Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1609/16.6T8AMT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: RP202110041609/16.6T8AMT-A.P1
Data do Acordão: 10/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A exigência, decorrente da conjugação do disposto nos arts. 90º e 128º nº5 do CIRE, de todos os credores terem que ir ao processo de insolvência reclamar o seu crédito, tem como suporte lógico a conclusão que só desse modo se poderá formar caso julgado oponível a todos os credores do devedor insolvente que concorrem entre si para satisfazerem as suas pretensões creditórias pelas forças do património do insolvente.
II – Estando em curso acção declarativa para apurar da existência de crédito, tendo na sua pendência sido declarada a insolvência de Ré e verificando-se do processo de insolvência que não foi declarada a insuficiência da massa na sentença de declaração de insolvência nem ocorreu tal declaração posteriormente a tal sentença por via do disposto nos arts. 230º, nº1 d) e 232º nºs 1 e 2 do CIRE, é de concluir que a reclamação e verificação de créditos em tal processo irá prosseguir e que terá que ser em tal sede que deverá ser apurado o crédito que os Autores invocam em tal acção.
III – Face a al circunstancialismo, interpretado em conformidade com o disposto nos já referidos arts. 90º e 128º nº5 do CIRE, decorre a ausência de qualquer efeito útil no prosseguimento contra a Ré da acção declarativa e, por decorrência, a inutilidade superveniente da respectiva lide, com a consequente extinção da instância (art. 277º e) do CPC).
IV – A admitir-se o prosseguimento da acção contra a Ré insolvente, estar-se-ia a violar o princípio par conditio creditorum (princípio da igualdade entre credores), pois estar-se-ia a possibilitar que os Autores, ao poderem vir a obter através dela uma sentença condenatória contra a Ré, ficassem numa situação privilegiada face àqueles que se limitassem (em cumprimento da lei) a reclamar os seus créditos no processo de insolvência, já que estes ficam em tal âmbito sujeitos à impugnação dos demais credores (art. 130º nº1 do CIRE) e tal não acontece na acção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº1609/16.6T8AMT-A.P1
(Comarca do Porto Este – Juízo Local Cível de Amarante)

Relator: António Mendes Coelho
1º Adjunto: Joaquim Moura
2º Adjunto: Ana Paula Amorim

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

B… e C… propuseram acção declarativa comum contra “D…, S.A.” e E… deduzindo contra ambos os seguintes pedidos:
- serem os RR. condenados a reconhecer que os AA. são donos e legítimos possuidores, na qualidade de proprietários, do prédio rústico identificado em 1º da p.i., do qual faz parte integrante e componente a nascente e respectiva água identificadas em 37º a 39º da p.i., que é do domínio e posse dos AA.;
- serem os RR. solidariamente condenados a reparar, a expensas suas, com o uso dos meios técnicos apropriados, de acordo com as melhores “regras de arte”, materiais e mão-de-obra adequados, os danos detalhados em 27º a 36º e 51º a 56º da p.i., causados no prédio dos AA., pelo deslizamento de inertes, eliminando-os e repondo o imóvel dos AA. no estado em que se encontrava antes das anomalias terem ocorrido;
- ou, em alternativa, serem os RR., solidariamente, condenados a pagar aos AA. o valor em que as obras referidas importem, em montante nunca inferior a 25.000,00 €, acrescidos de IVA à txa legal, sem prejuízo de posterior actualização em função do agravamento dos danos e de resultado de perícia técnica a realizar oportunamente nos autos, tudo acrescido de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral e efectivo pagamento;
- serem os RR., solidariamente, condenados a construir, a expensas suas, com o uso dos meios técnicos apropriados, de acordo com as melhores “regras de arte”, materiais e mão-de-obra adequados, um muro de suporte dos inertes que se encontram depositados no prédio superior ao dos AA. designado por “F…”, de modo a que os inertes não deslizem para o prédio dos AA., bem como, repor os inertes que escavaram no solo, imediatamente por baixo das rochas existentes no prédio das “F…” de modo a que as mesmas não deslizem para o prédio dos AA.;
- para além disso, ser a 1ª Ré condenada a retirar a expensas suas o escoamento das águas das manilhas do IP 4 (A4) para a nascente do prédio dos AA., de forma a que tal escoamento das águas se faça para a via pública ou, em alternativa, para o rústico do 2º R., eliminando os sulcos causados por essa água no rústico dos AA.;
- serem os RR. condenados solidariamente a pagar aos AA., a título de danos patrimoniais, a quantia de 5.000,00 €, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral e efectivo pagamento;
- serem os RR. condenados solidariamente a pagar aos AA. a título de danos decorrentes da mera privação de uso a quantia de 5.000,00 €, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral e efectivo pagamento;
- serem os RR. condenados solidariamente a pagar aos AA. a título de danos morais a quantia de 2.000,00 € para cada um deles, num total de 4.000,00 €, acrescidos de juros de mora desde a citação até integral e efectivo pagamento.
Citados, quer a Ré “D…, S.A.” quer o R. E… deduziram a sua própria contestação.
A acção foi prosseguindo os seus termos e por despacho proferido em 2/12/2019 veio a ser designado para julgamento o dia 2/3/2020.
Entretanto, por requerimento de 13/1/2020, a Ré “D…, S.A.”, dando conta de que foi declarada insolvente no âmbito do processo nº 6746/19.2T8LSB, a correr termos no Juízo de Comércio do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, veio requerer que, por tal motivo, fosse quanto a si declarada extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, complementando tal requerimento por um outro também por si apresentado a 6/2/2020, com o qual junta cópia da sentença que declarou a sua insolvência, proferida a 6/8/2019, e certidão de que tal sentença transitou em julgado em 27/8/2019.
No dia designado para julgamento, aberta a audiência, pela Sra. Juíza foi então proferido o seguinte despacho, que se transcreve:

