Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9807/23.0T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
TÍTULO EXECUTIVO
LIVRANÇA EM BRANCO
Nº do Documento: RP202402199807/23.0T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 02/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A falta de observância do ónus de especificação imposto pelas diversas alíneas do nº1, do art. 640º, do CPC, pressuposto do conhecimento do mérito da impugnação da decisão de facto, tem como consequência a rejeição do recurso, na vertente de facto (cfr. nº1, do art. 639º e nº1, do art. 640º, daquele diploma legal).
II - Constitui título executivo um título de crédito, como é uma livrança, desde que não mero quirografo, sem que se mostre necessário alegar, e comprovar, a relação subjacente (cfr. al. c), do nº1, do art. 703, do CPC).
III - A subscritora de livrança em branco fica sujeita à responsabilidade pelo pagamento do valor aposto nesse título (dele resultando a obrigação cambiária), a menos que, nos embargos, cumpra o ónus de alegar factos a densificar violação do pacto de preenchimento e os logre provar (cfr. artigos 342º, n.º 2, e 378º, do Código Civil, e artigos 10º e 17º, da LULL, a contrario), ou de alegar e provar outros factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito emergente do título de crédito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 9807/23.0T8PRT-A.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso:  Juízo de execução do Porto – Juiz 1


Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto:  Des. Fernanda Almeida
2º Adjunto: Des. Manuel Fernandes

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):

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I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

Recorrido: Banco 1..., SA


AA apresentou oposição à execução que o Banco 1..., SA instaurou contra si, mediante embargos de executado, pretendendo ver extinta a execução, invocando, em síntese, a ineptidão do requerimento executivo, a falta de título executivo, o pagamento e a inexistência de dívida, sendo o preenchimento da livrança abusivo.
Notificada para contestar, a exequente pugnou pela improcedência das referidas exceções e dos embargos deduzidos e pelo prosseguimento da execução, pois que a quantia mutuada foi entregue à executada/embargante e as quantias pagas pela executada contabilizadas.
Foi proferido despacho saneador, onde se julgou improcedente a exceção da ineptidão do requerimento executivo, foram fixados o objeto do litígio e enunciados os temas da prova, nos termos que se seguem:
“Da invocada ineptidão do requerimento executivo:
Nesta sede, alegou a embargante, entre outras excepções, a ineptidão do requerimento executivo por falta de alegação dos factos atinentes à relação subjacente à livrança exequenda.
A exequente, na sua contestação, pugna pela improcedência dessa excepção dilatória face ao título executivo apresentado.
Apreciemos.
Dispõe o art. 703º, nº 1, al. c), do C.P.Civil, que constitui título executivo o título de crédito.
Ora, na execução em apreço foi dada à execução uma livrança. Ou seja, estamos perante um evidente título executivo, pelo que a sua exequibilidade é manifesta.
Nos termos do artigo 724.º, n.º 1, alínea e) do CPC, o exequente expõe sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo.
Ora, analisado o teor do requerimento executivo verifica-se que não só o exequente juntou o próprio título. Assim, nada mais carecia a exequente de alegar, consubstanciando o próprio título a causa de pedir – art. 10º, nº 5 do Código de Processo Civil.
Está assim dispensado a exequente de indicar qualquer facto suplementar no requerimento executivo, improcedendo pois a invocada ineptidão.
Assim, improcede à evidência a invocada ineptidão do requerimento executivo.

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Objecto do litígio:
I) Da exigibilidade da quantia exequenda e da fixação do seu quantum.
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Temas de prova:
1. Do preenchimento abusivo da livrança;
2. Do depósito/entrega à embargante das quantias mutuadas por via do contrato que lhe subjaz;
3. Dos pagamentos efetuados pela embargante
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Procedeu-se à audiência final, com a observância das formalidades legais.

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Foi proferida sentença com a seguinte parte dispositiva:
“Nos termos e fundamentos expostos, julgo os presentes embargos de executado deduzidos por AA totalmente improcedente, por não provada, devendo a execução prosseguir os seus regulares termos.
Custas a cargo da embargante sem prejuízo do beneficio do apoio judiciário concedido”.

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Apresentou a embargante recurso de apelação, pugnando por que seja reapreciada a matéria de facto e de direito nos termos que alega e, na procedência das conclusões do presente recurso, seja revogada a sentença e substituída por acórdão que declare que a recorrida não dispõe de titulo executivo e determine a extinção da execução, formulando as seguintes

CONCLUSÕES:

“1ª O recorrido - Banco 1..., Sa, deduziu execução para pagamento de quantia certa, contra AA, peticionando o pagamento da quantia de €15.663,39, acrescida de juros de mora e despesas, tendo por base a celebração em 06.06.2018 de um contrato de mútuo, e subsequente incumprimento, no qual a recorrente figura como mutuária.

2ª A recorrente veio, por apenso à execução, deduzir embargos de executado, opondo-se à execução, para o efeito, alega, em síntese: a Ineptidão do requerimento executivo/Insuficiência do título executivo, ou seja, alega que o título executivo, traduzindo um contrato de mútuo, não contém a declaração da efetiva entrega do capital mutuado, o que, sendo o contrato de mútuo um contrato real, que apenas fica perfeito com a entrega do capital mutuado, implica a insuficiência do título executivo, sendo certo que a exequente também não alegou ou juntou outro documento comprovativo da referida entrega.

