Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6609//22.4T8PRT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
ARGUIÇÃO POR VIA DE RECURSO
Nº do Documento: RP2024026609//22.4T8PRT-B.P1
Data do Acordão: 02/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULAÇÃO
Indicações Eventuais: 5.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - quando o tribunal decida sobre determinado tema sem possibilitar a tomada de posição prévia das partes e se trate de assuntos que diretamente lhes interessam (como sucede com a admissão ou não de um meio de prova), obnubila um formalismo legal e processual que inquina a própria decisão, não quanto ao fundo, mas quanto ao procedimento;
II - sendo assim, não há pronúncia (ou omissão) quanto a determinado tema (processual ou substantivo), mas violação procedimental;
III - essa violação pode ser arguida em sede de reclamação por nulidade processual ou por via de recurso, atacando a própria validade da decisão tomada sem estarem reunidas as condições legais para o efeito;
IV - tendo a parte lançado mão do primeiro procedimento, não fica impedida de, na sua improcedência, ver conhecida a questão em sede de recurso;
V - a ser procedente esse recurso, a decisão que assim é mediatamente atacada (a proferida com preterição do disposto no art. 3.º/3 CPC) é nula, mas não opera a substituição do tribunal recorrido, falando-se apenas de cassação, porquanto há que conceder oportunidade ao tribunal para se pronunciar sobre os argumentos que eventualmente não tenha tido em consideração quando decidiu sem ouvir a parte.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 6609/22.4T8PRT-B.P1

Sumário do acórdão proferido elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:


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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

Relatório

A 6.4.2022, AA, residente na Rua ...., Maia, instaurou ação declarativa contra A..., SOCIEDADE DE ADVOGADOS, SP, RL, com sede na Rua ..., ..., Porto, pretendendo a condenação desta a pagar-lhe € 9.750, 00, e juros moratórios, invocando o primeiro a sua qualidade de advogado e a obtenção prévia de dispensa de sigilo profissional[1] e originando-se o crédito na prestação de serviços ocasionais de assessoria jurídica, na área fiscal, do primeiro à segunda.

Contestou a Ré, opondo-se à procedência da ação.

Com o requerimento de 3.6.2022, o A. juntou aos autos o doc. 1, tratando-se de vários mails, através dos quais, entre o mais, o legal representante da Ré reencaminhou para o A. uma troca de emails com a assessora da administração da empresa cliente da Ré por força da qual contratou esta última os serviços de assessoria do A.[2]

A Ré opôs-se à junção de tal documento, a 15.6.2022, afirmando que a divulgação destes mails não foi autorizada ao Autor pelo Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados (OA).

A OA, solicitada pelo A. a pronunciar-se sobre tal junção, entendeu, a 15.1.2023, não existir qualquer utilidade na prolação de decisão, uma vez que os documentos em causa já foram juntos aos autos[3], razão por que a Ré requereu o seu desentranhamento, invocando o disposto nos arts. 92.º, n.º 5 e 113.º, n.º 2 do Estatuto da Ordem dos Advogados.

DE seguida, foi proferido despacho saneador, datado de 3.3.2023, tendo-se aí entendido dever o A. suscitar incidente de quebra de sigilo profissional relativamente aos mails cujo conteúdo respeita à relação entre a Ré e a sua cliente e já transcritos em nota 2.

Por requerimento de 17.3.2023, o A. formulou pedido de quebra de sigilo sobre os mesmos documentos, a remeter para este Tribunal da Relação (apenso A, remetido ao TRP, em final de novembro 2023), tendo nesse dia notificado a mandatária da contraparte, nos termos do art. 221.º CPC.

Foi proferido este despacho, datado de 27.3.2023: Por despacho proferido em sede de saneamento, de 3-3-2023, considerou-se, que os emails que foram reproduzidos e juntos aos presentes autos pelo A. (através da “resposta” de 3-6-2023 com a ref.ª citius 32465786), correspondentes a troca de correspondência havida entre o representante legal da R. e uma sua cliente, estão sujeitos a sigilo profissional, nos termos do art. 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

Concluiu-se, assim, nesse despacho, que a escusa da R. na sua junção aos autos era legítima ao abrigo do disposto no art. 417.º, n.º 3 al. c) do CPC, tendo o A. sido convidado a suscitar, querendo, a quebra do sigilo junto do Tribunal Superior, cfr. art. 135.º do CPP “ex vi” do citado art. 417.º, n.º 4 do CPC.

Nessa sequência, através do requerimento em referência, o A. requereu ao Venerando Tribunal da Relação do Porto que decretasse a quebra do segredo profissional relativo ao doc. 1 junto pelo A. com o seu requerimento de 03-06-2022, admitindo-se, em consequência, a sua junção e manutenção nos autos.

Assim, deduzida escusa com base em violação do segredo profissional – como é o caso dos autos -, deverá ser aplicado o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado (cfr. art. 417º, nº 4, do CPC).

Nestes termos, nos moldes plasmados no art. 135º, nº 3, do CPP, a ponderação sobre a justificação (ou não) da quebra do segredo profissional em causa caberá ao Tribunal Superior, tal como suscitado pela R[4].

Não se determina a audição da Ordem dos Advogados nos termos do art.135.º, n.º 4 do CPP uma vez que esta Instituição já tomou posição sobre a questão em apreço, na decisão datada de 15-1-2023 junta aos autos com o requerimento do A. de 7-2-2023 (ref.ª citius 34684036).

Pelo exposto, extraia certidão integral do processado (incluindo este despacho) e remeta o apenso assim autuado ao Venerando Tribunal da Relação do Porto, para decisão do incidente ora suscitado.

Antes mesmo de notificada deste despacho, veio a Ré opor-se ao incidente de levantamento do sigilo (por requerimento de 30.3.2023), mediante a alegação de vários argumentos[5] e, uma vez notificada daquela decisão, apresentou novo requerimento (a 20.4.2023) tendo em vista a nulidade daquele despacho e do processado posterior a 17.3.2023, por ter o tribunal a quo decidido suscitar o incidente perante o Tribunal da Relação sem aguardar pelo exercício do contraditório por parte da Ré sobre a inadmissibilidade do mesmo.

