Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
191/21.7T8AMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
DECLARAÇÕES DE PARTE
CULPA
EXCESSO DE VELOCIDADE
Nº do Documento: RP20240208191/21.7T8AMT.P1
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As declarações de parte devem ser valoradas tendo em conta a sua consistência ou inconsistência interna e os demais meios de prova constantes dos autos ponderando sempre o interesse concreto na decisão da causa.
II - Se os elementos objectivos demonstram que o autor seguia em excesso de velocidade e, por causa disso, não conseguiu parar no espaço livre à sua frente ou desviar-se de outro veículo que ocupava apenas 1 metro dos 6,6 de largura faixa de rodagem, não pode imputar-se qualquer responsabilidade a esse condutor que iniciou essa manobra após ter verificado que nenhum veículo circulava nessa via.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 191/21.7T8AMT.P1



Sumário:
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I – RELATÓRIO

AA, BB, contribuinte fiscal ...59, intentaram contra A..., S.A., pessoa colectiva ...31, com sede na Av. ..., ... Lisboa, a presente acção declarativa de condenação sob a forma (única) de processo comum, pedindo a condenação da R. a pagar:

“Ao A. AA: a) A quantia de 6.213,75€, relativa ao valor necessário para a reparação dos danos causados na sua viatura, conforme alegado em 19 desta petição inicial. b) A quantia diária de 15,00€ (quantia necessária para alugar viatura equivalente), contados desde a data do sinistro, até efetivo e integral ressarcimento dos danos sofridos como consequência dos danos causados pela imobilização e privação do uso do veículo, conforme o alegado em 39 e 40 desta petição inicial. c) Bem como os juros vincendos calculados desde a citação até efetivo e integral pagamento.

À A. BB,

d) A quantia de 6.000,00€, conforme alegado em 65 desta petição inicial, acrescida dos juros

vincendos a contar da citação, até efetivo e integral pagamento; e) Por fim, deve a Ré ser condenada nas custas que vierem a ser apuradas.”

Alegaram, para tanto, que no dia 30.03.2019, pelas 11.30 horas, na Estrada Nacional 15, no sentido Lixa – Amarante, ao Km ...5,...00, na União de freguesias ... e de ..., Amarante, ocorreu um sinistro que envolveu o veículo ligeiro de passageiros, com matrícula ..-..-JJ, propriedade do A. AA e conduzido pelo próprio e o veículo ligeiro automóvel, com matrícula ..-..-QV, tripulado pelo seu proprietário, CC; mais alegaram que, à data do evento, o A. AA seguia na EN 15, numa via com duas hemi-faixas de rodagem, uma em cada sentido, com 6,60 metros de largura, no sentido Lixa-Amarante, a velocidade não superior a 50 Km/hora, quando ao alcançar o Km ...5,...00, junto da loja de tintas B..., o A. foi surpreendido pelo veículo seguro na R., provindo de um prédio/acesso particular que entrou repentinamente na via, ocupando a totalidade da hemi-faixa de rodagem no mesmo sentido em que seguia o A., sem atender ao trânsito de veículos naquela via; mais alegaram que, para evitar o embate, o A. guinou totalmente para a sua esquerda, acabando por invadir a hemi-faixa contrária, acabando por embater num poste e na vedação de um stand de automóveis, atingindo algumas viaturas que ali se encontravam; alegaram ainda que, em consequência do referido embate, o veículo tripulado pelo A. ficou danificado, ascendendo a sua reparação ao valor de 6.213, 75 euros, tendo a R. considerado a existência de perda total, recusando-se a indemnizar os prejuízos e privando o A. de utilizar o seu veículo, provocando assim o prejuízo correspondente ao valor diário de 15 euros, correspondente ao aluguer de veículo com idênticas características, devido desde o dia do sinistro até efectivo ressarcimento; mais alegaram que a A. BB, que seguia com o A. no veículo acidentado, sofreu lesões físicas, ficando a padecer de dores no ombro e braço, tornando-se, além do mais, pessoa medrosa, facilmente irritável, danos não patrimoniais cujo ressarcimento pretende.

