Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5568/20.2T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
ENTREGAS AO FIDUCIÁRIO
Nº do Documento: RP202104125568/20.2T8VNG.P1
Data do Acordão: 04/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFIRMADA
Decisão: APELAÇÃO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A parte do rendimento do insolvente que fica excluída da obrigação de entrega ao fiduciário deve ser determinada através de uma justa e equilibrada ponderação, por um lado, do interesse do devedor, salvaguardando, com este fim, o valor que seja razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do mesmo e do seu agregado familiar e, por outro, dos interesses dos credores, garantindo, com este fim, a estes últimos a recuperação, ainda que parcial, dos seus créditos.
II - Como assim, a fixação desse valor não pode deixar de importar para o insolvente uma alteração da sua situação económica anterior à declaração de insolvência, com a consequente moderação das suas despesas correntes e inevitável sacrifício, sob pena de acabar por se transformar numa injustificada extinção das suas dívidas que o conduziram à situação de insolvência e em detrimento dos seus credores.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 5568/20.2.T8VNG.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Comércio de VN Gaia – J4.
Juiz Relator: Jorge Seabra
1º Juiz Adjunto: Desembargador Pedro Damião da Cunha
2º Juiz Adjunto: Desembargadora Maria de Fátima Andrade
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Sumário (da responsabilidade do Relator):
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I. RELATÓRIO:
1. Por sentença proferida e já transitada em julgado foi declarado insolvente B…, melhor identificado nos autos.
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2. Por despacho proferido a 9.12.2020 e atinente ao pedido de exoneração do passivo restante oportunamente formulado pelo insolvente foi decidido o seguinte:
Assim sendo, tudo ponderado e considerando que o agregado familiar do Insolvente é composto pelo próprio e um filho menor, fixo em um salário mínimo nacional e um quarto, o montante necessário ao seu sustento digno.
Consequentemente, durante os cinco anos seguintes à presente data, já que o período de cessão se inicia imediatamente, o rendimento disponível do devedor, considera-se cedido ao fiduciário supra nomeado.
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3. Inconformado com tal decisão, veio o insolvente interpor recurso de apelação, no qual ofereceu alegações e aduziu, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
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4. O Digno Magistrado do Ministério Público ofereceu contra-alegações em que defende a manutenção do julgado.
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5. Foram observados os vistos legais.
Cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
Considerando que são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto e o âmbito da actividade jurisdicional do Tribunal hierarquicamente superior, a questão que importa dirimir e decidir consiste em saber se é de manter o valor do rendimento indisponível fixado no despacho recorrido em 1 SMN e ¼ ou, ao invés, se esse valor dever ser alterado para o equivalente a dois salários mínimos nacionais.
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III. FUNDAMENTAÇÃO de FACTO:
No despacho recorrido julgaram-se provados os seguintes factos:
1) O Requerente apresentou-se à insolvência em 8.09.2020 e, por sentença proferida em 14.09.2020, assim veio a ser declarado;
2) O Insolvente tem um passivo reconhecido de €30.649,61.
3) O Insolvente não é titular de qualquer património;
4) O Insolvente aufere o vencimento mensal de €525,00;
5) O agregado familiar do Requerente é constituído pelo próprio e por um filho menor;
6) O Requerente nunca foi condenado pela prática dos crimes previstos e punidos pelos artigos 227º a 229º do Código Penal;
8) Ao Requerente não foi concedida anteriormente a exoneração do passivo restante.
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III. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
Como resulta das conclusões do recurso é uma única a questão a decidir, qual seja a fixação do montante do rendimento indisponível e/ou da sua alteração, nos termos sustentados pelo recorrente/insolvente.
Como é consabido, o actual CIRE instituiu medidas excepcionais de protecção do devedor pessoal singular, sendo uma das mais relevantes a exoneração do passivo restante.
