Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
281/21.6GFPNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DO ROSÁRIO MARTINS
Descritores: PERDA DE VANTAGENS
ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
Nº do Documento: RP20240306281/21.6GFPNF.P1
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - O arquivamento de um inquérito não é, por si só, impeditivo da declação de perda para o Estado das vantagens apreendidas.
II - As quantias monetárias apreendidas no inquérito que constituam vantagens económicas (directas ou indirectas) de facto ilícito típico devem ser declaradas perdidas a favor do Estado nos termos do disposto no artigo 110º do CP.

(da responsabilidade da relatora)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo 281/21.6GFPNF.P1
Comarca do Porto Este
Juízo de Instrução Criminal de Penafiel – Juiz 2





Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto:


I- RELATÓRIO

I.1. O Ministério Público veio interpor recurso do despacho proferido no Juízo de Instrução Criminal de Penafiel em 06.11.2023 que indeferiu a requerida perda a favor do Estado do dinheiro apreendido nos autos.
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I.2. Recurso da decisão (conclusões que se transcrevem integralmente)
“a) Dispõe o artigo 178°, n° 1 do CPP que "são apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados peio agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova."
b) Ademais, estatui o art. 109.°, do Código Penal que
a. São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.
b. O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
c) Dispõe, ainda, o artigos 110.° do Código penal que:
a. 1 - São declarados perdidos a favor do Estado:
i. Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objectos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
ii. As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
d) Entendemos que para que um objecto seja declarado perdido a favor do estado por ser proveniente da prática de crime não se mostra necessário que seja concretizado que crime foi efectivamente praticado, quando foi praticado, como foi, quem e o seu autor e lesado.
e) O artigo em causa refere "instrumentos de facto ilícito típico" e não de "instrumentos de um facto ilícito típico", donde se considera ser suficiente haver prova bastante de que são provenientes de da prática de crime, ainda que não se saiba em concreto o dia, hora, local, autor, modus operandi lesado, para que aqueles venham a ser declarados perdidos.
f) Existem um conjunto de factos que, quando devidamente concatenados com as regras da experiência e senso-comum impõe a conclusão de que tais quantias são provenientes de crime.
g) Cumpre realçar a situação concreta em que esta quantias foram encontradas distribuídas por 4 cofres de pequenas dimensões, embrulhados em película transparente, ocultos em muro de "pedra posta" em local ermo, sendo que o proprietário do muro não reconhece aquelas como sendo suas.
h) Afigura-se-nos manifesto que o seu proprietário as ali colocou de forma "isolar-se" o máximo possível das mesmas, evitando a sua detecção por quaisquer entidades oficiais, donde resulta a sua quase certa natureza ilícita.
i) Este dinheiro, assim oculto, não seria apreendido a ordem de eventual processo crime, não só servindo como prova do mesmo, como sendo recuperado e devolvido aos seus legítimos proprietários, ou perdido a favor do estado.
j) Alias, tal acepção decorre não só das regras da experiência e do senso-comum, como sendo igualmente uma prática relativamente comum com que já nos deparamos outros inquéritos, pese embora com valores inferiores.
k) Tipicamente estas quantias em dinheiro vivo", resultam directamente de factos contra o património, sendo o produto de furtos, roubos a residências, dependência bancárias, ATM, venda de estupefacientes, ou passagem de moeda falsa, tipicamente geradoras de elevadíssimos proveitos.
I) Acresce que, Portugal não só tem um sistema bancário robusto como existem outras opções (cofres bancários) para, com segurança, guardar quantias tão elevadas.
m) Ainda que houvesse alguma desconfiança para com os bancos, lógica ditaria que o seu proprietário escondesse tais quantias em local no qual tivesse a disponibilidade fáctica, que pudesse controlar e vigiar, sabendo que mais ninguém o iria encontrar.
n) Ninguém no seu perfeito juízo fosse guardar eventuais poupanças do trabalho ou resultado de investimento lícito daquela forma, atento o elevadíssimo risco de perda total.
o) O caso vertente mereceu amplíssima cobertura noticiosa, de âmbito nacional, sendo que apenas AA veio aos autos reclamar as quantias como sendo suas, tornando- se assim o principal suspeito.
p) Afigura-se-nos que não foram recolhidos indícios suficientes que nos permitissem concluir tais quantias eram propriedade daquele já que, em síntese, julgou-se que a sua versão dos factos/justificação foi considerada, do ponto de vista das regras da experiencia e senso-comum, fantasiosa, a motivação inerente à conduta inverosímil, não residir em Portugal, nem sequer nas imediações do dito muro, não ter a chave dos cofres nem qualquer comprovativo da conversão de francos Suíços em euros.
q) Atendendo aos valores em causa, se, de facto, tais quantias fossem eventuais poupanças do trabalho ou resultado de investimento lícito o seu proprietário (excluindo, como foi o referido AA) certamente viria aos autos reclamar a sua propriedade, o que não aconteceu.
r) Isto só nos reforça a convicção de que as quantias em causa são provenientes de crime, não querendo o seu proprietário ter que dar explicações sobre a sua proveniência, preferindo, assim perder aquelas do que enfrentar um procedimento criminal.
s) Assim sendo, quando devidamente concatenados todos os argumentos supra expendidos, devidamente conjugados com as regras da experiência (decorrente de outras investigações criminais) bem como com os ditames da lógica e do senso-comum entendemos que a única explicação plausível e razoável é a de que as quantias em causa são, efectivamente, pratica de um crime devendo, por conseguinte, serem declaradas perdidas a favor do estado.”
Pugna pela revogação da decisão judicial recorrida e a sua substituição por outra que declare perdidas a favor do estado as quantias apreendidas à ordem dos autos e melhor descritas a fls. 26 e 31
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I.3. Resposta do arguido
O arguido AA, na resposta ao recurso, sem formulação de conclusões, pugnou pela sua improcedência.
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I.4. Parecer do Ministério Público
Nesta Relação o Ministério Público acompanhou a argumentação constante na motivação do recurso interposto pelo Ministério junto do tribunal recorrido.
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I.4. Resposta ao parecer
Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante CPP), não tendo sido apresentada resposta ao parecer.
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I.5. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. Objecto do recurso
Conforme jurisprudência constante e assente, é pelas conclusões apresentadas pelo recorrente que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95).
No caso dos autos, não há quaisquer vícios ou questões de conhecimento oficioso que importa conhecer por nenhuma dessas situações ocorrerem no caso sub judice.
Assim, da análise das conclusões do recorrente a única questão que importa apreciar e decidir é a de saber se o Mmo. Juiz de Instrução podia ter indeferido a perda a favor do Estado do dinheiro apreendido nos autos.
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II.2. Decisão recorrida (que se transcreve integralmente)
“O Digno Magistrado do MP promoveu, após despacho de arquivamento, a perda a favor do Estado do dinheiro encontrado e apreendido nos autos, nos doutos termos que antecedem.
Cumpre apreciar e decidir
Dispõe o art. 109.° do Código Penal com a epígrafe "Perda de instrumentos e produtos" que "são declarados perdidos a favor do Estado osobjetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos - n° 1.
Por sua vez dez o n° 2 que "O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto."
Assim, para a declaração de perdimento a favor do Estado exige-se, desde logo, que os instrumentos em causa se tratem de "instrumenta sceleris" ou "producta sceleris" e depois que os objetos possuam, em alternativa, pelo menos uma das características prescritas no segundo segmento do n.° 1 do art. 109.° do Código Penal.