O A. exerceu o contraditório, a 4.5.2023.

Veio a ser proferido o despacho de que agora recorre a Ré, datado de 17.5.2023 que passamos a reproduzir parcialmente:

(…)

(…) é certo que o incidente de quebra de sigilo profissional dispõe de uma estrutura processual própria, sendo atribuída a competência para a sua decisão ao tribunal superior àquele em que o mesmo é suscitado.

Tal como resulta do despacho reclamado, que determinou a instrução do incidente de quebra do segredo profissional relativo ao doc. 1 junto pelo A. com o seu requerimento de 03-06-3022, este incidente comporta dois momentos de tramitação distintos: num primeiro, que efectivamente corre em primeira instância, limita-se à determinação da legitimidade da escusa, o que sucedeu no presente caso, tendo o tribunal expressamente se pronunciado no sentido considerar que a escusa da R. na junção aos autos do dito documento era legítima ao abrigo do disposto no art. 417.º, n.º 3, al. c) do CPC, e, nessa sequência, tendo endereçado convite ao A. para suscitar, querendo, a quebra do sigilo junto do Tribunal Superior, cfr. art. 135.º do CPP “ex vi” do citado art. 417.º, n.º 4 do CPC; num segundo momento, subsequente àquele e caso se entenda que a escusa é legítima (como se entendeu, repete-se), processa-se o incidente propriamente dito, sendo-o da competência do tribunal superior, nos termos dos indicados artigos (135.º do CPP “ex vi” do art. 417.º do CPC).

O que vale por concluir que, à luz do regime processual especialmente gizado para este incidente nenhuma irregularidade pode ser assacada à tramitação dos autos, incluindo ao despacho proferido em 27-3-2023 reclamado.

Por seu lado, igualmente certo é que o Tribunal não “ignorou” a posição contraditória da Ré a respeito da suscitada quebra do sigilo profissional pois que a R., por via dos requerimentos de 15-06-2022 e de 15-01-2023[6], sustentou a sua (o)posição a respeito da pretendida junção de documento, e tanto assim, que considerou a escusa que mesma representava e correspondia, não só em sede de despacho saneador (elaborado em 03-03-2023), como no despacho proferido em 27-3-2023, cuja nulidade veio agora a ser arguida pela Ré.

Do que se conclui não ter sido postergado qualquer direito ao contraditório, muito menos qualquer irregularidade e/ou falha susceptível de influir no exame da causa, como defende a R. Com efeito, nos termos do disposto no art. 195.º do CPC, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa, o que não se verifica no caso em apreço.

Pelo exposto, entendemos que o despacho proferido em 27-3-2023 não padece de qualquer nulidade e/ou irregularidade que cumpra conhecer e/ou reparar, e, em consequência, indefere-se a reclamação de nulidade suscitada pela Ré no requerimento de 20-4-2023, com a ref.ª citius 35435493.

A 16.6.2023, a Ré recorreu deste último despacho, visando a sua revogação, alinhando, em abono de tal pretensão, as seguintes conclusões:

1. O presente recurso vem interposto do despacho de fls. , proferido em 17.05.2023, com a referência 448308277, que indeferiu a nulidade processual arguida pela Recorrente, nos termos dos artigos 195.º do CPC, 197.º, n.º 1 e 199.º do CPC, por violação do princípio do contraditório.

2. A violação do contraditório da Recorrente ocorreu no âmbito do incidente de levantamento do sigilo que impende sobre o documento n.º 1, junto ao requerimento apresentado aos autos pelo recorrido em 03.06.2022.

3. O Tribunal a quo proferiu o despacho de fls. , em 27.03.2023, onde admitiu o requerimento do incidente de levantamento do sigilo, sem observar o contraditório da Recorrente, tempestivamente apresentado em 30.03.2023.

4. No despacho de 27.03.2023 não se encontra qualquer laivo de fundamentação da (des)necessidade de observância do contraditório da Recorrente.

5. Apesar de ter sido proferido em 27.03.2023, o despacho que admitiu o requerimento do incidente de levantamento do sigilo apenas foi expedido para notificação da Recorrente em 03.04.2023, i.e., posteriormente à apresentação do contraditório da Recorrente.

6. A data de elaboração do despacho de admissibilidade do incidente de levantamento do sigilo (27.03.2023) e a data de entrega da pronúncia contraditória da Recorrente (30.03.2023) encontram-se certificadas nos próprios documentos, pelo que, é inequívoco que o Tribunal a quo não considerou o contraditório da Recorrente na tomada da decisão de admissibilidade do Incidente.

7. O juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo o princípio do contraditório, não podendo tomar uma decisão sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre ela se pronunciarem, o que não aconteceu sub judice.

8. O tribunal a quo agiu em manifesta e grosseira violação dos artigos 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa e 3.º, n.º 3 do CPC, i.e., em violação de um princípio elementar de Direito, elevado a princípio constitucional, o contraditório.

9. O tribunal a quo entende que o contraditório da Recorrente ao requerimento do incidente apresentado pelo Recorrido era dispensável, porquanto com base em requerimentos apresentados anteriormente ao requerimento do incidente, em que a Recorrente se opôs à junção do documento aqui em causa, podia adivinhar a posição que a Recorrente ia tomar face ao incidente de levantamento do sigilo profissional.

10. O tribunal a quo procedeu a um exercício de adivinhação que viola manifestamente o princípio do contraditório e que alcançou um resultado errado, atendendo a que os fundamentos invocados pela Recorrente na pronúncia contraditória ao requerimento do incidente nunca haviam sido ditos anteriormente nos autos.

11. Acrescentando, ainda, o tribunal a quo, que não tinha de observar o contraditório porque não lhe cabia a competência de o apreciar, mas antes ao tribunal superior.