Através deste instituto, após o património do devedor pessoa singular ter sido liquidado para pagamento aos credores, ou decorridos cinco anos após o encerramento do processo de insolvência, as obrigações que, apesar dessa liquidação ou após o decurso do dito prazo, não puderem ser satisfeitas, em lugar de subsistirem, são tidas como extintas (artigo 235º do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, adiante designado por CIRE).
De facto, sendo o devedor pessoa singular, pretendeu o legislador conceder-lhe a possibilidade de exoneração (extinção) das suas obrigações perante os credores da insolvência, que não puderam ser liquidadas no decurso do processo ou nos cinco anos subsequentes ao seu encerramento, em ordem a evitar que fique vinculado ao pagamento de tais obrigações até ao limite do prazo ordinário de prescrição, prazo este que, nosso ordenamento jurídico, pode atingir vinte anos - artigo 309º do Cód. Civil.
Assim, após a liquidação do seu património no processo de insolvência ou após o decurso de cinco anos após o encerramento do processo, o devedor tem a possibilidade de um «fresh start» e de recomeçar uma nova vida ou uma nova actividade económica, sem o peso da insolvência anterior e, sobretudo, sem o peso das obrigações que ainda permaneçam por solver.
Neste sentido, como refere ASSUNÇÃO CRISTAS “ (…) apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente. O objectivo é que o devedor pessoa singular não fique amarrado a essas obrigações. “ [1]
Esta solução teve por inspiração, como também tem sido salientado pela doutrina e jurisprudência, a legislação insolvencial dos Estados Unidos (discharge do Bakruptcy Code) e da Alemanha (Rechstschuldbrefeiung da Insolvenzordnung), permitindo ao devedor, sob certas condições e em função do seu comportamento no denominado período da cessão, “ a possibilidade de não viver o resto da vida (ou, pelo menos, até ao decurso do prazo de prescrição) sob o peso de dívidas que tornariam impossível o retomar de uma vida financeiramente equilibrada. “ [2]
A exoneração do passivo restante resulta, necessariamente, de dois despachos, sendo o primeiro, denominado despacho inicial, que determina a obrigação de cessão do rendimento disponível pelo período de cinco anos após o encerramento do processo (artigo 237º, al. b) do CIRE), e o segundo, denominado de despacho de exoneração, que determina, a final, a definitiva concessão da exoneração, decorrido o mencionado prazo de cinco anos e verificando-se o integral cumprimento de todas as obrigações constantes do despacho inicial (artigos 237º, al. b), 244º e 245º, n.º 1 do CIRE).
Com efeito, o despacho inicial de acolhimento do pedido de exoneração corresponde a uma declaração de que a exoneração poderá vir a ser concedida, passados cinco anos do fim do processo de insolvência, desde que o devedor cumpra as condições nele assinaladas e, em particular, dê cumprimento à obrigação de cedência do rendimento disponível que venha a auferir no aludido período de cinco anos subsequente ao encerramento do processo, conforme determinado no mesmo despacho inicial.
Neste sentido, a admissão do pedido não significa que a exoneração esteja concedida ou que o venha ser necessariamente. Significa tão só que (i.) se não for aprovado e homologado nenhum plano de insolvência e (ii.) se durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência o devedor der cumprimento às várias imposições previstas na lei, será exonerado das suas obrigações insatisfeitas. A decisão final sobre a concessão ou não da exoneração só virá, portanto, a ter lugar depois de decorrido esse período (sem prejuízo da sua cessão antecipada, nas condições previstas no art. 243º do CIRE), na decisão final do incidente de exoneração, conforme prevê o artigo 244º do mesmo CIRE. [3]
Relativamente à cessão do rendimento disponível do devedor a favor do fiduciário, não obstante a controvérsia sobre a sua natureza, é posição maioritária da doutrina que se trata de uma cessão de créditos futuros, destituída de fundamento contratual ou negocial, mas determinada «ex lege» por via de decisão judicial (constante do despacho inicial), sendo-lhe, aplicáveis, pois, os normativos previstos no artigo 577º e seguintes do Código Civil. [4]
A cessão é estabelecida, como se referiu, no despacho inicial, despacho que é proferido na assembleia de apreciação do relatório do administrador, ou nos dez dias subsequentes (artigo 239º, n.º 1 do CIRE).
