Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
998/23.0T8MCN.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA VIEIRA
Descritores: PROCESSO DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR
PROVA PERICIAL
Nº do Documento: RP20240307998/23.0T8MCN.P1
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No processo de acompanhamento de maior, dada a natureza dos poderes atribuídos ao juiz em sede de instrução, nos termos do art.891º/1 e art.897º CPC, a realização de prova pericial, fica sempre dependente do juízo de conveniência por parte do juiz.
II - Perante a existência de um documento subscrito por um médico psiquiatra, com indicação da existência de uma patologia psiquiátrica e da necessidade de acompanhamento medico regular, dever-se-ia ter ordenado a realização de exame pericial para prova dos factos objecto destes autos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 998/23.0T8MCN.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, M.Canaveses - JL Cível,


Relatora: Ana Vieira
1º Adjunto Juiz Desembargador Dr.ª Isabel Silva
2º Adjunto Juiz Desembargador Dr. Carlos Portela


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Sumário

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO

AA, residente na Rua ...- ..., Penafiel, veio  intentar AÇÃO ESPECIAL DE ACOMPANHAMENTO DE MAIOR contra BB, casado, residente na rua ... - MARCO DE CANAVEZES, requerendo que a acção seja julgada procedente,  declarando-se o acompanhamento do Requerido: a) Decretando a sua incapacidade para a prática de atos e alienação e oneração de bens, móveis e imóveis, constituição de mandatário, e proibição de movimentação de saldos bancários, de assunção de quaisquer dívidas suas ou de terceiros e/ ou outras que este tribunal entender por bem decretar em defesa dos interesses do requerido.

b) Seja nomeado para acompanhante a pessoa a indicar pelo referido filho do requerido, devendo representar o beneficiário, em todos os seus negócios, e movimentar as contas bancárias, efetuar depósitos e levantamentos, assinar, fazer transferências, desmobilizar e movimentar aplicações financeiras, assinar documentação e correspondência, retirar das estações de correio cartas registadas, constituir mandatário, nomeadamente para o inventário por óbito de seus pais.

Alega em resumo que: «… 1 O requerido BB, nasceu a ../../1957, natural da freguesia ..., ..., filho de CC e DD (cf. Doc n.º 1).

2º O aqui Requerido casou catolicamente com EE, em 29.07.1989 (cf. Doc n.º 1 averbamento ao nascimento)

3º E reside atualmente no concelho do Marco de Canavezes na referida rua..., mas apenas aí dormindo e permanecendo aos fins de semana, estando colocado na seguinte instituição: Centro Social, ..., ... e ... Rua ... ... ... Marco de Canaveses

4º A requerente é irmã do Requerido por ser também filha de CC e DD (cf. Doc n.º 2) pelo que tem legitimidade para requerer o acompanhamento do irmão maior.

5º Desde o início da vida adulta que o requerido padece de um quadro psicótico de linha esquizofrénica e de colorido paranoide.

6º Tem tido muitas recaídas ao longo do tempo, sendo muitas crises tratadas, por várias vezes, em regime de internamento, conduzido com acompanhamento da própria GNR (doc. 3).

7º Infelizmente, muitas vezes não adere ao tratamento proposto, o que contribui para o agravamento do seu quadro clínico

8º Por isso padece de “embotamento, períodos de autismo, discinesias, e anergia”, entre outros padecimentos, conforme documento nº 4.

9º Atualmente encontra-se colocado no centro de dia em Marco de Canavezes acima referido, sendo levado e trazido para sua casa para passar a noite pela carrinha do referido Centro.

10º O Requerido. não consegue exercer de forma plena, pessoal e conscientemente os seus direitos e fazer cumprir com os seus deveres, tendo sido colocado por terceiros na referida instituição.

11º Nomeadamente quando está em crise, o que acontece frequentemente, recusa- se a assinar seja o que for no seu interesse, tendo, por exemplo, perdido bastante dinheiro de reembolsos da ADSE por se ter recusado assinar documentos para tal.

12º Recusou-se a ir a várias juntas médicas pedidas pela Câmara Municipal do Marco de Canavezes, sua entidade patronal.

13º A ilustre advogada oficiosa precisa de ser apoiada por alguém que não tenha qualquer relação de dependência com o irmão FF que, segundo o próprio requerido disse à requerente, é quem contacta e presta informações à ilustre advogada oficiosa já que o requerido não está em condições de o fazer.

14º Pelo que, em defesa dos seus interesses, deve beneficiar das medidas de acompanhamento previstas nos termos do artigo 138.º e seguintes do Código Civil.

15º O R. está autónomo para as atividades básicas da vida.

16º Tem um filho que é fisiatra na Inglaterra, GG, que é casado e vive com a esposa e duas filhas naquele país, cuja morada ignora, mas que tem o telefone número 0044...10.

17º Não podendo, por isso, no entender da requerente, ser acompanhante de seu pai, mas devendo ser consultado sobre quem deverá ser o acompanhante,

18º Que não poderá ser a mãe, esposa do requerido, dado que esta sofre também de graves perturbações psíquicas, como resulta dos documentos juntos, necessitando ela própria de ser maior acompanhada.

19º A decisão final deverá apenas ser comunicada ao filho, aos irmãos do requerido, ao seu médico Dr. GG, à Unidade de Saúde Local de Marco de Canavezes e ao Centro Social, ..., ... e ...

20º Em situação de crises, como é frequente, o requerido recusa-se a assinar seja o que for, mesmo que isso o beneficie, como antes vai dito, pelo que se requer que o presente processo seja admitido sem autorização do beneficiário….»(sic).

