Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3587/21.0T8LOU.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Nº do Documento: RP202402193587/21.0T8LOU.P1
Data do Acordão: 02/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não atua de boa-fé o promissário negocial que, perante a interpelação admonitória dos promitentes vendedores, despreza, sem explicação razoável para o efeito, a notificação para que cumpra e apenas reage quando aqueles resolvem o negócio e sendo certo que, desde há meses, tudo se mostrava conjugado para a celebração do contrato prometido.
II - É mesmo abusivo imputar aos promitentes-vendedores o incumprimento da promessa, para receber o sinal em dobro, dizendo que a habitação não tinha condições de habitabilidade, quando o promissário se propôs ele próprio marcar a escritura já depois de resolvido o negócio pela contraparte, nada dizendo então quanto à falta de tais condições.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 3587/21.0T8LOU.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora, nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:

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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

AUTORA: AA, com domicílio em Portugal, na Av. ..., Lousada.

RÉUS: BB e CC, residentes na Rua ..., freguesia ..., concelho de Lousada.

Por via da presente ação declarativa, pretende a Ré que os AA. sejam condenados a devolver-lhe o sinal em dobro (no total de € 40.000,00), com juros desde a citação, relativamente a contrato de promessa de venda de habitação, celebrado em 2018, por via do qual prometeram vender à A. uma habitação por € 160.000,00, tendo esta pago a título de sinal a quantia € 20.000,00.

Alegou que, estando a promissária contratualmente obrigada marcar a escritura pública, após a entrega pelos RR. dos documentos necessários e do próprio imóvel, antes mesmo de este ter sido entregue e concluído, estes últimos remeteram-lhe carta de fevereiro de 2021, solicitando a marcação da escritura, numa época em que, por força da pandemia, a A., residente no estrangeiro, estava impedida de viajar para Portugal. Os RR. resolveram depois o contrato, por carta de abril de 2021. Nessa sequência, a A. interpelou-os para a remessa da documentação necessária ao ato da venda e para comparência em dia e data aprazada para o negócio, não tendo os RR. comparecido e tendo alienado o imóvel a terceira pessoa.

Contestaram os RR. dizendo que, resolvido por si o negócio, não pode vir a A. pretender receber o sinal em dobro por resolução notificada posteriormente àquela. Mais afirmam estar a habitação concluída e licenciada desde agosto de 2020, com certificado energético de maio desse ano, tendo a A. obtido as chaves do local em fevereiro anterior. Os RR. remeteram a documentação necessária à celebração da escritura, em agosto de 2020, à instituição bancária onde a demandante obteria crédito e para onde instruiu os segundos a tal remessa, o que deram a conhecer à A. Nunca esta, que poderia ter-se feito representar no ato por terceiro, informou os RR. da impossibilidade física de comparência em Portugal para celebrar o contrato prometido.

A A. exerceu o contraditório, afirmando:

- os RR. não tinham fundamento para invocar a resolução;

- os documentos necessários a instruir a escritura não foram enviados para a A., como supunha a cláusula quinta da promessa;

- de fevereiro a abril de 2021, estavam suspensas as viagens de e para o Reino Unido e a A. não tinha como delegar poderes de representação.

Realizado julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 31.8.2023, por via da qual a ação foi julgada procedente e os RR. condenados no pedido.

Desta sentença, recorrem os RR., visando a sua revogação integral, com base nos fundamentos que assim concluem:

A- Tendo sido dado como provada a resolução contratual operada pelos RR., já teria ocorrido a extinção dos efeitos do contrato-promessa entre as partes celebrado, tanto na data de 14 de maio de 2021 (data em que a A. interpela os RR. para celebrarem o contrato definitivo) como na data de entrada em juízo da ação judicial que moveu contra os RR.

B- Tendo os RR. na contestação apresentado uma defesa por exceção perentória, invocando essa mesma extinção dos efeitos do contrato, deveria o douto tribunal “a quo” na sua decisão ter efetuado pronuncia sobre a mesma, o que não sucedeu, constituindo tal omissão uma nulidade nos termos da al. d. do n.º 1 do art. 615 Cód. Processo Civil, nulidade que os RR. invocam.