3ª A recorrente alega ainda que o contrato de mútuo não contém qualquer declaração de aceitação da mutuante quanto à proposta de crédito.

4ª A recorrida contestou, alegando que a quantia mutuada foi efetivamente entregue, que as quantias pagas pela executada até ao requerimento executivo foram todas contabilizadas.

5ª Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e o tribunal a quo considerou improcedentes os embargos de executado deduzidos pela recorrente.

6ª No presente caso, a livrança dada à execução tem subjacente um contrato de mútuo, como vem sendo entendido e como se refere, designadamente, no Acórdão do STJ de 25/01/2011, “…o mútuo é, pela sua própria natureza, um contrato real, no sentido de que só se completa com a entrega da coisa…” sendo que o legislador, mantendo-se fiel à doutrina romanista, “…continua a considerar a tradição como um elemento constitutivo do próprio contrato real em si, e não apenas como condição de eficácia do contrato já existente, não se tratando da execução do acordo, do cumprimento da obrigação, mas antes da existência do próprio contrato”.

7ª Nos contratos de mútuo a obrigação a cargo do mutuário só existe se e quando a coisa mutuada lhe for entregue e porque a obrigação de entrega a cargo do mutuante não está definida na lei como obrigação decorrente do contrato, ter-se-á que concluir que o contrato de mútuo apenas se considera concluído com a entrega da coisa ao mutuário e que a obrigação de restituição a cargo deste apenas se constitui no momento em que a coisa lhe for entregue, sendo, para tanto, insuficiente o acordo de vontades relativamente aos elementos integradores do negócio.

8ª No caso sub judice, a recorrente com o requerimento executivo não juntou qualquer documento subjacente ao contrato de mútuo, não juntou qualquer documento que comprove que a quantia alegadamente mutuada foi depositada na conta da mutuária.

9ª A recorrente não fica obrigada, com a assinatura do contrato de mútuo a pagar à mutuante os valores alegadamente mutuados, porque, para que essa obrigação se constituísse era necessário que a mutuante aceitasse a proposta de celebração do contrato do mútuo e era necessário que a quantia em causa fosse efectivamente disponibilizada e entregue à mutuária.

10ª O documento dado à execução como título executivo não evidencia e nem sequer faz presumir que o capital tenha sido entregue à recorrente no momento da assinatura do contrato.

11ª O documento dado à execução não contém qualquer declaração de aceitação da proposta por parte da mutuária que permita concluir pela efectiva formação e conclusão de um acordo de vontades a propósito dos elementos integradores do contrato de mútuo e não contém qualquer indicação, nem foi junto nenhum documento que comprove que o valor mencionado na livrança (15 663,39€) – ou qualquer outro – tenha sido, efectivamente, disponibilizado à recorrente e, como tal, o aludido documento é insuficiente para determinar a constituição da obrigação pecuniária que, por via da presente execução, se pretende exigir à recorrente.

12ª Neste sentido se decidiu, o Acórdão da Relação do Porto de 19/12/2000, cujo sumário se lê que “um contrato de crédito ao consumo em que não conste que o montante do crédito concedido tenha sido efectivamente entregue ao vendedor não pode servir de título executivo”, bem como o Acórdão da Relação de Coimbra de 17/12/2014 e no Acórdão da Relação de Guimarães de 15/09/2014.

13ª Assim, o documento em causa dado à execução - Livrança, não importa a constituição ou o reconhecimento de qualquer obrigação pecuniária da responsabilidade da recorrente, pelo que, face ao disposto no art. 46º, nº 1, c), do anterior CPC, não constitui título executivo bastante para a persente execução, o que determina a extinção da execução”.


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Respondeu o embargado sustentando não poder ser dado provimento ao recurso interposto pelos Recorrentes devendo ser mantida a sentença proferida com base nas seguintes
CONCLUSÕES:
1- Os presentes autos deram entrada em 25/05/2023, sob a forma de execução sumária para pagamento de quantia certa, com o valor de 15.715,60€.
2- O título que serviu de base á execução é uma livrança subscrita pela Recorrente e encontra-se devidamente preenchida com a data de emissão, data de vencimento e montante a liquidar, encontrando-se verificados todos os pressupostos previstos na Lei Uniforme de Letras e Livranças e como tal qualificado como título executivo nos termos do disposto no artº 703 nº1 alínea c) do Código de Processo Civil e reunindo todos os pressupostos formais para ser acionada judicialmente como título executivo.
3- Ficou provado que a Recorrente e Recorrido celebraram em 06.06.2018 um acordo segundo o qual, a Exequente entregou-lhe a quantia de 18.575,93€, valor esse que a Recorrente se obrigou a devolver em 72 prestações mensais de capital e juros, tudo como resulta do contrato junto aos autos com a contestação de embargos como doc. nº1
4- O contrato de crédito prevê expressamente a possibilidade de preenchimento da livrança pelo credor em caso de incumprimento do devedor.
5- Ficou provado que a Recorrente não procedeu ao pagamento da prestação que se venceu em Julho de 2021, nem ao pagamento das subsequentes.
6- A Recorrente não invocou factos concretos nem logrou provar que o Recorrido preencheu a Livrança dada á execução em desconformidade com o clausulado no contrato de mútuo e respetiva autorização de preenchimento.
7- Fundamenta a Recorrente a sua discordância face á sentença proferida, na alegada falta de declaração de aceitação da mutuante quanto á proposta de crédito e ainda na alegada falta de prova da entrega da quantia mutuada.
8- A Recorrente não coloca em causa a matéria de facto dada como assente.
9- No ponto 6. Dos factos provados resulta que:
“Nos termos do acordo referido em 2., e em 11-06-2018 a exequente creditou na conta da Embargante a quantia de 18.575,93€”.
10- Facto este que decore dos documentos juntos com a contestação de embargos apresentada em juízo pelo Recorrido, identificado como documento número 2 e referente a um extrato de conta de deposito á ordem nº ... , titulada pela Recorrente , onde aparece creditado o valor de 18.575,93€ com a indicação “Utilização de Crédito Pessoal nº...”, documento esse não impugnado pela Recorrente não faz qualquer sentido a fundamentação do recurso ora apresentado em juízo, nem se compreende de que forma tal alegação poderia ser de molde a alterar a decisão proferida.
11- Pelo que a decisão proferida pelo Tribunal a quo está de acordo com o consignado pela lei não merecendo qualquer reparo.

