Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3144/12.2TBPRD-Q.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA
Descritores: PRINCÍPIO DA AUTO-RESPONSABILIZAÇÃO DAS PARTES
DEPOIMENTO DE PARTE
FALTA DE DESCRIMINAÇÃO DOS FACTOS
CONSEQUÊNCIAS
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
Nº do Documento: RP202002063144/12.2TBPRD-Q.P1
Data do Acordão: 02/06/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O princípio da auto-responsabilidade impõe à parte o cumprimento dos ónus processuais.
II - A exigência legal de discriminação dos factos a que o depoimento de parte deve ser prestado exige uma actividade real e efectiva que distinga entre os factos que não interessam à parte ou não são passíveis de confissão e aqueles que são objecto desse depoimento.
III - Não discrimina esses factos a menção dos arts 1 a 96 quando os restantes artigos do articulado são apenas 3 e correspondem ao pedido, transcrição de um aresto e conclusões.
IV - Deve o tribunal convidar a parte a corrigir esse lapso.
V - Caso a parte decida não aceitar esse convite terá de suportar as consequências do incumprimento desse ónus com a rejeição desse meio de prova.
VI - O princípio do inquisitório e da cooperação não significa que à parte basta alegar os factos essenciais, cabendo ao juiz fazer tudo o resto: recolher os factos instrumentais, ouvir testemunhas desaparecidas, recolher toda a prova e fazer todas as diligências etc., à margem da inércia das partes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 3144/12.2TBPRD-Q.P1

Sumário:
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1. Relatório
No decurso da reclamação de créditos foi proferido despacho que indeferiu a prestação do requerido depoimento de parte.
Inconformado com o mesmo veio o requerente credor reclamante interpor o presente recurso o qual foi admitido.
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Foram formuladas as seguintes CONCLUSÕES
1. Os recorrentes pretendem ver reapreciada a douta decisão recorrida quanto ao indeferimento do requerimento de produção de prova que apresentaram, na parte em que pedem a prestação de depoimento de parte da devedora/insolvente a prestar pelo seu legal representante.
2. Com o seu requerimento impugnatório, os recorrentes pediram o depoimento de parte da insolvente à matéria de facto dos artigos 1o a 96° da peça, tendo o distinto Tribunal convidado os recorrentes a especificarem a concreta matéria sobre a qual pretendiam fazer recair o depoimento de parte, o que os recorrentes não fizeram por terem admitido tratar-se de um eventual lapso do M° Julgador, uma vez que já haviam especificado no requerimento impugnatório a concreta matéria sobre a qual pretendiam fazer recair o depoimento de parte.
3. A discriminação a que alude o n°2 do artigo 452° do C.P.C, pode ser feita por mera remissão para os artigos/números/pontos do articulado, ou da pertinente peça processual;
4. Para cumprir a discriminação referida no n°2 do artigo 452° do C.P.C, não é exigível que ela seja feita pelo enunciação, palavra por palavra, dos factos alegados na peça, pois que tal não consubstanciaria uma indicação de forma discriminada, outrossim uma discriminação stricto sensu.
5. Os recorrentes discriminaram logo no seu requerimento impugnatório a matéria de facto sobre a qual o depoimento de parte pretendido haveria de recair, ou seja, sobre os pontos a 96° desse mesmo requerimento, pelo que deve entender-se que cumpriram o disposto no n°2 do artigo 452° referido, o que deve conduzir à admissão do depoimento de parte em apreço, com a consequente revogação do douto despacho aqui impugnado.
6. Sem prescindir, dir-se-á acerca da questão que já a relevante jurisprudência entendia que cumpria o ónus aquele que pedisse o depoimento de parte a "toda a matéria" da peça, como é exemplo o Ac. STJ de 11-2-1988 proferido no processo n°075962, entendimento este que tem mais atualidade face ao reconhecido o propósito do legislador do atual CPC no sentido de estabelecer uma nova cultura judiciária, despojada de formalismos não justificados, e centrado na resolução das questões essenciais ligadas ao mérito da causa (cf. Exposição de Motivos da Proposta de Lei do CPC).
7. A interpretação do n°2 do artigo 452° do C.P.C, segundo a qual a discriminação dos factos do pedido depoimento de parte deve ser especializada, e assim, por menção de palavra a palavra dos factos sobre os quais há-de recair, ofende ou não esse direito fundamental à prova, ao representar uma dificuldade de excessiva ou intolerável desproporção que coloca em causa o direito de acesso aos tribunais do que o direito à prova faz parte integrante, mostrando-se suficiente para cumprir o desígnio do legislador quanto à discriminação dos factos sobre os quais o depoimento de parte há-de recair a remissão u referencia para a totalidade da peça processual.