C- Para que a A. pudesse peticionar o reconhecimento da resolução do contrato promessa de compra e venda, por incumprimento definitivo dos RR, bem como a condenação destes na restituição à A. do dobro do sinal prestado, tendo previamente ocorrido a resolução operada pelos RR., deveria ter peticionado perante o douto tribunal “a quo” que se considerasse sem efeito, por falta de fundamento, essa mesma resolução, peticionado a apreciação dessa mesma legalidade, não contendo o seu pedido tal factualidade, não poderia o douto tribunal “a quo” pronunciar-se sobre o pedido principal da A.

D- Pretendeu a A. na sua petição inicial, resolver aquilo que já se encontrava resolvido, aquilo que não existe, o que é legalmente inadmissível.

E- Se o tribunal “a quo” na sua decisão, dá como provado que a A. indicou uma instituição bancária aos RR. para que estes enviassem a documentação relacionada com o imóvel ((licença de utilização, ficha técnica da habitação, certificado energético, certidão do teor da descrição predial e das inscrições em vigor e ainda a caderneta predial), facto praticado pelos RR., não poderia dar como provado que os RR. não remeteram a documentação indicada no contrato promessa à A., uma vez que são aqueles os documentos legalmente exigíveis para instruir uma escritura publica de compra e venda de um imóvel.

F- Estando provado que a A. indicou tal entidade bancária, e tendo os RR. entregue a documentação necessária a 13 de agosto de 2020, desde esta data que a A. tinha acesso a tais documentos ou pelo menos teria essa possibilidade.

G- Tendo o tribunal “a quo” dado como provado que os RR. não cumpriram o dever de entregar a documentação contratualmente estabelecida, teria que justificar tal fundamentação indicando quais os documentos em falta, não o tendo feito, constitui tal omissão uma falta de fundamentação da decisão, o que consubstancia uma nulidade prevista na a. b. do n.º 1 do art. 615.º do CPC., nulidade que os RR. invocam.

H- O douto tribunal “a quo” ao provar que tais documentos foram enviados pelos RR. à A., e provando o teor desses documentos, emitidos por autoridades administrativas, que o imóvel já estaria pronto para ser habitado, deveria ter dado como provado que o imóvel estaria concluído e pronto para ser habitado.

I- Dar como provado o contrário sem fundamentação de facto relativa a que partes do imóvel não estariam concluídas, constitui uma falta de fundamentação da decisão.

J- Se nos termos contratuais “a primeira outorgante entregará as chaves do imóvel, ficando o segundo outorgante investido na posse do imóvel” bastará para efeitos de atribuição da posse, que os RR. enquanto primeiros outorgantes, promitentes vendedores, entreguem as chaves à A.. Foi desta forma que as partes no contrato promessa determinaram o que constitui “investir na posse”.

K- Dando o douto tribunal “a quo” como provado que a mãe da A. recebeu as chaves do imóvel por parte dos RR., e que a A. após essa entrega foi vista por diversas vezes no imóvel, teria a decisão que concluir que a A. ficou investida na posse do imóvel e que lhe foram fornecidas as chaves do mesmo, não resultando da leitura do contrato promessa que as chaves não pudessem ser entregues em momento anterior à conclusão do imóvel.

L- Tendo a A. interpelado os RR, através de uma carta enviada pelo seu mandatário, na data de 14 de maio de 2021, após os RR. terem efetuado a interpelação admonitória e posteriormente comunicado a resolução do contrato, tendo a A. nessa mesma missiva declarado que se encontrava em mora, tal facto significa que a A. considerava que os RR. já haviam cumprido com a obrigação prévia de entrega das chaves, documentos e atribuído a posse o imóvel à A., cabendo à A. o cumprimento da obrigação de agendamento da escritura de compra e venda nos moldes prometidos.

M- Tendo a A. agendado a escritura publica de compra e venda do imóvel prometido, comunicando tal facto aos RR., tendo posteriormente peticionado em tribunal a resolução da promessa com base no incumprimento dos RR. não da obrigação de celebração da compra e venda, mas pelo contrário, da obrigação prévia de terminarem a construção e da entrega das chaves, adotou a A. um comportamento que permitiria concluir pela figura jurídica do “venire contra factum próprium”, não agindo bom boa fê objetiva, com honestidade ou lealdade, uma vez que não poderia agendar a compra e venda do imóvel caso não considerasse o imóvel concluído e apto para a sua habitação.

N- Se a A. contribui de forma decisiva para que o contrato definitivo não seja celebrado, “destruindo” o contrato promessa, não poderá receber o dobro do sinal prestado.