Juntamente com o requerimento inicial consta um documento (doc. 4), datado de 28-5-2018 onde consta que foi emitido por HH, Médico Psiquiatra , Professor da Universidade ... e consta o seguinte: « …Conheço o paciente BB há  já alguns anos, frequentou a minha consulta sempre acompanhado do seu pai, homem lúcido e de elevada sensibilidade para o severo problema psiquiátrico do filho durante muitos anos.

Adoeceu gravemente no início da vida adulta com um quadro psicótico da linha esquizofrénica e de colorido paranoide.

Teve várias recaídas ao longo do tempo, quase todas de perfil paranoide. Muitas das crises foram tratadas em regime de internamento.

No entanto, não obstante a severidade psicopatológica a enfermidade sempre se revelou sensível ao tratamento farmacológico.

Nem sempre infelizmente o paciente adere ao esquema que lhe é proposto, o que, naturalmente faz escurecer o prognostico.

Apurou-se de resto uma evolução defectual  nos últimos anos explicitada psicologicamente rem sinais catatónicos e outros, embotamento, períodos de autismo, discinesias anérgicas, tais sintomas complicam evidentemente o desempenho do paciente na esfera familiar….

Este paciente tem necessidade absoluta de acompanhamento psiquiátrico regular e continuado…».


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Seguidamente foi proferido nos autos o seguinte despacho: «… Os presentes autos visam o acompanhamento de BB, mas previamente a tal decisão, cumpre suprir o consentimento nos termos do artigo 141.º, n.º 2 e 3 do CC uma vez que a presente ação foi intentada pela sua irmã.

Assim, cumpra o disposto no artigo 1001.º, n.º 2 do CPC, devendo o beneficiário BB ser citado, por contato pessoal, para, no prazo de dez dias (cfr. artigo 293.º, n.º 2 , ex vi artigo 986.º, ambos do CPC), deduzir oposição aos termos do processo de suprimento.

Em simultâneo, e considerando a celeridade processual que deve ser imposta a estes autos, cite pela mesma forma o beneficiário, para em 10 dias deduzir oposição aos termos do processo de acompanhamento, cfr. artigo 895º do CPC.

Na eventualidade de não se poder efetuar a citação, por o beneficiário não estar em condições de a receber ou decorrido o prazo para o efeito, não contestar, cite o Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 21.º, n.º 2, 895.º, n.º 2 e 896.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, para responder, em 10 (dez) dias.

Entretanto: Averigue e informe se corre ou já correu termos neste Tribunal algum processo de interdição/inabilitação ou regime de maior acompanhado no qual figure como interdito/inabilitado o aqui beneficiário.

Em caso afirmativo, abra conclusão com essa informação.

Para efeitos de publicidade do início deste processo, determino a afixação de editais no tribunal, com a menção do nome do beneficiário e do objeto da ação, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 893.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Solicite aos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) através do email geral@spms.min-saude.pt dirigido ao cuidado do Presidente do Conselho de Administração da SPMS, E.P.E., que informem sobre a existência de testamento vital.

Requisite e junte certificado de registo criminal da pessoa indicada para exercer o cargo de acompanhante.

Oportunamente será apreciada a necessidade de realização de exame pericial.

Oportunamente será designada data para a audição pessoal e direta do beneficiário…»

Foi junto aos autos a certidão da citação pessoal do requerido.

Após a mesma foi junto aos autos um requerimento datado de 22-9-2023 onde consta a assinatura «BB» e onde consta manuscrito o seguinte: «BB venho pelo presente juntar comprovativo de requerimento de protecção jurídica, nomeação de patrono, uma vez que pretendo contestar a acção, devo dizer o que a minha irmã AA requer sobre a minha pessoa carece de fundamento e é á revelai da min há vontade, da vontade da minha esposa e da vontade do meu filho.». E junto o pedido de apoio judiciário e nomeação de patrono para contestar a presente acção.

Ulteriormente á junção desse requerimento manuscrito a requerente juntou  seguinte requerimento: « AA, A. nos autos à margem, vem dizer e requerer o seguinte: Consultando os presentes autos, deparou-se a A. com um requerimento em nome de BB datado de 22.09.203 em que, aparentemente, “este” declara pretender contestar a presente ação. Ora o requerimento não foi elaborado nem assinado por ele, BB, mas por outrem em seu nome, não sendo dele nem a letra nem a assinatura deste requerimento.

Para comprovar o que ora se alega juntam-se 5 documentos com a assinatura de BB e um outro elaborado pelo seu punho de onde se depreende, claramente, que a letra e a assinatura não pertencem à pessoa a quem são atribuídos.

Assim, requer-se a V.ª Ex.ª que seja efetuado exame à letra e assinatura do documento em causa para se apurar se pertencem ou não a BB…».

Seguidamente nos autos, consta a seguinte promoção:

«.. Promovo se averigue quem entregou o requerimento do beneficiário em Tribunal.


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Consigno que a assinatura do requerimento é idêntica à da citação.

***

Promovo se proceda à audição do beneficiário, altura em que se ponderará da (des)necessidade do requerido pela A…» (sic).

Ulteriormente foi proferido  o seguinte despacho: «.. Promoção que antecede

Deferido.

Para audição do requerido com vista a apurar a autoria do requerimento apresentado nos autos,

designo o dia 21.11.2023, pelas 13h30m.

Notifique por via expedita…»

Foi junto o seguinte requerimento: «… mandatário da Requerente, vem informar que, neste momento, encontra-se no Brasil para o lançamento do seu livro, pelo que não poderá estar presente na audição do arguido designada para amanhã, dia 21 de novembro, pelas 13h30.

Estará disponível para nova marcação a partir de segunda feira, dia 27 de novembro de 2023.».

Seguidamente consta nos autos o seguinte auto: « AUTO DE AUDIÇÃO

ARTº 898º CPC

Data: 21.11.2023 – Hora: 13h30

Juiz de Direito: Dra. II.

Procurador da República: Dr. JJ.

Escrivã Auxiliar: KK.


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PRESENTES:

Beneficiário: BB.

Esposa do Beneficiário: EE.

Irmão do Beneficiário: FF.


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Quando eram 14:10 horas (dado que o Senhor Procurador se encontrava impedido em diligência no âmbito do processo crime n.º 4883/20.0JAPRT) pela Mmª Juiz de Direito foi declarada aberta a presente diligência.

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Após a Mmª Juiz de Direito proferiu o seguinte: DESPACHO

Uma vez que o Ilustre Mandatário representa a Requerente e a presente diligência visa apurar da vontade do Requerido e a autoria do requerimento apresentado no dia 22-09-2023, entendemos não ser necessária, para assegurar quaisquer direitos do Beneficiário, a presença do Ilustre mandatário, pelo que se indefere o requerido.


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Após a Mmª Juiz de Direito iniciou a audição do Beneficiário.

Tendo o conteúdo integral da mesma ficado gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o seu início ocorreu às 14:22:00 horas e seu término pelas 14:35:12 horas.

Foi confrontado com o teor de fls. 15 – certidão de citação e fls. 16 – requerimento apresentado no dia 22-09-2023.


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Pelo Senhor Procurador da República foram colocadas algumas questões ao Beneficiário.

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Em súmula, o Beneficiário:

- Confirmou todos os atos por si praticados:

- Referiu que não dá o seu consentimento para a presente ação de acompanhamento de maior, uma vez que não tem necessidade da mesma;

- Acrescentou também que as suas necessidades estão a ser acauteladas pelo seu irmão aqui presente FF e seu filho GG.


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Após o Senhor Procurador da República promoveu que a Requerente seja notificada para alegar o que tiver por conveniente.

Após a Mmª Juiz de Direito proferiu o seguinte:

DESPACHO

Tudo como se promove, dando-se desde já autorização para que a gravação fique disponível ao Ilustre Mandatário.

Após pronúncia da Requerente, abra vista ao Ministério Público…».

Seguidamente foi proferida a seguinte promoção:«… Conforme facilmente se alcançou no auto de audição, o beneficiário, apesar de limitado na sua acção quotidiana por motivos de saúde, conta  com o auxílio de um irmão não tendo tido necessidade, até ao momento, de beneficiar do estatuto de maior acompanhado.

O regime de maior acompanhado é subsidiário e só deve ser chamado à colação, caso o beneficiário não consiga suprir as suas necessidades com base nos deveres gerais de assistência.

Acresce que o beneficiário, além de não ter necessidade do regime de maior acompanhado, também não dá o seu consentimento a que seja requerido tal regime e opõe-se mesmo a tal regime.

O beneficiário percebeu perfeitamente o alcance da acção, contestou-a e defendeu-se na audição com argumentos orientados e lógicos.

Nesta conformidade, promovo se indefira o requerido e se arquivem os autos…»

Após a referida promoção foi junto aos autos oficio da Ordem dos Advogados datado de 5 de Janeiro de 2024 no qual na sequência do deferimento do pedido de apoio judiciário,  veio nomear para o patrocínio do requerido a Senhor(a) Advogado(a): Dr(a) LL

Seguidamente foi proferida a seguinte sentença: «…

SENTENÇA

I - Relatório:

AA veio instaurar ação com processo especial de acompanhamento de BB, casado, residente na rua ... – Marco de Canaveses, titular do cartão de cidadão nº...22.

Alegou, para tanto e em síntese, que o requerido é portador padece de um quadro psicótico de linha esquizofrénica e de colorido paranoide que o impedem de gerir a sua pessoa e os seus bens sem apoio de terceiros.

Pediu que fossem fixadas as seguintes medidas de acompanhamento:

a) Representação para a prática de atos e alienação e oneração de bens, móveis e imóveis, constituição de mandatário, e proibição de movimentação de saldos bancários, de assunção de quaisquer dívidas suas ou de terceiros e/ ou outras que este tribunal entender por bem decretar em defesa dos interesses do requerido.

Indicou como acompanhante a pessoa que vier a ser indicada pelo filho do requerido.

Juntou, entre o mais, certidão do assento de nascimento do requerido.

Foram afixados os editais - artigo 892.º do Código de Processo Civil

Citado o requerido, não foi apresentada contestação, apesar de o mesmo ter declarado que que a ação foi intentada à sua revelia e demais familiares diretos.

Foi nomeado defensor.

O requerido foi ouvido presencialmente.

O Tribunal é o competente e não há nulidades, exceções ou questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.

II. Dos factos

A-Factos provados:

1. O requerido nasceu a ../../1957, natural da freguesia ..., ..., filho de CC e DD.

2. O Requerido casou catolicamente com EE, em 29.07.1989.

3. Em 2018, foi registado pelo médico psiquiatra que o requerido adoeceu gravemente no inicio da vida adulta com um quadro psicótico da linha esquizofrénica e de colorido paranoide e nem sempre adere ao esquema psicofarmacológico proposto.

4. O requerido diz o nome, sabe quem é a sua esposa e irmãos.

5. Sabe contar e faz somas aritméticas.

6. Sabe localizar-se no espaço e no tempo.

7. Apresenta discurso coerente e assertivo.

B-Factos não provados:

a. No momento atual o requerido não adere ao tratamento proposto

b. Não consegue exercer de forma plena, pessoal e conscientemente os seus direitos e fazer cumprir com os seus deveres, tendo sido colocado por terceiros numa instituição.