8. O depoimento de parte é muito pertinente à luz da lei processual, que não do poder dever que compete ao Tribunal ao abrigo do princípio do inquisitório previsto no artigo 11° do CIRE, que é inaplicável no apenso de verificação de créditos, sendo que, tal meio probatório está apoiado no disposto no artigo 411°, conjugado com o disposto no n°1 do artigo 452° do C.P.C., ambos do C.P.C., pelo que o indeferimento em apreço viola o disposto no n°2 do artigo 452° do CPC, conjugado com o disposto no n°2 do artigo 25° do CIRE, para além do disposto no artigo 411°, este conjugado com o previsto no n°1 do artigo 452°, ambos do C.P.C., pelo que também por este fundamento deve ser revogado;
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A sociedade B…, unipessoal, SA apresentou contra-alegações, nas quais defende a manutenção da decisão cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

III. Questões a decidir:
1. Saber se é licito indeferir a produção de depoimento de parte, após convite não aceite pela parte de discriminar os factos quando esta indicou os factos 1 a 96 de um articulado com 99 artigos.
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IV. Decorre dos autos a seguinte factualidade:
1. O articulado do apelante possui 99 artigos, conforme certidão cujo teor se dá por reproduzido.
2. O art. 97 é a transcrição de um sumário do “douto Acórdão do S.T.J. de 29-07-2016, relatado pelo Ex.mº Conselheiro Júlio Gomes”.
3. O art. 98 é “Assim e sem mais considerações, devem ser qualificados como garantidos com os direitos de retenção sobre os imoveis supra identificados os créditos das impugnantes C… e D…”.
4. O art. 99 é “Porquanto e como resulta dos factos acima invocados, os impugnantes (i) detêm licitamente as respetivas frações que a insolvente lhes entregou, (ii) de quem eles são credores, (iii) verificando-se a existência de conexão direta e material entre cada um dos créditos dos impugnantes e as respetivas fracções detidas, por via dos danos convencionais causados pela insolvente, o que consubstancia o direito de retenção dos impugnantes sobre as respetivas fracções autónomas detidas.
5. Nesse articulado a apelante requereu: “b)Depoimento de Parte: A prestar pelo legal representante da insolvente, E…, o qual deve depor à matéria de facto dos artigos 1º a 96º desta peça;
6. Foi depois proferido despacho que além do mais determinou: “No que concerne ao depoimento de parte requerido a fls. 65 e 828 verso, notifiquem-se os impugnantes para, em 10 dias, especificarem a concreta matéria sobre a qual pretendem fazer recair o depoimento de parte”.
7. Esse despacho foi notificado e a parte nada requereu nesse prazo
8. Depois em audiência foi proferido despacho a indeferir a produção conforme acta de julgamento cujo teor se dá por reproduzido.
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IV. Decidindo
A actividade das partes em processo civil está condicionada a uma série de princípios gerais como:
i. Actuação em boa fé (art. 8 do CPC),
ii. Correcção (art. 9º, do CPC);
iii. Cooperação (art. 7 do CPC),
iv. Economia processual e limitação de actos inúteis (art. 130 do CPC),
v. Simplicidade (art. 131, nº1);
vi. Celeridade ou prazo razoável (art. 2º, nº1, do CPC);
Desses princípios, decorre o dever de os interessados conduzirem o processo assumindo os riscos daí advenientes, devendo deduzir os meios adequados para fazer valer os seus direitos na altura própria, sob pena de sofrerem as consequências (cfr. Ac. STJ de 11.07.2013, Proc. 6961/08.4TBALM.B.L1.S1 e Ac. STJ de 21.01.2014 – Proc. 689/08.2TTFAR.E1.S1).
Acresce que o acentuar dos deveres de cooperação do tribunal não implica que as partes deixem de ter um dever de auto-responsabilidade e submissão ao princípio da preclusão.
Ora, resulta do art. 452.º, n.º 2 do CPC, que quando o depoimento de parte seja requerido por alguma das partes, devem indicar-se logo, de forma discriminada, os factos sobre que há de recair.
Esta exigência não é despicienda ou meramente formal, a mesma resulta desde logo de um dever de cooperação para com o tribunal cuja função não é substituir-se à parte na escolha dos factos a confessar, apenas controlar se os factos escolhidos são efectivamente passíveis de confissão. Depois, essa indicação é ainda necessária para garantir o contraditório, organizar a produção de prova no julgamento e permitir a preparação da pessoa ou ente que irá ser sujeita a esse meio de obtenção da confissão. O seja, estamos aqui perante algo bem diverso das declarações de parte.