12. A pronúncia contraditória da Recorrente ao requerimento do incidente integra todo um conjunto de fundamentos que nunca haviam sido trazidos ao processo, a saber:

inadmissibilidade do incidente por incumprimento dos pressupostos de admissibilidade de que depende, porquanto não se verifica nos autos, desde logo, uma situação de escusa, mas apenas de oposição à junção do documento por constituir prova nula, nos termos do artigo 92.º, n.º 5 do Estatuto da Ordem dos advogados; a incompetência dos tribunais judiciais para conhecer da verdadeira pretensão do Recorrido – sindicar a decisão de indeferimento de levantamento do sigilo do CRPOA – nos termos dos artigos 6.º, n.º 3 do EOA e 4.º, n.º 1, alínea d) do ETAF; a insusceptibilidade de impugnação contenciosa da decisão de indeferimento da Ordem dos Advogados; e a falta de legitimidade do Recorrido para requerer o levantamento do sigilo, reiterando e reforçando, ainda, o entendimento de que, nos termos dos artigos 76.º, 77.º e 80.º do CPC e 34.º da CRP, o Recorrido não poderá beneficiar dos efeitos probatórios do documento em causa.

13. A verificação dos pressupostos de admissibilidade do incidente cabe, em primeira linha, ao tribunal a quo, ainda que a sua decisão não vincule o tribunal superior.

14. O juízo de admissão do incidente de levantamento do sigilo carecia, necessariamente, da verificação e ponderação do contraditório da Recorrente, desde que tempestivamente exercido, como o foi, sob pena de constituir, como constitui, uma decisão surpresa.

15. Não tendo decidido pela efetiva violação do contraditório, o despacho recorrido nega à Recorrente o acesso a um processo justo e equitativo, onde ambas as partes em litígio devem poder intervir e influenciar a decisão, em condições de absoluta igualdade ou paridade.

16. A violação do princípio do contraditório é suscetível de influir no exame ou na decisão da causa e constituiu nulidade processual nos termos do artigo 195.º do CPC.

17. O despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que defira a nulidade arguida e anule todo o processado posteriormente a 17.03.2023 e até à apresentação da pronúncia contraditória da Recorrente, que contenda com o incidente de levantamento de sigilo profissional suscitado pelo Recorrido, nomeadamente o segmento decisório constante do despacho de fls. , proferido em 27.03.2023, sob a epígrafe “Req. De 17-3-2023 com a ref.ª 35099281”, bem como os atos que, em consequência do mesmo, se lhe seguiram.

18. O despacho recorrido violou o disposto nos artigos 20.º, n.º 5 da CRP, 3.º, n.ºs 1 e 3, 195.º e 417.º, todos do CPC e 135.º do CPP.

Não foram produzidas contra-alegações.

Nesta Relação por despacho da relatora, de 16.1.2024, foram as partes notificadas para se pronunciarem quanto ao disposto no art. 665.º, n.ºs 1 e 3, CPC.

No decêndio, o A. apresentou, afinal, contra-alegações de recurso[7] (que não poderão ser consideradas agora porquanto extemporâneas.

Por sua vez, a Ré afirmou que, na hipótese de procedência da nulidade do despacho que determinou o incidente de levantamento do sigilo profissional, entende que o Tribunal a quem está em condições de se pronunciar sobre o objeto principal, i.é, da (in)admissibilidade do incidente.

Objeto do recurso:

-  se é nulo o despacho de 27.3.2023;

- se, sendo o mesmo inválido, é admissível a substituição ao tribunal recorrido decidindo sobre a admissibilidade do putativo levantamento do sigilo profissional.

FUNDAMENTAÇÃO

Fundamentos de facto

Os factos que interessam à decisão respeitam ao iter processual acima descrito.

Fundamentos de direito

Está em causa saber se, não tendo ouvido a Ré sobre o pedido de levantamento do sigilo profissional, o tribunal a quo proferiu uma decisão – a de suscitar para esta Relação a decisão sobre o levantamento do sigilo – que será nula, por violação do disposto no art. 3.º, n.º 3, CPC, tendo decidido questões de direito sem que a demandada tenha tido oportunidade de se pronunciar.

Antes de mais, importa observar que, quando suscitou tal incidente, o A. havia procedido à notificação da mandatária da Ré, nos termos do art. 221.º CPC.

Essa notificação, ocorrida a 17.3.2023, presume-se efetuada no terceiro dia posterior (art. 255.º CPC), i.é, a 20.3.2023.

A pretender pronunciar-se sobre tal requerimento, a Ré poderia fazê-lo nos dez dias seguintes, até 30.3.2023 e, pretendendo fazer-se valer dos três dias com multa previstos no art. 139.º, n.º 5, CPC, tal prazo estender-se-ia (por força do interregno das férias de Páscoa) até 3.4.2023.

A Ré fê-lo a 30.3.2023.

O despacho judicial que decidiu ter existido recusa legítima na junção de documentos e que, por isso, suscita o incidente de levantamento do sigilo profissional foi proferido a 27.3.2023.

Tratando-se de despacho que decidiu se houve recusa na junção de documentos baseada em sigilo profissional e que decidiu ser tal recusa legítima, seguiu o disposto no art. 417.º, n.ºs 3 e 4 do CPC, remetendo este último, como se sabe, para o art. 135.º CPP.

Com efeito, ao incidente sobre levantamento de segredo profissional, em processo civil, aplica-se o regime previsto no art. 135.º CPP, por força das normas remissivas do CPC.

De acordo com o n.º 4 do art. 135.º CPP, o incidente está dividido em duas fases: uma referente à questão da legitimidade da escusa, outra referente à questão da justificação da escusa. Só o tribunal a quo é competente para avaliar a legitimidade da escusa ou mesmo sobre se está em causa verdadeira escusa.

Estando em causa a profissão de advogado, o regime do segredo profissional encontra-se disciplinado no Estatuto da Ordem dos Advogados, regulado pela Lei 145/2015, de 9.9.

Sobre o sigilo profissional dispõe o art. 92.º daquele Estatuto, delimitando de forma rígida quer o seu âmbito, quer as condições de dispensa. Nestas últimas, a par de um apertado critério substancial (desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes), não deixa de se fazer alusão à competência da Ordem dos Advogados para conceder, ela mesma, aquela dispensa.

Não faz qualquer fé em juízo o depoimento (ou documento) prestado sem salvaguarda dos requisitos materiais e formais da dispensa do segredo (n.º 5).