“Constata-se que a ré “D…, S.A.” foi declarada insolvente.
Ora, conforme o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2014 publicado no DR, 1ª Série, de 25/02: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do Art.º 287º do C.P.C.
In casu, a presente acção pretende obter o reconhecimento de determinado crédito.
Assim sendo, e em face do exposto, julgo extinta a instância relativamente à ré “D…, S.A.”, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do Art.º 287º do C.P.Civil.
Custas pela ré.
Registe e notifique.”

De tal despacho vieram os Autores interpor recurso, tendo na sequência da respectiva motivação apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
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Não foram apresentadas contra-alegações.

Faz-se constar que, na sequência de obtenção de autorização para acompanhamento do respectivo processo via “Citius”, compulsados os autos de insolvência nº6746/19.2T8LSB, do Juízo de Comércio da Comarca de Lisboa – em que foi declarada a insolvência da Ré “D…, S.A.” – e seus apensos, verifica-se o seguinte:
- na sentença que declarou a insolvência (proferida a 6/8/2019) foi fixado prazo (30 dias) para a reclamação de créditos, cujo respectivo apenso está em curso, e em tal sede foram deduzidas várias reclamações de créditos;
- foi comunicada aos autos em 28/8/2019 a apreensão de bens móveis (mobiliário e equipamento de escritório, artigos decorativos, material de obra e viaturas) no valor global de 67.830,00 €;
- após aquela sentença não foi proferida qualquer decisão de encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente.

Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657º nº4 do CPC.
Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (arts. 635º nº4 e 639º nº1 do CPC), há apenas uma questão a tratar: apurar se, na sequência da declaração de insolvência da Ré “D…, S.A.”, se verifica a inutilidade superveniente da lide quanto a ela.
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II – Fundamentação