Não foram apresentadas contra-alegações.

FUNDAMENTAÇÃO

Matéria de facto provada

O tribunal a quo deu como provados os seguintes factos:

1. A autora, como segunda outorgante, e os réus, como primeiros outorgantes, celebraram um contrato promessa de compra e venda no dia 14 de setembro de 2018.

2. Por força do aludido contrato, os réus declararam ser donos e legítimos proprietários do prédio urbano, destinado habitação, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho de Lousada, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o artigo ... – Parcela Destacada, resultante do destaque, mais precisamente, na parte direita do mesmo.

3. E comprometeram-se a construir uma habitação de tipologia T3, rés do chão, e “comprometeram-se a entregar o imóvel, totalmente acabado e em perfeitas condições de habitabilidade ao Segundo Outorgante, previsivelmente um ano a contar da data de licenciamento camarário”, de acordo com o caderno de encargos que anexaram.

4. As partes convencionaram que o preço para a aludida compra e venda seria de € 160.000,00 (cento sessenta mil euros).

5. A título de sinal e princípio de pagamento, a autora entregou aos réus, que receberam, a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros), através de transferência bancária.

6. As partes ajustaram ainda que o remanescente do preço, no valor de € 140.000,00 (cento quarenta mil euros), seria pago pela autora aos réus, na data da outorga da escritura de compra e venda.

7. Tendo igualmente fixado que após a entrega do imóvel, “a Primeira Outorgante[1] deverá reunir e entregar ao Segundo Outorgante[2], toda a documentação que se mostre necessária, para que este proceda à marcação da escritura pública definitiva de compra e venda, informando a Primeira Outorgante da data e local da sua realização, com antecedência mínima de 5 (corridos), por carta registada com aviso de receção”.

8. Foi ainda acordado naquele pacto, na sua cláusula terceira, que: “A primeira outorgante compromete-se a entregar o imóvel, totalmente acabado e em perfeitas condições de habitabilidade ao segundo outorgante, previsivelmente um ano a contar da data de licenciamento camarário.”

9. Na cláusula seguinte estabeleceram que: “Para efeitos de execução da cláusula anterior, a Primeira outorgante entregará as chaves do imóvel, ficando o segundo outorgante investido na posse do imóvel.”

10. Na cláusula quinta consensualizaram que: “Após a entrega do imóvel, a Primeira Outorgante deverá reunir e entregar ao segundo outorgante, toda a documentação que se mostre necessária, para que este proceda à marcação da escritura pública definitiva de compra e venda, informando a Primeira outorgante da data e local da sua realização, com antecedência mínima de 5 dias (corridos), por carta registada com aviso de receção.”

11. A 30/11/2018 foi concedido o licenciamento camarário para a construção do imóvel.

12. A licença de utilização foi concedida a 3 de agosto de 2020.

13. Na data de 18/5/2020 o imóvel possuía certificado energético.

14. Na data de 21/5/2020 o imóvel possuía numero de porta.

15. Na data de 13 de agosto de 2020, os réus remeteram à instituição bancária “Banco 1...”, indicada pela autora, a documentação pedida relativa ao imóvel para a concessão do crédito bancário, onde se incluía a licença de utilização, ficha técnica de habitação, certificado energético, certidão do teor da descrição predial da e das inscrições em vigor e ainda caderneta predial.

16. Foi entregue à mãe da autora uma chave de acesso à obra após a realização dos trabalhos de serralharia, em fevereiro de 2020, tendo a autora visitado o local.

17. Em 1 de março de 2021, a autora recebeu uma missiva datada de 26 de fevereiro de 2021, no seu domicílio em Portugal, indicado no pacto, na qual os réus informam que: “o contrato venceu em 30.11.2019, venho por este meio informar que os documentos para a realização da escritura já vos foram fornecidos, pelo que a escritura terá de ser agendada.

Assim, solicito a V. Exa. que o faça no prazo de um mês a contar do dia de hoje e me informe com antecedência de 10 dias, o local, dia e hora para a realização da escritura. Na falta de resposta no prazo legal, presumirei que desistiu do negócio.”