C-Convicção:

O Tribunal, para dar como provados e não provados os factos acima elencados, formou a sua convicção através da análise dos documentos juntos aos autos ed na audição do requerido.

Com efeito, apesar do relatório médico de 2018, não foi detetada qualquer limitação cognitiva no requerido que de alguma forma nos fizesse concluir pela limitação das suas faculdades, designadamente no campo da tomada de decisões de forma livre, voluntária e esclarecida.

Constatamos que o requerido não apresenta afetação relevante da sua capacidade de avaliação, raciocínio, elaboração de estratégias e planeamento, capacidade de escolha, tomada de decisões e manifestação da vontade, tendo de resto manifestado total oposição ao pedido formulado nestes autos.

III - O Direito:

Questões a decidir:

1ª-Apurar se o requerido reúne condições para estar abrangido pelo regime jurídico do “Maior Acompanhado”.

2ª-No caso de resposta afirmativa à 1ª questão, determinar quais as limitações a fixar ao exercício dos seus direitos pessoais e patrimoniais.

Respondendo à 1ª questão:

A Lei nº 14/2018 de 14/08, introduziu alterações significativas no regime das

incapacidades, tendo revogado os institutos da interdição e da inabilitação e criado, em alternativa, o regime jurídico do maior acompanhado.

Com efeito, nos termos do artigo 138º do Código Civil, na redação da referida Lei nº 49/2018 de 14/8, o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente os seus direitos, ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas no Código Civil.

Atualmente, já não se trata de saber se uma determinada pessoa tem capacidade mental para exercer a sua capacidade jurídica, mas de saber quais são os tipos de apoio necessários para aquela pessoa exercer a sua capacidade jurídica, pretendendo-se proteger a pessoa, mas sem a incapacitar [veja-se, neste sentido, Pinto Monteiro, em “O Código Civil Português entre o elogio do passado e um olhar sobre o futuro”, bem como Mafalda Miranda Barbosa, em Maiores Acompanhados”, página 40].

Para além disso, as medidas de acompanhamento regem-se por uma ideia de

subsidiariedade, isto é, só têm lugar quando as finalidades que, com elas se prosseguem, não sejam garantidas através dos deveres gerais de cooperação e de assistência [veja-se, ainda, Mafalda Miranda Barbosa, ob. cit., página 49].

Esta alteração legislativa surgiu, conforme Pinto Monteiro, em estudo publicado no ebook do CEJ, sobre “O Novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado”, acessível na página do CEJ www.cej.mj.pt, página 16, na sequência de legislação internacional que vinha sendo adotada sobre a matéria da deficiência da pessoa humana refere “… há razões de fundo, razões que estiveram presentes na tomada de posição de várias instâncias internacionais, no sentido de valorizar os direitos das pessoas deficientes, da sua dignidade e autonomia. Para lá dos avanços da ciência médica, também de um ponto de vista social foram vários os apelos – entre nós e por esse mundo fora – a uma nova compreensão dos problemas das pessoas com deficiências físicas ou mentais, ou com quaisquer outras limitações que afetem a sua capacidade jurídica. Essa tomada de consciência deu corpo a um movimento internacional de peso. A este respeito, impõe-se mencionar a Convenção de Nova Iorque sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adotada pelas Nações Unidas em 30 de março de 2007 (aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 56/2009, de 7 de maio, e ratificada

pelo Decreto do Presidente da República n.º 71/2009, de 30 de julho), bem como o respetivo Protocolo Adicional, adotado pelas Nações Unidas na mesma data de 30 de março de 2007 (aprovado pela Resolução da AR n.º 57/2009, tendo sido ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 72/2009, de 30 de julho).

Neste contexto, já antes se destacara a Recomendação (99) 4, do Conselho da Europa, adotada em 23 de fevereiro de 1999, com a proclamação de alguns princípios aplicáveis à proteção de adultos incapazes, entre os quais os da flexibilidade, da proporcionalidade, da subsidiariedade e da necessidade, princípios esses que mais tarde a Convenção de Nova Iorque veio também acolher e sublinhar”.

A aludida convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, teve por objeto, conforme o seu artigo 1º, promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover a sua dignidade inerente; tendo definido pessoas com deficiência, todas aquelas que têm incapacidades duradouras físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais, que em interação com

várias barreiras podem impedir a sua plena e efetiva participação na sociedade em condições de igualdade com os outros.

Neste conspecto, a Lei nº 49/2018 de 14/08, consagrando a subsidiariedade e a necessidade na aplicação das medidas de acompanhamento, definiu [artigo 138º do Código Civil], requisitos de duas naturezas para a adoção de medidas de acompanhamento: um requisito de natureza ou ordem subjetiva, concretizada na impossibilidade plena, pessoal e consciente de cumprimento, por parte do sujeito, do exercício dos seus direitos e do cumprimento dos seus deveres; um requisito de natureza ou ordem objetiva, concretizada na impossibilidade, por parte do sujeito, de exercício dos direitos ou de cumprimento dos deveres, fundada em razões de saúde, deficiência ou no comportamento do próprio sujeito.

Verificados ambos estes requisitos e não sendo garantidas, através dos deveres gerais de cooperação e de assistência, deverão, assim, ser aplicadas, ao sujeito, ora beneficiário, as medidas de acompanhamento, que se afigurem necessárias no caso concreto.