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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.

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II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.

Assim, as questões a decidir são as seguintes:

Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1ª- Quanto à decisão de facto:
1.1 - Da inobservância dos ónus de impugnação;
2ª- Quanto à decisão de mérito:
2.1 - Da falta de título e da inexistência da obrigação.
3ª - Da responsabilidade tributária.


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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. FACTOS PROVADOS

São os seguintes os factos considerados provados com relevância para a decisão (transcrição):
1. O título que serve de base à execução a que estes autos se encontram apensos, é o documento junto à execução, com os seguintes dizeres:

2. O documento referido em 1. foi subscrito pela executada/embargante.
3. A Exequente/Embargada e a Executada/Embargante celebraram em 6.6.2018 um acordo segundo o qual, a Exequente entregou-lhe a quantia de 18.575,93€,  que aquela se obrigou a devolver em liquidado em 72 prestações mensais de capital e juros sob a forma de “Crédito ao Consumo Banco 1...”, conforme acordo e documento n.º 1 junto com a contestação, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
4. Consta da clausula 12.º desse acordo sob a epigrafe de “Livrança e/ou Garantia(s) do crédito” “Livrança sem aval.” o seguinte:
12.1. O Cliente entrega ao Banco 1... uma livrança com a clausula “não à ordem” que o Banco 1... poderá acionar ou descontar no caso de incumprimento das obrigações assumidas no contrato.
12.2 O Banco 1... fica autorizado pelo cliente a preencher a livrança com uma data de vencimento posterior ao vencimento de qualquer obrigação garantida e por uma quantia que o Cliente lhe deva ao abrigo do contrato”
5. O documento referido em 1. Foi entregue à exequente pela executada, quando da celebração do acordo referido em 2, encontrando-se nessa data apenas preenchida nos campos da assinatura da subscritora.
6. Nos termos do acordo referido em 2, e em 11-06-2018 a exequente creditou na conta da Embargante a quantia de 18.575,93€.
7. A embargante não procedeu ao pagamento da prestação que se venceu em julho de 2021, nem ao pagamento das subsequentes.
8. Não obstante a embargante após julho de 2021, entregou/depositou na sua conta bancária para abatimento das prestações em atraso respeitantes ao acordo referido em 2, as seguintes quantias: - Em 15.10.2021 a quantia de € 400,00; - Em 7.6.2022 a quantia de € 490,00; - Em 12.9.2022 a quantia de € 700,00; - Em 10.11.2022 a quantia de € 400,00; - Em 12.12.2022 a quantia de € 400,00; - Em 13.2.2023 a quantia de € 400,00; - Em 10.4.2023 a quantia de € 400,00.
9. Por carta registada com a/r datada de 26/04/2023, a Embargante foi notificada do preenchimento da livrança que garantia o mútuo pelos seguintes montantes:
Capital: 13.365,41€
Juros+ imposto de Selo devidos desde 02/12/2021 á taxa de 11,50% : 1.970,37€
Juros + Imposto de Selo amortizados no Período: 51,06€
Despesas: 0€
Comissões+ Imposto : 300,35€
Selagem da Livrança : 78,32€
Total da livrança a pagar: 15.663,39€
Nos demais termos constantes do documento junto com a contestação como documento n.º4, e cujo teor se dá aqui por reproduzido.
10. No cálculo dos valores constantes da carta referida em 9, a exequente teve em consideração e abateu os pagamentos efetuados pela executada referidos em 8.


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2. FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevância para a decisão da causa não se provou:
- Que para além dos pagamentos/depósitos referidos em 8, por conta do acordo referido em 2, a embargante pagou ainda a quantia de € 400,00 em Maio de 2022.

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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1. Da decisão de facto:

1.1 - Da inobservância dos ónus de impugnação.
Cumpre começar por decidir da impugnação da decisão de facto para que, ante a definitiva definição dos contornos fácticos do caso, possamos entrar na reapreciação da decisão de mérito.
Antes, porém, cabe analisar a questão da observância dos ónus, para tanto, impostos ao recorrente que impugne a matéria de facto (questão adjetiva, prévia à análise da apreciação de mérito da impugnação).
Encontram-se os ónus de impugnação da decisão de facto enunciados nos nº1, do art. 639º e nos nº1 e 2, a), do art. 640º, decorrendo eles dos princípios da cooperação, da lealdade e da boa-fé processuais, visando garantir a seriedade e a consistência do recurso e assegurar o exercício do contraditório.
Comecemos por referir que, na verdade, os ónus legalmente impostos em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, constituem requisitos habilitadores a que o tribunal ad quem possa conhecer da impugnação.
Na verdade, a lei adjetiva, que no nº1, do art. 639º, consagra o ónus de alegar e de formular conclusões, estabelece que “o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”, sendo as conclusões das alegações de recurso que balizam a pronúncia do tribunal (art. 635º).
E o art. 640º consagra ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecendo no nº1, que:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
O n.º 2, do referido artigo, acrescenta que:
“a) … quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Verifica-se, no caso, que não cumpriu a apelante os ónus, que lhe estão cometidos pelo nº1, do referido artigo 640º, sendo de rejeitar o recurso quanto à impugnação da matéria de facto, pois que a mesma, desde logo, não especificou nas conclusões das alegações, a delimitar o objeto do recurso, os concretos pontos de facto, provados e/ou não provados , que considera incorretamente julgados (al. a), do referido nº1).
E como analisou o STJ, na Decisão de 27/9/2023, proferida no proc. nº2702/15.8T8VNG-C.S1 que, por bem esclarecedora, se cita:
Com ampla sedimentação na jurisprudência deste tribunal, no funcionamento dos efeitos do disposto nos artigos 640º e 662º, nº1, do CPC, devemos distinguir, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da  indicação dos concretos meios probatórios convocados e da decisão a proferir, a que aludem as alíneas a), b) e c) do nº1 do artigo 640º, que integram o denominado ónus primário, atenta a sua função de delimitação do objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto.
 De outro lado, o requisito da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo 640º, que integra um ónus secundário, para permitir que a Relação aceda de forma dirigida aos meios de prova gravados, que o recorrente entende necessários à reapreciação do sentido probatório dos factos impugnados.
 Ora, perante alguma dificuldade na aplicação do dispositivo legal em certas casuísticas, na aferição do cumprimento dos aludidos ónus pelo recorrente, devem perseverar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, modelando na medida necessária, os requisitos de forma.
 Tal como reiterado em diversos arestos deste Supremo Tribunal, v.g., «I.  Constitui jurisprudência do STJ que a verificação do cumprimento do ónus de alegação regulado no art. 640.º do CPC deve ser compaginada com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo-se maior relevo aos aspectos de  ordem material em detrimento das questões formais.(…)»; «(…)III - De acordo com a orientação reiterada do STJ, a verificação do cumprimento do ónus de alegação do art. 640.º do CPC tem de ser realizada com respeito pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal.(...)» .[1]
 No mesmo percurso, salienta o Acórdão do STJ de 19.01.2023 - «Entre os corolários do ónus de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consagrado no n.º 1 do art. 640.º do CPC, está o de que o recorrente deve sempre indicar nas conclusões do recurso de apelação os concretos pontos de facto que julgou incorrectamente julgados
 Por último, ainda na órbita do debate das exigências previstas no artigo 640º,  nº1, do CPC, desenha-se como jurisprudência constante deste tribunal, o limite  do cumprimento do ónus primário ( al) a) nas conclusões de recurso , como  pontifica, entre outros, o Acórdão do STJ de 22.09.2022 - « II -Nesta linha  interpretativa, tem vindo a admitir-se que, no que se refere às exigências das alíneas b) e c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, possam as mesmas ser cumpridas apenas no corpo das alegações. Já quanto ao ónus da alínea a) da mesma disposição legal, afigura-se que a jurisprudência não se encontra estabilizada, não obstante se admitir que tem vindo a prevalecer o sentido de que o incumprimento de tal ónus nas conclusões recursórias implica a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto. »[2] (negrito e sublinhado nosso).
Pacífico vem sendo, na verdade, na Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que as conclusões, que balizam o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, têm de conter a indicação dos concretos pontos de facto cuja alteração se pretende, ónus este que permite circunscrever o objeto do recurso no que concerne à decisão de facto. Deste modo, mesmo na Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, vem a ser manifestada, reiteradamente, posição no sentido de, para cumprimento dos ónus impostos pelos art.s 639º e 640º, do CPC, o recorrente ter que indicar nas conclusões, com precisão, os pontos da matéria de facto que pretende que sejam alterados pelo tribunal de recurso, podendo os demais ónus impostos vir cumpridos apenas no corpo das alegações.
Com efeito, fixada foi, até, já, jurisprudência no sentido de “Nos termos da alínea c), do nº1, do artigo 640º, do Código de Processo Civil, o recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, nas alegações[3].
Ora, manifesto é que a Recorrente não cumpriu aqueles ónus, pois que não indicou nas conclusões do Recurso, a matéria de facto que pretendia impugnar, como se pode verificar de uma leitura das conclusões, supra, e não indicou nas alegações, ao menos no seu corpo, a decisão alternativa pretendida para os concretos pontos que indicasse como impugnados (isto, que não efetuou, sequer, no corpo das alegações). Não circunscreveu a recorrente o objeto do recurso no que concerne à matéria de facto, nos termos exigidos pelo legislador e interpretados pelos Tribunais Superiores, em obediência ao imposto pela citada al. a), do nº1, do art. 640º, do CPC, nem observou os ónus exigidos pelas al.s b) e c), desse mesmo nº1, e, também, não cumpriu o estatuído na al. a), do nº2, do art. 640º.
Efetivamente, não indica a apelante concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, de modo especificado, para além de não referir as específicas alterações que considera deverem ser introduzidas (não mencionando, especificamente, a decisão alternativa por si proposta por contraponto à decisão proferida quanto a cada ponto impugnado) e não indica concretos meios probatórios que imponham decisão diversa. E não o faz nas conclusões das alegações nem no próprio corpo das alegações.
Assim, não tendo a apelante cumprido os ónus que lhe estão cometidos pelo nº1 e 2, a), do referido artigo, os requisitos habilitadores ao conhecimento impugnação, não estando preenchidos os pressupostos de ordem formal para se proceder à reapreciação da decisão de facto, não pode o recurso na vertente da impugnação da decisão de facto deixar de ser rejeitado, rejeitando-se, pois, o mesmo, nessa parte.