Assim, dir-se-á, que a perda dos instrumentos do crime exige a verificação cumulativa de dois requisitos (…):
a) que tenham servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico; e
b) que, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem publicas, ou ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
São ainda declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objectos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
No nosso caso, o dinheiro encontrado não foi utilizado para a prática de qualquer crime, nem é produto ou vantagem da prática de crime.
Mas não deve ser declarada perdida uma quantia monetária apreendida à arguida, tendo o inquérito sido arquivado - vide Comentário do Código Penal, Paulo Pinto de Albuquerque, pág. 454-455 e ac. TRL, de 3.3.2011.
Consequentemente, por não se verificar o 1.° dos pressupostos previstos no artigo 109.° n.° 1 e do artigo 110.°, n°1, ambos do Código Penal, não pode o dinheiro ser declarado perdido a favor do Estado.
Termos em que se indefere a requerida perda a favor do estado do dinheiro apreendido nestes autos.
Notifique.”
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II.3. Apreciação do Recurso
§1. Com interesse para a apreciação da questão enunciada importa ter presente os seguintes elementos factuais e ocorrências processuais que constam dos autos:
a) Os presentes autos tiveram o seu início com o auto de notícia datado de 04.11.2021, no qual se dá conta que num muro existente na Rua ..., em ..., Penafiel, foi encontrada uma avultada quantia em dinheiro.
b) Nessa sequência, em 04.11.2021, foram apreendidos quatro cofres metálicos, todos eles envoltos em película transparente, que se encontravam dissimulados atrás de pedras, num muro em pedra, de propriedade da sociedade A..., S.A., que confronta com a Rua ..., em ..., Penafiel.
No interior dos ditos cofres foi encontrada a quantia total de €436.300,00 (constituída por 77 notas de €500,00; 192 notas de €200,00; 1142 notas de €100,00; 4904 notas de €50,00), que foi apreendida à ordem dos presentes autos, organizada em diversos sacos plásticos da seguinte forma:
- cofre B1 de cor preto: 12 sacos plásticos, contendo no seu interior €65.350,00, em notas do BCE;
- cofre B2 de cor cinzento: 22 sacos plásticos, contendo no seu interior €165.450,00, em notas do BCE;
- cofre B3 de cor vermelho: 22 sacos plásticos, contendo no seu interior €60.600,00, em notas do BCE;
- cofre B4 de cor preto: 8 sacos plásticos, contendo no seu interior €144.900,00, em notas do BCE.
Os cofres B1 e B2 foram encontrados no mesmo local do muro e os cofres B3 e B4 foram encontrados num local distinto do mesmo muro.
Uma das notas de €50,00 apreendidas revelou ser falsa.
c) Em 05.11.2021 foi efectuada recolha dos seguintes vestígios lofoscópicos:
- na face traseira de um dos cofres de cor preta (A1.1);
- numa bolsa plástica contendo dinheiro, no interior do cofre de cor preta (A1.2.);
- na película plástica transparente que envolvia o cofre de cor preta (A1.), tendo sido revelados 8 vestígios lofoscópicos, com as referências alfanuméricas “A1.3, A1.4, A1.5, A1.6, A1.7, A1.8, A1.9 e A.10”;
- na película plástica transparente que envolvia o cofre de cor cinzenta (A2.), tendo sido revelado 1 vestígio lofoscópico, com a referência alfanumérica “A2.1”;
- na película plástica transparente que envolvia o cofre de cor vermelha (A3.), tendo sido revelados 3 vestígios lofoscópicos, com as referências alfanuméricas “A3.1, A3.2. e A3.3.”
Após realização do respectivo exame verificou-se o seguinte:
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.1.”, que assentava “na face traseira de cofre metálico”, não apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie palmar, referenciado como “A1.2.”, que assentava “em bolsa plástica contendo dinheiro, no interior de cofre metálico”, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.3.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.4.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.5.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.6.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.7.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.8.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.9.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A1.10.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A2.1.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia um outro cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A3.1.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia um outro cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A3.2.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
- o vestígio de cristas capilares de espécie digital, referenciado como “A.3.3.”, que assentava na “película plástica transparente” que envolvia cofre metálico, apresenta nitidez nem o número de pontos característicos suficientes para se estabelecer a sua identidade;
Após efectuada a comparação dos vestígios lofoscópicos “A1.2, A1.3, A1.4, A1.5, A1.6, A1.7, A1.8, A1.9, A.10, A2.1, A3.1, A3.2 e A3.3.” com as impressões digitais e palmares de AA concluiu-se que:
- o vestígio “A1.2” identifica-se com a região superior do quirograma correspondente à palma da sua mão esquerda;
- o vestígio “A1.3” identifica-se com o dactilograma correspondente ao dedo polegar da sua mão esquerda;
- o vestígio “A1.4” identifica-se com o dactilograma correspondente ao dedo polegar da sua mão direita;
- os vestígios “A1.5” e “A1.8” identificam-se com o dactilograma correspondente ao dedo anelar da sua mão esquerda;
- os vestígios “A1.6, A1.7, A1.8, A2.1 e A3.1” identificam-se com o dactilograma correspondente ao dedo médio da sua mão esquerda;
- os vestígios “A1.10, A3.2 e A3.3.” identificam-se com o dactilograma correspondente ao dedo anelar da sua mão direita.
d) Em 16.12.2021, AA, veio requerer a restituição das quantias apreendidas nos seguintes termos:
“O aqui participante processual, oportunamente a melhor identificar nos autos, é o dono e legítimo proprietário dos cofres e das quantias apreendidas nos mesmos, conforme demonstrará.
As aludidas quantias não foram obtidas através de ato que constitua crime ou qualquer tipo de ilícito de outra natureza.
Pretendendo, por isso, que a posse lhe seja restituída, com a brevidade possível, efectuadas as diligências de inquérito que se imponham, manifestando-se disponível para prestar, processualmente, todos os esclarecimentos que se impõe.”
e) Em 10.30.2022, AA, foi constituído arguido.
f) Nessa data, o arguido prestou declarações perante o magistrado do Ministério Público, dizendo sucintamente:
“Emigrou pela primeira vez para a Alemanha aos 17 anos tendo ir trabalhar para a construção civil, auferindo cerca de 4000 marcos por mês.
Esteve na Alemanha cerca de 3 anos e meio, tendo depois trocado para a Suíça, local onde se encontra actualmente.
Encontra-se há cerca de 22 anos emigrado na Suíça, encontrando-se actualmente desempregado.
Na Suíça trabalhou na construção civil como operário, depois como manobrador de máquinas. Na Suíça reside em ..., no cantão francês, juntamente com a sua mulher e filha maior.
Tem uma relação com o local onde as quantias foram encontradas.
Certo dia, o seu pai disse-lhe que já tinha também compensado financeiramente os seus irmãos, pelo que indicou que o mesmo se deveria deslocar a um muro que se encontrava em frente aos balneários deste campo de futebol, que por de trás de uma pedra no muro, tinha uma caixa de madeira.
Cerca de um ano depois deslocou-se a esse local, tendo retirado a referida pedra e encontrado uma caixa de madeira, contendo a quantia de cerca de 52.000 mil euros. Estes fatos ocorreram há cerca de oito anos, quando o seu pai ainda era vivo.
O seu pai à data já não residia em ..., já que o mesmo morava nas ....
O muro será propriedade da pedreira do senhor BB, os balneários em causa confrontam com o caminho público e ficam em frente ao referido muro.
Uma vez que a sua esposa tinha alguma propensão para o consumo excessivo, acumulando dívidas de cerca de 60.000 euros em cartões de crédito, optou por deixar o dinheiro naquele local não revelando à sua esposa, da sua origem.
Comprou um apartamento em ..., local onde durante algum tempo guardou dinheiro vivo. Depois vendeu essa casa e ficou sem local onde guardar o mesmo.
Ao longo da sua vida de trabalho foi sempre acumulando diversas quantias em dinheiro vivo, como forma de poupança.
A sua esposa tem o referido problema com questões de dinheiro, motivo pelo qual optou por guardar diversas quantias em dinheiro vivo sem o conhecimento dela.
Por outro lado, tendo apenas a 2.a classe, tem manifesta dificuldade em abrir conta bancária, sem intervenção do segundo titular, o que revelaria à sua esposa a existência dessas mesmas quantias.
Com a falência do novo banco também veio abalar a sua confiança no sistema bancário.
No fundo optou por fazer aquilo que o seu pai fez, que foi justamente esconder todos os proveitos de uma vida de trabalho no muro.
Pese embora ter passado a sua infância naquele local, desde que emigrou para a Suíça, nunca mais residiu em ..., ou nas imediações do muro.
Este muro é de outra pessoa, nem o arguido tem naquele local nenhuma propriedade.
Vinha a Portugal apenas duas a três vezes por ano.
Pegou no investimento inicial do seu pai, cerca de € 52.000,00 e todos os anos que vinha a Portugal trazia consigo diversas quantias em dinheiro vivo proveniente dos aforramentos.
Antes do seu pai lhe dar os €52.000,00, já tinha em sua casa em ..., cerca de € 300,000,00.
Todos os anos trazia diversas quantias em dinheiro que variavam entre os 20 e os 40 mil euros.
Não tem registos bancários da conversão de francos em euros.
Recebeu cerca de 40 mil euros em duas indemnizações provenientes de acidentes laborais, que levantou parcialmente e que faz parte da quantia encontrada no dito muro.
Foi o arguido quem comprou os cofres em causa, estando no interior do cofre cinzento acondicionados cerca de € 220 mil euros. Quanto aos demais cofres, não se recorda exactamente da cor uma vez que ao longo dos anos foi trocando, tendo chegado a ter um vermelho, um azul e um preto.
Tendo sido pedida a exibição ou a entrega das chaves dos cofres, ou cópia, o mesmo disse que não tinha, explicando que quando viu as notícias sobre o achamento dos cofres, reparou que as mesmas estavam ligadas a um assassinato que teria existido há uns anos atrás. Assustado e com receio de ver associado a esse mesmo caso, se reclamasse a quantia, deitou as chaves ao lixo no aeroporto, quando estava prestes a passar no detector de metais.
Colocou no muro quatro cofres diferentes, apenas sabendo que um deles era cinzento, não se recordando, pelos motivos já indicados, da cor dos demais.
Um dos cofres tinha € 220.000,00, dois tinham € 60,000,00 cada um e o quarto com quantia que poderia oscilar entre € 90.000,00 e € 110.000,00, não se recordando em concreto qual.
Encontrava-se escrito à mão, por fora dos cofres, com uma caneta permanente a quantia exacta existente nos cofres.
O dinheiro encontrava-se dentro de sacas próprias para acondicionar quantias que comprou nas lojas dos chineses e cujo exemplar ora junta.
Os cofres estavam embrulhados em película aderente.
Os maços das notas estavam presos por elásticos de cor beje.
Que não tem nenhuma fotografia com os cofres na mão, no local, nem nunca disse a ninguém que tinha dinheiro naquele local.
Em quase todos os cofres encontra-se rasurada a quantia anterior e adicionada a nova quantia com a já referida caneta de tinta permanente.
O muro em causa é composto de pedras grandes, tendo outras pedras mais pequenas. Retirou as pedras, colocando no buraco os cofres.
Existia na zona da bilheteira, do outro lado do muro, por baixo do entulho, € 80.000,00 em notas em duas sacas.
Quando vinha a Portugal ia à zona do muro, sempre de noite, por forma a não revelar a sua localização.
A última vez que foi ao local, antes da quantia ter sido encontrada, foi quando chegou da Suiça e durante o dia.
Deslocou-se ao local porque precisava de dinheiro.
Estacionou junto ao muro, fingindo que estava a urinar, tendo tirado um cofre do muro. Meteu o cofre dentro do carro e chegou-se mais á frente, tendo reparado numa máquina que estava a fazer um trabalho. Tirou um maço de notas que normalmente costumavam ter cerca de 5.000 euros, voltando a por o cofre no local.
Apercebeu-se que, entretanto, chegou uma carrinha de trabalho, mantendo-se contudo por aquele local. Interpelou os trabalhadores tendo-lhes perguntado há quanto tempo estava aquilo abandonado, referindo-se aos balneários. Mais perguntando se iam deitar o muro abaixo. Os trabalhadores disseram que estavam a por postes de electricidade para o campo de tiro.
Entretanto chegou um outro senhor àquele local e esteve a conversar com ele sobre o estado de abandono dos balneários. Após terminar a conversa ausentou-se daquele local tendo sido a última vez que viu os cofres. Suspeita que um ou alguns destes trabalhadores o terão visto a mexer no muro tendo dado o consequente alerta.
Compromete-se a juntar aos autos toda a documentação bancária que conseguir recolher.”
g) Em 06.07.2023, foi proferido despacho de arquivamento dos presentes autos com o seguinte teor (transcrição integral):
“I.
Os presentes autos tiveram o seu início com a informação de fls. 6 no qual a GNR dá conta que, no dia 04 de Novembro de 2021, foi chamada a deslocar-se à Rua ..., em ..., área desta comarca, em virtude de populares terem detectado um sujeito não identificado exibindo um comportamento estranho junto a um muro existente naquele local.
Uma vez aí, os militares de GNR descobriram, ocultos num interior de um muro de "pedra posta", 4 cofres, que uma vez abertos, revelaram conterem a quantia total de €436.300,00.
Ora, uma vez que todo o circunstancialismo supra descrito fazia suspeitar que as quantias em causa poderiam ser produto directo do crime, vantagem, lucro ou recompensa pelo mesmo gerada, foram as mesmas apreendidas à ordem dos autos.
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II.
Os factos supra descritos, em abstracto e tal e qual foram participados são susceptíveis e integrarem a prática dos crimes fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais, eventualmente crimes contra o património não especificados (furto, burla, roubo, rapto ou extorsão) ou, ainda, tráfico de estupefacientes, p. e p. nos termos do art. 103. e 104.° do RGIT, 368- A do Cód. Penal, bem como 204.°, 217, 210.°, 223.° do mesmo diploma e, ainda, art. 23.° do DL 15/93.
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III.
A)
Foi ordenada a abertura do presente inquérito tendo sido as diligências iniciais de recolha de prova efectuados pelo NIC da GNR.
Atentas as suspeitas de eventuais crimes fiscais e branqueamento de capitais, foi a competência de delegada na A.T. do Porto, tendo, igualmente intervindo nos autos, o GRA - Gabinete de Recuperação de activos.
Foram, ainda, solicitadas informações operacionais ao NIC e à PJ.
No decurso de investigação foram inquiridos CC, DD, EE.
Foi efectuada a recolha de vestígios lofoscópicos, auto de levantamento celular, recolhidas informações bancárias e fiscais, bem como analisa a diversa documentação junta aos autos pelo arguido de cariz laboral, judicial e bancária e, ainda, certidões permanentes e certidão matricial.
Foi constituído como arguido e interrogado nessa qualidade AA.
**
Não obstante uma das notas ter sido considerada falsa, não foi possível apreender a mesma, proceder à sua análise e associa-la eventualmente a um outro inquérito pendente ou findo.
Uma vez que as notas apreendidas foram de imediato depositadas, tendo, consequentemente sido misturadas com outras provenientes de outras origens, não foi possível identificar os seus números de serie a determinar o seu ponto de entrada em circulação.
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B) Compulsados os autos, das diligências de prova realizadas afigura-se-nos que se mostram indiciados os factos seguintes:
a) No dia 04 de Novembro de 2021, a GNR foi chamada à Rua ..., em ..., por funcionários da B..., empresa de electricidade, que procediam trabalhos de reparação de uma linha.
b) O motivo de alerta assentou na circunstância de um indivíduo, de identidade não concretamente apurada, exibir um comportamento suspeito junto a um muro de "pedra posta" que se encontra naquele local.
c) Cerca das 13:30, a patrulha da GNR localizou, oculto no interior do referido muro, embrulhados em película transparente, 4 cofres de pequenas dimensões, contendo:
a. (Cofre B1) - 12 sacos de plástico com diversas notas de euros no valor total de €63.350,00;
b. (Cofre B2) - 22 sacos de plástico com diversas notas de euros no valor total de €165.450,00;
c. (Cofre B3) - 12 sacos de plástico com diversas notas de euros no valor total de €60.600,00;
d. (Cofre B4) - 8 sacos de plástico com diversas notas de euros no valor total de €144.900,00;
d) Tais cofres continham a quantia global de €436.300,00 (quatrocentos e trinta e seis mil euros) sendo 77 notas de €500,00, 192 de €200,00, 1142 de €100,00 e 4.902 de €50,00.
e) Uma das notas apreendidas revelou ser falsa.
f) Foi realizado recolha dactilogramas na película transparente que envolvia os cofres, tendo-se logrado obter vestígios com potencial identificativo.
g) O muro em questão situa-se na Rua ..., em ..., freguesia do concelho de Penafiel, confrontando com a via pública.
h) Tal muro é propriedade da sociedade A... S.A., sociedade anónima, que tem como objecto social a exploração de uma pedreira, encontrando-se descrito na conservatória do registo predial de Penafiel, freguesia ..., sob os artigos ...00, ...91, ...70 e ...74.
i) A 16 de Dezembro de 2021, AA, por requerimento dirigido ao inquérito, veio arrogar-se proprietário quantias supra-referidas e que vieram a ser apreendidas à ordem dos autos.
j) O mesmo veio a ser constituído como arguido e interrogado nessa qualidade, tendo nessa ocasião sido devidamente resenhado.
k) Foi efectuado exame lofoscópico, comparando-se os vestígios recolhidos na película transparente com a resenha do arguido, tendo-se concluído que correspondem ao mesmo. l) Pese embora lhe ter sido solicitado, o a arguido não forneceu qualquer chave dos cofres em causa m) O arguido é emigrante na Suíça residindo, pelo menos desde 2012, na ... ....
n) Só no ano de 2022 é que o arguido passou a ter residência fiscal em Portugal.
o) O arguido não reside, nem nunca residiu, junto ao local onde as quantias em causa foram localizadas.
p) Desde 2012 até a 2022 o arguido, juntamente com a sua esposa, terão recebido cerca de €1.000.000,00, a título de rendimentos do trabalho e indemnizações laborais.
q) O arguido recebeu tais quantias sempre em francos Suíços, moeda legal do pais onde residia,
r) Pese embora ter sido expressamente solicitado, o arguido não entregou qualquer tipo de comprovativo da conversão dos francos suíços em euros.
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Pois bem, aqui chegados, perante todo o circunstancialismo supra exposto afigura-se-nos manifesto que as quantias apreendidas, ocultas nos buracos de um muro num local ermo, foram ali colocadas para evitar a sua detecção por quaisquer entidades oficiais, donde resulta a sua quase certa natureza ilícita.
Alias, tal acepção decorre não só das regras da experiência e do senso-comum, como sendo igualmente uma prática com que já nos deparamos noutros inquéritos.
Na verdade, Portugal não só tem um sistema bancário robusto como existem outras opções (cofres bancários) para, com segurança, guardar quantias tão elevadas, não havendo qualquer outro tipo de explicação razoável para conservar eventuais poupanças do trabalho daquela forma, atento o elevadíssimo risco de perda total.
Este dinheiro, assim oculto, não seria apreendido a ordem de eventual processo crime, não só servindo como prova do mesmo, como sendo recuperado e devolvido aos seus legítimos proprietários, ou perdido a favor do estado.
Isto posto, tipicamente esta quantias, assim em "dinheiro vivo", poderiam resultar directamente de factos contra o património, sendo o produto de furtos, roubos a residências, dependência bancárias, ATM, eventual lucro do crime de burlas.
Da mesma forma, poderia resultar do produto da venda de estupefacientes, ou passagem de moeda falsa, tipicamente geradoras de elevadíssimos proveitos, pese embora de notas com denominações inferiores.
Estas quantias, poderiam ainda terem sido rendimentos ocultos à autoridade tribuária, recebimento de prestações do Estado (crimes fiscais), eventualmente resultariam da conversão de outros produtos do crime em dinheiro, assim se ocultando a sua proveniência ilícita (branqueamento de capitais).
Com efeito, no caso vertente seguiu-se um caminho inverso ao que tipicamente costuma suceder nos inquéritos já que se partiu do resultado do crime, seu produto, lucro ou recompensa para do mesmo se tentar concretizar a sua tipificação e seus autores.
O caso vertente mereceu amplíssima cobertura noticiosa, de âmbito nacional, sendo que apenas AA veio aos autos reclamar as quantias como sendo suas, tornando-se assim o principal suspeito.
Sucede, porém, que nos termos melhor infra descritos, afigura-se-nos que não foram recolhidos indícios suficientes que nos permitissem concluir tais quantias eram propriedade daquele já que, em síntese, considerou- se que a sua versão dos factos/justificação foi considerada, do ponto de vista das regras da experiencia e senso- comum, fantasiosa, a motivação inerente à conduta inverosímil, não residir em Portugal, sequer nas imediações do dito muro, não ter a chave dos cofres nem qualquer comprovativo da conversão de francos Suíços em euros.
Sem prescindir, é certo que das diligências de investigação realizadas não se logrou determinar, em concreto que o arguido AA por si, ou como parte um grupo organizados, tenha, nesta área de actuação, praticado furtos, a residência ou instituições bancárias produzindo, de uma vez só ou como resultado de múltiplas ocasiões, valores idênticos aos dos presentes autos.
O mesmo se diga no que concerne ao eventual tráfico de estupefaciente, não se logrou recolher indícios concretos que o arguido se dedica ou dedicou a esta actividade, nem se localizaram outros sujeitos ou grupos, actuando nesta área, ou suas imediações, que tenham movimentado valores na ordem desta grandeza.
Já no que tange crimes fiscais, cumpre salientar que a sociedade proprietária do muro (A...) não é suspeita, nem arguida, em qualquer tipo de esquema de fraude fiscal, ou burla tributária, seja por ocultação de rendimentos à AT seja por pedidos de reembolso de elevado valor, nem se conhecem operadores económicos nas imediações com movimentos semelhantes ao dos autos.
O mesmo se diga quanto ao arguido que, ao não ser residente em Portugal não é sujeito passivo fiscal neste pais, não tendo, assim, que proceder ao pagamento de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares.
Por seu turno, a nota falsa descoberta nos autos não foi ligada a qualquer processo, ao arguido, ou a qualquer grupo.
Ainda, não se logrou se logrou identificar em concreto qualquer esquema de branqueamento de capitais, activo nesta mesma área, que gere proveitos da magnitude das quantias encontradas e do qual seja o arguido, ou outros suspeitos, intervenientes.
Nesta conformidade, pese embora ser certo que as quantias (nos termos já supra descritos) são provenientes de crime, não obstante as diligências de investigação realizadas não foi possível relacionar as quer com o arguido (nos termos melhor infra descritos), que com qualquer ilícitos típicos.
*
Ora, no momento de encerramento do inquérito, o juízo de conformação do exercício da acção penal, orientada pelo princípio da legalidade, a cargo do Ministério Público, pauta-se pela determinação concreta de "indícios suficientes" da verificação do crime, da identificação do seu agente e da sua responsabilidade.
Quanto à definição de indícios suficientes, dispõe o artigo 283°, n.° 2 do Código de Processo Penal: "Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança."
Ora a suficiência indiciária afere-se em função das provas e indícios, ou seja dos elementos de facto trazidos pelos meios probatórios ao processo, os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, a manterem-se em julgamento, terão probabilidades sérias de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado.
Daqui resulta que uma acusação se sedimenta em provas desde que elas satisfaçam a ideia de "indiciação suficiente", não estando, contudo, excluído que uma condenação se baseie, nos seus aspectos determinantes, apenas em indícios.
O critério decisivo é que por força desta indiciação suficiente derive, em prognose, a possibilidade razoável de condenação do arguido em julgamento.
A força probatória dos indícios determina-se pelo seu número, pelo seu concurso unânime ou predominante e pelas consequências que se podem concluir dos factos geradores dos indícios.
Como refere Carlos Adérito Teixeira, in "Indícios Suficientes: Parâmetro de Racionalidade e Instância de Legitimação Concreta do Poder-Dever de Acusar, Revista do CEJ, n° 1, 2° semestre de 2004, p. 189 "O juízo de indiciação suficiente deve, assim, ter por equivalente o juízo de condenação em julgamento."
Nesta conformidade, das diligências de prova realizadas no decurso do inquérito não existem indícios credíveis, de forma suficiente e de acordo com os princípios atrás expostos, permitam imputar ao arguido, ou a qualquer outro suspeitos factos susceptíveis de integrarem um crime concreto.
Pelo exposto, determina-se o arquivamento dos autos nos termos e ao abrigo do disposto no art. 277.°, n.° 2, do CPP.”
h) Nesse mesmo despacho, quanto às quantias apreendidas nos autos, o Ministério Público promoveu que fossem declaradas perdidas a favor do Estado nos seguintes termos:
“IV. Da perda das quantias apreendidas a favor do Estado.
Nos presentes autos foram apreendidos 4 cofres, embrulhados em película transparente, 4 cofres de pequenas dimensões, contendo:
a. (Cofre B1) - 12 sacos de plástico com diversas notas de euros no valor total de €63.350,00;
b. (Cofre B2) - 22 sacos de plástico com diversas notas de euros no valor total de €165.450,00;
c. (Cofre B3) - 12 sacos de plástico com diversas notas de euros no valor total de €60.600,00;
d. (Cofre B4) - 8 sacos de plástico com diversas notas de euros no valor total de €144.900,00; Tais cofres continham a quantia global de €436.300,00 (quatrocentos e trinta e seis mil euros) sendo 77 notas de €500,00, 192 de €200,00, 1142 de €100,00 e 4.902 de €50,00.
Pelo que cumpre dar-lhes o devido destino.
No caso vertente, desde logo cumpre salientar que os factos supra descritos mereceram ampla cobertura noticiosa de âmbito nacional (…) sendo que, contudo, apenas houve uma pessoa a vir aos autos reclamar a sua propriedade.
Com efeito, AA veio efectivamente aos autos reclamar as quantias apreendidas, assim tornando-se o principal suspeito, sendo que, quando interrogado, referiu em síntese que:
a) Emigrou pela primeira vez para a Alemanha aos 17 anos tendo ir trabalhar para a construção civil, auferindo cerca de 4000 marcos por mês.
b) Esteve na Alemanha cerca de 3 anos e meio, tendo depois trocado para a Suiça, local onde se encontra atualmente. Assim sendo encontra-se há cerca de 22 anos emigrado na Suiça, encontrando-se atualmente desempregado.
c) Na Suiça trabalhou na construção civil como operário, depois como manobrador de máquinas. Na Suiça reside em ..., no cantão francês, juntamente com a sua mulher e filha maior.
d) O seu pai disse-lhe que já tinha também compensado financeiramente os seus irmãos, pelo que indicou que o mesmo se deveria deslocar a um muro que se encontrava em frente aos balneários deste campo de futebol, que por de trás de uma pedra no muro, tinha uma caixa de madeira. Cerca de um ano depois deslocou-se a esse local, tendo retirado a referida pedra e encontrou uma caixa de madeira contendo a quantia de cerca de 52.000 mil euros. Refere que estes fatos ocorreram há cerca de oito anos, quando o seu pai ainda era vivo.
e) Uma vez que a sua esposa tinha alguma propensão para o consumo excessivo, acumulando dívidas de cerca de 60.000 euros em cartões de crédito, optou por deixar o dinheiro naquele local não revelando à sua esposa, da sua origem.
f) Salienta que a sua esposa tem o referido problema com questões de dinheiro, motivo pelo qual optou por guardar diversas quantias em dinheiro vivo sem o conhecimento dela.
g) Por outro lado, tendo apenas a 2.a classe, tem manifesta dificuldade em abrir conta bancária, sem intervenção do segundo titular, o que revelaria à sua esposa a existência dessas mesmas quantias.
h) Com a falência do novo banco também veio abalar a sua confiança no sistema bancário. No fundo optou por fazer aquilo que o seu pai fez, que foi justamente esconder todos os proveitos de uma vida de trabalho no muro.
i) Pese embora ter passado a sua infância naquele local, desde que emigrou para a Suíça, nunca mais residiu em ..., ou nas imediações do muro.
j) Este muro é de outra pessoa, nem o arguido tem naquele local nenhuma propriedade.
k) Por outro lado vinha a Portugal apenas duas a três vezes por ano.
l) Não tem registos bancários da conversão de francos em euros.
m) Tendo sido pedida a exibição ou a entrega das chaves dos cofres, ou cópia, o mesmo disse que não tinha.
n) Que não tem nenhuma fotografia com os cofres na mão, no local, nem nunca disse a ninguém que tinha dinheiro naquele local.
o) Em quase todos os cofres encontra-se rasurada a quantia anterior e adicionada a nova quantia com a já referida caneta de tinta permanente.
p) Estacionou junto ao muro, fingindo que estava a urinar, tendo tirado um cofre do muro. Meteu o cofre dentro do carro e chegou-se mais á frente, tendo reparado numa máquina que estava a fazer um trabalho. Tirou um maço de notas que normalmente costumavam ter cerca de 5.000 euros, voltando a por o cofre no local.
q) Apercebeu-se que, entretanto, chegou uma carrinha de trabalho, mantendo-se contudo por aquele local. Interpelou os trabalhadores tendo-lhes perguntado à quanto tempo estava aquilo abandonado, referindo-se aos balneários. Mais perguntando se iam deitar o muro abaixo. Os trabalhadores disseram que estavam a por postes de electricidade para o campo de tiro.
r) Esteve a conversar com esta sobre o estado de abandono dos balneários. Após terminar a conversa ausentou-se daquele local tendo sido a última vez que viu os cofres. Suspeita que um ou alguns destes trabalhadores o terão visto a mexer no muro tendo dado o consequente alerta.
