Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | EUGÉNIA CUNHA | ||
Descritores: | INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO | ||
Nº do Documento: | RP2024021169/13.0TMPRT-C.P1 | ||
Data do Acordão: | 02/19/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | ANULAÇÃO | ||
Indicações Eventuais: | 5.ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | I - Cabendo ao juiz fazer observar o princípio do contraditório (ao longo de todo o processo), não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem, sendo proibidas decisões-surpresa, também se impõe ao julgador o respeito por tal princípio (sendo que com o aditamento do nº 3, do art. 3º, do CPC, e a proibição de decisões-surpresa, se pretendeu assegurar uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, intensificando-se a colaboração e o contributo das partes para a satisfação dos seus próprios interesses, com vista à justa composição dos litígios). II - O dever de audição prévia existe sempre que estejam em causa factos ou questões de direito, mesmo que meramente adjetivas, suscetíveis de, como é o caso, virem a integrar a base de decisão. III - Constitui decisão-surpresa o, inopinado, conhecimento de exceção dilatória da incompetência absoluta do tribunal deduzida por uma parte sem respeito pelo direito de pronúncia da parte contrária sobre os factos e razões de direito invocados, na procedência da exceção. IV - A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual (art. 195º, do CPC) sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo de anular a decisão quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos e respetivo enquadramento jurídico, mesmo que de questão adjetiva se trate. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo nº 1169/13.0TMPRT-C.P1 Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível) Tribunal de origem do recurso: Juízo de Família e Menores de Paredes - Juiz 3 Relatora: Des. Eugénia Cunha 1º Adjunto: Des. Manuel Fernandes 2º Adjunto: Des. Ana Olívia Loureiro Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC): …………………. …………………. …………………. * Recorrente: AA Recorrida: BB
AA propôs ação contra BB, a pretender alteração do regime de exercício das responsabilidades parentais relativas ao filho menor de ambos, CC. Alegou, para tanto e em síntese, que a progenitora, junto de quem está fixada a residência da criança, se mudou para França, em setembro de 2022, levando a criança consigo, sem consentimento do requerente, circunstância que justifica a redefinição do regime de visitas e contactos do progenitor não residente. Citada a progenitora, veio a mesma, em 17/6/2023, apresentar alegações a invocar, designadamente, a exceção dilatória da incompetência internacional deste Tribunal, por a residência da criança estar fixada em França desde setembro de 2022. O Ministério Público, com vista dos autos, em 20/6/2023, promoveu: “A progenitora vem invocar a incompetência internacional dos tribunais portugueses por via da aplicação do art. 8º, nº1 do Regulamento Bruxelas II-A. No entanto, do articulado do progenitor resulta, para além do mais, que Em Setembro de 2022, a Requerida mudou-se para França, levando consigo o menor CC, 3. A Requerida deslocou-se com o filho menor para o estrangeiro, nomeadamente para França, sem consentimento prévio do pai ou do Tribunal. Ou seja, o requerente alega que a alteração de país de residência foi feita de forma ilícita, pelo que nos termos do disposto no art. 10º do Regulamento os tribunais portugueses manteriam competência, em, face ao que é alegado. Por outro lado, sempre se poderá concluir que o menor tem uma ligação particular a Portugal, país onde viveu 12 anos, sendo nacional português, bem como os pais, ao que acresce o facto do progenitor manter residência em Portugal, pelo que nos termos do art. 12º, nº 3 a) do mesmo diploma os tribunais portugueses, também por aqui, mantêm competência. Assim, promovo se julgue improcedente a invocada excepção de incompetência internacional. No mais, p, se cumpra o contraditório, após o que nos pronunciaremos” (negrito nosso). * Foi, em 23/6/2023, proferida sentença com a seguinte parte dispositiva: “Nestes termos, decide-se julgar verificada a exceção dilatória da incompetência absoluta, decorrente da infração das regras de incompetência internacional, e, em consequência, absolve-se a requerida da instância. Custas a cargo do requerente, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil. Valor processual: € 30 000,01 (trinta mil euros e um cêntimo), de acordo com o disposto no artigo 303.º, n.º 1 do Código de Processo Civil”. * CONCLUSÕES: “1. Ao não permitir ao Requerente/Apelante pronunciar-se sobre a excepção dilatória da incompetência absoluta, decorrente da infracção das regras de competência internacional, cometeu a sentença de Nulidade por preterição do exercício do contraditório, 2. Pois que aquando da prolação da sentença recorrida ainda se encontrava a decorrer o prazo de contraditório e para se pronunciar do sobre o documento junto nas Alegações apresentadas pela Requerida, violando assim princípio do contraditório previsto no artigo 3.º, nº 3 do CPC. 3. O Requerente deu entrada em 23 de maio de 2023 de uma Alteração da Regulação das Responsabilidade Parentais, 4. A Requerida apresentou Alegações em 17 de junho de 2023, onde invocou excepção dilatória de incompetência internacional e juntou documento, na mesma data notificou a mandataria do Requerente, 5. O prazo de dez dias para exercer o contraditório, terminaria em 3 de julho, com a possibilidade de o Recorrente exercer o contraditório, com multa, nos dias 4,5 ou 6 de julho. 