Esse despacho determina, pois, que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário.
Assim, os rendimentos que o insolvente venha a adquirir após o encerramento do processo de insolvência transferem-se, no momento da sua aquisição, para o fiduciário, independentemente do consentimento dos devedores desses rendimentos (artigo 577º, n.º 1 do Cód. Civil), transmitindo-se igualmente as garantias e outros acessórios dos créditos que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente (artigo 582º, n.º 1 do mesmo Código).
Nesta matéria, a lei, ponderando os interesses do insolvente (de, findo o período da cessão, ficar liberto das suas dívidas), mas também os interesses legítimos dos credores (quanto à satisfação, dentro do possível, dos seus créditos), ao mesmo tempo que dá ao devedor/insolvente um benefício [exoneração do passivo não satisfeito], impõe-lhe um conjunto estrito de requisitos e cria um regime particularmente garantístico para os credores, retirando ao devedor não apenas a possibilidade de dispor do seu património, o que resultaria das regras gerais, mas também a sua titularidade.
Como refere ainda A. CRISTAS “ A transmissão dos créditos para o fiduciário é o “ preço “ que o devedor paga para obter a futura exoneração. “ [5]
No que se refere à determinação, ainda que por via reflexa, do montante do rendimento disponível (ou seja do montante a ceder ao fiduciário e que este destinará ao pagamento ordenado dos créditos referidos no artigo 241º, n.º 1, do CIRE), preceitua, no que ora importa, a alínea b), i., do n.º 3 do artigo 239º do CIRE, que dele não faz parte “ o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional. “
Nesta sede, como é consabido, não obstante alguma divergência inicial, constitui hoje jurisprudência pacífica que o previsto valor de três salários mínimos nacionais corresponde ao limite máximo a fixar pelo juiz, limite que só pode ser ultrapassado em casos excepcionais que o justifiquem, o que supõe, naturalmente, uma mais exigente e aprofundada fundamentação do juiz quando ultrapasse este valor. [6]
Partindo deste valor máximo, importa, todavia, definir o que seja o mínimo de tal valor a fixar pelo juiz, isto é, o que seja o valor que, à partida, garante o necessário a um sustento minimamente condigno do devedor e do seu agregado familiar, sendo certo que o legislador não indexou esse conceito a um valor pecuniário fixo – por referência ao salário mínimo ou a uma prestação social determinada -, antes o remeteu para o aludido conceito indeterminado ou aberto, qual seja o dito “ sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar. “
Nesta matéria, a ideia fundamental será a de que a exclusão, no rendimento disponível, do necessário para o sustento minimamente digno do devedor e dos membros do seu agregado familiar se fundamenta na salvaguarda da pessoa humana e da sua dignidade pessoal, princípio que tem, não só, acolhimento universal (artigo 1º da Declaração dos Direitos Humanos), como, ainda, acolhimento na nossa própria Lei Fundamental - artigo 59º da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, como refere LUÍS MARTINS o aludido princípio consubstancia, enquanto alicerce da existência digna das pessoas, “ o equilíbrio entre os conflituantes interesses legítimos do credor e os interesses do devedor, recuando o interesse do credor sempre que esteja em causa este princípio. “ [7]
Neste sentido, ainda, como se salienta no Acórdão desta Relação de 12.06.2012, “ o conceito de sustento minimamente digno do devedor é um conceito aberto, a objectivar face à singularidade que reveste a situação concreta de cada devedor/insolvente e que tem como subjacente o reconhecimento do princípio da dignidade humana. “ [8]
Este princípio, aliás, tem vindo a ser reiteradamente afirmado pelo Tribunal Constitucional em conexão com a temática da fixação legislativa do salário mínimo nacional, tendo aquele Tribunal defendido no AC n.º 177/2002, in DR, 1ª série A de 2.07.2004 que “… como resulta da análise dos sucessivos diplomas relativos à criação e às diversas actualizações introduzidas no respectivo montante, ao fixar o regime do salário mínimo nacional o legislador teve presente a intenção de garantir a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador.» [9]
Em síntese, tendo presente o antes exposto, e conforme vem sendo afirmado pela jurisprudência, designadamente a antes citada, poder-se-á dizer que o legislador estabeleceu na norma em apreço (artigo 239º, n.º 3 al. b), i., do CIRE), um limite mínimo, definido por um conceito ou critério aberto - o sustento minimamente condigno do devedor e do seu agregado familiar -, critério este a densificar e a aplicar casuisticamente pelo juiz em função do caso concreto e das circunstâncias do insolvente e do respectivo agregado familiar, e um limite máximo definido por um critério quantificável e objectivo - o equivalente a três salários mínimos nacionais -, limite este que, como já referido, apenas poderá ser ultrapassado quando circunstâncias excepcionais o justifiquem.