Como se vê do teor do pedido formulado na acção, está em causa nesta, quanto à Ré “D…”, apurar de crédito que os autores invocam ter sobre a mesma.
Não sendo caso de apensação da acção ao processo de insolvência, pois está-se fora da previsão do art. 85º nº1 do CIRE (a apensação aqui prevista é só para as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor ou mesmo contra terceiros, e cujo resultado possa influenciar o valor da massa e para as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor), apenas há que curar de saber do efeito que a declaração de insolvência daquela Ré, ocorrida na pendência da acção, tem sobre esta, designadamente se ocorre a inutilidade superveniente da lide.
Analisemos então.
O processo especial de insolvência, como desde logo resulta do art. 1º nº1 do CIRE, tem como finalidade precípua a satisfação dos créditos dos credores, privilegiando as soluções que permitam a conservação da empresa compreendida na massa insolvente, em detrimento da liquidação imediata do património do devedor insolvente e da sua repartição pelos seus credores.
Embora o legislador qualifique o processo de insolvência como um processo de execução universal, na realidade, e em regra, trata-se de um processo composto de uma fase declarativa em que se visa a comprovação da situação de insolvência e, no caso de procedência da pretensão de declaração de insolvência, havendo património do insolvente, de uma subsequente fase executiva em paralelo como um enxerto declarativo (arts. 128º a 140º do CIRE) em que se verificam e se graduam os créditos dos credores do insolvente.
Neste enxerto faculta-se um instrumento jurídico aos credores do insolvente que permite a obtenção de título para posterior satisfação das suas pretensões creditórias, não estando sequer dispensados do uso de tal meio processual os credores que tenham já decisão definitiva contra o devedor insolvente se acaso pretenderem obter pagamento no processo de insolvência.
Efectivamente, nos termos do art. 128º, nº5, do CIRE, “A verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento”, o que está em linha com o que também se dispõe no art. 90º do CIRE: “Os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência”.
Esta exigência – de todos os credores terem que ir ao processo de insolvência reclamar o seu crédito – tem como suporte lógico a conclusão que só desse modo se poderá formar caso julgado oponível a todos os credores do devedor insolvente que concorrem entre si para satisfazerem as suas pretensões creditórias pelas forças do património do insolvente, com variadas garantias dos seus créditos e consequentes prioridades diversificadas nos pagamentos.
No caso concreto, atentando aos detalhes referidos no final do relatório desta peça, que já ocorriam aquando da prolação do despacho recorrido, verifica-se do processo de insolvência da Ré que não foi declarada a insuficiência da massa na sentença de declaração de insolvência – pois teve lugar a fixação de prazo para a reclamação de créditos (vide arts. 36º nº1 j) e 39º nº1 do CIRE) – nem ocorreu tal declaração posteriormente a tal sentença por via do disposto nos arts. 230º, nº1 d) e 232º nºs 1 e 2 do CIRE (caso em que poderia ocorrer a extinção da instância dos processos de verificação de créditos antes de ser proferida a respectiva sentença, como previsto no art. 233º nº2 b) do CIRE), pelo que é de concluir que a reclamação e verificação de créditos em tal processo irá prosseguir e que terá que ser em tal sede que deverá ser apurado o crédito que os Autores invocam nesta acção.
Neste conspecto, é de concluir que de tal circunstancialismo, interpretado em conformidade com o disposto nos já referidos arts. 90º e 128º nº5 do CIRE, decorre a ausência de qualquer efeito útil no prosseguimento contra a Ré da acção declarativa a que respeitam os presentes autos e, por decorrência, a inutilidade superveniente da respectiva lide, com a consequente extinção da instância (art. 277º e) do CPC)
Efectivamente, como exactamente nesta mesma linha se refere no Acórdão do STJ de 22/11/2018 [proc. nº4144/17.1T8LSB; rel. Cons. Oliveira Abreu; disponível em www.dgsi.pt], da conjugação daqueles preceitos “decorre a ausência de qualquer interesse no prosseguimento das acções declarativas que se encontrem pendentes do reconhecimento de eventuais direitos de crédito, uma vez que os mesmos terão de ser objecto de reclamação no processo de insolvência, tendo-se salvaguardado os direitos do devedor e credor, uma vez que, nos termos dos arts. 130º e seguintes do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas [CIRE], houve a preocupação de estruturar a reclamação do crédito na insolvência, sem restringir a apreciação da existência e o montante do direito de crédito em discussão (…)”.
Diga-se ainda que – conforme raciocínio evidenciado em trecho do Acórdão da Relação de Lisboa de 7/3/2017 (proc. nº48/16.3T8LSB-L1-7; rel. Luis Filipe Pires de Sousa; também disponível em www.dgsi.pt), que, com a devida vénia, subscrevemos – a admitir-se o prosseguimento desta acção contra a Ré insolvente, estar-se-ia a violar o princípio par conditio creditorum (princípio da igualdade entre credores), pois estar-se-ia a possibilitar que os Autores, ao poderem vir a obter através dela uma sentença condenatória contra a Ré, ficassem numa situação privilegiada face àqueles que se limitassem (em cumprimento da lei) a reclamar os seus créditos no processo de insolvência, já que estes ficam em tal âmbito sujeitos à impugnação dos demais credores (art. 130º nº1 do CIRE) e tal não acontece na acção.
Efectivamente, continua aquele aresto, “[t]al bifurcação de vias de reclamação de créditos está expressamente vedada pelo Artigo 90º do CIRE do qual decorre que «para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, os credores têm de neles exercer os direitos que lhes assistem, procedendo, nomeadamente, à reclamação dos créditos de que sejam titulares, ainda que eles já se encontrem reconhecidos em outro processo (…)» - Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª Edição, 2015, p. 438. Esta norma impõe, inelutavelmente, a concentração num único processo das pretensões de todos os credores, o que constitui uma consequência do princípio da par conditio creditorum”.
Assim, na decorrência do que se veio de expor, na linha do Acórdão do STJ que supra se referiu – que cita em seu abono o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº1/2014, de 8/5/2013 (publicado na Iª Série do DR de 25/2/2014), cujo conteúdo em termos do seu dispositivo final está referido no despacho recorrido –, e ainda, por exemplo, dos Acórdãos do STJ de 26/9/2017 (proc. nº3499/16.0T8VIS.S1; rel. Cons. Ana Paula Boularot), de 2/11/2017 (proc. nº11674/16.0T8LSB.S1; rel. Cons. Abrantes Geraldes) e de 19/6/2018 (proc. nº 18860/16.1T8LSB-A.L1.S2; rel. Cons. Fonseca Ramos) e dos Acórdãos da Relação de Lisboa de 7/3/2017, sendo um o proferido no proc. nº 11804/16.2T8LSB-A.7 (rel. Carla Câmara) e outro o já acima referido (proferido no proc. nº nº48/16.3T8LSB-L1-7), todos estes disponíveis em www.dgsi.pt, é de afirmar que ocorre a inutilidade superveniente da lide em relação à Ré “D…”, com a consequente extinção da instância (art. 277º e) do CPC).

Deste modo, em conformidade com tudo o que se vem de referir, é de manter a decisão recorrida e, consequentemente, julgar improcedente o recurso.
As custas do recurso ficam a cargo dos Recorrentes, que nele decaíram (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).
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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):
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III – Decisão
Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
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Porto, 04/10/2021
Mendes Coelho
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim