ter “inventado” os factos com a finalidade de incriminar os recorrentes.
Não se nos oferecem dúvidas que o Tribunal a quo analisou conjugada e criticamente todos os meios de prova produzidos, encontrando-se a decisão sobre a matéria de facto em apreço efectivamente suportada pela prova produzida em julgamento.
Pelo contrário, a recorrente limita-se a manifestar, na motivação do seu recurso, o seu desacordo quanto à leitura que o Tribunal recorrido fez da prova produzida, tecendo considerações meramente genéricas sobre essa prova, sem individualizar os factos que considera mal julgados e sem estabelecer qualquer relação entre esses hipotéticos factos e o conteúdo específico de cada meio de prova suscetível de impor decisão diversa, em manifesto incumprimento do ónus exigido pelo art.º 412º, nºs 3 e 4 do Cód. Proc. Penal.
Termos em que, sem necessidade de mais considerandos, se julga improcedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pela recorrente BB.
D) Violação do princípio in dubio pro reo
Alega também a recorrente BB que no caso em apreço se mostra violado o princípio in dubio pro reo.
Segundo este princípio, quando o Tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido.
Como refere Figueiredo Dias, in “ Direito Processual Penal “, I, pág. 205, a dúvida relevante para este efeito tem que ser uma dúvida razoável, fundada em razões adequadas e não uma qualquer dúvida.
No mesmo sentido se decidiu no Ac. STJ de 5/07/07, proferido no processo nº 07P2279, em que foi relator Simas Santos, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que: “ Se recorrente invoca que foi violado o princípio in dubio pro reo, tem de impugnar a decisão da Relação, contrariando-a e afirmando e demonstrando que o Tribunal ficara na dúvida e mesmo assim decidira contra si (o arguido).
Na verdade, o princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos, mas é antes uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Mas daqui não resulta que, tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido m obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido.
Também no Ac. deste TRL de 10/01/2018, proferido no processo nº 63/07.8TELSB-3, em que foi relator Nuno Coelho, in www.dgsi.pt se decidiu que: “A certeza judicial não se confunde com a certeza absoluta, física ou matemática, sendo antes uma certeza empírica, moral, histórica.
O princípio in dubio pro reo constitui um princípio de direito relativo à apreciação da prova/decisão da matéria de facto, estando umbilicalmente ligado, limitando-o, ao princípio da livre apreciação – a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio «in dubio pro reo» impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável. De onde que o tribunal de recurso “só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida e que, face a esse estado escolheu a tese desfavorável ao arguido – cfr. acórdão do STJ de 2/5/1996, CJ/STJ, tomo II/96, pp. 177. Ou quando, após a análise crítica, motivada e exaustiva de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, é de concluir que subsistem duas ou mais perspetivas probatórias igualmente verosímeis e razoáveis, havendo então que decidir por aquela que favorece o réu.
Verifica-se, assim, que a escolha da perspetiva probatória que favorece o acusado só se impõe quando se mostrarem esgotadas todas as operações de análise e de confronto de toda a prova produzida, apreciada conjugadamente e em conformidade com as máximas da experiência, da lógica geralmente aceite e do normal acontecer das coisas e, ainda assim, subsista mais do que uma possibilidade de igual verosimilhança e razoabilidade no espírito do julgador.
Para que haja violação do princípio do in dubio pro reo é preciso que, perante uma dúvida inultrapassável sobre factos essenciais para a decisão da causa, o julgador decida em desfavor do arguido.
Sucede que, no caso dos presentes autos tal situação não ocorreu.
Como se deixou supra referido, a factualidade apurada fundamentou-se na prova produzida em julgamento e está conforme à mesma, não decorrendo da decisão em apreço, nomeadamente da factualidade assente e da sua motivação, que o Tribunal a quo tivesse tido qualquer dúvida ou hesitação quanto à valoração da prova e à fixação dos factos, não tendo, para além do mais, a recorrente indicado prova que obrigasse a uma decisão diferente da que foi adoptada nos autos.
Uma vez que os factos dados como provados na decisão recorrida são uma consequência lógica, racional e plausível da prova produzida em julgamento, à qual o Tribunal atribuiu credibilidade e verosimilhança, não se pode pôr em causa, sem mais, a convicção formada pelo julgador, sob pena de violação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim sendo, não se tendo apurado a existência de um qualquer erro de julgamento ou da violação do princípio in dubio pro reo, impõe-se manter a matéria de facto nos precisos termos em que foi fixada pela 1ª instância, não se mostrando violado o disposto no art.º 32º, nº 2 da CRP, improcedendo também neste tocante o recurso da recorrente BB.
E) Qualificação jurídica dos factos apurados
Os recorrentes foram condenados, cada um deles, pela prática, como co-autores, na forma consumada, de um crime tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 25º, alínea a) do D.L. nº 15/93, de 22/01, numa pena de prisão efectiva de dois anos.
Os recorrentes não põem em causa a qualificação jurídica dos factos levada a cabo pelo Tribunal recorrido, mas, invocando erradamente o vício do erro notório na apreciação da prova, alegam que o único produto estupefaciente referenciado no processo é a droga sintética designada por “Alfa-PHP”, a qual apenas passou a constar na Tabela II-A, anexa ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, aquando da entrada em vigor da Lei nº 25/2021, de 11/05, o que ocorreu a 12/05/21.
Defendem os recorrentes que até 12/05/21 a aquisição e cedência de tal produto não implicava a prática de qualquer crime, mormente o de tráfico de estupefacientes, pelo que, dispondo o art.º 29º, nº 1 da CRP que “ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior", o Tribunal a quo não podia ter considerado que os recorrentes praticaram o crime até 12/05/21, tanto mais que os arguidos não tinham conhecimento da natureza estupefaciente do produto em causa.
A este respeito, cumpre antes de mais enfatizar que não se procedeu a qualquer alteração da matéria de facto fixada na decisão recorrida, pelo que é a essa matéria que teremos que nos ater e não à matéria de facto que os recorrentes gostariam de ter visto provada.
Quanto ao que se deve considerar como prática do crime de tráfico de estupefacientes, prevê-se no art.º 21º, nº 1 do D.L. nº 15/93, de 22/01 que:
“Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos.” (sublinhados nossos)
Relativamente à caracterização deste tipo de crime reproduzimos aqui as considerações, completas e actuais, expendidas no Acórdão do STJ de 5/12/07, proferido no processo nº 07P3406, em que foi relator Raul Borges, in www.dgsi.pt: “A previsão legal do artigo 21º do DL 15/93, de 22-01, a exemplo do “antecessor” artigo 27º do Decreto-Lei nº 480/83, de 13-12, contem a descrição da respectiva factualidade típica, de maneira alargada, contendo o tipo fundamental, matricial.
Trata-se de um tipo plural, com actividade típica ampla e diversificada, abrangendo desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extracção ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando pelos outros elos do circuito, mas em que todos os actos têm entre si um denominador comum, que é exactamente a sua aptidão para colocar em perigo os bens e os interesses protegidos com a incriminação.