Pois bem, cumpre desde logo salientar que se considera a versão dos factos apresentada pelo arguido fantasiosa, inverosímil, desprovida de qualquer lógica, isto do ponto de vista das regras da experiência e do senso-comum.
Com efeito, afigura-se-nos absolutamente implausível que qualquer pessoa fosse guardar dinheiro num muro de uma propriedade que não é sua, quando reside a milhares de quilómetros de distância e onde apenas regressa duas a três vezes por ano. A ser assim, o arguido não teria qualquer forma de vigiar adequadamente o dinheiro, assegurando que tal muro não é reparado, alterado, derrubado pelo seu proprietário que se trata de uma empresa de exploração de pedra.
Salienta-se que o muro em causa não fica num local ermo, perdido na vegetação no meio do monte e num local de difícil acesso, mas sim confronta com um caminho público de acesso à empresa, junto a uma estada municipal, dotado de iluminação pública e por onde circulam centenas de pessoas.
Acresce que o arguido, não reside desde há vários anos junto aquele local, tendo a sua residência habitual, quando se deslocava a Portugal, em Valongo.
Por outro lado, o motivo pelo qual o arguido alega ter procedido desta maneira (desconfiança do sistema bancário - associado à queda no BES) também se julga como sendo destituída de lógico ou senso-comum, querendo o arguido fazer crer que o dinheiro estaria mais seguro escondido no muro do que numa instituição bancária Suíça, local da sua residência.
Ora, a Suíça é o país com o sistema bancário mais robusto e seguro do mundo, com apertadíssimas regras de colaboração com entidade judiciais, local onde inúmeros cidadãos de vários países depositam o seu dinheiro justamente por esse mesmo motivo. Acresce que esses mesmos depósitos estariam assegurados pelos fundo interbancário e nacional em caso de insolvência de qualquer uma das instituições.
Sem prescindir do supra exposto, ainda que houvesse alguma desconfiança para com os bancos, é certo que sempre existiram outras alternativas como cofres bancários (dependente do pagamento de uma pequena quantia mensal) ou guardar o dinheiro no interior da própria residência igualmente em cofre seguro.
Isto posto, pese embora resultar dos autos que o arguido, entre 2012 e 2022, recebeu cerca de um milhão de euros título de rendimento de trabalho e indemnizações, não deixa de ser certo que recebeu tais quantias em francos Suíços e nãoeuros, moeda das quantias apreendidas.
Tais quantias parecem, de facto, impressionantes, mas importa referir que foram recebidas ao longo de 10 anos, sendo consabido que a Suíça tem um custo de vida muito elevado, sendo custos como alojamento, alimentação, educação e serviços altíssimos.
Por outro lado, afigura-se-nos muito importante o facto de, pese embora lhe ter sido expressamente solicitado, o arguido não ter exibido qualquer tipo de documento comprovativo que levantamento em euros ou conversão de Francos Suíços em euros.
Na verdade, o dinheiro recebido pelo arguido encontrava-se "dentro do sistema bancário", em francos suíços, não existindo qualquer prova da sua conversão, no todo em ou parte, em euros, moeda que foi apreendida.
Com efeito, perante a elevada quantia em dinheiro envolvida nos autos, caso fosse realmente sua, sempre teria de ter alguma prova da conversão da moeda de origem, na moeda de apreensão, assim ficando por explicar "transmutação" de uma moeda na outra.
Acresce, ainda, que é de crucial importância o facto de, novamente, não obstante lhe ter sido solicitado, o arguido nunca exibiu ou entregou qualquer uma das chaves daqueles cofres.
Desta forma, carece de explicação como o arguido abria os cofres para movimentar as quantias apreendidas.
Na verdade, entendemos que a posse efectiva das chaves dos cofres seria um elemento crucial para determinar a propriedade sobre as quantias, pois seria um elemento que o ser verdadeiro titular teria.
Ao exposto salienta-se, também, que o arguido não deu qualquer tipo explicação plausível para só ter vindo reclamar a propriedade das quantias em causa cerca de um mês e meio depois da apreensão dos cofres, e numa altura em que os factos já tinham tido ampla divulgação noticiosa, sendo assim conhecidos da população em geral.
Da mesma forma, fica por explicar por que motivo o arguido, se de facto fosse o proprietário das quantias, ao aperceber-se da presença dos trabalhadores e havendo o risco sério da detecção do dinheiro, simplesmente não tirou os cofres do muro e ausentando-se daquele local na sua posse.
Aqui chegados, não descuramos o facto dos vestígios palmares do arguido foram detectados no papel transparente que envolvia os cofres.
Sucede, porém, que para nós apenas tal apenas significa que o mesmo, seja por sorte seja por ter alguma informação privilegiada, entrou em contacto com a parte exterior dos cofres, não servindo, de forma alguma, para provar que o mesmo era seu proprietário, sobretudo quando conjugamos todo o circunstancialismo supra exposto com as regras da experiência e do senso-comum.
Nesta conformidade, em síntese, afigura-se-nos que o arguido não logrou demonstrar minimamente que os cofres e as quantias que foram apreendidas à ordem dos autos lhe pertenciam efectivamente.
Isto posto, mais se considera que perante o circunstancialismo supra exposto as quantias apreendidas, ocultas nos buracos de um muro num local ligeiramente afastado da via pública, foram por certo ali colocadas para evitar a sua detecção por quaisquer entidades oficiais, donde resulta a sua natureza ilícita.
Ora, tal acepção decorre não só das regras da experiência e do senso-comum, como sendo igualmente uma prática com que já nos deparamos noutros inquéritos.
Como já referimos, Portugal não só tem um sistema bancário robusto como existem outras opções (cofres bancários) para, com segurança, guardar quantias tão elevadas, não havendo qualquer outro tipo de explicação razoável para conservar eventuais poupanças do trabalho daquela forma, atento o elevadíssimo risco de perda total.
Este dinheiro, assim oculto, não seria apreendido a ordem de eventual processo crime, não só servindo como prova do mesmo, como sendo recuperado e devolvido aos seus legítimos proprietários, ou perdido a favor do estado.
Na verdade, novamente fazendo-se apelo às regras da lógica, julgamos não haver qualquer outro tipo de explicação plausível que possa explicar ou justificar esse mesmo circunstancialismo.
Acresce que, com a excepção do arguido (que reiteramos não logrou demonstrar minimamente a titularidade das quantias) mais ninguém veio aos autos reclamar a sua propriedade, isto não obstante a ampla divulgação mediática que a apreensão colheu.
*
Com efeito, dispõe o artigo 178.°, n.° 1 do CPP que "são apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova."
Ademais, estatui o art. 109.°, do Código Penal que
1- São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.
2- O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
Dispõe, ainda, o artigos 110.° do Código penal que:
1- São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objectos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2- O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
No caso vertente, uma vez que resulta fortemente indiciado dos autos que as quantias apreendidas foram produzidas pela prática de um facto ilícito típico, constituindo o seu produto lucro ou recompensa, devem consequentemente ser declaradas perdidas a favor do estado, isto nos termos das disposições conjugadas nos artigos. 109.°, n.° 1 e 2, e 110.°, n.° 1, alíneas a) e b), do Código Penal, o que se promove.