18. Em 5 de maio de 2021 a autora recebeu uma missiva datada de 30 de abril anterior, na qual os réus declararam que o aludido contrato promessa de compra e venda: “está resolvido devido ao incumprimento definitivo da sua obrigação contratual de agendar e outorgar como compradora na escritura definitiva de compra e venda do imóvel”

19. A autora retorquiu remetendo aos réus uma missiva datada de 14 de maio de 2021, manifestando estupefação na intenção dos Réus não cumprirem com o contrato promessa, alegando incumprimento definitivo por parte da Autora, solicitando a entrega das cópias do cartão, licença de utilização e certificado energético, interpelando para a marcação da escritura, fixada para o dia 4 de junho de 2021, pelas 14 horas[3].

20. Responderam os réus por carta datada de 26 de maio de 2021, referindo que o contrato promessa estava resolvido, pelo que, agendar uma escritura à posteriori daquele facto não faria sentido.

21. Os réus não compareceram à escritura de compra e venda agendada nos termos referidos em 19.

22. Posteriormente, em 28 de setembro de 2021, os réus venderam o imóvel a DD.

23. Os réus sabiam que a autora residia e trabalhava no Reino Unido.

Deu como não provado o seguinte:

A. Que para além do descrito em 16, a autora recebeu outras chaves para acesso ao imóvel e que passou a frequentá-lo.

B. Que para além do mencionado em 15, os réus entregaram à autora a documentação referida.

C. Que a autora se encontrou impedida de se dirigir ao território nacional por força das medidas tomadas contra a pandemia Covid-19, em particular o encerramento de fronteiras, em março de 2021.

D. E que por força das referidas circunstâncias pandémicas, os serviços consulares no Reino Unido se encontravam encerrados nessa ocasião.