Não importa ao preenchimento deste tipo legal a intenção específica do agente, os seus motivos ou fins a que se propõe; o conhecimento do fim apenas pode interessar para efeitos de determinação da ilicitude do facto.
O tráfico de estupefacientes tem sido englobado na categoria do “crime exaurido”, “crime de empreendimento” ou “crime excutido”, que se vem caracterizando como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo.
A consumação verifica-se com a comissão de um só acto de execução, ainda que sem se chegar à realização completa e integral do tipo legal pretendido pelo agente.
O conceito foi introduzido na nossa jurisprudência com o acórdão do STJ de 18-04-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, 170, onde se refere que o crime exaurido é “ uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de os mesmos corresponderem a uma execução completa, e em que a repetição dos actos, com produção de sucessivos resultados, é, ou pode ser, imputada a uma realização única”, isto é, “aquele em que o resultado típico se obtém logo pela realização inicial da conduta ilícita, de modo que a continuação da mesma, mesmo que com propósitos diversos do originário, se não traduz necessariamente na comissão de novas violações do respectivo tipo legal”.(…)
Trata-se de crimes que como as falsificações e outros, ficam perfeitos com a comissão de um só acto crime formal com antecipação de punição - para o crime de falsificação veja-se o acórdão do STJ de 15-02-2006, processo 4306/05-3ª.(…)
Como se referia no acórdão do STJ de 12-12-1991, BMJ, 412, 206, o crime é de perigo, em cuja punição relevam exigências de prevenção de futuros crimes.
O crime em causa é um crime de trato sucessivo, em que a mera detenção da droga é já punida como crime consumado, dada a sua vocação (é um crime de perigo presumido) para ser transaccionada - acórdão do STJ de 29-06-1994, CJSTJ1994, tomo2, 258.
O crime de tráfico de estupefacientes enquadra-se na categoria dos crimes de perigo abstracto: aqueles que não pressupõem nem o dano, nem o perigo de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo a um desses bens jurídicos.
O perigo presumido envolve-se na mera comprovação da detenção de uma determinada quantidade de substância tóxica, independentemente da real demonstração do perigo, ou o que dá no mesmo, da intenção de transmiti-la.
Cada uma das actividades previstas no preceito, sem mais, é dotada de virtualidade bastante para integrar o elemento objectivo do crime.
Trata-se de crime de perigo abstracto ou presumido, pelo que não se exige para a sua consumação a verificação de um dano real e efectivo; o crime consuma-se com a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem jurídico protegido (a saúde pública na dupla vertente física e moral), como se refere nos acórdãos de 12-02-1986, BMJ 354, 331, de 30-04-1986, BMJ 356, 166, de 23-09-1992, BMJ 419, 464, de 24-11-1999, BMJ 491, 88, de 01-06-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, 239, de 04-10-2006, processo 2549/06-3ª, de 11-10-2006, processo 3040/06-3ª, de 12-04-2007, processo 1917/06-5ª, de 19-04-2007, processo 449/07-5ª.
Noutra perspectiva, trata-se de um crime pluriofensivo.
O normativo incriminador do tráfico de estupefacientes tutela uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal - a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores - visando ainda a protecção da vida em sociedade, o bem-estar da sociedade, a saúde da comunidade (na medida em que o tráfico dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos), embora todos eles se possam reconduzir a um bem geral - a saúde pública - pressupondo apenas a perigosidade da acção para tais bens, não se exigindo a verificação concreta desse perigo - ver acórdão do Tribunal Constitucional nº 426/91, de 06-11-1991, in DR, II Série, nº 78, de 02-04-1992 e BMJ 411,56 (seguido de perto pelo acórdão do TC nº 441/94, de 07-06-1994,, in DR, II Série, nº 249, de 27-10-1994): “O escopo do legislador é evitar a degradação e a destruição de seres humanos, provocadas pelo consumo de estupefacientes, que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia”.
Já no preâmbulo da Convenção Única de 1961 sobre os estupefacientes, concluída em Nova Iorque, em 31-03-1961 (aprovada para ratificação pelo Decreto-Lei nº 435/70, de 12-09 (BMJ 200, 348) e ratificada em 30-12-1971) se referia a preocupação com a saúde física e moral da humanidade, reconhecendo a toxicomania como um grave mal para o indivíduo, constituindo um perigo social e económico para a humanidade.
Por seu turno, no preâmbulo do Decreto-Lei nº 420/70, de 3/09, referia-se terem-se presentes os perigos que o consumo de estupefacientes comportava para a saúde física e moral dos indivíduos e a sua não rara interpenetração com fenómenos de delinquência.
No preâmbulo do Decreto-Lei nº 430/83, de 13-12, que efectuou a adaptação do direito interno ao constante daquela Convenção de 1961 e da Convenção sobre as substâncias psicotrópicas de 1971, aprovada para adesão pelo Decreto nº 10/79, de 30-01, fazia-se referência a relatório coevo de um organismo especializado das Nações Unidas, onde se dizia: “A luta contra o abuso de drogas é antes de mais e sobretudo um combate contra a degradação e a destruição de seres humanos. A toxicomania priva ainda a sociedade do contributo que os consumidores de drogas poderiam trazer à comunidade de que fazem parte. O custo social e económico do abuso das drogas é, pois, exorbitante, em particular se se atentar nos crimes e violências que origina e na erosão de valores que provoca”.
O tipo-base deste crime caracteriza-se, assim, quanto à tipicidade das acções que o integram, como um tipo plural, com uma actividade típica ampla e diversificada, que abrange desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extracção ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando por todos os elos do circuito e sendo todos os actos aptos a colocar em perigo os bens e os interesses protegidos pela incriminação.
Enquadra-se também na categoria de “crime exaurido” ou “crime de empreendimento”, na denominação alemã, ou ainda de “crime excutido”, porquanto o resultado típico se alcança logo com a realização inicial do iter criminis, tendo em conta o processo normal de actuação e desde que a droga não se destine exclusivamente a consumo.
O bem jurídico tutelado em primeiro lugar é a saúde pública, na sua dupla vertente física e moral, e num segundo plano a integridade física e moral dos consumidores, o que faz deste crime um crime de perigo abstrato, cujo preenchimento não exige para a respectiva consumação a verificação de um dano real ou efectivo ou sequer o perigo concreto do bem jurídico tutelado.
É ainda, quanto ao objecto da acção, um crime de mera actividade ou formal, cuja consumação se verifica pela mera execução de um comportamento humano, não se exigindo um resultado.
Ao nível da tipicidade subjectiva, o crime de tráfico de estupefacientes tem sido integrado pela jurisprudência no elenco dos crimes de trato sucessivo, em que existe uma unidade de resolução criminosa, ou “unidade resolutiva”, e uma conexão temporal entre os atos realizados.