Nestes termos, sendo certo que, à luz da jurisprudência constitucional, a fixação do salário mínimo nacional tem subjacente a condição económica do nosso país, mas representa, também, nesse contexto e segundo o próprio legislador, o “ estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador “, legítimo será concluir que, pelo menos enquanto referência ou por princípio orientador, o valor que assegura a subsistência, com o mínimo de dignidade, do trabalhador, será o valor correspondente a (1) um salário mínimo nacional.
Por conseguinte, na lógica do anterior excurso, dentro do intervalo entre este valor mínimo (equivalente, por princípio, a um salário mínimo nacional) e o citado valor máximo (equivalente a três salários mínimos), a fixação concreta do que constitua o mínimo para o sustento minimamente condigno do devedor e respectivo agregado familiar, não obstante as dificuldades que encerra a prudente consideração de cada caso, “ deverá obedecer aos critérios interpretativos e ao princípio constitucional da «proibição do excesso» (artigo 18° n.° 2, da CRP), traduzindo-se, tanto quanto possível em «adequação», «necessidade» e «proporcionalidade» (justa medida). “ [10]
No caso, a proibição do excesso não deixará de considerar, por um lado, as necessidades fundamentais para um sustento minimamente condigno do devedor e do seu agregado familiar, mas do outro terá em mente a necessária, tanto quanto possível, satisfação dos direitos dos credores, pois que olvidado este escopo principal do processo de insolvência, facilmente a exoneração do passivo restante se transformaria num estrito perdão de dívidas, num prémio ou na cobertura a uma fraude. [11]

De facto, e como tem vindo a ser salientado “ (…) ao sacrifício financeiro dos credores terá de corresponder o sacrifício do insolvente através da compressão das suas despesas “ [12] ou, ainda, que “ constitui dever do insolvente adaptar o seu estilo e nível de vida ao padrão social condizente com a situação em que, imprevidentemente, se colocou, tratando-se, no fundo, da contrapartida decorrente da concessão do benefício da exoneração do passivo restante. “ [13]
Por conseguinte, nesta linha de pensamento, “ o montante mensal que há-de ser dispensado ao insolvente no período da cessão não visa assegurar o padrão de vida que porventura teria antes da situação de insolvência mas apenas uma vivência minimamente condigna, cabendo ao visado adequar-se à especial condição em que se encontra, ajustando as despesas ou encargos ao nível de vida, em geral e na medida do possível, à nova realidade que enfrenta. Deste modo, não serão simplesmente as despesas enunciadas ou comprovadas que devem justificar o montante do rendimento indisponível, mas apenas aquelas que se justifiquem, traduzindo uma efectiva adaptação do padrão de vida do insolvente ao estatuto que lhe foi conferido. “ [14]
Na verdade, insiste-se, na fixação do exacto montante do rendimento excluído da cessão ao fiduciário, importa que seja considerada a situação particular do insolvente e do seu agregado familiar, não podendo, pois, ser posto em causa aquele mínimo indispensável a uma vida condigna do mesmo e do respectivo agregado familiar (função interna do património), mas também relevam os interesses dos credores quanto à satisfação do possível dos seus créditos à custa do património do devedor (função externa do património), o que exige, em termos de concretização e compatibilização prática destes interesses conflituantes, necessariamente, do devedor/insolvente uma adaptação à sua nova situação e, em particular, uma rigorosa limitação e contenção das suas despesas, com o indispensável sacrifício, não só do mesmo, como, ainda, do seu próprio agregado familiar.