Fundamentos de Direito
Iniciaremos a exposição por refutar a afirmação dos recorrentes segundo a qual se verifica nulidade da sentença por omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º 1 al. d) CPC).
A A. invoca terem os RR. incumprido o contrato de promessa e os RR. defendem-se dizendo ter sido esta quem falhou o programa negocial.
O tribunal apreciou os fundamentos de ação e da defesa e alinhou por um deles, mas não deixou de resolver a questão que lhe foi colocada pelas partes: saber se houve incumprimento do negociado e a quem fica a dever-se.
Não é, por isso, de vício estrutural da sentença que pode falar-se, mas de eventual discordância quanto ao modo de ponderar a atuação negocial das partes.
É isso que veremos.
O pedido da A. emerge da celebração com os RR. de um contrato de promessa de venda de um imóvel, pretendendo a primeira vê-lo incumprido por culpa dos promitentes vendedores.
O contrato de promessa é o negócio mediante o qual ambos os contraentes, ou apenas um deles, assumem a obrigação de concluir mais tarde o contrato definitivo individualizado no acordo (o art. 410.º, n.º1 Código Civil, refere-se expressamente “à convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato...”).
              Desta configuração legal surge a caraterização da promessa como um contrato meramente obrigacional (pois não lhe são conaturais quaisquer efeitos translativos ou constitutivos), mesmo quando acompanhado da traditio ou quando tenha eficácia real (art. 413.º Código Civil).
               Será bilateral a promessa quando ambos os contraentes assumem a obrigação de estipular o contrato prometido, verificando-se contudo, determinados obstáculos a uma vinculação definitiva. Tais obstáculos podem ter causas materiais (por ex., o edifício prometido vender está ainda a ser construído) ou jurídicas (v.g. falta de elementos documentais) ou simples razões de conveniência.
               A promessa encontra-se sujeita aos requisitos essenciais do contrato prometido – princípio da equiparação (art. 410.º, n.º 1 Código Civil) -, sendo-lhe aplicáveis as disposições relativas àquele. Está, por isso, sujeito à aplicação das normas dispositivas-supletivas (cfr., por ex. os arts. 883.º e 884.º Código Civil) ou imperativas-preceptivas (cfr. arts. 876.º e 877.º) da compra e venda.
              Constituem exceções ao princípio da equiparação as regras relativas aos formalismos exigidos para o negócio definitivo e aquelas que contendam com uma eficácia translativa ou constitutiva do contrato (arts. 879.º, 954.º al. a), 796.º, n.º 1, 886.º, 892.º, 1682.º-A, 1, etc...).
              As exceções ao princípio da equiparação surgem, outrossim, no que concerne às sequelas do seu incumprimento, pois que enquanto o inadimplemento definitivo de qualquer contrato origina uma opção para o credor (resolução ou indemnização compensatória – art. 801.º, nºs 1 e 2 Código Civil), o incumprimento da promessa origina a escolha alternativa entre a execução específica (art. 830.º Código Civil), a indemnização (genérica, em função do sinal ou da cláusula penal, ou pelo valor – art. 442.º Código Civil) e a resolução.
              O não cumprimento culposo por banda de um dos promissários pode ter a ver com o incumprimento de uma das cláusulas do acordo (por ex., ausência de reforço de sinal) ou com a recusa em celebrar o contrato definitivo (na data prevista, na que resultar depois de interpelação ou na fixada judicialmente).
              O não cumprimento pode, assim, provir de causas diversas: recusa categórica de cumprimento, impossibilidade (ex. alienação a terceiro), mora, incumprimento definitivo, nos casos do art. 808.º Código Civil ou quando haja um prazo fixo absoluto.
A resolução pode fazer-se mediante declaração à outra parte, por acordo das partes ou judicialmente (art. 436.º CC).
               Trata-se de um direito potestativo extintivo, dependente de um fundamento.
               Tal fundamento é o incumprimento.
              Ora, o incumprimento é uma categoria mais vasta onde cabem:
 a) o incumprimento definitivo, propriamente dito;
b) a impossibilidade de cumprimento;
c) a conversão da mora em incumprimento definitivo – art. 808.º, nº1 Código Civil;
d) a declaração antecipada de não cumprimento e a recusa categórica de cumprimento, antecipada ou não;
 e) e, talvez ainda, o cumprimento defeituoso.
              A impossibilidade de cumprimento, total ou parcial, nem sequer tem de ficar a dever-se a culpa do devedor (art. 793.º, nº2 Código Civil), mas o inadimplemento que torna possível a resolução tem de revestir gravidade suficiente para pôr em crise o programa negocial.
Quem, in casu, incumpriu a promessa? A. ou RR.?
É certo terem as partes fixado no contrato de 2018 um termo para celebração de contrato definitivo. Diz-se na cláusula quinta que a escritura seria marcada pela promitente-compradora, logo que:
- lhe fosse entregue o imóvel;
- os promitentes vendedores lhe entregassem a “documentação necessária”.
O imóvel seria entregue à promissária, acabado e em condições de habitabilidade, num ano, previsível, a contar da data de licenciamento camarário (claúsula terceira). Para efeito de entrega, os promitentes vendedores, cederiam a chave à promitente-compradora (cláusula quarta), embora seja verdade que poder aludir-se a posse subsequente a traditio emergente de promessa de venda, até porque, dos € 160.000,00, do preço, apenas havia sido paga a quantia de € 20.000,00[4].
É bem de ver que o prazo assim fixado não é um prazo essencial ou fixo, atenta a contingência das condições de que dependia o início da respetiva contagem.
Sendo assim, poderiam os RR. afirmar, por carta de 30.4.2021, estar definitivamente incumprido o negócio?
Tem a A. legitimidade para afirmar terem os RR. incumprido a sua prestação, faltando à escritura que marcou para 4.6.2021?
Vejamos se os RR. cumpriram os passos contratuais para exigir da A. a marcação da escritura, como o fizeram pela carta de 26.2.2021.