Quanto ao crime de tráfico de menor gravidade, prevê-se no art.º 25º do mesmo diploma que:
Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:
a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI;
b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.”
Tem sido entendido pela doutrina e pela jurisprudência que o crime previsto neste art.º 25º consubstancia um tipo privilegiado, em razão do grau de ilicitude, em relação ao tipo fundamental do art.º 21º.
Neste sentido decidiu o STJ, entre muitos outros, no Acórdão datado de 4/05/05, proferido no processo nº 05P1263, em que foi relator Henriques Gaspar, in www.dgsi.pt, e onde se pode ler que: “ (…) a essência da distinção entre os tipos fundamental e privilegiado reverte, assim, ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), mediada por um conjunto de circunstâncias objectivas que se revelem em concreto, e que devam ser conjuntamente valoradas por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei, e significativas para a conclusão (rectius, para a revelação externa) quanto à existência da considerável diminuição da ilicitude pressuposta no tipo fundamental, cuja gravidade bem evidente está traduzida na moldura das penas que lhe corresponde. Os critérios de proporcionalidade que devem estar pressupostos na definição das penas, constituem, também, um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de «considerável diminuição de ilicitude» (…).
A diferenciação dos tipos de crime apenas conforme o grau de ilicitude, com reflexos ao nível da moldura penal, justifica-se pela necessidade de dar resposta a realidades diferentes, como sejam o grande tráfico e o pequeno e médio tráfico.
Estas noções antes de se constituírem como categorias normativas, surgiram como categorias empíricas, susceptíveis de apreensão directa da realidade dos comportamentos sociais.
As diferentes necessidades de prevenção geral e especial, conforme a gravidade das situações concretas de vida dos agentes, justificaram a opção do legislador em diferenciar as respostas a dar pelo sistema penal aos grandes traficantes (arts.º 21º, 22º e 24º), aos pequenos e médios traficantes (art.º 25º) e ainda àqueles que desenvolvem um pequeno tráfico com a finalidade exclusiva de obter substâncias para o seu consumo (art.º 26º).
O privilegiamento do tipo legal do crime do art.º 25º do D.L. nº 15/93 não resulta, assim, de um elemento típico concreto que acresça à descrição do tipo fundamental do art.º 21º do mesmo diploma, mas antes da constatação de uma diminuição considerável da ilicitude na situação de facto em apreço.
Só que o legislador não indica quais são as circunstâncias a atender para esse privilegiamento, limitando-se a referir “os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações”, cabendo à doutrina e à jurisprudência a densificação do conceito de “menor gravidade”.
A titulo de exemplo, veja-se o decidido no acórdão do STJ datado de 13/03/2019, proferido no processo nº 227/17.6PALGS.S1, em que foi relator Maia Costa, in www.dgsi.pt, onde se apontaram os seguintes critérios para a densificação do conceito de “menor gravidade”: “ (…) III - Na senda dessa densificação, dir-se-á que assumem particular relevo na identificação de uma situação de menor gravidade:
- a qualidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para comercialização, tendo em consideração nomeadamente a distinção entre “drogas duras” e “drogas leves”;
- a quantidade dos estupefacientes comercializados ou detidos para esse fim;
- a dimensão dos lucros obtidos;
- o grau de adesão a essa atividade como modo e sustento de vida;
- a afetação ou não de parte dos lucros conseguidos ao financiamento do consu-mo pessoal de drogas;
- a duração temporal, a intensidade e a persistência no prosseguimento da ativi-dade desenvolvida;
- a posição do agente no circuito de distribuição clandestina dos estupefacientes;
- o número de consumidores contactados;
- a extensão geográfica da atividade do agente;
- o modo de execução do tráfico, nomeadamente se praticado isoladamente, se no âmbito de entreajuda familiar, ou antes com organização ou meios mais sofisticados, nomeadamente recorrendo a colaboradores dependentes e pagos pelo agente.
É a imagem global do facto, ponderadas conjuntamente todas as circunstâncias relevantes que nele concorrem, que permitirá a identificação de uma situação de ilicitude consideravelmente diminuída, de menor gravidade, ou seja, uma situação em que o desvalor da ação é claramente inferior ao padrão ínsito no tipo fundamental de crime – o tráfico de estupefacientes previsto no art. 21º do DL nº 15/93.(…)
Aqui chegados, verificamos que no caso dos autos, atenta a qualidade e a pequena quantidade de droga apreendida, estamos em presença de dois pequenos traficantes de rua, não havendo quaisquer críticas a fazer à qualificação jurídica dos factos efectuada na decisão recorrida.
É certo que só com a entrada em vigor da Lei nº 25/21, de 11/05, a 12/05/21, foi introduzida a droga Alfa-PHP na tabela II-A anexa ao D.L. nº 15/93, de 22/01, conforme resulta do art.º 3º daquela Lei.
No entanto, os arguidos só foram incriminados pela prática de um crime de tráfico de droga e não de vários crimes.
A decisão recorrida, na verdade, deveria ter circunscrito a actividade dos arguidos de venda da droga sintética designada por “Alfa-PHP” a terceiros, ao período de tempo de 12/05/21 a 11/10/21.
Apesar de o Tribunal a quo não o ter feito, não foram retiradas consequências da referência genérica à venda desse produto pelos arguidos em datas anteriores a 12/05/21, havendo que se entender a matéria de facto descrita no nº 2 dos factos provados apenas como o enquadramento espácio-temporal de toda a acção de venda de produtos estupefacientes pelos arguidos.
Por outro lado, face à caracterização supra que fizemos do crime de tráfico de produtos estupefacientes, verifica-se que os actos de compra e venda a terceiros daquele produto pelos arguidos após 12/05/21, nos termos apurados, que culminaram com a apreensão realizada na sua residência a 11/10/21, é suficiente para integrar os elementos objectivo e subjectivo do crime de tráfico, nos termos explanados, relativamente a ambos os arguidos.
Ou seja, a atuação dos arguidos dada como provada, entre 12/05/21 e 11/10/21, configura, sem margem para dúvidas, a prática de um só crime de tráfico de produtos estupefacientes, no caso a droga “Alfa-PHP”.
Quanto ao preenchimento do elemento subjectivo do crime pelos arguidos, o mesmo resulta necessariamente de prova indirecta, uma vez que nenhum dos arguidos confessou integralmente os factos apurados.
A prova indirecta assenta na passagem de um facto conhecido para a prova de um facto desconhecido, em cujo processo intervêm juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais que permitem fundadamente afirmar, segundo as regras da normalidade e da experiência comum, que determinado facto, que não está diretamente provado, é a consequência natural, ou resulta com uma probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.
Tratam-se de factos estritamente subjetivos que, a não ser que ocorra confissão, apenas são percecionáveis pelos próprios agentes, pelo que a respetiva prova está dependente das inferências que se possam extrair dos aspetos objetivos em que se materializa a ação e através do significado que tais atos têm na respetiva comunidade social.