Feita esta exposição, decorre das conclusões da presente apelação que o recorrente, sem discordar dos princípios antes consignados e vertidos em letra de lei, discorda é da aplicação que o Tribunal de 1ª instância deles fez no seu caso concreto, pois que, ao invés do valor de um salário mínimo nacional e um quarto ali fixado como rendimento excluído da cessão ao fiduciário, sustenta que esse valor deveria antes ascender a dois salários mínimos.
Vejamos.
Como é consabido, o salário mínimo nacional no ano de 2020 foi fixado em €635,00 (DL n.º 167/2019 de 21.11.) e ascende, actualmente, ao valor de €665,00 (DL n.º 109-A/2020 de 31.12.).
Portanto, tendo por referência o valor do SMN de 2020, a decisão recorrida fixou como rendimento excluído da cessão no valor de 635,00 + 158,75, ou seja, num valor de € 793,75, valor que, no decurso deste ano de 2021, atingirá já o montante de 665,00 + 166,25, ou seja €831,25, por mês.
Ora, tendo presente este valor e admitindo, como alega o apelante, que o mesmo tenha suportar uma pensão de alimentos a favor do seu filho menor no valor de €50,00 mensais, acrescida das eventuais despesas médicas e medicamentosas e que viva com a sua mãe (que aufere o salário mínimo nacional), tendo, por isso, que contribuir para as despesas fixas mensais deste agregado, não se vislumbra, com o devido respeito, que a fixação daquele valor como rendimento mensal excluído da cessão possa comprometer o seu sustento minimamente condigno, isto é que possa comprometer a realização das suas despesas mensais estritamente necessárias àquele fim, supondo, como é suposto, face ao acima expendido, que o devedor/insolvente terá, face à sua nova situação, que alterar/reduzir as suas despesas, fazendo os consequentes sacrifícios e sob pena de, a coberto do instituto da exoneração do passivo restante, se obter um puro e simples perdão das suas dívidas anteriores, que geraram a sua actual situação de insolvência.
De facto, importa dar nota que o apelante aufere um vencimento de €525,00 mensais e, portanto, fixar-se, como ora se decidiu, o rendimento indisponível (excluído da cessão) em valor que ascende a €790,00 mensais (ou, face ao actual SMN, em €830,00) não importa qualquer diminuição dos valores que, mensalmente, o insolvente aufere (e continuará auferir, em condições normais) e que, à partida, o mesmo dispunha para prover às suas despesas essenciais e imprescindíveis a uma vida minimamente condigna, ainda que com significativos sacrifícios e contenção ao nível das suas despesas mensais, como, infelizmente, sucede com uma larga maioria dos trabalhadores no nosso país que auferem tais rendimentos.
Na verdade, em nosso ver, ainda que com sacrifícios e limitações ao nível das suas despesas, mas sem comprometer o mínimo para uma vida condigna, um valor na ordem dos €730,00 mensais – como fixado – será o bastante para ocorrer às ditas despesas normais de um agregado familiar composto pelo apelante e por sua mãe, ainda que esta aufira também o salário mínimo nacional, assim como para o pagamento da sobredita prestação alimentar ao seu filho menor.
Destarte, não só não se vislumbram, com o devido respeito por opinião em contrário, fundamentos bastantes para alterar o valor do rendimento indisponível fixado no despacho recorrido para dois SMN (praticamente o dobro do que o insolvente aufere actualmente), como, ainda, não se vê em que medida a decisão recorrida coloque em causa os princípios constitucionais acima referidos de adequação, necessidade e proporcionalidade, sendo certo que, neste contexto, como também já se assinalou, a decisão que fixa o rendimento indisponível não pode equivaler a um puro e simples perdão das dívidas antes contraídas e que deram origem à situação de insolvência, antes deve ponderar, também em termos equilibrados e proporcionais, os interesses, igualmente, legítimos dos credores quanto à satisfação, ainda que residual, dos seus créditos.