Em maio e agosto de 2020, a habitação já recebera licença de utilização e certificado energético, documentos que atestam a sua condição de apto a ser habitado.
A A. não alega sequer que, nessa data, o imóvel não pudesse ser habitado e nem isso ficou demonstrado nos factos provados.
A A. possuía a chave, desde fevereiro de 2020, e não demonstrou que, a partir de, pelo menos, agosto desse ano, não pudesse habitar o edifício.
Aliás, na sua carta de 14.5.2021, afirma manter interesse no negócio e nada diz quanto à inexistência de condições de habitabilidade. Marca mesmo data para a escritura – a que os RR. não compareceram – e nada refere quanto à inexistência de falta de condições de habitabilidade do espaço cuja chave detém havia mais de um ano.
Quanto aos documentos necessários para celebrar a escritura – não se alude a outros senão aos habituais licença de utilização[5], certidões do teor matricial e descrição predial, sendo certo que também existiam certificado energético e ficha técnica da habitação[6] – a A. indicou aos promitentes vendedores uma instituição bancária na qual haveria de obter mútuo para a aquisição a fim de que para aí remetessem tais documentos, o que este fizeram em 18.8.2020.
Quer isto dizer que, a partir de agosto de 2020, estavam reunidas condições para ser marcada a escritura.
Por que o não fez a A.?
Em momento algum dos autos, alega a demandante as razões pelas quais, desde então e até maio de 2021, isto é, passados nove meses, continuava a mesma sem diligenciar pela marcação da escritura.
Neste interim, solicitou a A. aos RR. algo que os mesmos não tivessem cumprido? Designadamente documentos ou outra qualquer outra situação?
Por outro lado, a A. recebeu dos RR. a carta destes datada de 26.2.2021 – facto 17. Nessa missiva, alegam os RR. ter-lhe já fornecido os documentos necessários para a realização da escritura, solicitando-lhe que a marcasse e dando-lhe um prazo de um mês para que o fizesse.
Não consta que a A. tenha respondido a esta carta, nomeadamente negando a receção dos documentos ou explicitando a razão pela qual não poderia designar escritura até abril desse ano.
Sequer invocou impossibilidade de deslocação a Portugal (estaria nessa altura no Reino Unido? É que a carta foi remetida para o respetivo domicílio em Portugal (cfr. doc. 6, junto com a pi).
Na altura em que os RR. remeteram a carta de 26.2.2021, é evidente encontrar-se a A. em mora, como a mesma admite na carta que remeteu, depois, datada de 14.5.2021, onde refere expressamente “se é certo que possa verificar-se alguma mora” (doc. 8 junto com a pi).
A mora contratual (no caso, da A.) não constitui incumprimento definitivo legitimador de resolução contratual.
Porém, duas circunstâncias se verificam:
- naquela carta de fevereiro de 2021, os RR. corporizaram uma interpelação admonitória, fixando um prazo razoável, para que a A. cumprisse, i.é, para que diligenciasse pela marcação da escritura e os informasse da data;
- por outro lado, também consignaram que a falta de resposta à missiva constituiria presunção de desistência do negócio, sendo que a A. nada respondeu e o facto é que na cláusula sexta da promessa está expressamente previsto que “verificando-se a desistência da compra do imóvel do segundo outorgante, o mesmo não terá direito ao reembolso do mesmo” (presume-se que do sinal).
Ora, a mais relevante destas circunstâncias é a mora em que a A. se encontrava, desde agosto de 2020, e que se tornou em incumprimento definitivo em março de 2021.
Mesmo que não estivesse em mora, desde agosto de 2020, passou a estar, desde a interpelação ao cumprimento, ao qual não respondeu.
Quer isto dizer que, ao não marcar a escritura definitiva, nem apresentando qualquer razão para o efeito, a promitente compradora, que se encontrava em mora debitória e não em situação de incumprimento definitivo, foi interpelada admonitoriamente, fixando-se-lhe um prazo razoável para cumprir, findo o qual, não cumprida a obrigação, se considerou a mesma não cumprida (art. 808.º CC).
Conforme se expõe no Ac. 12.2.08 (proc. 1283/06.8TBAGD.C1): A mora do devedor não permite, por via de regra, a imediata resolução do contrato, a menos que se transforme em incumprimento definitivo, o que pode acontecer se lhe sobrevier a impossibilidade da prestação, se o credor perder o interesse na mesma, ou, finalmente, em consequência da inobservância do prazo suplementar e peremtório que o credor fixe, razoavelmente, ao devedor relapso. A perda do interesse do credor significa o desaparecimento objetivo da necessidade que a prestação visa satisfazer, o que não acontece, no comum das obrigações pecuniárias, em que a prestação devida, não obstante a mora do devedor, continua a revestir todo o interesse para o credor. Só com a fixação expressa de um termo essencial para o cumprimento, no respetivo contrato-promessa, ou com a alegação desse facto, na petição inicial, a obrigação deve ser, necessariamente cumprida no prazo fixado, sob pena de se tratar de um negócio de prazo, geralmente fixo, em que a impossibilidade definitiva, determinante da extinção da obrigação, sendo a prestação posterior ainda possível, não equivalendo a falta da prestação debitória ao não cumprimento definitivo. Nos contratos bilaterais, o direito de resolução funciona, como uma constante, nos casos de incumprimento definitivo do devedor, em que a prestação já não é possível, enquanto, nas hipóteses de ora, onde a prestação ainda pode ser realizada, a resolução está condicionada pela perda do interesse para o credor ou pelo decurso de um novo prazo razoável. A perda do sinal encontra-se, indissoluvelmente, ligada à resolução ou desistência do contrato ou, pelo menos, ao seu não cumprimento definitivo, e não à mora[7].
Resulta, assim, que, decorrido o prazo de interpelação admotória, os RR. podiam, como fizeram, resolver o contrato.
A A. invoca, agora, como o fez na carta de 14.5.2021, não ter podido vir a Portugal na época em apreço, por força da pandemia.