Por isso, como já salientava Alberto dos Reis[1] “Não obstante a letra e o espírito do art. 18.º do Dec. n.º 12 353, continuou a usar-se no foro, da formula vaga e genérica; requer-se o depoimento de parte contrária sobre todos os factos articulados. Torpedeava-se, passe o termo, o pensamento da lei. Para abolir, de vez, semelhante prática é que o art. 45. do Dec. n.º 21 287 e mantido no art. 572 é evidente que não satisfaz a exigência legal o requerimento em que se diga: pretende-se o depoimento da parte contrária sobre todos os factos (ou sobre todos os artigos) da petição inicial, ou sobre todos os artigos da contestação, da réplica, da tréplica; tal indicação não é discriminada. É necessário, pois, especificar os factos que hão-de ser objecto de depoimento”. (sublinhado nosso).[2]
Nos mesmos termos e, após a reforma de 1995, Lopes do Rego[3], afirma “mantém-se o ónus, que já recaia sobre a parte requerente, de indicar logo discriminadamente os factos sobre que há-de recair. Atenua-se porém o efeito preclusivo (…) cumprindo ao juiz convidar a parte a discriminar mais claramente o objecto do depoimento, ao menos quando a falta cometida não traduza culpa grave (…)”.
Sendo que, por fim, a recente alteração do CPC manteve inalterada essa norma.
Quid iuris
Comecemos pelo argumento literal.
Discriminar, em termos linguísticos[4] significa: estabelecer as diferenças entre vários elementos, identificar, separar, indicar cada um dos elementos.
Depois, sistematicamente, e conforme salientou o recente acórdão desta secção, Ac da RP de 21.11.2019 29903/15.6T8PRT-F.P1A (João Venade) a referência a “discriminada” “induz a ideia de que se devem mencionar os pontos do articulado onde constam os factos sobre que há-de incidir o depoimento ou as declarações, não se bastando com uma referência genérica (por exemplo, toda a matéria da petição inicial ou da contestação”.
Ora, no presente caso é evidente que a parte não fez isso.
Como resulta dos factos provados indicou basicamente toda a matéria do seu articulado, sem qualquer rigor, cuidado ou diligência, limitando-se a não incluir os artigos onde efectua duas conclusões e transcreve uma decisão judicial.
Comparem-se os restantes 96 artigos do articulado para se concluir de forma simples e notória que a parte, através do seu mandatário, não efectuou qualquer esforço de discriminação limitando-se a deixar ao tribunal essa tarefa.
O que era exigível à parte era uma identificação simples dos factos passíveis de confissão por depoimento de parte, e não a mera indicação dos últimos 3 artigos com matéria de direito, conclusões ou pedidos[5]. Daí resulta, pois, que a parte nada identificou ou indicou, fazendo materialmente (e isso é que importa) uma referência genérica e indiscriminada para o seu articulado. Deste modo, bem andou o tribunal quando notificou a parte para identificar entre os vários artigos, apenas aqueles que eram suscetíveis de confissão judicial.
O tribunal deu assim integral cumprimento ao seu dever de cooperação, concedendo à parte uma segunda oportunidade para cumprir o seu ónus. [6]
Com efeito, dizer-se artigos 1 a 96, no presente caso, ou toda a matéria é a mesma coisa que uma decisão judicial fundamentar o direito com a menção do arts 1 e seguintes do CC ou todas as regras de direito aplicáveis. Isso nada diz, nada discrimina, nada identifica e por isso não cumpre o ónus legal.
Concluímos assim que o despacho do tribunal a convidar a parte a corrigir o seu lapso é legal, lícito e merece elogios e não qualquer censura.

2. Das consequências da inação da parte
Não deixa de ser curioso que venha agora a parte invocar a vital importância do meio de prova para a sua pretensão, quando afinal afirma que “pensou ser um lapso do tribunal”.
Qualquer homem médio e prudente, depois de receber o despacho, iria ler os 96 artigos indicados e talvez, por mera cautela e diligência, ver que os artigos 1 e 2 não são necessários, os arts. 3 e seguintes estão provados por certidão, o art 12 também, os 14 e seguintes fazem alusão a escrituras, etc, etc etc. Não se vislumbra, pois, como se pode pensar estarmos perante um lapso do tribunal.