Quer a intenção, quer a motivação, como conclusões de direito que são, não se podem fazer derivar, imediatamente, da prova, mas deduzir-se dela, na medida em que sejam uma mera consequência ou o prolongamento da mesma.
Reitera-se que se tratam de factos, mas que assumem uma particular especificidade, na medida em que constituem realidades do foro psíquico, internos do sujeito, que não se comprovam em si próprios, mas mediante ilações, retiradas face aos atos e às circunstâncias concretas do seu cometimento ( cf. neste sentido, Manuel Cavaleiro Ferreira, in “Lições de Direito Penal”, Volume I, 1992, págs. 297 e 298; Acórdão do TC nº 521/2018, datado de 17.10.2018, proferido no processo nº 321/2018 – 3ª secção, em que foi relator Gonçalo de Almeida Ribeiro, in www.tribunalconstitucional.pt).
Voltando ao caso dos autos, verifica-se que a prova do preenchimento pelos arguidos do elemento subjectivo do crime de tráfico de estupefacientes, conhecimento e vontade, decorre como consequência necessária de toda a sua actuação e resultou das observações dos seus movimentos e da busca e apreensão efectuadas na sua residência, conjugadas com a interpretação e valoração pelo Tribunal a quo das suas declarações e dos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência, sobretudo das testemunhas DD e EE, articulados entre si e avaliados à luz das regras da lógica e da experiência comum.
Sucede, porém, que, não obstante a incriminação ser recente, os recorrentes não impugnaram validamente a matéria de facto dada como provada na decisão recorrida, nem invocaram a verificação do erro previsto nos arts.º 16º ou 17º do Cód. Penal, o qual não decorre da matéria de facto fixada, pelo que não cabe a este Tribunal conhecer de tal questão, em obediência ao disposto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal.
Não têm assim razão os recorrentes quando põem em causa o preenchimento por si dos elementos objectivo e subjectivo do crime pelo qual foram condenados, improcedendo, neste tocante, ambos os recursos.
F) Medida da pena
A medida concreta das penas em que foram condenados também foi objecto do recurso de ambos os arguidos.
A arguida BB, certamente por lapso, alega que a pena de sete anos de prisão que lhe foi aplicada é excessiva.
Pretende que lhe seja aplicada uma pena mais baixa, perto do limite mínimo, e suspensa na sua execução, bem como beneficiar do regime da atenuação da pena previsto no art.º 31º da Lei nº 15/93, alegando, para tanto, que:
- é uma pessoa totalmente integrada no meio da sociedade em que se insere;
- não necessita de um grau tão elevado de ressocialização, até porque este foi um ato isolado da sua vida;
- leva uma vida simples e modesta;
- é diminuta a quantidade e qualidade do produto estupefaciente apreendido, parte do qual foi por si entregue voluntariamente;
- não tem antecedentes criminais;
- desenvolvia um trabalho fixo e dele auferia rendimentos;
- foi reconhecida como sendo uma pessoa honesta e auxiliadora.
Também o arguido AA pretende que lhe seja aplicada uma pena mais baixa, perto do limite mínimo, e suspensa na sua execução, bem como beneficiar do regime da atenuação da pena previsto no art.º 31º da Lei nº 15/93, alegando, para tanto, que:
- optou por prestar declarações e negou os factos relacionados com o tráfico de estupefacientes imputados na acusação, dando a conhecer ao tribunal a sua versão dos factos sobre o produto estupefaciente que lhe foi encontrado no seu quarto;
- não podia manifestar arrependimento por algo que afirma não ter feito;
- tem o 7º ano de escolaridade e encontra-se desempregado há pelo menos 1 ano;
- estar desempregado não pode ser considerado sinónimo de “falta de hábitos para o trabalho”;
- não tem antecedentes criminais.
Vejamos se lhes assiste razão.
Antes de mais, cumpre novamente referir que não foi efectuada no presente acórdão qualquer alteração à matéria de facto dada como provada na decisão recorrida, pelo que não serão consideradas as alegações dos recorrentes nesta sede que se prendam com uma pretendida alteração da matéria de facto que não ocorreu.
Os recorrentes foram condenados, cada um deles, numa pena de prisão efectiva de dois anos pela prática, como co-autores, na forma consumada, de um crime tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 25º, alínea a) do D.L. nº 15/93, de 22/01, com pena de prisão de 1 a 5 anos.
Quanto à determinação da medida da pena, esta deve ser apurada em função dos critérios enunciados no art.º 71º do Cód. Penal, que são os seguintes:
Artigo 71.º - Determinação da medida da pena
1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.”
Estes critérios devem ser relacionados com os fins das penas previstos no art.º 40º do mesmo diploma, onde se estabelece no seu nº 1 que: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, e no seu nº 2 que: “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Como se refere no Acórdão do STJ de 28/09/2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, as finalidades da punição e a determinação em concreto da pena, nas circunstâncias e segundo os critérios previstos no art.º 71º do Cód. Penal, têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena.
Tais elementos e critérios contribuem não só para determinar a medida da pena adequada à finalidade de prevenção geral, consoante a natureza e o grau de ilicitude do facto tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação de valores, como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial, em função das circunstâncias pessoais do agente, idade, confissão e arrependimento e permitem também apreciar e avaliar a culpa do agente.
Em síntese, pode dizer-se que toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa é uma pena justa (cf. Figueiredo Dias, in “ Direito Penal, Parte Geral “, Tomo I, 3ª Edição, 2019, Gestlegal, pág. 96).
Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto “ O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril-Junho de 2002, págs. 181 e 182), apresenta as seguintes proposições que devem ser observadas na escolha da pena: «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»
Conforme explicita Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 497, pág. 331, o critério geral de escolha entre penas alternativas e de substituição da pena é o seguinte: «o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição. O que vale por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação», e acrescenta - § 498, pág. 332 - bem se compreender que assim seja: “sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum daquela, ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie de pena”.
Quanto à função que as exigências de prevenção geral e de prevenção especial exercem neste contexto, esclarece este autor, in ob. cit., § 500, págs. 332 e 333, que: «Prevalência decidida não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, em perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão», acrescentando que «o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa (ou de uma pena de substituição) quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquela(s) pena(s); coisa que só raramente acontece se não se perder de vista o já tantas vezes referido carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração»
Também neste sentido decidiu o STJ em acórdão datado de 12/09/2012, proferido no processo nº 1221/11.6JAPRT.S1, em que foi relator Raul Borges, in www.dgsi.pt:”A pena não privativa de liberdade só será preferível se realizar de forma adequada e suficiente as finalidades preventivas da punição, casos havendo em que a execução da pena de prisão é exigida por razões de prevenção, por se mostrar necessário que só a execução da prisão permite dar resposta às exigências de prevenção.
Há que ter em conta o critério da adequação e suficiência, atento por um lado, o bem jurídico protegido na espécie, uma das finalidades a que alude o artigo 40.º, mas e sobremaneira, atender às razões de prevenção geral, que se impõem no caso presente, não sendo excessivo a opção recair na pena privativa de liberdade, tendo em conta as necessidades de assegurar a paz comunitária, atendendo ao pleno do comportamento assumido pelo arguido no trecho de vida aqui analisado e valorado, que se não quedou apenas pela prática da infracção ora em equação e em discussão, antes a ultrapassando com uma configuração quantitativa e qualitativamente mais abrangente, bem mais ampla e gravosa em termos de lesividade, privando de vida a ex-companheira.
A própria escolha da espécie da pena a aplicar deve ter na base elementos, que sendo exógenos em relação à concreta e singular conduta apreciada para o tema em causa (mesmo que representando um minus no contexto global), se prendem com o conjunto das circunstâncias que enformam o facto total submetido a julgamento.”
Ainda segundo Figueiredo Dias, in “ Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, edição de 1993, págs. 196/7, § 255, é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação da medida concreta da pena, bem como o desconhecimento ou a errónea aplicação pelo tribunal a quo dos princípios gerais de determinação da pena, a falta de indicação de factores relevantes para aquela ou a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda que está plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção e a determinação do quantum exacto de pena, o qual será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.
Para este autor, na mesma obra de 1993, § 280, pág. 214 e nas Lições ao 5.º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, págs. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito, ou de «determinação concreta da pena»). As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena».
No entanto, do que se trata agora é de sindicar as operações feitas pelo Tribunal a quo com essa finalidade.
Voltando ao caso dos autos, a sentença recorrida fundamentou a aplicação aos arguidos das penas em apreço pela seguinte forma:
“(…) Quanto ao crime de tráfico de estupefacientes.
Prevê o tipo legal de tráfico de menor gravidade que:
Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acão, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de: a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI; b) …
Isto posto, no que concerne ao concreto tempo de privação da liberdade a impor aos arguidos, importa ponderar, à luz dos critérios estabelecidos pelo art. 71.º, do Código Penal, que, quanto ao crime em apreço, são elevadas as necessidades de prevenção geral, derivadas do facto de a incriminação em causa se apresentar como frequente por todo o país, com especial incidência nas camadas mais jovens e nas proximidades dos respetivos estabelecimentos escolares, e, por vezes, com graves consequências.
Contudo, se, como já dissemos, são, cada vez mais, prementes as necessidades de prevenção geral em crimes deste tipo, também não deixa de ser verdade que a pena a aplicar concretamente há-de resultar das regras da prevenção especial, segundo as quais esta será o limite necessário à reintegração do arguido na sociedade, causando-lhe apenas e tão-só o mal necessário.
Atendendo aos critérios estabelecidos pelo art. 71.º, n.º 2, do Código, temos, em síntese, que a favor dos arguidos milita a seguinte circunstância:
– a ausência de antecedentes criminais;
Por seu turno, em desfavor destes, há que considerar o seguinte:
– a ilicitude de grau médio/alto, atendendo à efetiva venda de estupefacientes, até em doses superiores ao habitual (por exemplo, doses de valor de 50,00€), o que implica grande disponibilidade de produto estupefaciente.
– o dolo com que atuaram é direto;
- o lapso de tempo que perdurou a ação dos arguidos, não se tratando de uma situação pontual. A qualquer momento, podiam os arguidos cessar a conduta, e nunca o fizeram até à intervenção do sistema judicial no seu todo.
– as elevadas as exigências de prevenção geral, derivadas do facto de a incriminação em causa ser frequente por todo o país, com grande incidência nesta comarca;
- a total ausência de autocensura ou arrependimento da conduta descrita.
- a falta de hábitos de trabalho e de qualificações para tal, propiciando um ambiente favorável à prática de condutas ilícitas, prevalecendo fatores de risco em detrimento de fatores de proteção.
Por conseguinte, em face das circunstâncias supra enumeradas e factualidade dada como provada, entendemos que a conduta dos Arguidos deverá ser sancionada, pelo crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, com uma pena de 02 anos de prisão.(…)”
Analisada a decisão recorrida, verifica-se que o Tribunal a quo aplicou correctamente os princípios gerais de determinação da medida das penas, não ultrapassou os limites da moldura da culpa de cada um dos agentes e teve em conta os fins das penas nos quadros da prevenção geral e especial.
Na verdade, as razões e necessidades de prevenção geral positiva são muito elevadas, fazendo-se especialmente sentir neste tipo de crime gerador de grande e forte sentimento de repúdio pela comunidade por pôr em causa a saúde pública e a saúde individual de cada consumidor e respectivas famílias, assim como a ordem e tranquilidade públicas, atenta toda a restante criminalidade e insegurança social que lhe andam associadas, justificando uma resposta punitiva firme, para assegurar a confiança da comunidade na validade das normas jurídicas.
Regista-se também que no caso dos autos não é muito elevado o grau de ilicitude com que foram praticados os factos, atenta a qualidade e a pequena quantidade de droga apreendida, o que é válido para ambos os arguidos e deu origem à sua punição apenas nos termos do art.º 25º do D.L. nº 15/93.
Pretendem ainda os arguidos beneficiar da aplicação do instituto da atenuação especial da pena previsto no art.º 31º do D.L. nº 15/93.
Ora, o art.º 25º do diploma consagra já um tipo privilegiado, ou atenuado, para os casos menos graves de tráfico, sendo de assinalar a similitude e paralelismo com os pressupostos gerais da atenuação especial da pena, mas sendo aqui a “atenuação” em função do juízo de ilicitude, sem intervenção da culpa do agente e da necessidade de pena, presentes no art.º 72º do Cód. Penal.
Na verdade, o art.º 25º prevê uma redução substancial da pena de prisão, relativamente ao tipo matricial, com um mínimo de 1 ano de prisão, em vez de 4 anos estabelecido para o tipo base, e um máximo de 5 anos de prisão, em vez de 12 anos, encurtando-se, de forma considerável, os limites da moldura abstracta do tipo fundamental para os casos de tráfico em que a ilicitude do facto de mostrar consideravelmente diminuída ( cf., neste sentido, entre outros, o Ac. do STJ de 30/04/2008, proferido nos autos nº 07P4723, em que foi relator Raúl Borges, in www.dgsi.pt).
Por outro lado, no caso dos autos não ocorreu nenhuma das circunstâncias previstas no texto do art.º 31º e, mesmo que tivessem ocorrido, tal não determinaria automaticamente a atenuação especial das penas aplicadas aos arguidos, sempre havendo que ponderar se se verificou uma diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente, ou da necessidade da pena que justificasse uma resposta punitiva atenuada, o que em concreto também não ocorreu ( cf., no sentido do decidido, entre outros os Acórdãos do STJ datado de 11/07/13, proferido no processo nº 1690/10.1JAPRT.L1.S1, em que foi relator Arménio Sottomayor, e datado de 19/05/21, proferido no processo nº 888/19.1JAPDL.S1, em que foi relator Nuno Gonçalves, in www.dgsi.pt).