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2. Da decisão de mérito:

- Da falta de título e da inexistência de obrigação, a conduzir à extinção da execução.

Insurge-se a apelante contra a decisão recorrida, que pretende ver revogada e julgada extinta a execução, dada a falta de título e a inexistência de obrigação, sendo o preenchimento da livrança abusivo.

Apreciemos.
Toda a execução tem de ter por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva (fins esses que, como previsto na lei, podem consistir no pagamento de quantia certa, na entrega de coisa certa ou na prestação de um facto, quer positivo, quer negativo - v. n.º 5 e 6, do art. 10º, do Código de Processo Civil, diploma a que se reportam todos os preceitos citados).

“O título executivo constitui pressuposto de caráter formal da ação executiva, destinado a conferir à pretensão substantiva um grau de certeza reputado suficiente para consentir a subsequente agressão patrimonial aos bens do devedor. Constitui a base da execução, por ele se determinando o tipo de ação e o seu objeto (nº5), assim como a legitimidade ativa e passiva para a ação (art. 53º, nº1).

O objeto da execução tem de corresponder ao objeto da situação jurídica acertada no título (…) É também pelo título que se determina a quantum da prestação”[4].

A ação executiva só pode ser intentada se tiver por base um título executivo (nulla executio sine titulo), o qual, para além de documentar os factos jurídicos que constituem a causa de pedir da pretensão deduzida pelo exequente, confere igualmente o grau de certeza necessário para que sejam aplicadas medidas coercivas contra o executado[5].

O título executivo realiza duas funções essenciais:

- por um lado, delimita o fim da execução, isto é determina, em função da obrigação que ele encerra, se a acção executiva tem por finalidade o pagamento de quantia certa, a entrega de coisa certa ou a prestação de facto;

- por outro lado, estabelece os limites da execução, ou seja, o credor não pode pedir mais do que aquilo que o título executivo lhe dá[6].

O art. 703º, apresenta uma enumeração taxativa (numerus clausus) dos títulos executivos que podem servir de base a uma ação executiva, entre eles se contando, como resulta do nº1, os títulos executivos extrajudiciais.

Assim, de acordo com o nº5, do art. 10º, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva, título esse que só pode ser um dos previstos no art. 703º, nº1, do mesmo diploma, entre os quais se encontram os títulos de crédito (c).
Pela execução a que a apelante deduziu oposição, a exequente visa obter o pagamento coativo do crédito, titulado por livrança. Estamos, assim, perante de uma ação executiva para pagamento de quantia certa e o título executivo que serve de base à presente execução é um título extrajudicial, uma livrança.
Invoca a devedora a inexistência de obrigação. Contudo, e como bem decidiu o Tribunal a quo assim não sucede, existindo título executivo e a existência do título faz presumir que o crédito existe e que está por cumprir, não podendo os embargos deixar de improceder.
Analisemos.
Concluiu o Tribunal a quo que a livrança exequenda reúne os requisitos formais para fundar a ação executiva cambiária referindo:
A livrança, desde que preencha os requisitos prescritos na Lei Uniforme de Letras e Livranças (LULL), constitui um documento particular, assinado pelo devedor, que importa o reconhecimento de uma obrigação pecuniária de montante determinado.
Trata-se, portanto, de um documento que é legalmente qualificado como título executivo nos termos do disposto no art. 703º, n.º1, al. c) do Código de Processo Civil.
A exigência de invocação dos actos constitutivos da relação subjacente apenas existe quando o título de crédito constitua mero quirógrafo da obrigação, o que não sucede no caso em apreço.
A livrança dada à execução preenche ainda todos os requisitos previstos no art. 75º da LULL, sendo a obrigação nela contida certa e líquida - encontra-se qualitativa e quantitativamente determinada –, e está preenchida como vencida (…).
A apresentação a juízo corresponde a apresentação a pagamento, não carecendo a livrança de qualquer outro acto formal, designadamente de protesto, que a torne exequível.
A exigência de protesto não é aplicável ao subscritor da livrança, como resulta do art.º 53º, §1º ex vi art.º 77º da LULL, nos termos do qual, depois de expirado o prazo para se fazer o protesto por falta de pagamento, o portador perde os seus direitos de acção contra os obrigados cambiários, à excepção do aceitante.