Regularmente citada, veio a R., grosso modo, pugnar por diversa dinâmica do sinistro, alegando que o A. AA, nas circunstâncias de tempo e lugar por si invocadas, seguia na EN 15, no local alegado, quando ao sair da curva à direita, seguindo a velocidade nunca inferior a 90 km/hora, em derrapagem, avistou o veículo seguro na R. que, instantes antes, e depois de se ter certificado que a via se encontrava desimpedida, saiu do parque de estacionamento de uma loja de tintas que se encontrava no lado direito da via, no sentido de marcha do A.; mais alegou que o A., ao sair da curva, a grande velocidade, assustou-se com a presença do veículo seguro na R. que ocupava parte da via, travou a fundo e guinou o volante para esquerda, razão pela qual, e tendo perdido o controlo do veículo, acabou por embater no poste e vedação do estabelecimento comercial que se encontrava na hemi-faixa contrária, razão pela qual o sinistro ficou a dever-se exclusivamente ao facto do A. circular com excesso de velocidade; mais alegou que o valor comercial do veículo sinistrado não ultrapassa o valor de 3.300 euros, valor que, depois de descontado o valor do salvado (423 euros), deve, sendo o caso, limitar a sua responsabilidade; mais impugnou ser devido qualquer valor a título de privação do uso, alegando, além do mais, que a A. BB, quanto à pretensão por si deduzida, não demonstra qualquer evidência de ter sofrido qualquer lesão. Conclui pela improcedência da acção.

Saneada e instruída a causa procedeu-se a julgamento, após o qual foi proferida sentença que decidiu “julgo a acção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolvo a R. dos pedidos contra ela formulados pelos aqui AA.”

Inconformados vieram os AA interpor recurso, o qual foi admitido como de apelação e sobe nos próprios autos, tendo efeito devolutivo, nos termos dos artigos 644.º, n.º 1, alínea a), 645.º, n.º 1, alínea a) e, 647.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil.


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2.1. Conclusões dos apelantes:

A. Face às declarações de parte dos AA. e face aos documentos juntos com a PI (nomeadamente a participação das autoridades policiais), os factos constantes das alíneas a), c) e d) dos não provados foram incorretamente julgados.

B. Quanto ao facto não provado sob a alínea a) (No sinistro referido em 1., foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..-..- JJ, propriedade do A. AA e conduzido pelo próprio e o veículo ligeiro, matrícula ..-..-QV, propriedade de CC e por si conduzido), entendem os Recorrentes que foi feita prova do mesmo, tal resulta quer do documento 2 junto com a PI (participação de acidente de viação), quer das declarações prestadas pelos próprios AA. (AA como condutor e BB como ocupante da viatura com a matrícula ..-..-JJ).

C. Do documento 2 junto com a PI (participação de acidente de viação), resulta que a viatura com a matrícula ..-..-QV entrou na estrada 1 metro.

D. Das declarações o A. AA, prestadas em 30/03/2022, ao minuto 02:00 refere que “quando começo a curvar vejo a faixa de rodagem cortada por um veículo” e ao minuto 03:40 refere que “era um furgão”.

E. A A. BB (também nas suas declarações prestadas no dia 30/03/2022) referiu o seguinte: “O Sr. tirou o veículo do meio da estrada”. “Tirou porque estava a estorvar” – minuto 06:40 a 06:50. Era uma carinha grande, alta – minuto 7:20 a 07:50.

F. Quanto ao facto não provado sob a alínea c) (Nas circunstâncias descritas em 7. E 8., CC entrou repentinamente na via e ocupou a totalidade da faixa de rodagem no sentido Lixa-Amarante, tendo ficado demonstrado o ali vertido), entendem os Recorrentes que foi feita prova do mesmo,

G. Das declarações o A. AA, prestadas em 30/03/2022, do minuto 03:00 ao 03:17 refere que a “faixa de rodagem estava cortada por uma viatura e eu vou para me desviar pela frente e esse veículo corta-me a outra faixa de rodagem”. “o carro estava parado no meio da faixa” – minuto 03:20. “Saía de uma loja de comércio” – minuto 03:26.

H. A A. BB (também nas suas declarações prestadas no dia 30/03/2022) referiu o seguinte: “O Sr. Saiu de lá. Parou. O Sr. AA ia a desviar-se. Saiu da loja de tintas. Ele meteu-se à estrada. Parou. O sr. AA ia a passar e ele andou mais para a frente. E depois foi quando o Sr. AA se desviou. E o Sr. Depois como estava a ocupar as duas faixas, ele tirou a carinha lá do meio. Estacionou mais acima” – minuto 08:00 a 09:30.