Acresce que, não é a importância dos meios de provas que permite às partes incumprir as regras processuais da sua admissão, mais a mais quando estão patrocinadas por profissionais forenses que são remunerados pela sua actividade e como tal obrigados a um elevado grau de diligência no cumprimento dos seus deveres profissionais e deontológicos. Repare-se, por exemplo, que a junção fora de prazo de um articulado ou alegações de recurso, por mais importante que sejam não implicam a desoneração da parte mas sim a aplicação do princípio da preclusão com as suas nefastas consequências.
In casu, a parte foi notificada para corrigir um requerimento, dando-se cumprimento ao artigo 6.º, n.º 2, parte final, do C. P. C. que impõe esse convite. No prazo concedido nada fez ou requereu. É, pois, evidente que terá de suportar as consequências negativas da sua inércia.
Neste sentido veja-se também o Ac da RP de 24.4.2014, PROCESSO N.º: 220/13.8TTBCL-A.P1 (declarações parte) “Não cominando a lei qualquer sanção no caso da parte requerente não ter feito a discriminação dos factos ao requerer o depoimento de parte, face ao dever de gestão processual e ao princípio da cooperação deve ser convidada a suprir tal omissão, e só em caso de não observar o convite formulado ser indeferido o depoimento de parte”. [7].
Tudo, isto porque, como salienta o Ac da RP de 13.6.2018 (Jorge Seabra), já citado “a consagração do aludido ónus processual e do consequente efeito cominatório preclusivo (após convite endereçado à parte e não correspondido) não se apresenta como excessivo ou desproporcionado e, como tal, não afronta os direitos constitucionais do acesso ao direito, do direito à prova e à tutela jurisdicional efectiva consagrados no art. 20º da Constituição da República.
Porque, conforme se salienta no já antigo, mas ainda actual, Ac do STJ de 1.7.2004 (Noronha Nascimento), SJ200407010034172: “O princípio do inquisitório (art. 265 do C.P.C.) não significa que à parte basta alegar os factos essenciais, cabendo ao juiz fazer tudo o resto: recolher os factos instrumentais, ouvir testemunhas desaparecidas, recolher toda a prova e fazer todas as diligências etc., à margem da inércia das partes”.
Na verdade, o processo civil ainda é o campo privilegiado do funcionamento do princípio da autonomia privada (art. 3º, do CPC), do qual decorre não apenas a liberdade de conformar o seu mundo, mas também a responsabilidade pelas omissões nessa demanda.
Concluímos, pois, pela improcedência das alegações apresentadas.
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5. Deliberação
Pelo exposto este tribunal julga o presente recurso improcedente por não provado e por via disso confirma integralmente a douta decisão recorrida.
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Custas a cargo do apelante.
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Porto em 6.2.2020
Paulo Duarte Teixeira
Fernando Baptista
Amaral Ferreira
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[1] In CPC Anotado, vol. IV, pág. 130.
[2] Note-se que este autor, também citado pelo douto despacho recorrido, mantém atual eficácia doutrinal, pois, o teor literal da norma é idêntico mantendo a redação introduzida. Diz-nos ainda o mesmo autor que Foi o Decreto n.º 21.287, de 26-05-1932 que passou a exigir que a indicação dos factos objecto do depoimento requerido fosse feita “discriminadamente”, em lugar de “com precisão”.
[3] Comentário ao CPC, pág. 387 e nos mesmos termos Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, II, em anotação ao artigo 552.
[4] Cfr. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia das Ciências de Lisboa, verbo, volume I, correspondente entrada.
[5] Veja-se por exemplo o art 12: “Em consequência, por sentença proferida em 13-11-2012, transitada em julgado, foi declarada a insolvência da Ré, como melhor resulta de fls. 38 a 42 dos autos principais”.
[6] Cfr. Lebre de Freitas e outros in CPC Anotado, 1º edição, vol. 2.º, p. 467; e Ac. da RP de 13-06-2018 in www.dgsi.pt., proc. n.º 143/14.3T8PFR-B.P1,.
[7] No mesmo sentido os Acs da RG de 17.12.2019 nº 3545/18.2T8BCL-A.G1: “Se após convite de aperfeiçoamento, a parte continua a não observar o ónus de discriminação, o requerimento probatório deve ser rejeitado”; e defendendo até a rejeição sem qualquer convite, mas na anterior redacção do CPC, o Ac de 21.5.2013, PROCESSO N.º: 2629/11.2TBBCL-A.G1 “ É legalmente admissível o indeferimento do requerimento em que o autor pede o depoimento de parte da ré a toda a matéria dos factos constantes da base instrutória ''a que o seu depoimento é admissível'', sem que exista o dever legal por parte do tribunal de efectuar convite para o respectivo aperfeiçoamento”.