E bem concluiu o Tribunal a quo pela não verificação do preenchimento abusivo da livrança em branco, resultando, até, a prova da relação material subjacente à livrança, e, como tal a existência da responsabilidade da executada, referindo:
“…o tribunal considerou provado o teor do contrato junto aos autos, e subjacente à emissão, assinatura e entrega da livrança.
Deste contrato consta, como cláusula 12ª, que para garantia das obrigações constituídas no âmbito desse o proponente autoriza expressamente o Banco a preencher a livrança por si subscrita entregue em função da garantia desse mutuo até ao limite das responsabilidades por si assumidas.
A subscrição de uma “livrança em branco”, ao invés de configurar uma qualquer anomalia ou irregularidade, consubstancia uma figura com expressa previsão legal, conforme decorre do disposto no art. 10º da L.U.L.L., ex vi do art. 77º do mesmo diploma, que admite como válida uma letra (livrança) incompleta no momento em que é emitida, desde que venha a ser completada.
Como escreve Abel Delgado (Lei Uniforme sobre Letras e Livranças Anotada, 7ª ed., pg. 78), para haver uma letra (aqui livrança) em branco basta que lhe falte algum requisito e nela haja pelo menos uma assinatura, a qual tanto pode ser do sacador, do aceitante, do avalista, como do endossante, desde que conste de um título que contenha a designação impressa e expressa de “letra” (no nosso caso será “livrança”), e que tal assinatura tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária.
Por um lado, a embargante interveio directamente no contrato que constitui relação subjacente à emissão da livrança (a assinatura não é posta em causa), do qual consta uma cláusula que compreende o chamado “acordo de preenchimento”, já citada supra.
E, perante uma livrança assinada em branco que, como vimos, constitui procedimento legítimo e não afecta a validade do título de crédito, não será suficiente invocar genericamente que não houve acordo quanto ao preenchimento, sem que, em simultâneo, se invoque um qualquer facto concreto que nos leve a crer que tal preenchimento foi contrário à medida do inquestionado (os oponentes reconhecem que não pagaram as prestações do financiamento) incumprimento.
Se é pacífica a legitimidade do subscritor da livrança para excepcionar o abuso de preenchimento, o ónus da prova da existência desse abuso cabe à opoente. Para tanto, porém, necessário seria que invocasse factos concretos passíveis de prova, que permitissem ao tribunal atingir a conclusão de que aquele título, livremente assinado e entregue por ocasião da outorga do contrato de empréstimo, foi preenchido de forma errónea, indevida, excessiva ou com recurso a procedimento afectado por vício de qualquer outra natureza.
Não poderá o subscritor de uma livrança em branco livremente desvincular-se da obrigação resultante da assinatura da livrança com o genérico argumento de que não deu o seu consentimento ao preenchimento e desconhecia os seus elementos essenciais ou que estes não lhe foram explicados, sob pena de, a partir de um espírito de necessária protecção do consumidor, se atingir um extremo de tratar este último como destituído de capacidade para contratar.
Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 18.12.2013 (proferido no âmbito do processo n.º1445/11.6TBCBR-A.C1, relatado pelo ilustre Sr. Desembargador Barateiro Martins), a cuja fundamentação integralmente aderimos e que aqui seguimos de perto, para se demonstrar o preenchimento abusivo, tem que se demonstrar (1º) a existência de um acordo e (2º) que o tomador/portador da letra/livrança, ao preenche-la (ao completar o respectivo preenchimento), desrespeitou tal acordo; e, logicamente, quem apenas invoca que não há/subsiste convenção de preenchimento fica sem “quid” que sirva de suporte/reporte ao preenchimento abusivo.
Isto porque, como resulta das regras da experiência e do comum da vida, e é referido no douto acórdão citado não é juridicamente compreensível a emissão (subscrição e entrega) voluntária duma letra/livrança objectivamente incompleta sem o cometimento, em certos termos, do seu preenchimento a outrem; sem que, concomitantemente, exista um acordo de preenchimento, seja ele escrito, meramente oral/informal ou porventura tão só implícito.
Se a oponente não questionou de forma concreta a dimensão do incumprimento (antes atacando a validade da relação contratual), que a relação fundamental não permitia o preenchimento por aquele valor ou com aquelas específicas características, então teremos que concluir que nenhum facto juridicamente relevante é verdadeiramente alegado, já que, se assinou a livrança em branco, alguma expectativa ou algum acordo os executados, ainda que implicitamente, aceitaram definir como finalidade do documento.
Em regra, os executados, confrontado com uma livrança preenchida pelo portador, como se refere no aludido acórdão, questiona o “se”, o “quando” e o “quanto” do preenchimento do título, sendo precisamente esses factos, concretamente questionados, que poderão consubstanciar a factualidade exceptiva passível de pôr em causa o direito exercido pela exequente”.

No caso, existindo cláusula de autorização de preenchimento da livrança, não são alegados factos a densificar desconformidade com a autorização dada, por efeito da assinatura do contrato, pelo a exceção arguida bem foi julgada improcedente.
Bem conclui o Tribunal a quo pela existência de título e bem entendeu ter a exequente direito de reclamar o pagamento, resultando tal direito do título executivo (livrança), sendo que a causa de pedir da execução é o facto jurídico nuclear da obrigação, com raiz no título, justificado estando o valor que a exequente/apelada pretende cobrar coercivamente, como veremos.
Existe, pois, título executivo, do qual decorre a obrigação cartular, e, no caso, resultou demonstrada, também, a obrigação subjacente, apesar de, atentas as regras do ónus da prova, tal não se mostrar necessário.