Na situação que nos ocupa, o A., advogado, solicitou a seu tempo dispensa do sigilo profissional para juntar aos autos documentos relativos à sua relação profissional com a Ré, sociedade de advogados.

Obteve essa dispensa para um conjunto de documentos que não os que aqui estão em causa.

Não obstante, o A. juntou aos autos documentos cobertos sob o manto do segredo profissional e não obteve prévia autorização para o efeito, seja da OA, seja do Tribunal da Relação.

Tendo sido suscitado incidente de quebra de sigilo, parece-nos evidente que cabia à Ré pronunciar-se sobre a respetiva admissibilidade, nomeadamente expressando-se sobre a (i) legitimidade da escusa e sobre se, realmente, haverá escusa no caso em que os documentos sigilosos já estão nos autos.

A Ré fê-lo oportunamente.

Porém, o tribunal decidiu sobre o tema, antes de ser junta aos autos a posição da demandada.

Não existe, pois, dúvida, de que foi proferido um despacho sobre uma questão de direito – decisão sobre a legitimidade de escusa com vista a incidente de levantamento de segredo profissional – com violação do princípio do contraditório.

Como já referido no ac. desta Relação e secção, de 2.12.2019, Proc. 14227/19.8T8PRT.P1: «A (…) conceção ampla do princípio do contraditório, também já há muito defendida pelo Professor Lebre de Freitas para o processo civil, traduz um direito à fiscalização recíproca ao longo do processo visto como uma “garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”. Esta vertente do contraditório, que surgiu no nosso direito processual como uma inovação, revela grandes potencialidades práticas em termos de cooperação, de lealdade recíproca dos vários intervenientes processuais e de eficácia das decisões judiciais que passam, sempre, a ser previstas pelas partes.

E, na medida em que garante a igualdade das partes - pela possibilidade de pronúncia e resposta - leva a que, mais fácil e frequentemente, se obtenha a verdade material e que a solução do litígio seja a mais adequada e justa, logrando-se atingir num maior número de casos a realização dos verdadeiros objetivos finais de que o processo é um mero instrumento para alcançar.

Como vimos, e como refere o ilustre professor Lebre de Freitas, cuja lição vimos seguindo, o princípio do contraditório materializa-se, pois, em todas as fases do processo - quer ao nível dos factos, quer ao da prova, quer ao do direito propriamente dito - tendo as partes, em todos estes níveis, direito a, de modo participante e ativo, influenciar a decisão, tentando convencer, em cada momento e ao longo de todo o processo, o julgador do acerto da sua posição.

Ao nível do direito, o princípio do contraditório impõe que, antes de ser proferida a decisão final, seja facultada às partes a discussão de todos os fundamentos de direito em que a ela vá assentar, sendo aquele princípio o instrumento destinado a evitar as decisões surpresa.»

A não observância do contraditório constitui uma nulidade que a Ré arguiu no prazo de dez dias após notificação do despacho de 27.3.2023.

E, não há dúvida que a audição prévia da Ré sobre o incidente – sobra a sua (in) admissibilidade – pode influenciar, tanto a decisão sobre o mesmo incidente, como mesmo a decisão final relativa ao mérito da causa, por se tratar de documentos de prova de factos alegados por uma das partes. Casos os documentos sejam mantidos nos autos, poderão incidir sobre factos que prejudiquem a parte impugnante.

Sobre as consequências da violação do princípio do contraditório, já anteriormente se pronunciou a relatora, por exemplo no ac. desta RP de 8.2.2021, no Proc. 6854/18.7T8PRT-A.P1, onde se escreveu, entre o mais, o seguinte:

(…) reproduzimos aqui o que já anteriormente expusemos no nosso acórdão de 3.6.2019 (Proc. 3781/18.T8AVR.P1):

«Quando o juiz, findo o período dos articulados e considerando o estado do processo, entender que dispõe de condições para decidir já o mérito da causa [ou de exceção dilatória], essa decisão será incluída no despacho saneador, a proferir, em princípio, na audiência prévia (arts.591.º/d, 595.º/1/b e 595.º/2).
A audiência prévia destina-se a facultar às partes uma discussão sobre as vertentes do mérito da causa que o juiz projeta decidir.

O juiz não deve decidir o litígio sem um debate prévio, no qual os advogados das partes tenham a oportunidade de produzir alegações orais, de facto e de direito, acerca do mérito da causa [ou de exceção processual].

Nessas alegações, as partes poderão tecer os considerandos que tenham por convenientes, no sentido de justificar e fundamentar a procedência das respetivas pretensões, além de poderem tomar posição sobre eventuais exceções peremptórias não discutidas nos articulados, mas que o juiz entenda poder conhecer oficiosamente.
Deve ser proporcionada às partes a possibilidade de produzirem alegações quando o juiz se proponha decidir o mérito da causa num enquadramento jurídico diverso do assumido e discutido pelas partes nos articulados.

A realização de audiência prévia impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão surpresa (situação proibida pelo art.3.º/3[1]) e impede os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz.

Não determinando a realização de audiência prévia, a intenção de conhecer do mérito da ação no saneador deverá ser precedida de audição das partes por escrito, sendo estas notificadas especificamente para o efeito.»

Na situação dos autos, nenhuma destas atuações ocorreu e isso é suficiente para considerar nulo o processado[8].

Para Lebre de Freitas, a consagração do princípio da proibição das decisões surpresa, resulta de uma conceção moderna e mais ampla do princípio do contraditório,“[…]com origem na garantia constitucional do Rechtiches Gehör germânico, entendido com uma garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”. O princípio do contraditório no plano das questões de direito exige que antes da sentença, às partes seja facultada a discussão efetiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie”[9].

Ora, as nulidades processuais “são quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidade mais ou menos extensa de aspetos processuais“[10].

Atento o disposto nos art. 195.º e ss. CPC, as nulidades processuais podem consistir na prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei ou realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.

A omissão do exercício do contraditório não constitui uma nulidade principal, pois não consta do elenco das nulidades previstas nos arts. 186.º a 194.º e 196.º a 198.º do CPC.