No caso dos autos apurou-se ainda que a actuação ilícita dos arguidos perpetuou-se durante algum tempo, não se tendo circunscrito a um acto isolado, como os mesmos defendem.
Por outro lado, constata-se que, tendo em conta o facto de ambos os arguidos se encontrarem desempregados, a quantia monetária global que lhes foi apreendida, para a posse da qual não conseguiram dar uma explicação credível, indicia que faziam da venda de droga modo de vida ou, pelo menos, que procediam à venda da droga para terem meios económicos de subsistência.
Pondera também em seu desfavor o facto de não terem assumido a prática dos factos, não terem mostrado arrependimento e terem tentado arranjar desculpas descabidas e destituídas de razoabilidade para a posse das quantias e objectos que lhes foram apreendidos, tentando negar o inegável e só tendo assumido o que não poderiam ter deixado de fazer, o que demonstra que não tomaram consciência do desvalor das suas condutas e das consequências nefastas das mesmas, mostrando indiferença pelos malefícios da sua actividade para a saúde dos consumidores e para a paz social.
Pondera a favor de ambos os arguidos a ausência de antecedentes criminais.
Regista-se ainda que, ao contrário do afirmado pela arguida BB, não se provou que a mesma levava uma vida simples e modesta, que desenvolvia um trabalho fixo e dele auferia rendimentos e que foi reconhecida como sendo uma pessoa honesta e auxiliadora.
Uma vez que o crime é punido apenas com pena de prisão, e de 1 a 5 anos, a pena aplicada a cada um dos arguidos de 2 anos de prisão é uma pena abaixo do meio da pena, perfeitamente adequada e proporcional à culpa dos agentes e à gravidade dos factos pelos mesmos praticados, sendo tal pena de manter e não sendo de distinguir as penas aplicadas a cada um dos arguidos, dada a sua participação absolutamente similar nos factos em apreço.
G) Suspensão da execução da pena de prisão
Pretendem ainda os arguidos que as penas de prisão que lhes foram aplicadas sejam suspensas na sua execução, porquanto nenhum deles tem antecedentes criminais.
A recorrente BB alega, para tanto, que está prestes a completar 63 anos de idade, é mínima a quantidade de produto estupefaciente apreendida, parte da qual foi por si entregue voluntariamente, é rudimentar a atividade caracterizada no processo, na residência, e não se lhe conhece qualquer atividade ilícita desde a apreensão do produto estupefaciente.
Por seu turno, o recorrente AA alega que o Tribunal a quo não valorou a sua ausência de antecedentes criminais, o facto de a diminuta quantidade de produto estupefaciente apreendida não estar em posse do arguido, mas no quarto de casal, o carácter rudimentar da atividade delituosa - na residência – e não lhe ser conhecida qualquer atividade delituosa desde a apreensão, mostrando-se violado o art.º 18º, nº 2 da CRP.
Relativamente à suspensão da execução da pena de prisão, há que atentar no disposto no art.º 50º do Cód. Penal, onde se prevê que:
“ 1 – O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2 – O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3 – Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
4 – A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5 – O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.”
A suspensão da execução da pena de prisão depende, assim, da verificação cumulativa de dois pressupostos: um formal e outro material.
O primeiro, exige que a pena aplicada não exceda cinco anos.
O pressuposto material consiste num juízo de prognose segundo o qual o Tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do caso, conclui que a simples censura do facto e a ameaça da prisão bastarão para afastar o delinquente da criminalidade, satisfazendo as exigências mínimas de prevenção geral.
Com efeito, a suspensão da execução da pena, como pena de substituição, em sentido próprio, pressupõe a prévia determinação de uma pena concreta de prisão e tem como subjacente o objectivo de política criminal de substituir as penas curtas de prisão, salvo se o seu cumprimento efectivo for imposto por exigências de prevenção, especial ou geral.
A suspensão da pena funciona como um instituto em que se une o juízo de desvalor ético-social contido na sentença penal com o apelo à vontade do condenado em se reintegrar na sociedade, fortalecido pela ameaça de execução da pena no futuro.
Porém, o juízo de prognose não assenta necessariamente numa «certeza», bastando-se com uma «expectativa» fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição e, consequentemente, a ressocialização em liberdade do arguido.
Na suspensão da execução da pena de prisão não são as considerações sobre a culpa do agente que devem ser tomadas em conta, mas antes juízos prognósticos sobre o desempenho da sua personalidade perante as condições da sua vida, a sua conduta anterior e posterior à prática do crime e as circunstâncias de facto, que devem permitir ao julgador fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas.
A suspensão apenas deve ser decretada quando haja fundamentos para que o Tribunal se convença que o crime cometido se não adequa à personalidade do agente e foi um simples acidente de percurso, esporádico, pelo que a ameaça da pena será suficiente para evitar o cometimento de novos ilícitos típicos.
O Tribunal deve estar disposto a assumir um risco prudente, mas se existirem sérias dúvidas sobre a capacidade de o condenado compreender a oportunidade de ressocialização que se lhe oferece, a prognose deve ser negativa.
Por outro lado, ainda que o Tribunal formule a propósito do arguido um prognóstico favorável, à luz de considerações exclusivas de prevenção especial e socialização, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se à mesma se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime.
Relativamente à suspensão da execução da pena de prisão aplicada a este arguido, consta da sentença recorrida o seguinte:
(…)Não se afigurando adequada a substituição da pena aplicada por outra alternativa legal, pondere-se que, determina o artigo 50.º do Código Penal que O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. E ainda que, o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.
A Constituição da República Portuguesa em matéria de direitos, liberdades e garantias pessoais, impõe que a lei apenas restrinja aqueles valores nos casos expressamente previstos na própria Constituição e com a limitação de que as restrições terão de se circunscrever ao necessário para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos – n.º 2 do artigo 18º.
Tem, portanto, o Tribunal o poder-dever de suspender a execução da pena de prisão não superior a cinco anos, sempre que, reportando-se ao momento da decisão, seja possível efetuar um juízo de prognose favorável ao comportamento que o arguido demonstrará futuramente.
Necessário é também que as exigências mínimas de prevenção geral fiquem também satisfeitas. Escreveu Figueiredo Dias que: “a pena alternativa só não será aplicada se a pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafática das expectativas comunitárias” [In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 2ª Reimpressão, pág. 333, § 501].
Assim, face à factualidade assente, se o juízo de prognose der segurança ao julgador que o arguido não voltará com grande probabilidade, a cometer novos crimes e ainda que as expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada, no restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, não sairão defraudadas, deve decretar-se a suspensão da execução da pena, negando-se a mesma, caso se extraia conclusão contrária.