I. Quanto ao facto não provado sob a alínea d) (O A. actuou da forma descrita em 10. para evitar que CC lhe batesse e porque este manteve a sua marcha para atravessar a via, tendo ficado demostrado apenas o vertido em 5. a 12. do elenco dos factos provados), entendem os Recorrentes que foi feita prova do mesmo, J. Resulta do documento 2 junto com a PI (participação de acidente de viação), que a viatura com a matrícula ..-..-QV entrou na estrada 1 metro.

K. Das declarações o A. AA, prestadas em 30/03/2022, do minuto 04:20 ao 05:34 refere que a “eu travei, o carro é ligeiramente e começou a derrapar. Eu tentei passar pela frente, mas a pessoa que estava no veículo chegou o veículo para a frente”.

L. A A. BB (também nas suas declarações prestadas no dia 30/03/2022) referiu o seguinte: “A travagem foi para desviar. Para não bater no carro” – minuto 05:30 a 05:50, “O Sr. Saiu de lá. Parou. O Sr. AA ia a desviar-se. Saiu da loja de tintas. Ele meteu-se à estrada. Parou. O sr. AA ia a passar e ele andou mais para a frente. E depois foi quando o Sr. AA se desviou. E o Sr. Depois como estava a ocupar as duas faixas, ele tirou a carinha lá do meio. Estacionou mais acima” – minuto 08:00 a 09:30.

M. Pelo que, deverão ser alterado e passar a constar como provado que: No sinistro referido em 1., foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..-..- JJ, propriedade do A. AA e conduzido pelo próprio e o veículo ligeiro, matrícula ..-..-QV, propriedade de CC e por si conduzido, Nas circunstâncias descritas em 7. e 8., CC entrou repentinamente na via e ocupou a totalidade da faixa de rodagem no sentido Lixa-Amarante, tendo ficado demonstrado o ali vertido, O A. actuou da forma descrita em 10. para evitar que CC lhe batesse e porque este manteve a sua marcha para atravessar a via.

N. Aos AA. comprovaram a dinâmica do sinistro nos termos por si alegados, ou seja, que o sinistro ocorreu em virtude de o veículo com a matrícula ..-..-QV ter invadido a faixa de rodagem por onde circulava o veículo do A. AA (sendo este obrigado a realizar uma manobra de evasão para evitar o embate no veículo ..-..-QV).

O. Embora as declarações dos AA., porque são pessoas naturalmente interessadas, tenham de ser avaliadas com cautelas acrescidas, não existe fundamento legal para, aprioristicamente, lhes negar relevância probatória.

P. Há que atender que, no caso concreto, tais declarações prestadas em audiência, têm a corrobora-las – de forma relevante – outros elementos de prova adjuvantes (como é o caso do documento n.º 2 junto com a PI).

Q. As regras da estrada impõem cautelas acrescidas a quem saia de um parque de estacionamento e pretenda ocupar uma via de trânsito (artigos 29.º e 31.º  do Código da Estrada), contudo o condutor da viatura com a matrícula ..-..- QV não as cumpriu, contribuindo assim para a ocorrência do sinistro.

R. Pelo que, mesmo que se entenda que o A. AA concorreu para o sinistro, salvo devido respeito por opinião diversa, o condutor da viatura com a matrícula ..-..-QV também deu causa ao mesmo, porquanto obrigou o A. AA a desviar a sua trajetória e a efetuar uma manobra evasiva.

S. E nessa medida, deverá a Ré ser condenada conforme peticionado.

T. Em conformidade, alterando-se os factos ora impugnados e verificados que estão os pressupostos da obrigação de indemnizar, deverá ser revogada a sentença proferida e proferida decisão que condene a Ré nos termos peticionados nos autos.


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2.2. A parte contrária contra-alegou, concluindo que:

Como é patente nas suas Alegações, e Conclusões, a sua pretensão baseia-se única e exclusivamente nas suas declarações de parte.

Acontece que a análise e apreciação que é feita na Sentença dessas mesmas declarações de parte, e a comparação desse meio de prova com os demais, afigura-se, na opinião da aqui Recorrida, irrepreensível e, diga-se, dificilmente atacável ou impugnável, constituindo um fiel exame de toda a prova que o Tribunal a quo foi chamado a interpretar.