Todavia, nem estes factos se demonstraram – veja-se o que está dado como não provado em C. e D. – como também é facto que pela carta de 26.2.2021 os RR. exigiram a marcação da escritura no prazo de um mês e não necessariamente durante esse mês, podendo bem a A. ter efetuado a marcação para tempo posterior, mas dentro daquele mês. Ademais, pelo Despacho n.º 3427-A/2020, de 18.3, foi interditado o tráfego aéreo com destino e a partir de Portugal, mas com exceção do tráfego destinado a alguns países, como o Reino Unido, não alegando a A. que, no Reino Unido, tenha sido estabelecida proibição de viajar para países como Portugal.

Sendo assim, como pode não considerar-se justificada a resolução do contrato operada pelos RR., em 30.4.2021?

Tendo estes a casa pronta desde agosto de 2020, com certificado energético e licença de utilização, o que justificava maior espera depois disso?

Recorde-se que lhe faltava receber € 140.000,00, e que, considerando o decurso de oito meses, até abril de 2021, à taxa legal de juros de 4%, aqueles € 140.000,00, renderiam mais € 3.000,00, de juros.

Até quando exigir, assim, aos RR. que aguardassem por que a A. marcasse a escritura ou lhes desse qualquer tipo de satisfação?

Até que altura lhes exigir que não resolvessem o contrato?

O comércio jurídico exige que as condições do seu desenvolvimento e o desbloqueamento dos contextos de cumprimento e incumprimento se vejam definidos, com segurança, a fim de que os negócios decorram e os cidadãos possam planear com fluidez os respetivos interesses.

Não podemos, assim, concordar com a sentença quando refere que a chave da habitação não foi entregue à A. quando o imóvel se não encontrava em perfeitas condições de habitabilidade, pois não só esta o não alega na carta que remeteu aos RR., em maio de 2021, como é certo que existia licença de habitabilidade e certificado energético, desde agosto de 2020, altura em que a A. já detinha as chaves desde há vários meses e, desde então, até maio de 2021, não consta ter a A. contactado os RR. para explicitar a razão pela qual não marcava a escritura, não o tendo feito mesmo quando foi avisada de que os documentos necessários para o efeito haviam sido entregues no seu Banco.

Se a casa não tinha condições de habitabilidade de fevereiro a abril de 2021, que condições são essas que a A. não alegou para que os RR. as pudessem refutar? E se essas condições não existiam, por que não ficaram demonstradas na matéria de facto dada como provada? Por que se dignou a A. responder aos RR. apenas quando estes resolveram o contrato, ignorando por completo a interpelação admonitória que lhe haviam efetuado em finais de fevereiro/inícios de março de 2021?

Tudo isto são questões não respondidas pela A. que deitam por terra a sua consideração que tudo fez para cumprir o negociado e o fez de boa-fé. Não atua de boa-fé o promissário negocial que, perante a interpelação admonitória dos promitentes vendedores, despreza, sem explicação razoável para o efeito, a notificação para que cumpra e apenas reage quando aqueles resolvem o negócio e sendo certo que, desde há meses, tudo se mostrava conjugado para a celebração do contrato prometido. É mesmo abusivo – os AA. aludem a venire contra factum proprium – imputar aos promitentes-vendedores o incumprimento, para receber o sinal em dobro, dizendo que a habitação não tinha condições de habitabilidade, quando a A. se propôs marcar a escritura para junho de 2021, nada dizendo quanto à falta de tais condições.

DISPOSITIVO

Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, revogando a sentença recorrida, absolvem os RR. do pedido.

Custas pela A.