Representa, pois, a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreve, que integra a previsão do art. 195.º CPC e, por isso, configura uma irregularidade que só determina a nulidade do processado subsequente àquela omissão se influir no exame e decisão da causa, estando o seu conhecimento dependente da arguição, nos termos previsto no art. 199.º CPC[11].

Uma irregularidade pode influir no exame e decisão da causa, se comprometer o conhecimento da causa, a instrução, discussão e o julgamento.

A nulidade processual é distinta da nulidade da sentença, uma vez que a nulidade por falta de pronúncia, a que alude o art. 615.º, n.º 1 d) CPC está diretamente relacionada com o comando do art. 608.º, n.º 2 do mesmo Código, reportando-se ao não conhecimento das questões (que não meros argumentos ou razões) relativas à consubstanciação da causa de pedir e do pedido.

Nos termos do art. 615.º n.º 1, al. d) CPC a sentença é nula, quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

O vício em causa está relacionado com a norma que disciplina a “ordem de julgamento” – art. 608.º, n.º2 CPC.

Resulta do regime previsto neste preceito, que o juiz na sentença: “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.

Pode considerar-se que a “omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo princípio do contraditório destinado a evitar decisões-surpresa”, configura a nulidade da sentença/despacho, por omissão de pronúncia. Nestas circunstâncias o juiz está a tomar conhecimento de questão não suscitada pelas partes, sem prévio exercício do contraditório.

Esta interpretação revela-se coerente com a atual conceção do principio do contraditório, entendido como “garantia de participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objeto da causa e que em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão”[12].

No caso presente verificando-se a omissão do prévio exercício do contraditório, perante uma questão de direito suscitada oficiosamente e que ditou o fim da ação, a sentença é nula, nos termos do art. 615.º, n.º 1 d) CPC.

Todavia, aqui chegados há que operar com a regra da substituição ao Tribunal recorrido, prevista no art. 665.º CPC.

Com efeito, não obstante tratar-se de sentença nula, a decisão deste tribunal não será a de remessa dos autos à primeira instancia para prolação de nova decisão, mas, se o processo já contiver elementos suficientes para o efeito, decidir sobre a questão de fundo (…).

Aqui chegados, ter-se-ia que anular o despacho que determinou a existência de legitimidade da escusa e toda a tramitação subsequente, ordenando o prosseguimento dos autos para que o tribunal a quo se pronunciasse sobre os temas do requerimento apresentado pela Ré, a 30.3.2023, uma vez que foi preterido o contraditório.

O argumento que se imporia logo após – o da inexistência de recusa com base em sigilo profissional – suscitaria a aplicação da regra da substituição do tribunal recorrido, prevista no art. 665.º CPC, como, a seu tempo, já se cogitou.

Na verdade, o art. 665.º permite se conheça do tema o do objeto da apelação, ainda que se julgue nula a decisão.

Cremos que a regra da substituição se aplica a decisões sobre os temas de fundo, designadamente decisões finais, mas também a decisões proferidas, por ex., em incidentes (ac. RP, de 14.7.2020, Proc. 1467/15.8T8STS-J.P1).

Todavia, pode bem equacionar-se, aqui, como o faz a doutrina e a jurisprudência, não se estar perante uma nulidade da sentença decorrente do disposto no art. 615.º, designadamente por omissão (ou excesso) de pronúncia nos termos anteriormente abordados, quando o que ocorre é a violação do princípio do contraditório, mas sim de um vício da decisão com implicações procedimentos, ou seja, de uma nulidade inominada da decisão.

E, se assim for, pode a parte prejudicada colocar a questão da nulidade (processual) em sede de reclamação – amparo horizontal reclamatório -  e/ou em sede recurso.

Sendo assim, afigura-se-nos, com Rui Pinto[13]:

«Pergunta-se se as nulidades dos artigos 615 n.º 1, e 666.º, n.º 1 são as únicas de que pode padecer uma sentença ou despacho. A resposta é negativa: como qualquer outro ato processual, a própria decisão judicial pode padecer das nulidades inominadas do artigo 195.º, n.º 1. Assim, suponha-se que a sentença ou decisão é proferida parcialmente no início da audiência de julgamento, antes da produção de prova ou das alegações, ou que constitui uma decisão surpresa, com violação do artigo 3.º, n.º 3, ou que se trata de um despacho que ordena a citação do requerido para um procedimento cautelar que não admite citação prévia (cf. artigo 378.º). A decisão não pode deixar de ser nula. Mas, como impugnar essas nulidades quando não caiba recurso? A questão não é líquida.

Alguma doutrina admite que no primeiro exemplo, sendo um ato processual fora do momento devido, a nulidade processual pode ser ainda arguida em 10 dias, nos termos combinados daquele artigo 195.º, n.º 1, e do artigo 149.º[14]. A ser assim, da subsequente decisão caberia recurso nos termos gerais, quando admissível naturalmente. Já quanto à decisão surpresa alguma jurisprudência comina-a como uma situação de excesso de pronúncia, subsumível à al. e), in fine, do n.º 1 do artigo 615.º[15] . Mas uma solução que admita a arguição junto do juiz decisor de uma nulidade da decisão fora da excecionalidade do artigo 615.º deve ser harmonizada com o princípio do esgotamento do poder desse juiz. A harmonização é possível: o mesmo juiz decisor pode conhecer das nulidades inominadas (cf. artigo 195.º, n.º 1) que respeitem ao procedimento, mas, não, à matéria da causa. Assim, o juiz pode conhecer da arguição de nulidade da prematuridade da sua decisão porquanto não respeita à matéria da causa.

Porém, o juiz não pode conhecer da arguição da nulidade de decisão surpresa, pois esta é atinente ao objeto da causa, salvos os casos em que esta também constitua excesso de pronúncia.»