Vertendo ao caso dos autos e analisando a factualidade apurada, verifica-se que o requerido não reúne os requisitos legais para beneficiar do regime de maior acompanhado. Na verdade, não foram detetadas limitações cognitivas suscetíveis de condicionarem a sua capacidade de autodeterminação/livre arbítrio impeditivas da sua participação na sociedade em condições de igualdade com os outros.

Conclui-se, portanto, dos factos provados que o requerido está apto a exercer os seus direitos e a cumprir os seus deveres.

IV-Decisão:

Em face do exposto, julgo improcedente, por não provada a ação e em consequência decide-se que BB não preenche os pressupostos para ser abrangido pelo regime jurídico de maior acompanhado aprovado pela Lei nº 49/2018, de 14 de agosto.

Sem custas [artigo 4º nº 1, alínea l) do RCP, na redação da Lei nº 49/2018 de 14/08].

Valor da causa: 30.000,01€.

Registe. Notifique…»


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Inconformado com a predita decisão, veio a requerente autora interpor o presente recurso, o qual foi admitido como de apelação, a subir nos autos, de imediato e efeito devolutivo.

A requerente com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes conclusões:«… CONCLUSÕES

A – Vem o presente recurso interposto da douta sentença que declarou improcedente o pedido da Recorrente de que o tribunal recorrido considerasse que o irmão da recorrente, BB, deveria ser sujeito ao regime de maior acompanhado.

B – Salvo o devido respeito por melhor opinião, entende a Recorrente que a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo, errou na formulação da sua convicção pela omissão de atos legalmente obrigatórios na tramitação processual dos presentes autos.

C – O Recorrido, desde jovem, é portador de um quadro psicótico de linha esquizofrénica e de colorido paranoide que o impedem de gerir a sua pessoa e os seus bens sem apoio de terceiros; tem muitas recaídas ao longo do tempo, sedo muitas crises tratadas, por várias vezes, em regime  de internamento, conduzido com acompanhamento da própria GNR; muitas vezes não adere ao tratamento proposto, o que contribui para o agravamento do seu quadro clínico.

D – Face ao seu quadro clínico e tendo em conta o decurso em tribunal de um inventário em que o requerido, pela sua situação clínica, poderia ser gravemente prejudicado, sentiu a recorrente a necessidade de intentar a presente ação para acautelar os seus interesses do recorrido, seu irmão.

E – No decorrer da tramitação processual deste processo o tribunal a quo não ordenou diligências essenciais para a boa decisão da causa como seja o exame pericial médico-legal psiquiátrico pela competente delegação INML.

F– Além de que, o tribunal a quo não se pronunciou sobre o exame pericial à letra e assinatura do documento enviado para o tribunal em nome do Recorrido que, manifestamente, não foi por ele escrito mas por seu irmão, tendo a recorrente a séria convicção e que nem a assinatura é do punho do requerido.

G – Na audição pessoal do beneficiário estiveram presentes a esposa e irmão FF com quem o Requerido tem uma relação de dependência psicológica e funcional e, certamente, terá instruído o Requerido para dar as respostas convenientes ao tribunal, sendo certo que têm, no inventário, interesses conflituosos e que, mostrando interesse pessoal no presente processo, além de elaborar requerimentos com a assinatura do requerido ainda fez um requerimento elaborado e assinado por ele mesmo demonstrando interesse pessoal no presente processo.

H – No entanto, para cumprimento dos princípios da igualdade e da cooperação, o tribunal dispensou a presença do mandatário da Recorrente na audição pessoal do beneficiário a fim de se pronunciar sobre o discurso do Recorrido perante o Juiz, violando assim os artigos 3º e 7º do Código de Processo Civil.

I – Assim, no decorrer da tramitação processual, o Tribunal a quo omitiu atos legalmente obrigatórios que são necessários e indispensáveis para a boa decisão da causa e da justa composição do litígio.

J – Assim, estamos perante a omissão de um ato em violação da sequente processual que afetam todo o processo e que constitui nulidade processual, nos termos do artigo 195º nº1 do Código Processo Civil, e, em consequência, devem ser declarados nulos todos os atos subsequentes ao ato nulo que afetam diretamente a decisão da causa.

K – O ato é nulo e, em consequência, todos os atos subsequentes ao ato nulo que afetam diretamente a decisão da causa devem ser anulados.

L – A omissão de tais atos violação o Estado direito democrático e a administração da justiça, nos termos dos artigos 2º e 202º nº2 ambos da Constituição da República Portuguesa.

M – Para além de que, estamos perante uma nulidade de sentença, nos termos do artigo 615º nº1 al. d) do Código Processo Civil.

N – A saúde mental do Recorrido não é um facto notório na qual o tribunal tem conhecimento por virtude das suas funções para que possam servir para a formulação da convicção sobre os demais factos.

O – A douta sentença recorrida violou as supracitadas disposições legais pelo que deverá ser revogada e substituída por outra na qual se declare que o tribunal recorrido deverá ordenar o competente exame médico-legal ao requerido e que a audição deste tenha lugar na presença dos advogados de requerente e requerido, ou, se assim o entender, apenas com o requerido sem a presença de terceiros, nomeadamente da esposa e do irmão do requerido, ordenando ainda a realização de exames periciais à letra e assinatura do Recorrido a fim de se apurar se os documentos manuscritos e onde consta a sua assinatura foram por ele elaborados e a assinatura por ele feita.» (sic).

Foram juntas contra-alegações pela defensora do requerido pugnando em resumo pela manutenção da decisão recorrida.

Nada obstando ao conhecimento do objecto dos recursos, cumpre decidir.