Porto, 19.2.2024
Fernanda Almeida
Eugénia Cunha
Manuel Domingos Fernandes
__________________
[1] Os aqui RR.
[2] A ora A.
[3] Reproduzimos aqui parcialmente o conteúdo desta carta para melhor esclarecimento:
(…)
Desde logo se refira que nunca a m/cliente demonstrou intenção de incumprimento, mantendo sempre interesse na concretização do negócio.
Como lhe foi transmitido, sendo do V/ perfeito conhecimento que a m/ cliente encontra-se a residir no Reino Unido, não seria possível à mesma se deslocar a Portugal enquanto não cessassem as proibições decretadas quanto às viagens e deslocações entre o Reino Unido e Portugal.
O alegado não cumprimento da obrigação deriva de causas não imputáveis à m/ cliente, sendo que, como é do conhecimento público, fruto da pandemia que assola toda a Europa, ocorreram restrições à circulação entre países, pelo que o incumprimento da m/cliente procede de facto alheio à sua vontade, constituindo caso fortuito ou força maior.
Se é certo que possa verificar-se alguma mora, apesar de não culposa por parte da m/ cliente, certo é que, atento a cessação das restrições previstas para o final do corrente mês, apenas se verifica um mero retardamento, sendo ainda possível a concretização na primeira semana de Junho do corrente ano, permanecendo total e expresso interesse da m/ cliente no negócio prometido celebrar.
Pelo que pretende a m/ cliente outorgar a escritura definitiva de compra e venda, informo que a referida escritura fica marcada para (…).
[4] CFr, por exe., acs. STJ, de 3.5.2023, Proc. 4183/16.0T8VNG-E.P1.S1»: I- A traditio consubstancia-se como um poder de facto sobre a coisa que o promitente-vendedor confere ao promitente-comprador, traduzindo-se num conjunto de atos materiais ou simbólicos demonstrativos do controlo da coisa. II- Pode manifestar-se através de múltiplos comportamentos, cuja significação social e de acordo com as regras gerais da experiência, revelem o elemento negativo consubstanciado no abandono da coisa pelo seu anterior detentor, e que tenham como correspondência a apprehensio pelo novo detentor, enquanto elemento positivo. III- No caso da entrega das chaves do imóvel, enquanto tradição simbólica, não deve entender-se que por si só se consubstancia em tal tradição da coisa, importando sim atender ao respetivo contexto, não só circunstancial, mas e sobretudo o que resulta dos termos negociados entre as partes. IV- Tendo ficado apurado que as chaves foram “facultadas” para os compradores iniciarem as obras no interior, não reunindo o imóvel todas as condições necessárias para o fim a que se destinava aquando da celebração do contrato-promessa, provado a disponibilidade das chaves tinha como finalidade permitir aos promitentes compradores realizarem obras no interior, e estabelecida uma forte restrição ao pretendido controlo material do imóvel, porquanto não podiam morar lá, enquanto não fosse realizada a escritura pública, operando então os efeitos decorrentes da venda efetuada, não se verificou assim relativamente aos Recorrentes, enquanto beneficiários, uma manifestação inequívoca do abandono da coisa pelo vendedor, não se configurando desse modo a traditio.V- A disponibilidade das chaves aos Recorrentes traduziu-se assim num ato instrumental com vista à realização das obras exigíveis, sendo que, ainda que as mesmas se mostrassem concluídas muito antes das sucessivas datas apontadas para a realização da escritura, não podiam aqueles, como detentores do imóvel, do mesmo fruir, maxime habitá-lo». E de 11.3.2021, Proc. 3944/16.4T8BGR.G1.S1, onde se alude ao pagamento integral do processo como um indício da posse na titularidade do promissório que obtém a traditio do bem prometido alienar.
[5] Atualmente, já nem necessária para o efeito, por via do DL n.º 10/2024, de 8.1.
[6] Sendo absolutamente inconsequente o facto não provado em B., perante o qual cabe questionar, qual a documentação em falta?
[7] No mesmo sentido, mais recentemente, acs. STJ, de 11.1.2024, Proc. 2356/21.2T8PTM.E1.S1: I - Incorre em mora a Ré, promitente compradora que não marca a escritura do contrato definitivo, apesar de constar do contrato-promessa que lhe competia marcar a escritura no prazo máximo de 2 meses a contar do pagamento da última prestação do preço devido, não o tendo feito nem nessa data nem nos anos seguintes. II - Tendo o Autor fixado um prazo razoável para a Ré cumprir a sua obrigação, que era marcar a data para celebração da escritura, sob pena de se considerar definitivamente incumprida a prestação da Ré, esta nada fez, pelo que houve incumprimento definitivo por parte da Ré tendo o Autor, motivação legal para resolver o contrato promessa que havia celebrado com a Ré.