Assim, a Recorrida bastar-se-á com a transcrição dessa mesma análise, confiando-se que este Tribunal da Relação do Porto, após leitura da mesma, mais não fará do que confirmar a decisão proferida no respeitante à matéria de facto, assim como da de direito, mantendo a absolvição da Ré.


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3. Questões a decidir

1. apreciar o recurso da matéria de facto

2. Sindicar depois a conclusão jurídica a extrair da factualidade.


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4. Recurso da matéria de facto

Pretendem os apelantes que os factos não provados a), c) e d)[1], foram incorrectamente apreciados com base nas suas declarações e documentos juntos aos autos.

O facto a) está já contido na matéria de facto provada nos factos nºs 6 a 12.

Com efeito essa versão do acidente é na generalidade a relatada pelos AA na sua própria PI.

Logo, a valoração do facto não provado a) é inútil para a decisão da causa.


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Quanto aos factos não provados c) e d)

Num acidente de viação mais relevante do que as declarações dos intervenientes, em especial, quando estes são parte directa e materialmente afectada pela decisão da causa, são os elementos objectivos, inquestionáveis que demonstram (ou não) a bondade das teses factuais em confronto.

Ora, a foto do carro junta em 10.3.21, demonstra o mau estado do veículo após a colisão e permite inferir que este seguia, no momento desse embate com elevada força cinética, logo, com elevada velocidade, mesmo após um rasto de travagem de cerca de 40 metros.

Basta dizer que por força do embate a frente do veículo JJ ficou “completamente” destruída, como demonstram as fotos juntas e incapaz de circular pelos seus meios.

Depois, com base na informação determinada sabemos quais as linhas pintadas na faixa de rodagem e quais os limites de velocidade (email de 28.6.22), que eram em dois locais de 50 km/h.

E, por fim, o auto policial demonstra que o rasto de travagem tem uma extensão de mais ou menos 40 metros e o piso estava seco.

Ora, estes elementos objectivos demonstram que a tese dos apelantes é desajustada da sua versão da realidade. Desde logo, a velocidade imprimida teria de ser elevada e as marcas de travagem pela sua dimensão (cerca de 40 metros), implicam que o despiste do veículo dos AA seja anterior ao momento em que o seu condutor poderia visualizar o outro veículo.

E, por fim, com base no depoimento da testemunha referida (pela decisão recorrida) sabemos que o outro veículo ocupava apenas 1 metro via. Logo não é possível concluir que ocupava toda a faixa conforme declarações dos AA.


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 Acresce que as restantes testemunhas (oficiosamente ouvidas) confirmam esta tese.

Assim: o Sr. agente da GNR confirma o que consta do auto de forma naturalmente pouco concreta, admitindo por exemplo que existam traços pintados na via.

O Sr. CC (condutor da carrinha) confirma a sua versão e descreve, por exemplo, que o Citroen “partiu o poste em dois locais” e destruiu a rede do stand e que parou a manobra mal o viu.

O Sr. DD (representante da marca Citroen), confirma o valor da reparação que consta do relatório (cerca de 6 mil euros) e que “actualmente já não há materialmente para a reparação”.

O Sr. EE (perito que presta serviço à ré), afirma que existe um traço descontínuo que permitia a manobra do condutor da seguradora e que o veículo dos AA. despistou-se antes de poder ver sequer o outro veículo.

O Sr. FF e Sr. GG (perito e supervisionador) confirmam o relatório de avaliação dos danos.

Ou seja, todos estes elementos demonstram a racionalidade e objectividade do juízo factual efectuado pelo tribunal a quo.


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Acresce que o regime das declarações de parte, mesmo na tese que admite a sua valoração autónoma e isolada, não prescinde de um juízo crítico sobre a consistência e credibilidade das mesmas face aos restantes meios probatórios. [2]

Porque, seja qual seja a forma do seu depoimento a sua valoração nunca pode esquecer o directo interesse na decisão da causa.[3]

Por isso, conforme salienta o da RC de 26.4.22, nº 63725/20.8YIPRT.C1 (JOSÉ AVELINO GONÇALVES): “ A prova por declarações de parte deve merecer, em abstrato, a mesma credibilidade das demais provas legalmente admissíveis, sendo apreciada livremente pelo tribunal. Porém, em concreto, normalmente é insuficiente para valer como prova convincente, se desacompanhada de prova corroborante que a sustente”.