O STJ, nos casos de tráfico de estupefacientes, acentua as necessidades de prevenção geral. Entende que, nos crimes de tráfico de estupefacientes, a suspensão da execução da pena apenas pode ter lugar em casos ou situações especiais, em que a ilicitude do facto se mostre diminuída e o sentimento de reprovação social se mostre esbatido. A título exemplificativo, cita-se o Acórdão do STJ de 05.11.2008, processo 08P3172, in www.dgsi.pt, onde se elucida que “Importa, para começar, afirmar com clareza que não é de afastar «liminarmente» a suspensão da execução da pena de prisão nos crimes de tráfico de estupefacientes, embora seja incontestável que se trata de uma infração em que os interesses da prevenção geral se fazem especialmente sentir. Por isso, a par do juízo de prognose favorável sobre o comportamento do agente, cumpre indagar se a suspensão satisfaz «de forma adequada e suficiente as finalidades da punição» (art. 50º, nº 1 do CP), ou seja, a finalidade da prevenção geral. (…) Por isso, só havendo um quadro circunstancial particularmente favorável ao agente, fundamentando uma prognose especialmente consistente, se justificará a suspensão da pena, pois só então é exigível impor a esses interesses uma compressão proporcional à salvaguarda de outras finalidades das penas, como a prevenção especial, na vertente ressocializadora” (sublinhado nosso).
No caso vertente ressalta a circunstância de os arguidos não deterem qualquer registo criminal.
Quanto a esta questão, é inequívoco que tal favorece ambos os arguidos. Mas, ao mesmo tempo, não se configura como uma circunstância que de modo automático resulte numa suspensão de execução de pena de prisão. É que criando esse automatismo, seria abrir uma porta ao pensamento de que tudo é permitido, tudo compensa arriscar, pelo menos até à primeira condenação, porquanto no máximo (permitindo a pena) seria aplicada uma pensa de prisão suspensa na sua execução. Seria assentir que afinal, é compensatória a prática criminal.
Mas, é de reafirmar e repetir que, tal qual vem sendo indicado pelo STJ, o crime de tráfico de estupefacientes, postula elevadíssimas necessidades de prevenção geral, face à frequência do fenómeno e das suas trágicas consequências que se disseminam em diversos campos e levam à prática de diversos crimes. A comarca onde nos encontramos, é pródiga nesse campo, em que o exacerbado consumo de drogas sintéticas, está na base da esmagadora maioria dos crimes cometido e julgados – a nível diário – por este Tribunal. Efetivamente, superabundam as audiências referentes à prática de crimes de violência doméstica, furto, ameaça, ofensa à integridade física, resistência e coação sobre funcionário, desobediência, condução sem habilitação, entre outras, que, na inequívoca maioria esmagadora, têm como pano de fundo e origem, o consumo de estupefacientes, com efeitos demolidores, quer nos consumidores, quer nas famílias dos mesmos, quer no sentimento geral de (in)justiça que atinge a sociedade.
Já se viu que, no juízo de prognose deverá o Tribunal atender, no momento da elaboração da sentença, à personalidade do agente (designadamente ao seu carácter e inteligência), às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime, bem como, no que respeita à conduta posterior ao crime, designadamente, à confissão aberta e relevante, ao seu arrependimento, à reparação do dano ou à prática de atos que obstem ao cometimento futuro do crime em causa) e às circunstâncias do crime (como as motivações e fins que levam o arguido a agir). – Ac. TRC, 29.11.2017, proc.º 202/16.8PBCVL.C1.
E, neste particular, nos presentes autos, soma-se que nenhum dos arguidos assume consciência do desvalor de suas condutas. A tal acresce a aparente existência de fatores de risco. Nenhum dos arguidos trabalha. Nenhum deles evidencia hábitos nesse sentido.
Referiu o arguido – que detém o 7.º ano -, não saber, sequer, ler. O arguido encontra-se sem trabalhar, pelo menos, há um ano, sendo evidente que vivia com os lucros que a sua atividade ilícita concedia. No mesmo sentido, a arguida diz viver dos rendimentos do ex-marido que consigo reside.
O meio social e familiar onde vivem, com, pelo menos, um toxicodepente e duas crianças (que importa proteger), dificulta sobremaneira o afastamento da prática delitual, muito mais quando tão lucrativo é o mundo do tráfico de estupefacientes. Nem a existência de menores e de um familiar direto toxicodependente, fez os arguidos cessarem as suas condutas, mesmo quando a droga está a fazer colapsar um dos seus entes que ali reside.
Efetivamente, nem o arguido nem a arguida, têm em si mesmos fatores de proteção.
A tudo acresce que não se trata de uma situação em que os arguidos são consumidores e que, por esse facto, necessitam de ter estupefacientes ao seu alcance, tendo assim necessidade de comprar, o que leva à necessidade de angariar fundos, criando-se uma cadeia de eventos e necessidades que facilita o tráfico. Aqui a situação é diversa. Os arguidos conseguem manter-se afastados dos consumos. Visam apenas o lucro, mesmo com a destruição dos consumidores, ainda que familiares.
Quer isto dizer que, o juízo possível de elaborar quanto às necessidades de prevenção especial, porque altíssimas, não se sobrepõe positivamente – pelo contrário – às elevadas exigências de prevenção geral que o tipo de crime acarreta e que é manifesto no dia a dia desta comarca, em qualquer hora, qualquer dia e em qualquer local.
Conclui-se, inevitavelmente, que a ameaça de cumprimento de pena de prisão, não é seguramente suficiente para que se cumpram as finalidades da punição, designadamente para que os arguidos se abstenham de praticar ilícitos criminais no futuro, necessitando os mesmos, de uma pena de prisão efetiva para que se consigam ressocializar e adotar um comportamento cívico e lícito.
Assim, decide o tribunal não suspender as penas de prisão aplicadas.
Perante todas as circunstâncias verificadas relativamente aos arguidos, que nos escusamos de repetir, constata-se que a execução da pena em regime de permanência na habitação, não se afigura aqui adequada, porquanto, para além dos factos terem sido praticados no próprio domicilio, tais circunstâncias não permitem já tecer um prognóstico favorável relativamente ao comportamento futuro dos arguidos. (…)”
Ora, não só concordamos com toda a argumentação do Tribunal a quo, como temos a acrescentar que, tendo em conta o meio pequeno em que os factos ocorreram, as exigências de prevenção geral positiva, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de confiança no direito, são muito elevadas, atendendo a que o tráfico, assim como o consumo de droga, constituem, reconhecidamente, a principal causa do crescimento da criminalidade e da insegurança na sociedade portuguesa, com particular expressão nas comarcas dos Açores, onde os crimes contra o património, cometidos com ou sem violência, apresentam como móbil principal o financiamento do consumo de estupefacientes.
Por outro lado, não obstante os arguidos não terem antecedentes criminais, apurou-se que os mesmos não trabalham, pelo que as quantias monetárias que lhes foram apreendidas, na sua residência e para as quais não apresentaram explicação credível, indiciam que fazem da venda de droga modo de vida.