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II- DO MÉRITO DO RECURSO

1. Definição do objecto do recurso

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].

Porque assim, atendendo á estrutura das conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, resulta que em resumo o recorrente indica os seguintes pontos a analisar quanto ao primeiro recurso (sobre a sentença):


A - Nulidade decorrente da omissão da realização de exame pericial ao requerido.
B - Nulidade do interrogatório por estar presentes parentes e ausente o mandatário
C - Nulidade da sentença nos termos do artigo 6145 d) do CPC por omissão da prova pericial.

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III - FUNDAMENTOS DE FACTO

Deverá ser tida em conta a factualidade acima referida quanto á tramitação dos autos.

Ainda neste contexto, a sentença recorrida consignou a seguinte matéria de facto: «…

II. Dos factos

A - Factos provados:

1. O requerido nasceu a ../../1957, natural da freguesia ..., ..., filho de CC e DD.

2. O Requerido casou catolicamente com EE, em 29.07.1989.

3. Em 2018, foi registado pelo médico psiquiatra que o requerido adoeceu gravemente no início da vida adulta com um quadro psicótico da linha esquizofrénica e de colorido paranoide e nem sempre adere ao esquema psicofarmacológico proposto.

4. O requerido diz o nome, sabe quem é a sua esposa e irmãos.

5. Sabe contar e faz somas aritméticas.

6. Sabe localizar-se no espaço e no tempo.

7. Apresenta discurso coerente e assertivo.

B-Factos não provados:

a. No momento atual o requerido não adere ao tratamento proposto

b. Não consegue exercer de forma plena, pessoal e conscientemente os seus direitos e fazer cumprir com os seus deveres, tendo sido colocado por terceiros numa instituição..»


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IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO

Veio o requerente alegar em resumo não se conformar com a sentença e que o tribunal cometeu nulidades no processo.

Nesse segmento refere que no decorrer da tramitação processual do processo especial de maior acompanhado, o Recorrido não foi submetido a exame pericial (artigo 896.º do CPC, na anterior redação), pela competente delegação do INML para apurar se o Recorrido necessita de medidas de acompanhamento face à sua doença crónica. Refere que o Tribunal a quo considerou que, no caso em apreço, poderia substitui-se aos profissionais médico-legais de psiquiatria para fazer a avaliação do estado de saúde mental do Recorrido, pelo que deu como provado que o requerido diz o nome, sabe quem é a sua esposa e irmãos, sabe contar e faz somas aritméticas, sabe localizar-se no espaço e no tempo e apresenta discurso coerente e assertivo, sem existir um relatório médico-legal psiquiátrico.

Mais alega que existe prova documental e foi alegado que o Recorrido, desde jovem, padece de um quadro psicótico da linha esquizofrénica e de colorido paranoide e nem sempre adere ao esquema psicofarmacológico proposto.

Conclui que tendo em conta este quadro clínico, seria obrigatório fazer exames psíquicos dirigidos por profissionais de foro médico para avaliar se necessita de acompanhamento em virtude da sua doença.

Por outro lado, refere que a audição pessoal do beneficiário foi feita na presença do irmão FF com quem o requerido tem uma relação de dependência psicológica e funcional e, certamente, terá instruído o Requerido para dar as respostas convenientes ao tribunal, sendo certo que têm, no inventário, interesses conflituosos.

Conclui, que o tribunal a quo não consegue prova sem relatório pericial do médico-legal psiquiátrica se o Recorrido necessita ou não medidas de acompanhamento, não tendo poderes para avaliar a saúde mental e psíquica do Recorrido uma vez que, possivelmente, foi instruído pelo seu irmão que esteve ao seu lado durante a audição pessoal do beneficiário e cuja simples presença o poderia influenciar.

Mais refere que, uma vez que estavam presentes na audição pessoal do beneficiário a esposa e o irmão para auxiliá-lo na sua inquirição, ao abrigo do princípio da igualdade de armas, o mandatário da Recorrente também deveria estar presente.

Conclui, que o Tribunal a quo tramitou o processo especial de maior acompanhado omitindo atos necessários e essenciais para a boa decisão da causa e justa composição do litígio (o exame médico) e levando a cabo atos de modo não permitido por lei (a audição do requerido na presença da sua esposa e irmão).

Entende que face á situação clínica descrita, para verificar se o Recorrido necessita ou não de medidas de acompanhamento, este deve ser submetido a exame pericial ao estado de saúde mental do Recorrido. Sem prova pericial o Tribunal a quo não está em condições de julgar a presente ação por falta de meios de prova para formular a sua convicção se o Recorrido é capaz ou não.

A conduta do Tribunal a quo violou o princípio geral do Estado de direito democrático e da administração da justiça, nos termos dos artigos 2º e 202º nº 2 ambos da Constituição da República portuguesa.

Também violou deveres gerais de conduta do juiz, de acordo com o princípio de dever de gestão processual, nos termos do artigo 6º do Código Processo Civil, porque omitiu o relatório.

Conclui que se verifica a omissão de atos processuais que são indispensáveis para a boa decisão da causa e justa composição do litígio, que afeta todo o processo e que constitui nulidade processual, nos termos do artigo 195º nº1 do Código Processo Civil.

Refere que a omissão do exame pericial médico-legal psiquiátrica, pela competente delegação INML, constitui uma nulidade que influi o exame e decisão da causa.

Invoca ainda que  o facto de o Tribunal a quo não se pronunciar sobre o exame pericial à letra e assinatura do documento enviado para o tribunal em nome do Recorrido que, manifestamente, não foi por ele escrito mas por seu irmão, tendo a recorrente a séria convicção e que nem a assinatura é do punho do requerido.