Nesta conformidade, apresente os autos ao M.° Juiz de Instrução Criminal para, nos termos e ao abrigo dos disposto nos art. 109.°, 110.°, do Código Penal e art. 185.° e 268.°, n.° 1, alínea e) do Código Processo Penal A QUEM SE PROMOVE QUE declare perdidas a favor do estado as quantias apreendidas à ordem dos autos e melhor descritas a fls. 26 e 31.”
i) Notificado para se pronunciar, o arguido veio em 25.10.2023 reiterar o pedido de devolução do dinheiro apreendido nos autos, alegando ser o seu proprietário e a sua proveniência lícita.
j) Na sequência da promoção do pedido de declaração de perda a favor do Estado foi proferida a decisão recorrida supra transcrita.
*
2. Sustenta o recorrente que nos autos foram recolhidos diversos elementos de prova que, quando conjugados com as regras da experiência e do senso comum, permitem concluir com elevada probabilidade que as quantias apreendidas à ordem dos autos são provenientes da prática de um crime, devendo por isso serem declaradas perdidas a favor do Estado.
Afigura-se-nos que o recorrente tem razão.
*
3. Começamos por transcrever as normas legais à luz das quais será decidida a questão suscitada pelo recorrente contidas nos seguintes diplomas:
- O Código Penal (doravante CP)
O artigo 109º, com a epígrafe “”Perda de instrumentos”, na parte que aqui interessa:
“1- São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.”
O artigo 110º, com a epígrafe “Perda de produtos e vantagens”, na parte que aqui importa:
“1- São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.”
- O Código de Processo Penal:
O artigo 178º, com a epígrafe “Objecto e pressuposto da apreensão”, na parte que aqui releva:
“1- São apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova.”
*
4. O instituto da perda dos instrumentos de facto ilícito típico previsto no artigo 109º, nº 1, do C.P funda-se em razões de prevenção de futuros crimes, face à sua perigosidade.
São requisitos legais da declaração da sua perda a favor do Estado:
- Que os objectos tenham efectivamente servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico;
- Que os objectos, pela sua natureza e pelas circunstâncias do caso, ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
Como exemplos de instrumentos de facto ilícito típico, que no seu entender se devem restringir às coisas corpóreas, indica-nos o Prof. Figueiredo Dias (in Direito Penal Português, Parte Geral, As consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 618) “a pistola no homicídio; a navalha na ofensa corporal; o automóvel no qual se transporta o contrabando, ou a vítima para o local em que é violada, ou com que se atropela alguém, ou no qual se foge do local do acidente, omitindo o auxílio; ou a impressora na qual se imprime a moeda falsa.”
No que concerne aos produtos do facto ilícito típico devem entender-se todos os “objectos que tiverem sido criados ou produzidos pela actividade criminosa” (ou seja, não existiam antes do facto ilícito típico e passaram a existir com a sua realização) – cfr. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 618.
A título exemplificativo de produtos do facto ilícito típico o Prof. Figueiredo Dias (in ob. cit., pág. 618) elenca “a moeda contrafeita, o documento falsificado, a arma falsificada em violação das regras ou autorizações legais”.
Já quanto às vantagens de facto ilícito típico constituem todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, directa ou indirectamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem (ou seja, tudo o que o agente não teria obtido se não fosse o facto ilícito típico).
Assim, as vantagens de facto ilícito típico podem ser:
- directas: as próprias coisas ou montantes imediatamente obtidos, incluindo as recompensas;
- indirectas: aquelas que resultam do reinvestimento das vantagens directas;
- sucedâneos das vantagens directas: coisas ou direitos obtidos mediante transacção ou troca com as vantagens directas (ou seja, as coisas que passaram a ocupar o lugar das vantagens directas).
Como exemplos de vantagens directas Rui Cardoso, in “A perda de instrumentos, produtos e vantagens: Da perda clássica à perda alargada” (disponível na Revista do Centro de Estudos Judiciários, Janeiro/2019, pág. 8) indica “as coisas ou montantes obtidos através dos crimes contra a propriedade e contra o património; a vantagem patrimonial ou não patrimonial, recebida na corrupção; as quantias recebidas pela venda de estupefaciente; a quantia entregue ao correio de estupefacientes como pagamento; o imposto devido e não pago; o valor que deveria ter sido despendido com a realização dos actos de licenciamento necessários à realização de uma obra;…”
Como exemplos de vantagens indirectas o mesmo autor (cfr. ob. cit., pág. 9) refere “os juros, lucros e outros acréscimos obtidos com as vantagens directas; os prémios de jogo obtidos através da utilização do dinheiro da vantagem directa”.
Por fim, como exemplos de sucedâneos das vantagens directas o mesmo autor (cfr. ob. cit., pág. 9) menciona “automóvel ou habitação adquirido com os montantes obtidos através dos crimes contra a propriedade e contra o património”.
Sucede que, como escreveu João Conde Correia in “Apreensão ou Arresto Preventivo dos proventos do crime?” (disponível na Revista Portuguesa de Ciência Criminal 25 (2015), págs. 521-522) “… a recuperação da concreta vantagem do crime pode ser na prática impossível (v.g. o arguido gastou-a, escondeu-a ou transferiu-a para um terceiro de boa fé) ou, então, ser tecnicamente inviável (v.g. consiste no gozo de uma coisa). Em ambos os casos, seja por impossibilidade superveniente, seja por impossibilidade genética, embora não se possa recuperar o próprio bem, pode ser confiscado o seu valor equivalente. A perda não pode ficar refém da natureza da vantagem, nem, muito menos, da conduta do próprio arguido.”
A perda de produtos ou vantagens não depende da verificação de um crime, bastando-se com a existência de um facto ilícito típico, havendo a ela lugar, mesmo que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto. É pois admissível que o arquivamento de um inquérito, possa dar lugar à declaração de perdimento de produtos ou vantagens apreendidos.
Tal como a perda de instrumentos e produtos do crime, também a perda de vantagens vem sendo definida, para a maioria da doutrina, no que respeita à sua natureza jurídica, como uma “providência sancionatória de natureza análoga à da medida de segurança, (…) mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito-típico, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito decorrente do objecto” (cfr. Figueiredo Dias, in ob. cit., pág. 638 e, ainda, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 4ª Ed., pág. 460).
*

5. Vertendo ao caso concreto, os elementos factuais acima transcritos infirmam categoricamente a versão apresentada pelo arguido na 1ª instância – os cofres e o dinheiro são de sua propriedade.
Expliquemos.
Em primeiro lugar, os cofres e o dinheiro não foram apreendidos directamente ao arguido (ou seja, não foram encontrados na sua posse), nem foram encontrados em local da sua propriedade.
A propósito da relação com o local onde o dinheiro foi apreendido importa realçar que as declarações do arguido não se revelaram de todo verosímeis – há cerca de oito anos, o seu pai teria lhe dito que se deveria deslocar a um muro que se encontrava em frente aos balneários do campo de futebol, onde teria deixado por trás de uma pedra desse mesmo muro uma caixa em madeira, contendo no seu interior cerca de € 52.000 –, sendo que nessa altura o seu pai já nem sequer vivia em ... e, deslocando-se o arguido duas a três vezes ao ano a Portugal, não se compreende por que motivo se terá deslocado ao local apenas cerca de um ano depois da conversa com o seu pai.
Acresce, ainda, que tendo o arguido nessa altura um apartamento em ..., onde guardava dinheiro, não se percebe por que razão o arguido não guardou aí os alegados € 52.000 em vez de ter optado por alegadamente deixar o dinheiro no dito muro.
Em segundo lugar, o dito muro, que não é da propriedade do arguido, confronta com um caminho público, facilmente acessível a qualquer pessoa que por ali transite, não tendo o arguido qualquer controlo sobre esse muro.