Nos mesmos termos, o Sr. Prof. Teixeira de Sousa[4] considera “Se é certo que se impõe apreciar a prova por declarações de parte sem ilusões ingénuas, também é verdade que não há que, à partida, desqualificar o valor probatório dessa prova. Em suma: a prova por declarações de parte tem, sem quaisquer apriorismos, o valor probatório que lhe deva ser reconhecido pela prudente convicção do juiz; nem mais, nem menos”.

E, o Ac do STJ de 5.12.2019, nº 13951/16.1T8LSB.L2.L1.S2 (ROSA TCHING) acentua que: “Inscrevendo-se a atividade de valoração das declarações de parte no âmbito da livre apreciação da prova, a exigência, por parte do Tribunal da Relação, de corroboração destas declarações por algum outro meio de prova não constitui violação ao preceituado no artigo 466º, nº 3 do Código Civil, pois a mesma mais não é do que um critério de avaliação da prova que o juiz poderá seguir”.


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Ora, no caso presente o depoimento do autor é inconsistente nos seus próprios termos e incoerente com os elementos objectivos.

Desde logo, de acordo com o depoimento do autor o outro veículo estava com “as rodas da frente na linha de berma”, e a curva “tem pouca visão porque é fechada”. Pelo que bateu na rede para evitar bater na frente do outro carro.

Do rasto de travagem resulta que o condutor depois da travagem perdeu o domínio da direcção do veículo, pelo que não é possível ter escolhido “bater na rede e não no carro”.

Depois, no seu depoimento diz que o outro veículo estava no meio da faixa quando inicialmente diz que “estava na linha da berma”. Afirma que a “culpa” no acidente foi do outro condutor que bloqueou a via, mas depois afirma que “caso seguisse para a lixa já não lhe batia” (apesar da velocidade). Acresce que ao minuto 11.50 o autor afirma “eu até posso ir com velocidade, mas se não estivesse no meio passava pela frente”. E, na inquirição contrária (se o seu carro estava perto como é que deixou o rasto de 40 metros), resposta “se o carro não arranca não preciso de travar”.

Por fim, o autor admite que o seu carro não podia circular, que nem sequer existem peças para reparar, e que o valor de mercado é escasso, mas mesmo assim pretende a reparação total.  

A A. BB, refere que o outro carro ocupou as duas faixas e foi tudo muito rápido.

 Esta versão é, como vimos, distinta da do autor e note-se nunca consegue explicar porque numa via com 6,6 metros o veículo do autor teve de derrubar um poste, bater numa rede, atingir ainda alguns veículos para lá desta para se desviar do veículo segurado na ré.

Logo, podemos concluir que os depoimentos dos AA não são aptos a comprovar essa sua tese, e que os restantes meios de prova demonstram de forma evidente e suficiente que este seguia a uma velocidade indeterminada, mas elevada, a qual conjugada com o rasto de travagem, o impediu de se desviar do veículo que ocupava (apenas) cerca de 1 metro da faixa de rodagem, que note-se tinha 6,60 nos dois sentidos de marcha.

Por isso, a valoração da prova efectuada não merece qualquer censura, pelo que improcede o recurso da matéria de facto.


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4. Matéria de facto

1. No dia 30 de março de 2019, pelas 11H30, na Estrada Nacional EN 15, ao Km ...5,...00 (na estrada que liga Lixa a Amarante), na União de freguesias ... e de ..., concelho de Amarante, ocorreu um sinistro.

2. Era dia, estava bom tempo e o piso estava seco.

3. A via tem 6,60 metros de largura e, atento o sentido de trânsito do veículo do A. AA, o local do sinistro configura uma curva à direita.

4. Apresenta duas hemi-faixas de rodagem, uma em cada sentido.

5. O A. AA, tripulando o veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..-..-JJ, sua propriedade,

seguia via referida em 1., no sentido Lixa-Amarante, pela sua mão de trânsito.

6. Instantes antes do sinistro, CC, condutor e proprietário do veículo com a matrícula ..-..-QV, preparava-se para sair da zona de estacionamento de uma loja de tintas, de nome B..., para rumar no sentido da Lixa, que se localizava no lado direito da referida artéria, atento o sentido de marcha do A.