Mais: a audição pessoal do beneficiário foi feita na presença da esposa e irmão, pelo que o mandatário da Recorrente devia estar presente e assim considera estar perante estamos perante uma nulidade processual, nos termos do artigo 195º nº1 do Código Processo Civil.

Alega ainda a nulidade da sentença nos termos do artigo 615 nº1 d) porque a omissão da realização dos exames periciais obrigatórios e legais na tramitação de processo especial de Maior acompanhado, o Tribunal a quo não está em condições de pronunciar sobre o objeto do processo e pronunciar-se sobre as questões de medidas de acompanhamento sem o relatório do exame pericial do médico-legal psiquiátrica de forma a tomar uma decisão para a causa.


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Desde logo cumpre julgar improcedente a invocada nulidade do interrogatório devido á falta do Mandatário porque a presença da parte e respectivo mandatário não consubstancia acto que a lei prescreva ou determine e, porque as observações que aquele pudesse fazer ao perito não teriam a virtualidade influir no teor da decisão da causa (art. 195º) e nessa medida não existe nenhuma nulidade.

Acresce que igualmente não padece de nulidade a presença dos familiares no interrogatório, visto não estar prevista essa cominação.

Neste sentido, vide o  Ac da RG Processo: 228/17.4T8PTL.G2 Relator: MARGARIDA ALMEIDA FERNANDES, de 26-11-2020: Sumário:  I- A falta do requerente e/ou respectivo mandatário no exame de perícia médico-legal levada a cabo no âmbito de processo de maior acompanhado não produz a nulidade de tal acto uma vez que a lei não o prescreve ou determina (apenas o possibilita) e as observações que aquele pudesse fazer ao perito não teriam a virtualidade influir no teor da decisão da acção.

Improcede, assim este segmento do recurso quanto á invocada nulidade do interrogatório.

A a Lei nº 49/2018, de 14/02, criou o regime jurídico do Maior Acompanhado, eliminando os pré-existentes institutos da interdição e da inabilitação (art. 1º).

Foi consagrada a subsidiariedade e a necessidade na aplicação das medidas de acompanhamento, sendo necessário vários requisitos para a adopção de medidas de acompanhamento:

- um requisito de ordem subjectiva, concretizada na impossibilidade plena, pessoal e consciente de cumprimento, por parte do sujeito, do exercício dos seus direitos e do cumprimento dos seus deveres;

- um requisito de natureza objectiva, concretizada na impossibilidade, por parte do sujeito, de exercício dos direitos ou de cumprimento dos deveres, fundada em razões de saúde, deficiência ou no comportamento do próprio sujeito.

Existindo esses requisitos e não sendo garantidas, através dos deveres gerais de cooperação e de assistência, deverão, assim, ser aplicadas, ao sujeito, ora beneficiário, as medidas de acompanhamento, que se afigurem necessárias no caso concreto.

Ao processo de acompanhamento de maior aplica-se com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz (art.891º CPC).

No âmbito dos processos de jurisdição voluntária só são admitidas as provas que o juiz considere necessárias (art. 986º/2, parte final CPC)

Quanto aos poderes instrutórios do juiz, em sede de processo de acompanhamento de maior, prevê o art. 897º/1 CPC que “findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos”.

Segundo o artigo 897.º do CPcivil

1 - Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos.

2 - Em qualquer caso, o juiz deve proceder, sempre, à audição pessoal e direta do beneficiário, deslocando-se, se necessário, ao local onde o mesmo se encontre.

Artigo 898.º

Audição pessoal

1 - A audição pessoal e direta do beneficiário visa averiguar a sua situação e ajuizar das medidas de acompanhamento mais adequadas.

2 - As questões são colocadas pelo juiz, com a assistência do requerente, dos representantes do beneficiário e do perito ou peritos, quando nomeados, podendo qualquer dos presentes sugerir a formulação de perguntas.

3 - O juiz pode determinar que parte da audição decorra apenas na presença do beneficiário.

Artigo 899.º

Relatório pericial

1 - Quando determinado pelo juiz, o perito ou os peritos elaboram um relatório que precise, sempre que possível, a afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis.

2 - Permanecendo dúvidas, o juiz pode autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento nunca superior a um mês e sob responsabilidade do diretor respetivo, ou ordenar quaisquer outras diligências.»

Findaram os articulados da presente acção (não tendo havido qualquer oposição) sendo que nos ternos do artigo 897 nº1 do CVPcivil cumpre realizar as diligenceiam tidas adequadas, nomeadamente prova pericial.

Nos termos do disposto no art. 897º, nº 1 do CPC, “findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por eles requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos.”

Uma das diligências instrutórias que frequentemente tem lugar no âmbito dos processos de acompanhamento de maior é o exame médico, destinado a aferir se o beneficiário padece de alguma doença que afete as suas faculdades físicas ou intelectuais, e que possam, de alguma forma, justificar a adoção de alguma medida de acompanhamento.

A perícia destina-se a apurar: se o mesmo padece de doença ou condição que afete as suas faculdades físicas ou psíquicas e, em caso afirmativo, em que medida (em qualidade e intensidade) aquela doença ou condição afeta estas faculdades; a data provável do início da mencionada doença ou condição; meios de apoio e de tratamento aconselháveis.

A realização de relatório pericial por determinação do juiz encontra-se sujeita à regra do art. 899ºCPC, no qual se prevê:

“1. Quando determinado pelo juiz, o perito ou os peritos elaboram um relatório que precise, sempre que possível, a afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis.