Do exposto defluem as seguintes conclusões:

- quando o tribunal decida sobre determinado tema sem possibilitar a tomada de posição prévia das partes e se trate de assuntos que diretamente lhes interessam (como sucede com a admissão ou não de um meio de prova), obnubila um formalismo legal e processual que inquina a própria decisão, não quanto ao fundo, mas quanto ao procedimento;

- sendo assim, não há pronúncia (ou omissão) quanto a determinado tema (processual ou substantivo), mas violação procedimental;

- essa violação pode ser arguida em sede de reclamação por nulidade processual ou por via de recurso, atacando a própria validade da decisão tomada sem estarem reunidas as condições legais para o efeito;

- tendo a parte lançado mão do primeiro procedimento, não fica impedida de, na sua improcedência, ver conhecida a questão em sede de recurso;

- a ser procedente esse recurso, a decisão que assim é mediatamente atacada (a proferida com preterição do disposto no art. 3.º/3 CPC) é nula, mas não opera a substituição do tribunal recorrido, falando-se apenas de cassação, porquanto há que conceder oportunidade ao tribunal para se pronunciar sobre os argumentos que eventualmente não tenha tido em consideração quando decidiu sem ouvir a parte.

No nosso caso, são vários os fundamentos de inadmissibilidade do incidente levantados pela Ré e não conhecidos pelo tribunal recorrido, sendo o primeiro, desde logo, a ausência de escusa sobre a junção de documentos, pois não consta que tenha sido solicitado à Ré que juntasse tais documentos ao processo.

Não se pronunciou o tribunal sobre a relevância de uma escusa tardia ou sobre a eventual licitude ou ilicitude de ser suscitado um incidente perante a Relação para que permita a junção de documentos, quando estes já estão juntos aos autos e o que apenas se pretende – ao que parece – é tornar lícita uma atitude aparentemente ilícita.

Não pode, assim, falar-se de escusa tácita (ou expressa) de uma parte se a mesma não foi notificada para prestar colaboração com o tribunal, nos termos do art. 417.º CPC, e se limitou a opor-se posteriormente à junção anterior de documentos por uma parte que se encontrava, também ela, sob o jugo da confidência e da reserva profissional.

Também se não pronunciou o tribunal a quo sobre o demais contido no requerimento da Ré de 30.3.2023 e acima transcrito.

Por este motivo, não pode o recurso senão proceder, sendo nulo o despacho de 27.3.2023 e todo o processado operado desde então e que dele dependa.

DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste tribunal da Relação em julgar o recurso procedente, anulando o despacho de 27.3.2023 e todo o processado ulterior que dele dependa.

Custas pela recorrente (art. 527.º, n.º1, parte final do CPC).

Dê-se conhecimento desta decisão ao apenso A.


Porto, 19.2.2024.
Fernanda Almeida
Eusébio Almeida
Mendes Coelho
_____________________
[1] Juntou certidão com o seguinte teor: O Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados
Portugueses:
Certifica que é do teor seguinte o despacho exarado pelo Exmo. Vogal deste Conselho Regional do Porto, com competência delegada, Sr. Dr. BB, a propósito da consulta feita pelo Sr. Dr. AA, sobre dispensa de Segredo Profissional nº ...-P
“Em conformidade com o acima vertido, que aqui se dá por reproduzido, autoriza-se o Requerente a juntar à ação de honorários a propor contra a A..., SOCIEDADE DE ADVOGADOS, SP, RL e a revelar em juízo os factos neles versados os seguintes documentos: i) conjunto de e-mails trocados entre 16.11.2020 a 17.12.2020; ii) e-mail de 23.12.2020; iii) conjunto de e-mails trocados entre 07.01.2021 a 11.02.2021; iv) e-mail de 21.04.2021; v) e-mails trocados no dia 03.05.2021; vi) e-mails trocados nos dias 09 e 10.05.2021; vII) conjunto de e-mails trocados entre 09.05.2021 a 28.06.2021; viii) conjunto de e-mails trocados entre13.07.2021 a 02.09.2021; e ix) conjunto de e-mails trocados entre 20.01.2021 a 02.02.2021 e no dia 10.09.2021.”
[2] Trata-se de troca de emails entre A. e Ré, com o seguinte conteúdo:
De: AA <...>
Enviado: 26 de maio de 2022 20:16
Para: AA
Assunto: Fwd: FW: Pedido de informação
Anexos: SRECURSOS ...40.pdf; ...; ...;
Ata_AG_193.pdf
---------- Forwarded message ---------
De: CC <...>
Date: terça, 22/12/2020 à(s) 13:13
Subject: FW: Pedido de informação
To: AA <...>
Caro João,
Envio o que acabei de receber.
Um abraço,
CC
De: DD <...>
Enviada: 21 de dezembro de 2020 22:01
Para: CC <...>
Assunto: RE: Pedido de informação
Caro Dr. CC,
Como cominado, junto envio:
- Declarações de rendimento de 2018 e 2019 do Sr. EE e da D. FF.
- Ata AG n.º 193 (distribuição de resultados acumulados – 2017)
- Ata AG n.º 198 (distribuição de parte das reservas livres aos acionistas - 2018)
Doc. 1
2
- Ata AG n.º 203 (distribuição dos dividendos relativos a 2019)
Estão ainda em falta as declarações de modelo oficial (Modelo 30). Vou insistir para obter esses dados.
Obrigada,
Com os melhores cumprimentos,
_______________________________
DD
(Assessora da Administração)
Telf.: ...00| Tlm: ...94 | Fax.: ...90
De: DD
Enviada: 15 de dezembro de 2020 11:27
Para: 'CC' <...>
Assunto: RE: Pedido de informação
Caro Dr. CC
Junto envio as atas descritas no ponto 3:
 2017: Ata n.º 194
 2018: Ata n.º 199
 2019: Ata n.º 201
Relativamente à restante informação, irei solicitar a mesma internamente e logo que possível, envio-lhe.
Obrigada,
Com os melhores cumprimentos,
________________________________
3
DD
(Assessora da Administração)
Telf.: ...00| Tlm: ...94 | Fax.: ...90
De: CC [mailto:...]
Enviada: 14 de dezembro de 2020 17:31
Para: DD <...>
Assunto: Pedido de informação
Cara Dra DD,
Tendo em vista um estudo que o Sr. EE pediu quanto à constituição de uma empresa familiar para deter as
ações da B..., pode conseguir-me os seguintes elementos?:
1) Cópia das declarações que o seu cliente (pessoa singular) deverá ter recebido em Janeiro de cada ano
relativamente ao ano anterior, da parte da empresa, relativamente aos rendimentos que lhe tenham sido
pagos pela empresa no anterior, relativamente aos anos de 2018 e 2019 (portanto, recebidas em 2019 e
2020). Estas não obedecerão a um modelo oficial e deverão consistir, à partida, numa carta ou documento
similar;
2) Cópias das declarações de modelo oficial (Modelo 30) entregues pela empresa (declaração de
rendimentos pagos e retenções efetuadas a não-residentes pela entidade pagadora), relativas aos
exercícios de 2018 e 2019;
3) Atas de deliberação de aprovação de contas e afetação de resultados da empresa relativamente aos
últimos três exercícios: 2017, 2018, e 2019.
Obrigado e cumprimentos,
CC
[3] Entre mais, consignou-se nessa decisão: “mesmo que se entenda que os documentos poderiam ser objecto de decisão favorável, a partir do momento em que foram juntos aos Autos, não é mais possível emitir decisão, seja ela favorável ou de indeferimento do levantamento, porquanto com a sua junção os documentos deixaram de estar sob sigilo”.
[4] Cremos tratar-se de A. e não de Ré.
[5] Requerimento que aqui se reproduz parcialmente:
2.º
Previamente ao presente incidente, mas já após ter junto aos autos o referido documento, o Autor requereu junto do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, autorização para juntar aos presentes aquele documento, tentando, dessa forma, obviar aos efeitos do disposto no n.º 5 do artigo 92.º do EOA, invocados pela Ré no contraditório exercido quanto à junção daquele documento.
3.º
Por sua vez, o Conselho Regional da Ordem dos Advogados não acolheu os intentos do Autor, considerando que, uma vez que o Autor divulgou o documento em causa sem prévio pedido de levantamento do sigilo, ficou a apreciação da pretensão do Autor “prejudicada, por falta de objecto”.
4.º
Da decisão do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, de 15.01.2023, não foi pelo Autor interposto recurso para o Bastonário da Ordem dos Advogados, nos termos do artigo 92.º, n.º 4 do EOA e artigo 6.º do Regulamento de Dispensa de Segredo Profissional (RDSP).
5.º
Nem tão-pouco o Autor impugnou contenciosamente aquela decisão.
(…)
12.º
O mecanismo de que o Autor se socorre tem, assim, como objetivo resolver uma situação de conflito entre dois valores protegidos: o interesse probatório legítimo e as razões que justificam a invocação do sigilo profissional.
13.º
Pressupõe, assim, e necessariamente, a escusa a depor ou a juntar um documento aos autos que esteja coberto por sigilo.
(…)
17.º
Aquando da junção do documento aqui em causa, em sede de contraditório e tempestivamente, a Ré logo impugnou aquela junção, requerendo o seu desentranhamento, por se tratar de prova nula, nos termos do artigo 92.º, n.º 5 do EOA.
18.º
Ora, a impugnação da junção do documento não se confunde com uma situação de escusa.
19.º
A junção do referido documento não partiu da Ré, nem a mesma a tal estava ou está obrigada.
(…)
21.º
Jamais foi invocado pela Ré o disposto no artigo 417.º, n.º 3, alínea c) do CPC, precisamente porque a esta nenhuma junção foi ordenada.
22.º
Do mesmo modo, também o Autor não se recusou, de forma legítima, ao cumprimento de um dever processual.
23.º
Ao invés, o Autor agiu em violação do segredo profissional e opôs-se, posteriormente, ao pedido de desentranhamento do documento formulado pela Ré.
(…)
24.º
Não estando em causa uma situação de escusa, falham in totum os pressupostos do incidente previsto no artigo 135.º, n.º 3 e 4 do CPP.
(…)
26.º
Resulta claro do articulado do presente incidente que o Autor nada mais pretende do que sindicar a decisão do Conselho Regional do Porto da Ordem dos Advogados, proferida em 13.01.2023.
Sucede que,
27.º
A pretensão do Autor não pode ser acolhida, quer pelo Tribunal de 1ª Instância, quer pelo Tribunal da Relação.
(…)
29.º
Por outro lado, para além da possibilidade de recurso administrativo de que o Autor abdicou, conformando-se com a decisão, a sindicância da supra identificada decisão, a ser admissível, é da competência dos Tribunais Administrativos, porquanto, nos termos do artigo 6.º, n.º 3 do EOA “[d]os atos praticados pelos órgãos da Ordem dos Advogados cabe, ainda, recurso contencioso para os tribunais administrativos, nos termos gerais de direito”.
30.º
Preceito esse reforçado pelo artigo 4.º, n.º 1, alínea d) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, onde se prevê que é da competência dos Tribunais Administrativos a “[f]iscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos”.
31.º
Por fim, dúvidas não restam que a Ordem dos Advogados é uma pessoa coletiva de direito público sob a forma de associação pública. – Cfr. artigo 1.º do EOA.
(…)
33.º
Dito isto, sempre deverá ser determinada a incompetência absoluta para conhecer do pedido formulado pelo Autor, com a consequente absolvição da Ré da instância.
Sem prescindir,
(…)
34.º
Para além do acima transcrito e de, em abstrato, as decisões da Ordem dos Advogados poderem ser sindicadas contenciosamente pelos Tribunais Administrativos e Fiscais, sempre se diga que, in casu, tal possibilidade estaria vedada ao Autor.
35.º
Em primeiro lugar, porque não usando dos meios de recurso administrativo que estavam ao seu alcance, o Autor conformou-se com a decisão proferida em 13.01.2023, que se tornou definitiva.
Além disso,
36.º
A decisão sindicada pelo Autor também não é impugnável contenciosamente, porquanto aquele ato foi praticado no uso de discricionariedade técnica, e permitir o recurso contencioso seria, precisamente, permitir a revelação de factos cobertos pelo sigilo.
(…)
39.º
O levantamento do sigilo que incide sobre o documento objeto dos presentes autos – e sobre os factos que dele constam – versa sobre correspondência trocada entre a Ré e a sua cliente.
40.º
Pelo que, para além de não poder ser utilizado pelo Autor nos termos dos artigos 76.º, 77.º e 80.º do Código Civil e 34.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa,
41.º
Também o Autor carece de legitimidade para requerer o levantamento do sigilo que incide sobre o documento e sobre os factos dele constantes.
42.º
Veja-se que, tratando-se de correspondência trocada entre a Ré e a sua cliente, em primeiro lugar cabe à Ré a legitimidade para obter o levantamento do sigilo.
43.º
Só após autorizado o levantamento do sigilo à Ré teria o Autor legitimidade para requerer o levantamento.
44.º
Contudo, e como se disse, ainda que levantado o sigilo, o que não se verificou, jamais o Autor podia beneficiar dos efeitos probatórios de tal documento, conforme referido em 40.º supra.
(…)
[6] Esclarecemos agora que estas datas são posteriores à junção dos documentos em crise pelo A., que o fez por requerimento de 3.6.2022.
[7] Invocando, por exemplo, a inadmissibilidade formal do recurso.
[8] Ac. RP. de 27.9.2017, Proc. 136/16.6T8MAI-A.P1: I - O art. 591.º do CPC estabelece a regra: realização da audiência prévia; os artigos seguintes ocupam-se das excepções: o art. 592.º dos casos em que a audiência prévia não tem lugar, o art. 593.º dos casos em que a audiência prévia pode ser dispensada. II - Quando a acção houver de prosseguir (i.é., não deva findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados) e o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa (ou apreciar excepção dilatória que não tenha sido debatida nos articulados ou que vá julgar improcedente) deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento. III - A não realização da audiência prévia nos casos em que a mesma tem lugar e não pode ser dispensada gera uma nulidade processual, não obstando a isso a circunstância de previamente à decisão o juiz ter anunciado às partes que se julgava em condições de decidir de mérito. IV - Mesmo que se admita que se as questões a decidir forem muito simples e a decisão sobre elas for pacífica na jurisprudência e na doutrina, o juiz poderá, no uso do poder de simplificação e agilização processual e adequação formal, não realizar a audiência prévia, a decisão de não a realizar deverá ser fundamentada e precedida do convite prévio às partes para se pronunciarem sobre a possibilidade de o fazer e, querendo, alegarem por escrito o que iriam sustentar oralmente na audiência se esta tivesse lugar. Ac. RL, de 11.12.2018, Proc. 103/16.0T8OER-A.L1-2: Entendendo o Tribunal a quo que podia conhecer, em sede de despacho saneador, acerca do mérito da acção, deveria, prima facie, em cumprimento do prescrito na alínea b), do nº. 1, do artº. 591º, do Cód. de Processo Civil, convocar audiência prévia; - Não o fazendo, incorreu na prática de irregularidade que, podendo influir no exame ou na decisão da causa – artº. 195º, do CPC -, se transmuta ou converte em nulidade processual, dado ter sido praticado um acto que a lei não admite, qual seja o de dispensar a realização da audiência prévia quando esta dispensa não era legalmente sancionada; - Porém, sempre se poderia argumentar, em defesa da posição assumida, que o Tribunal a quo teria feito uso do poder de gestão processual, na vertente ou segmento do poder de simplificação e agilização processual, nos quadros do legalmente prescrito nos artigos 547º e 6º, ambos do Cód. de Processo Civil, sendo normalmente esta situação admitida apenas quando as questões a decidir forem muito simples e a decisão sobre as mesmas for pacífica, jurisprudencial e doutrinariamente; - Ora, a entender-se a possibilidade de recurso ao presente mecanismo, mesmo nas situações em que a lei impõe a regra da realização da audiência prévia, a decisão de prescindibilidade desta, para além de dever ser fundamentada nesses quadros, o que não sucedeu, sempre deveria ser precedida de devido convite às partes (Embargante e Embargado) para se pronunciarem acerca da possibilidade de tal dispensa e da permissão destas se pronunciarem, por escrito, nos termos em que o iriam fazer oralmente em sede de audiência, se esta tivesse lugar, o que igualmente não ocorreu;- Pelo que ocorrendo o vício de nulidade da decisão que dispensou a realização da audiência prévia, tal determina a nulidade dos actos praticados subsequentemente a tal decisão e que da mesma dependam em absoluto, ou seja, e in casu, o proferido saneador sentença, devendo ser proferida decisão a convocar as partes (Embargante e Embargado) para a audiência prévia omitida, nos termos e para os efeitos do artigo 591º, nº. 1, do Cód. de Processo Civil, ou, em alternativa, ser proferido o despacho previsto nos artºs 547º e 6º, do Cód. de Processo Civil, convidando as partes a pronunciar-se sobre a possibilidade de dispensa desta diligência, sobre eventuais excepções e sobre o mérito da causa. RG, de 17.1.2019, Proc. 4833/15.5T8GMR: I – Entendendo o juiz, após a fase dos articulados, que os autos contêm os elementos necessários a habilitá-lo a proferir decisão de mérito que ponha termo ao processo, impõe-se a convocação de audiência prévia para o fim previsto no art. 591º/1, b) do CPC. II – A preterição da aludida formalidade processual, que se reputa de essencial, gera para além de nulidade processual a nulidade do saneador-sentença e atenta a influência sobre esta decisão, implica a anulação do processado a fim da tramitação processual regressar ao momento anterior ao despacho que dispensou a realização da audiência prévia, de forma a possibilitar a efectiva audição das partes em sede de audiência prévia, devendo, no despacho que a designar, serem esclarecidos, em concreto, os fins a que se destina.
[9] Introdução ao Processo Civil- Conceito e princípios gerais à luz do novo código, 3ª edição, Coimbra Editora, 2013, p. 124 e 133.
[10] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, p. 156.
[11] Neste sentido, o Ac. STJ 2.7.2015, Proc. 2641/13.7TTLSB.L1.S1, Ac. STJ 29.1.2015, Proc. 531/11.7TVLSB.L1.S1.
[12] Lebre de Freitas, cit, p. 125.
[13] Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º do CPC), Revista Julgar on line, maio de 2020, p. 31 e ss.
[14] Assim, LEBRE DE FREITAS/ ISABEL ALEXANDRE, Código II cit., p. 730.
[15] RE 25-9-2014 /Proc. 380/12.5T2STC.E1 (FRANCISCO XAVIER).