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- Do ónus de alegação e prova da violação do pacto de preenchimento e de outras exceções.
Quanto à questão do ónus de alegação e da prova dos fundamentos dos embargos, pacífico é, na doutrina e jurisprudência, que recai sobre o embargante o ónus de alegar factos de onde o preenchimento abusivo resulte e o ónus de os demonstrar.
Assim tivemos já, também, oportunidade de decidir e de tomar posição, como aconteceu no Ac. desta Relação de 19/12/2023, proc. nº 5168/22.2T8MAI-A.P1, em que a ora Relatora foi adjunta, com o sumário: “1. A entrega de títulos de crédito “em branco”, subscritos pelos devedores, mas sem que neles seja aposta qualquer quantia ou data de vencimento, é prática comum nas relações comerciais valendo como uma “garantia imprópria” de pagamento de obrigações emergentes de contratos e/ou do seu incumprimento; 2. O subscritor de livrança em branco fica sujeito a ver-se responsabilizado pela aposição nesse título de um valor e de uma data a que previamente deu o seu acordo, nos termos do pacto celebrado com vista ao seu preenchimento; 3. Apresentado à execução um tal título de crédito, o ónus de alegação e prova de um preenchimento abusivo, violador do acordo nesse sentido firmado e, portanto, passível de censura ético jurídica, é do embargante já que se trata de facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito”.
Neste Acórdão se analisou do direito aplicável à execução de títulos de crédito e da questão do preenchimento de livrança em branco, decidindo-se, com inteira pertinência para o caso sub judice (citando-se as respetivas notas, no local próprio, para melhor perceção):

tal título de crédito consubstancia título executivo sem necessidade de invocação de relação subjacente nos termos do previsto no artigo 703º, número 1 c), a contrario, do Código de Processo Civil e artigos 17º e 75º a 78º da Lei Uniforme das Letras e Livranças.

Assim, fundada a execução em título de crédito, estava o exequente dispensado de invocar qualquer relação subjacente à sua emissão valendo a mesma como demonstrativa de que foi estabelecida uma relação cambiária que foi, aliás, a causa e pedir da execução.

Era, porém, lícito à Embargante, enquanto obrigada cambiária, invocar tal relação subjacente nos termos do previsto no artigo 731º do Código de Processo Civil, que lhe permite opor-se à execução com os mesmos fundamentos que podia discutir o seu débito em ação declarativa.

Tal oposição, que agora, em sede de recurso, se restringe ao não cumprimento do acordo de preenchimento/preenchimento abusivo, sustenta-se na alegação de que a Exequente apôs nesse título - que lhe fora entregue em branco para garantia de cumprimento de contrato que ambas celebraram -, quantia que não lhe é devida.

A entrega de títulos de crédito “em branco”, subscritos pelos devedores, mas sem que neles seja aposta qualquer quantia ou data de vencimento, é prática comum nas relações comerciais valendo como uma “garantia imprópria” de pagamento de obrigações emergentes de contratos e/ou do seu incumprimento.

Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte[7] referem-se a essa prática afirmando: “É certo que a letra em branco e, mais vulgarmente, a livrança em branco não são usadas tão-só como meios de caução; com alguma frequência recorre-se a estes títulos de crédito para assegurar o cumprimento de uma obrigação, só que, em tal caso, eles não consubstanciam uma garantia especial”

Carolina Cunha[8], afirma, a propósito que “A utilização do título em branco compreende-se como uma prestação de garantia num contexto de relativa incerteza. Supõe, normalmente, uma relação fundamental que comporta um direito de crédito ainda não inteiramente definido (porque falta determinar o respectivo montante, ou porque se aguarda o seu vencimento), ou no seio da qual se prevê como apenas eventual a constituição de um direito de crédito. Ocorre, sobretudo, no âmbito de relações duradouras com prestações pecuniárias como expediente para fazer face ao espectro do incumprimento. Ou seja, determinante do recurso à letra em branco é tanto o carácter ilíquido da dívida como o seu carácter futuro e incerto”.

Assim, é imprescindível que seja celebrado um acordo para preenchimento da livrança em branco que, nas palavras de Romano Martinez e Fuzeta da Ponte[9], “(…) corresponde a um protocolo complementar ou acessório, também designado por side letters, nos termos do qual se pretende regulamentar o contrato, dito base (no caso concreto a livrança em branco”.

O subscritor de livrança em branco fica, assim, nos termos do pacto celebrado com vista ao seu preenchimento, sujeito a ver-se responsabilizado pela aposição nesse título de um valor e de uma data a que previamente deu o seu acordo.

Caso o título tenha sido preenchido abusivamente poderá socorrer-se do regime do artigo 10º da Lei Uniforme das Letras e Livranças (por via da remissão do seu artigo 77º) de que decorre, a contrario, que se o título tiver sido preenchido contrariamente aos acordos realizados, pode a inobservância dos mesmos ser oposta ao portador que tenha cometido uma falta grave.

Regressando às palavras de Carolina Cunha[10] “A solução do art. 10º LU pode, portanto, resumir-se deste modo: quem voluntariamente emite uma letra incompleta suporta o risco inerente a essa sua atuação – o risco da inserção de um conteúdo não coincidente com a sua vontade – a menos que se verifique um particular desmerecimento na posição do portador-adquirente por a sua atuação ser passível de um juízo de censura ético-jurídica.”