2. Permanecendo dúvidas, o juiz pode autorizar o exame numa clínica da especialidade, com internamento nunca superior a um mês e sob responsabilidade do diretor respetivo, ou ordenar quaisquer outras diligências”.

No caso dos autos é manifesta a necessidade de se realizar prova pericial porque estamos perante matérias de índole científica e médica que exigem conhecimentos técnicos específicos.

Compulsados os autos verifica-se que existe um documento subscrito por um médico psiquiatra que acompanhou o requerido por vários anos no qual descreve a existência de uma patologia psiquiátrica e a necessidade de acompanhamento médico.

De acordo com este preceito, a perícia destina-se a apurar:

-A afeção de que sofre o beneficiário, isto é, se o mesmo padece de doença ou condição que afete as suas faculdades físicas ou psíquicas e, em caso afirmativo, em que medida (em qualidade e intensidade) aquela doença ou condição afeta estas faculdades;

-A data provável do início da mencionada doença ou condição;

-Os meios de apoio e de tratamento aconselháveis.

Portanto a realização de exame pericial visa aferir se o requerido tem capacidade para livre e conscientemente dar autorização para a propositura de uma ação de acompanhamento de maior, ou se, não o sendo, carece de medidas de acompanhamento que justifiquem a presente ação.

Verifica-se no entanto que o tribunal recorrido apenas realizou o interrogatório e dispensou a realização do exame pericial, sendo que face ao documento referido, é manifesto que o tribunal deveria ter realizado exame pericial, dado não ter conhecimentos científicos para avaliar o estado sobre o estado psicológico do requerido.

Neste sentido, vide o Ac da RL processo: 5287/18.0T8FNC.L1-2 Relator: LAURINDA GEMAS 11-12-2019: «..II - No processo especial de interdição, o legislador considerava o exame pericial indispensável e o interrogatório do Requerido “dispensável”; no atual processo acompanhamento de maior, passa-se exatamente o contrário, sendo imprescindível a audição pessoal e direta do Beneficiário, devendo o exame pericial ser determinado pelo juiz quando o considere conveniente.

III - Perante o teor quase lacónico do atestado médico junto aos autos com a petição inicial (iniciados como processo especial de interdição) e perante o completo silêncio do Requerido/Beneficiário no interrogatório, sem notícia de que este seja incapaz de comunicar, o Tribunal recorrido devia ter ordenado a realização de exame pericial para prova dos factos que lhe permitissem decidir se a medida de acompanhamento devia determinar a restrição dos direitos pessoais do Beneficiário.».

E o Ac da RL processo: 2990/18.8T8FNC.L1-2 Relator: VAZ GOMES, 11-12-2019 Sumário: I-Tendo sido dispensada a perícia médica na pessoa do acompanhado desconhece-se em absoluto a dimensão do défice cognitivo do acompanhado, na certeza de que o mesmo escreve embora com dificuldade, faz cálculos aritméticos, embora elementares, apesar de carecer do apoio de terceiros para a sua supervisão e cuidados permanentes da sua vida.

II- A sentença que decreta a medida de acompanhamento a favor do maior carecido não pode decretar uma interdição genérica e muito menos não fundamentada do exercício dos direitos pessoais.

III- A harmonização constitucional e o recurso aos elementos sistemático, histórico, teleológico da interpretação impõem que o n.º 3, do art.º 5 da Lei da Saúde Mental, seja interpretado no sentido de que a intervenção do representante legal designado pelo Tribunal na medida do acompanhamento do maior apenas está justificada se a sentença de acompanhamento não facultar, fundamentadamente, o exercício pelo acompanhado de direitos pessoais, discriminando-os e justificando, em relação a cada um deles, a razão de ser, designadamente por impossibilidade física do acompanhado exercer o direito pessoalíssimo de consentir a prática no seu corpo de actos médicos (por exemplo por se encontrar em coma).

IV-Tendo sido dispensada a perícia médica na pessoa do acompanhado desconhece-se em absoluto a dimensão do défice cognitivo do acompanhado, na certeza de que o mesmo escreve embora com dificuldade, faz cálculos aritméticos, embora elementares, apesar de carecer do cuidado de terceiros para a sua supervisão e cuidados permanentes da sua vida, pelo que não havendo decisão fundamentada sobre a limitação do exercício de direitos pessoais, não está o representante legal legitimado a exercer o direito de consentir em substituição do acompanhado, nos termos do n.º 3 do art.º 5 da Lei da Saúde Mental.»

Nesta conformidade, o presente recurso é procedente, revogando-se o a sentença, sem a realização de prova pericial, devendo o tribunal proferir despacho que admita e determine a realização de exame pericial, nos termos que o Tribunal a quo considere adequados e assim ter-se-á de anular o processado subsequente à decisão recorrida, incluindo a sentença final. Devendo igualmente realizar os meios de prova que o Tribunal a quo a venha a considerar necessária à boa decisão da causa, e ser proferida nova decisão, que contemple quer a de facto (exarando-se os factos provados e os não provados) quer a de direito.

Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso deduzido, revogando-se a sentença final proferida posteriormente á designação da inquirição do requerido, e ordenando-se que o tribunal “a quo” proceda às diligências probatórias suplementares acima devidamente elencadas (designação de prova pericial, e demais diligências tidas por adequadas).

Face á presente decisão fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.


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III - DISPOSITIVO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação integralmente procedente, revogando-se integralmente a sentença recorrida, devendo ser proferido despacho que determine a realização de exame pericial e fixe o seu objecto, nos termos que o Tribunal a quo considere adequados.

Sem custas.

Registe e notifique.

Porto, 07/03/2024.
Ana Vieira
Isabel Silva
Carlos Portela
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.