Em terceiro lugar, o arguido não residia há vários anos em Portugal (mas sim a milhares de quilómetros de distância), deslocando-se apenas duas a três vezes por ano a Portugal, permanecendo nessas deslocações na sua residência sita em Valongo, estando assim impossibilitado de vigiar o dinheiro dissimulado no dito muro.
Donde, não se alcança como o dinheiro ocultado no dito muro nestas circunstâncias estaria mais seguro do que numa instituição bancária, designadamente, na Suíça (local onde o arguido residia há cerca de 22 anos), país que reconhecidamente é conhecido por ter um dos sistemas bancários mais seguros do mundo.
Ademais, mesmo que o arguido não confiasse no sistema bancário, sempre teria ao seu dispor outras opções viáveis e certamente seguras (designadamente, alugar um cofre bancário).
Em quarto lugar, o arguido não tem as chaves dos cofres, não obstante ter sido interpelado para as entregar aos autos, não se depreendendo, pois, de que forma o arguido tinha acesso ao dinheiro que se encontrava no seu interior.
Refira-se que consideramos inverosímil a explicação dada pelo arguido – quando viu as notícias sobre o achamento dos cofres, reparou que as mesmas estavam ligadas a um assassinato que teria existido há uns anos atrás; assustado e com receio de ser associado a esse mesmo caso, se reclamasse a quantia, deitou as chaves ao lixo no aeroporto, quando estava prestes a passar no detector de metais – já que não se concebe como alguém conseguiria, sem mais, associar as ditas chaves (supostamente em poder do arguido) aos cofres apreendidos nos autos, bem como não vislumbramos que necessidade tinha o arguido em levar consigo para a Suíça as ditas chaves quando as poderia ter guardado na sua residência sita em Valongo.
Não olvidamos o vestígio palmar do arguido encontrado na bolsa plástica que continha dinheiro no interior do cofre cinzento apreendido, nem os vestígios digitais do arguido detectados na película transparente que envolvia três dos cofres apreendidos.
Mas tal circunstância não permite demonstrar inequivocamente que o arguido era de facto o proprietário dos cofres e do dinheiro apreendidos, não tendo sido recolhidos quaisquer elementos de prova que permitam aferir em que circunstâncias o arguido tomou conhecimento da existência dos ditos cofres naquele local e de que forma e com que finalidade o arguido logrou ter contacto com alguns dos cofres apreendidos.
Diga-se que, se o arguido fosse realmente proprietário dos ditos cofres e do dinheiro guardado no seu interior, certamente saberia com precisão a cor de cada um dos cofres em causa, bem como indicaria com exactidão os valores contidos no interior de cada um deles. Ora, aquando das suas declarações prestadas em inquérito, o arguido apenas conseguiu identificar a cor de um dos cofres (cinzento), onde foram encontrados vestígios digitais do arguido na película transparente que o envolvia e das várias verbas que identificou como estando no interior de cada um dos cofres apreendidos, apenas duas delas se aproximaram dos valores que realmente foram apreendidos, sendo que o valor indicado como estando no interior do cofre cinzento não coincide de todo com a quantia efectivamente encontrada nesse cofre.
Aliás, se o arguido fosse de facto proprietário do dinheiro e dos cofres apreendidos, não se concebe que o arguido só tenha reclamado a sua propriedade cerca de um mês e meio depois da sua apreensão à ordem dos autos.
Em quinto lugar, o arguido não juntou, apesar de ter sido interpelado para esse efeito, qualquer comprovativo da conversão de francos suíços em euros.
Na verdade, pese embora o arguido tenha auferido na Suíça cerca de um milhão de euros ao longo dos anos de 2012 a 2022 (em rendimentos de trabalho e indemnizações), essas quantias foram lhe pagas em francos suíços e não em euros, moeda do dinheiro apreendido, não tendo o arguido explicado como e de que forma teria sido feita essa conversão.
Em sexto lugar, se o arguido fosse o proprietário dos cofres e do dinheiro apreendidos, também não se percebe porque motivo não retirou do dito muro os cofres quando se apercebeu da presença dos trabalhadores naquele local. Note-se que o próprio arguido admitiu ter suspeitado que os trabalhadores o terão visto a mexer no muro e, mesmo assim, ausentou-se tranquilamente do local, sem sequer se assegurar que os cofres e o dinheiro que se encontrava no seu interior permaneceriam dissimulados naquele local.
Por todo o exposto, a versão dos factos apresentada pelo arguido revelou-se completamente irrealista, inverosímil e claramente atentatória às regras da experiência comum e destituída de qualquer lógica.
Em suma: perante a factualidade indiciária, em conjugação com as regras da experiência comum temos que concluir que, os cofres e os montantes monetários apreendidos não são da propriedade do arguido, tendo sido validamente apreendidos nos autos atento o disposto no artigo 178º do CPP.
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6. Aqui chegados, impõe-se, então, determinar se o dinheiro apreendido deve ser declarado perdido a favor do Estado conforme propugna o recorrente.
Revertendo para a questão a decidir as considerações jurídicas expendidas em II.3.§4., no caso em concreto, o que está em causa são manifestamente vantagens económicas.
De facto, atento o local em que o dinheiro apreendido se encontrava – dissimulado atrás de pedras de um muro, que confronta com caminho público –, a forma como o dinheiro apreendido estava acondicionado – ocultado em quatro cofres envoltos em película transparente, em dois locais distintos do dito muro, organizado em vários sacos de plástico, com notas de € 500, € 200, €100 e €50 – o avultado montante apreendido – a quantia global de € 436.300,00 – e, à luz das regras de experiência comum e de acordo com a lógica das coisas, não podemos deixar de concluir que as quantias apreendidas foram colocadas no dito muro para evitar a sua detecção por parte de entidades oficiais, resultando fortemente indiciado que as mesmas consubstanciam vantagens provenientes de facto ilícito típico (de forma directa ou indirecta), cujo regime legal de perdimento está previsto no citado artigo 110º do CP.
Não sendo necessário verificar se há condenação pela prática de um crime para, no âmbito de um processo penal, se declarar a perda para o Estado de determinados objectos apreendidos no mesmo (conforme decorre do n.º 5 do citado artigo 110º), o arquivamento dos presentes autos (por falta de verificação de indícios suficientes que permitissem imputar ao arguido factos susceptíveis de integrarem um crime concreto) não é, por si só, impeditivo da declaração de perda para o Estado do dinheiro apreendido no âmbito dos mesmos (neste sentido, veja-se o acórdão do TRC de 04.11.2015, relatado por Vasques Osório, acessível em www.dgsi.pt).
Atente-se que as quantias monetárias não foram apreendidas ao arguido e o objecto do inquérito consistia na investigação de crimes de fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais, eventuais crimes contra o património ou a propriedade (furto, burla, rapto ou extorsão) e tráfico de estupefacientes
Neste contexto indiciário cumpre, pois, concluir que as quantias apreendidas devem ser declaradas perdidas a favor do Estado nos termos do disposto no artigo 110º, n.ºs 1, al. b), 2 e 4 do CP.
Nestes termos, impõe-se revogar a decisão recorrida, procedendo o recurso interposto pelo Ministério Público.
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III- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido, declarando perdidas a favor do Estado as quantias monetárias descritas a fls. 26 a 28 apreendidas à ordem dos autos.

Sem custas.
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Porto, 06.03.2023
Maria do Rosário Martins (Relatora)
Nuno Pires Salpico (1º Adjunto)
Paula Natércia Rocha (2ª Adjunta)