Provou-se, no caso, que a subscrição da livrança pela Recorrente foi contemporânea de um acordo de preenchimento e foi emitida precisamente para ser preenchida caso se viesse a verificar incumprimento das suas obrigações caso em que o portador poderia preencher tal título com um valor correspondente “(…) ao saldo em dívida de capital, juros e demais encargos e despesas emergentes do presente contrato (…)

Assim, o ónus de alegação e prova de um preenchimento abusivo, violador do acordo nesse sentido firmado e, portanto, passível de censura ético jurídica é da embargante porquanto se trata de  facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito – cfr. artigos  342º, número 2 e 378º, do Código Civil, e 571º, n.º 2, e 731º, do Código de Processo Civil.[11][12].
Decorre dos factos provados que a livrança em causa foi entregue em branco e, embora quando emitida se não mostrasse completa, a lei permite seja, posteriormente, completada (validamente) em conformidade com o acordado, nos termos do denominado pacto de preenchimento.
  O acordo de preenchimento é uma convenção extracartular, não sujeita a forma, em que as partes ajustam os termos em que deverá ser definida a obrigação cambiária, como seja o montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a data do pagamento, devendo o preenchimento do título ser efetuado em conformidade com o convencionado, sob pena de violação do pacto de preenchimento.
Uma vez completado o preenchimento do título e colocado este em circulação, cabe distinguir o domínio das relações mediatas do domínio das relações imediatas e, no âmbito destas, é lícito invocar a violação do pacto de preenchimento, embora recaia sobre o obrigado cambiário o ónus da prova dos factos que a densificam (cfr. artigos 342º n.º 2 e 378º do Código Civil e artigos 10º e 17º da LULL, a contrario).
No caso, a executada/embargante e a exequente/embargada estão nas relações imediatas (nas quais os sujeitos cambiários são, também, os sujeitos das convenções extracartulares, tudo se passando como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstrata, ficando sujeitos às exceções que nessas relações pessoais se fundamentem) estando-se, assim, no âmbito da relação fundamental subjacente à emissão da livrança.
 Deste modo, à Embargante era lícito alegar (e oferecer prova) a violação do pacto de preenchimento, competindo-lhe, pois, alegar os factos dos quais tal violação resulte, e, enquanto exceção, tal como em relação às restantes exceções deduzidas, cabia-lhe, também, o ónus da prova dos factos constitutivos da mesma.
Analisado o requerimento inicial, constata-se que a Embargante se limitou a invocar, de forma genérica, o preenchimento abusivo. Não alegou os factos concretos tendentes a demonstrar que o preenchimento da livrança violou o pacto de preenchimento, designadamente quanto ao montante nela inscrito.
Assim, não tendo alegado factos tendentes a demonstrar o preenchimento abusivo da livrança, não poderia a Recorrente pretender provar a violação do pacto de preenchimento, conforme bem se considerou na decisão recorrida. E resultou, até, provada a relação subjacente e provado se encontra, também, que a exequente creditou na conta da executada/embargante a quantia de 18.575,93€, não provando esta o pagamento da quantia exequenda (mesmo que só em parte) (cfr. f.p. nº6 e factos não provados).
Mantém-se, pois, a fundamentação que o Tribunal de 1ª Instância desenvolveu na decisão que proferiu.
Na verdade, não logrou a embargante alegar e provar factualidade que fundamente oposição à execução por meio de embargos de executado, sendo certo que sobre si impendiam os respetivos ónus da alegação e de prova de fundamentos de oposição à execução por aquele meio.
Com efeito, sendo os embargos de executado uma verdadeira ação declarativa, uma contra ação do executado à ação executiva do exequente, com vista a extinguir a execução ou a obstar à produção dos efeitos do título executivo, é sobre o embargante que recai o ónus de alegação e prova da inexistência de causa debendi ou do direito do exequente de factos que, em processo declarativo, constituiriam matéria de exceção, densificando causa impeditiva, modificativa ou extintiva daquele direito (art. 342º, nº2, do CC). Neste sentido cfr, entre muitos disponíveis in dgsi.pt, Ac. RL de 13/11/2008, CJ, 2008, 5º, 84.
Destarte, provada a alegada obrigação que decorre do título e nada resultando demonstrado a impedi-la, a modificá-la ou a extingui-la, impõe-se, na improcedência dos embargos, a improcedência do recurso.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer normativo invocado pelo apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.


*

3. Da responsabilidade tributária.

As custas do recurso são da responsabilidade da recorrente dada a total improcedência da sua pretensão recursória (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).


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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.


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Custas pela apelante – art. 527º, nº1 e 2, do CPC –, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.


Porto, 19 de fevereiro de 2024

Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
Manuel Domingos Fernandes
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[1] De 07-11-2019 – Revista n.º 162867/15.0T8YIPRT.L1.S1; de 08-02-2018, Revista 8440/14.1T8PRT.P1.S1, ambos desta 2ª secção, in www.dgsipt
[2] Na Revista n.º 3160/16.5T8LRS-A.L1-A.S1 in www.dgsi.pt.
[3] AUJ de 17/10/2023, proc. 8344/17.6T8STB.E1-A.S1
[4] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 3ª Edição, Coimbra Editora, pág 33.
[5] Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 2016, Almedina, pág 43-44.
[6] Ibidem, pág 48.
[7] Garantias de Cumprimento, Almedina, 2ª edição, página 41.
[8] Manual de Letras e Livranças, Almedina, págs. 165/166.
[9] Obra e página citadas.
[10] Obra citada, página 179.
[11] Neste sentido, entre muitos outros e a título meramente exemplificativo, o acórdão desta secção de 11-05-2020, no processo 56/19.2T8LOU-B.P1 e o do Supremo Tribunal de Justiça de 11-11-2004 no processo 04B43453 ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt
[12] Ac. da RP de 19/12/2023, proc. nº 5168/22.2T8MAI-A.P1