Também não se vê como é possível a formulação de um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro dos arguidos, e que a suspensão da prisão realize, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, quando os próprios não assumiram integralmente os seus comportamentos, só confessaram o que não podiam ter deixado de confessar, face à busca e apreensão efectuadas, e não manifestaram arrependimento, nem consciência do desvalor das suas condutas e das consequências nefastas das mesmas.
Assim sendo, e uma vez que a suspensão da execução pena visa essencialmente prevenir a reincidência e há-de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, no caso dos autos tal objectivo não se mostra acautelado, quer pelas das fortes exigências de prevenção geral, quer pelas exigências de prevenção especial.
Como se considerou no acórdão do STJ de 24/03/2022, proferido no processo nº 5/21.8PJOER.S1, em que foi relatora Adelaide Magalhães Sequeira, in www.dgsi.pt.: “Estamos perante um tipo de ilícito em que se fazem sentir prementes necessidades de protecção dos bens jurídicos tutelados (a saúde pública e o bem-estar dos cidadãos), sendo que o sentimento jurídico expressado pela comunidade apela ao combate do tráfico de estupefacientes, pela sua elevada frequência, por causar danos à saúde mental e física dos consumidores, por degradar a dignidade humana destes, por destruir a vivência socialmente útil dos dependentes, por muitas das vezes destruir as respectivas famílias bem como o seu património, e por fomentar fortemente a criminalidade que lhe está associada (furto, roubo, receptação, burla), e também por fomentar uma economia paralela que escapa ao sistema normativo, através do “branqueamento” das vantagens ilicitamente obtidas.
O direito penal interno qualifica o tráfico de estupefacientes como criminalidade altamente organizada, ao mesmo nível do terrorismo, do tráfico de pessoas, do tráfico de armas, da associação criminosa, do branqueamento de capitais e da corrupção.
A protecção dos bens jurídicos e a e a reintegração do agente na sociedade são os fins visados pelas penas (art. 40º, nº 1, do Cod. Penal) que, servindo finalidades exclusivas de prevenção geral e especial, têm por escopo, com a prevenção geral positiva ou de integração assegurar a tutela dos bens jurídicos, o que vale por dizer restabelecer a confiança dos cidadãos na validade da norma jurídica, e a paz jurídica afectada com a prática do crime, e com a prevenção especial ressocializar o agente, isto é, prepará-lo para no futuro não cometer outros crimes.
Também aponta Vaz Patto, in “ Comentário das Leis Penais Extravagantes”, Org. Paulo Pinto de Albuquerque, José Branco, II, Universidade Católica Editora, 2011, pág. 494, que: “a respeito da pena aplicável a este crime, a jurisprudência tem acentuado que as exigências de prevenção geral, positiva e negativa, decorrentes da nocividade social do tráfico de estupefacientes, da dimensão da ameaça que representa e da censura comunitária que suscita, reclamam, de um modo geral, uma punição severa”. E mesmo relativamente a penas que admitem substituição, continua o autor: “Essas exigências desaconselham, de um modo geral, a suspensão de execução da pena de prisão. (…) Assim, mesmo quando estejam verificados outros pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão, designadamente os relativos à prevenção especial positiva e à não desinserção social do condenado, as exigências de prevenção geral, positiva e negativa, a necessidade de reforço da confiança comunitária na validade e integridade das normas e valores por estas protegidos, poderão desaconselhar essa suspensão, no âmbito do crime tipificado no art. 21º, nº 1, em apreço”.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que nesta matéria acompanhamos, tem-se mostrado exigente quanto à possibilidade de suspensão de execução de penas de prisão no crime de tráfico de estupefacientes, inclusive de menor gravidade, entendendo que a mesma só se justificará em casos particulares, em que a ilicitude do facto se mostre diminuída e o sentimento de reprovação social se mostre esbatido pelas particularidades do caso.
Atentos factos apurados e não obstante a ausência de antecedentes criminais dos arguidos e os indiscutíveis efeitos perniciosos da reclusão, não podemos concluir que a ameaça da pena é suficiente para os afastar da prática de novos crimes quando os mesmos não têm meios de subsistência.
Acresce, como se viu, que são elevadas as exigências de prevenção geral, que determinam que se transmita, com firmeza, à sociedade a não permissividade de condutas com elevado nível de censurabilidade, como a dos autos, que acarretam enormes custos humanos, sociais, económicos e de saúde pública e provocam a erosão dos valores comunitariamente aceites.
( Cf., no sentido do decidido, sobre situações similares com a dos autos, em que os arguidos também não tinham antecedentes criminais e o tráfico ocorreu numa ilha, entre outros, os Acórdãos deste TRL, datado de 11/04/23, proferido no processo nº 75/21.9JBLSB.L1-5, em que foi relator o ora adjunto Paulo Barreto, e de 14/12/23, proferido no processo nº 401/22.3PCRGR.L1-9, em que foi relatora Simone Abrantes de Almeida Pereira, in www.dgsi.pt ).
Não se mostra, assim, violado qualquer preceito constitucional, sendo a decisão recorrida de manter e improcedendo, também neste tocante, ambos os recursos.
H) Quanto aos objectos apreendidos
O recorrente AA alega ainda que Tribunal a quo decidiu declarar perdida a favor do estado a quantia monetária apreendida, sem que conste da matéria dada como provada que a mesma seja proveniente de qualquer ilícito criminal, designadamente do de tráfico de estupefacientes, pelo que foi violado o art.º 36º do D.L. nº 15/93, de 22/01, devendo a sentença ser revogada nesta parte.
Prevê-se no art.º 110º, nº 1, alínea a) do Cód. Penal que são declarados perdidos a favor do Estado os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objectos que tiverem sido produzidos pela sua prática.
Por seu turno, dispõe o art.º 109º, nº1 do mesmo diploma que:
“1 - São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.”
Por seu turno o art.º 35º, nº 1 DL nº 15/93, de 22/01, prevê que:
“1 - São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos.”
Atenta a factualidade apurada, constata-se que a quantia apreendida aos arguidos é, sem margem para dúvidas, uma receita auferida da actividade ilícita conjunta, de mãe e filho, durante meses, tanto mais que nenhum deles trabalhava, nem conseguiu dar uma justificação válida e credível para a posse de tal quantia.
A perda do dinheiro apreendido aos arguidos a favor do Estado opera “ope legis”, sendo o regime resultante do art.º 35º, nº 1 do DL nº 15/93, de 22/01, diferente e menos exigente do que o regime geral previsto nos arts.º 109º a 111º do Cód. Penal.
Assim sendo, não há que alterar nesta parte a decisão recorrida, impondo-se julgar o recurso totalmente improcedente.
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4. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedentes os recursos dos arguidos AA e BB e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC´s, nos termos do art.º 513º, nº 1 do Cód. Proc. Penal.

Lisboa, 19 de Março de 2024
Carla Francisco
João Ferreira
Paulo Barreto