7. Antes de avançar da zona de estacionamento para a EN 15, à qual pretendia aceder, o referido

CC, olhou em ambas as direcções,

8. E tendo verificado que não se encontrava em circulação qualquer veículo, avançou cerca de um metro para a via,

9. Quando se apercebeu que o A. AA, imprimindo uma velocidade não concretamente apurada, mas necessariamente superior a 50 Km/hora, ao sair da curva que, para o próprio, se desenhava à direita, deu conta da sua presença na via,

10. Assustou-se, travou a fundo e guinou o volante para a esquerda,

11. Invadiu a hemi-faixa contrária,

12. Acabando por embater num poste e da vedação de um stand de automóveis, atingindo algumas viaturas.

13. No local do sinistro, a velocidade legalmente permitida corresponde a 50 km/horários,

14. E encontra-se aposta no piso linha contínua ao eixo com abertura de viragem à esquerda, no sentido Amarante-Lixa, para acesso particular, no caso, o estabelecimento referido em 6.

15. Na sequência do descrito em 12., o veículo do A. sofreu danos, sobretudo, na parte frontal,

16. E cujo custo de reparação foi orçado pela R. em 6.213,75 euros, valor que a R. recusou pagar.

17. Estando os danos discriminados, com as peças e trabalhos necessários à reparação devidamente

indicados no relatório de peritagem e avaliação de danos elaborado pela R.

18. O veículo necessita de substituição de peças que o compõem, arranjo de chaparia, mecânica,

electrónica e pintura.

19. A R. considerou que o veículo do A., em consequência do sinistro, encontra-se em situação de perda total,

20. Tendo proposto condicionalmente a atribuição da quantia de 2.927 euros, correspondente ao valor de mercado que considerou, 3.350 euros, deduzido do valor do salvado, 423 euros.

21. À data do sinistro, o veículo do A. tinha o valor de mercado de cerca 3.300 euros.

22. O A., à data do sinistro, não pretendia vender o seu veículo.

23. O veículo do A., na sequência do sinistro, ficou imediatamente impossibilitado de circular,

24. Não tendo, até ao presente, sido reparado.

25. O veículo do A. era por si utilizado para as suas deslocações diárias e de lazer.

26. Em razão do vertido em 24., o A. tem-se socorrido de automóveis de familiares e amigos.

27. Na sequência do sinistro descrito, a A. BB, que seguia como ocupante no veículo tripulados pelo A. AA, foi transportada pelo INEM para o Hospital Padre Américo, em Penafiel,

28. Apresentando um quadro de dor torácica, com trauma do ombro e braço direito, e dor classificada em 5 pontos, numa escala de 10,

29. Tendo realizado radiografias ao ombro e clavícula direita,

30. Que revelaram ausência de lesões osteoarticulares,

31. Tendo sido administrados analgésicos,

32. E ficado com hematomas na zona atingida, sentindo dor durante um período de 15 dias.

33. À data do evento, o veículo com matrícula ..-..-QV era objecto de contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, válido e eficaz, celebrado com a R. e titulado pela Apólice n.º ...45.

34. O veículo com matrícula ..-..-JJ, propriedade do A., é de 1997, contando, à data do sinistro, com 212.526 Km.

35. No início do ano de 2021, o A. AA comprou um veículo ligeiro de passageiros de marca

Citroen, modelo ..., do ano de 2001.

36. A R., com excepção do vertido em 20., recusou o pagamento aos AA. de qualquer outro valor indemnizatório.


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6. Motivação Jurídica

O objecto da presente acção insere-se no domínio da responsabilidade extra-contratual, sendo que face à improcedência do recurso da matéria de facto é segura a imputação objectiva e subjectiva do acidente à condução do autor.

Na verdade, é seguro que o mesmo circulava em “velocidade excessiva”, definida no artº 24º, nº 1, do Código da Estrada, na vertente relativa como a não adequação à situação concreta, que leva a que o condutor não pare no espaço livre e visível à sua frente”, e ainda na vertente absoluta, pois, no local a velocidade máxima era de 50 km/h (facto provado nº 13).

E, que, “Concorre para o acidente o veículo que, não obstante o aparecimento súbito de outro na sua faixa de rodagem, já estava a circular em excesso de velocidade, ao descrever uma curva fechada, dentro de uma localidade[5].

2. Da eventual concorrência de culpas

Resta apenas determinar se podemos, ou não, imputar a eclosão do acidente à conduta de ambos os condutores.

Nos termos do art. 570º, nº1, do C.C. "quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída".