Solução distinta poderia, aliás, em sentido oposto, ser tida, à luz daqueles princípios constitucionais, como excessiva ou desproporcional por implicar, de forma inelutável, a absoluta desconsideração dos aludidos interesses dos credores, interesses estes que, asseguradas que estejam as condições para um vida minimamente condigna do devedor, como julgamos estarem asseguradas à luz da decisão recorrida e do montante de rendimento indisponível nela fixado, também devem ser protegidos, ainda que, no caso dos autos, face ao rendimento mensal do insolvente, de forma até muito residual.
E, assim, em conclusão, pelo exposto, terá que improceder a apelação, o que se julga.
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IV. DECISÃO:
Em conclusão, pelos fundamentos antes expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirma-se o despacho recorrido.
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Custas pelo apelante, pois que ficou vencido – artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC -, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.
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Porto, 12.04.2021
(O acórdão que antecede não segue na sua redacção o Novo Acordo Ortográfico)
Jorge Seabra
Pedro Damião da Cunha
Fátima Andrade
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[1] ASSUNÇÃO CRISTAS, “ Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante ”, Revista “ Themis ”, Edição Especial, 2005, pág. 167 e CATARINA SERRA, “ O Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução ”, 2010, pág. 133.
[2] ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, “ Um Curso de Direito da Insolvência ”, 2015, pág. 528.
[3] A. CRISTAS, op. cit., pág. 169-174.
[4] Vide, neste sentido, por todos, A. CRISTAS, op. cit., pág. 176, A. SOVERAL MARTINS, op. cit., pág. 544 e LUIS CARVALHO FERNANDES, JOÃO LABAREDA, “ CIRE, anotado ”, Quid Iuris, 2008, pág. 789.
[5] A. CRISTAS, op. cit., pág. 180; No mesmo sentido, ainda, L. CARVALHO FERNANDES, op. cit., pág. 789-790 e A. SOVERAL MARTINS, op. cit., pág. 544.
[6] Vide, neste sentido, por todos, AC STJ de 18.10.2012, relator TAVARES de PAIVA, AC RP de 15.09.2015, relator JOSÉ IGREJA MATOS, AC RP de 12.05.2014, relator CAIMOTO JÁCOME, AC RP de 11.09.2012, relator VIEIRA e CUNHA, AC RL de 6.06.2013, relator EZAGUY MARTINS, AC RG 24.09.2015, relator JORGE TEIXEIRA, todos disponíveis in www.dgs.pt.
[7] LUIS MARTINS, “ Recuperação de pessoas singulares ”, I volume, 2ª edição, pág. 132.
[8] AC RP de 12.06.2012 e, ainda, de 11.09.2012, ambos relatados por VIEIRA e CUNHA, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.
[9] Além do citado AC TC n.º 177/2002, vide, ainda, AC TC n.º 349/91, de 3.07.1991, relator ALVES CORREIA, AC TC n.º 318/99, de 26.05.1999, relator VITOR NUNES de ALMEIDA, AC TC n.º 96/2004, de 11.02.2004, relator MARIA HELENA BRITO, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt.
[10] AC RP de 12.06.2012, já citado.
[11] Vide, neste sentido, AC RP de 12.06.2012, AC RL de 6.06.2013 e AC RG de 24.09.2015, todos antes citados.
[12] AC RL de 25.10.2012, relator ONDINA CARMO ALVES, disponível no sítio já citado.
[13] AC RL de 13.12.2012, relator LUIS ESPIRITO SANTO, disponível no mesmo sítio.
[14] AC RL de 9.04.2013, relator MARIA CONCEIÇÃO SAAVEDRA, disponível também no mesmo sítio.