Esta norma prescreve a relevância da conculpabilidade da vitima quanto ao montante da indemnização a prestar, sendo necessário que o facto do lesado seja uma concausa do dano em concorrência com o facto causal do lesante.

Exige-se assim que se possa concluir pela existência de concausalidade  da conduta dos 2 condutores, por forma a se concluir que   intervieram na produção do mesmo dano concreto.

Importa, pois, analisar face à multiplicidade de critérios de os primordiais que são a concreta dinâmica do evento e o grau de imperícia demonstrado pelos condutores.

In casu está demonstrado que o condutor segurado na apelada:

7. “Antes de avançar da zona de estacionamento para a EN 15, à qual pretendia aceder, o referido CC, olhou em ambas as direcções,

8. E tendo verificado que não se encontrava em circulação qualquer veículo, avançou cerca de um metro para a via”.

A manobra que esse condutor efectuava era a do início de marcha numa via (art. 12º, do C.Estrada), pelo que esse condutor estava obrigado a sinalizar a manobra, adoptar uma velocidade reduzida e respeitar a regra da prioridade (arts. 12, 25º, nº1, al h) e 31º, nº1, al a), todos do CE).

Dos factos provados resulta demonstrada a adopção dessas regras de conduta, já que recorde-se o condutor só entrou na via “após verificar que nenhum veículo circulava na mesma”.

Com efeito, foi o autor quem, ao aperceber-se dessa manobra: “Assustou-se, travou a fundo e guinou o volante para a esquerda, 11. Invadiu a hemi-faixa contrária, Acabando por embater num poste e da vedação de um stand de automóveis, atingindo algumas viaturas”.

Acresce que a via tinha nesse local 6,60 metros de largura pelo que a ocupação de cerca de 1 metros da via ainda permitia a passagem de qualquer veículo da dimensão da do autor.

Logo, foi a velocidade e manobra súbita e precipitada do veículo do autor  quem desencadeou a dinâmica do acidente, já que a uma velocidade mais adequada este ou teria imobilizado o veículo no espaço livre e visível à sua frente (ocorreu uma travagem com cerca de 40 metros), ou teria simplesmente contornado o obstáculo que, recorde-se, já estava na via antes destes terminar a curva que antecedia essa recta.

Por isso, não podemos imputar ao condutor segurado na ré qualquer conduta ilícita e culposa que tenha dado causa concreta ao evento danoso produzido.

Nestes termos terá de improceder a apelação e ser confirmada a decisão recorrida.


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7. Deliberação

Pelo exposto este tribunal colectivo, julga a presente apelação não provida e, por via disso, confirma a decisão recorrida.

Custas a cargo dos apelantes porque decaíram completamente.


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Porto em 8.2.24
Paulo Duarte Teixeira
António Carneiro da Silva
Isabel Rebelo Ferreira
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[1] Estes são: a) No sinistro referido em 1., foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..-..- JJ, propriedade do A. AA e conduzido pelo próprio e o veículo ligeiro, matrícula ..-..-QV, propriedade de CC e por si conduzido.
c) Nas circunstâncias descritas em 7. e 8., CC entrou repentinamente na via e ocupou a totalidade da faixa de rodagem no sentido Lixa-Amarante, tendo ficado demonstrado o ali vertido. d) O A. actuou da forma descrita em 10. para evitar que CC lhe batesse e porque este manteve a sua marcha para atravessar a via, tendo ficado demostrado apenas o vertido em 5. a 12. Do elenco dos factos provados.
[2] Ac da RL de 26-04-2017, n 18591/15.0T8SNT.L1-7 (Luís Filipe Pires de Sousa), ainda em https://trl.mj.pt/wp-content/uploads/2022/09/As-declaracoes-de-parte.-Uma-sintese.-2017-1.pdf
[3] JOÃO PAULO REMÉDIO MARQUES, A AQUISIÇÃO E A VALORAÇÃO PROBATÓRIA DE FACTOS (DES)FAVORÁVEIS AO DEPOENTE OU À PARTE CHAMADA A PRESTAR INFORMAÇÕES OU ESCLARECIMENTOS, IN JULGAR - N.º 16 – 2012.
[4] Teixeira de Sousa. https://blogippc.blogspot.com/2018/05/para-que-serve-afinal-prova-por.html
[5] Ac da Rc de 29.3.11, nº 1187/05.1TBACB.C1 (Jorge Arcanjo).