6. O Requerente exerceu o contraditório e pronunciou-se sobre o documento junto, em 26 de junho de 2023, antes do término do prazo concedido. 7. A douta sentença recorrida foi proferida em 23 de junho de 2023, dois dias após o início do prazo de contraditório e sem que o mesmo tivesse sido exercido, 8. O tribunal a quo aniquilou o direito de defesa do Recorrente, violando o princípio do contraditório, pelo que está a douta sentença irremediavelmente ferida de nulidade 9. A decisão recorrida foi proferida a 23-06-2023, não permitiu, o decurso integral do prazo para exercício do contraditório pelo Requerente sobre a invocada exceção dilatória de incompetência absoluta decorrente das regras de competência internacional, nos termos legalmente previstos, nem a pronúncia sobre o documento junto. 10. A decisão recorrida omitiu ato ou formalidade que a lei prescreve, ao não viabilizar o contraditório legalmente previsto quanto a exceção invocada. 11. Ao assim não atuar, a Exma. Juíza a quo violou o aludido artigo 3.º, nº 3 do C.P.C., cometendo, por omissão, uma nulidade processual, a qual influiu no exame e decisão da causa. 12. E, assim, tornando a própria sentença final nula – artigo 195.º, no 1 e 2 do CPC. 13. A douta decisão “sub judice” que julgou procedente a excepção de incompetência internacional do Tribunal Português e absolveu a ora Requerida da instância deve ser alterada. 14. O menor CC foi levado em setembro de 2022, para a França pela Requerida, sem consentimento prévio do pai ou do Tribunal. 15. A regulação das responsabilidades parentais tinha fixado que “Todas as decisões de maior relevo para a vida do menor serão tomadas conjuntamente pelo pai e pela mãe, ressalvados os casos de urgência manifesta, em que qualquer deles poderá agir sozinho, prestando contas ao outro logo que possível.” 16. A residência habitual do menor CC situava-se em território nacional, o menor, tem nacionalidade portuguesa, nasceu neste país e aqui residiu até aos 12 anos, fala a língua portuguesa, a sua família alargada materna e paterna reside neste país, estava perfeitamente integrado no meio escolar, não tendo na França, para além da sua progenitora, qualquer outro familiar e não tendo qualquer ligação afectiva, linguística ou cultural com aquele país. 17. Conforme decorre do alegado pelo Requerente, no seu requerimento de 26.06.2023, consubstanciado no documento junto pela Requerente, não foi dada qualquer autorização implícita para residir em França, nem tal declaração consubstancia qualquer aceitação na ida do menor para França, mas sim minimizar o malefício já feito pela Requerida, tal declaração destinava-se a não inviabilizar a ida do menor para a escola, 18. A deslocação do menor CC foi ilegal, não sendo de aplicar o artigo 8.º, quanto ao Prolongamento da competência quanto ao direito de visita. 19. É de aplicar ao presente processo o Regulamento Bruxelas II-B) - Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho de 25 de junho de 2019, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e ao rapto internacional de crianças, 20. No artigo 9.º do referido regulamento, estabelece que “… em caso de deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, os tribunais do Estado-Membro onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ou retenção ilícitas, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro…” 21. De acordo com a definição de «deslocação ou retenção ilícitas de uma criança» (art. 2.º, n.º 11, do Regulamento (CE) n.º 2019/1111, e artigo 3.º da Convenção de Haia de 1980), a legalidade de uma deslocação ou retenção é apreciada em função dos direitos de guarda atribuídos nos termos do direito do Estado-Membro da residência habitual da criança antes da sua deslocação ou retenção. 22. Nos presentes autos, de acordo com o direito português, que corresponde ao direito do Estado-membro no qual a criança tinha a sua residência habitual antes da sua deslocação, a transferência da residência do menor dependia do consentimento expresso ou tácito dos seus dois progenitores, salvo se houvesse decisão judicial que autorizasse a progenitora a deslocar o menor. 23. Concluindo-se que a deslocação do menor CC para França foi uma deslocação ilícita, é aplicável o disposto no artigo 9º do Regulamento n.º 2019/1111, de acordo com o qual os tribunais do Estado-Membro, onde a criança residia habitualmente imediatamente antes da deslocação ilícita, continuam a ser competentes até a criança passar a ter a sua residência habitual noutro Estado-Membro. 24. Assim, segundo a interpretação dos artigos. 7.º e 9.º do Regulamento n.º 2019/1111, e ainda que se entendesse, por aplicação da regra geral constante do artigo 7.º, n.º 1, que o menor tinha adquirido uma nova residência habitual em França, os tribunais portugueses apenas poderiam declarar-se internacionalmente competentes se uma das condições alternativas enunciadas neste artigo 9.º, alíneas a) ou b) estivesse igualmente preenchida, o que não sucede no caso dos autos. 25. Mal esteve, portanto, o Tribunal “a quo” ao decidir que o Tribunal Português era incompetente para julgar a acção, absolvendo a Recorrida da instância, tendo a douta decisão recorrida violado as normas jurídicas invocadas, nomeadamente o artigo 9.º - Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho de 25 de junho de 2019”. * Não foram apresentadas contra-alegações. * Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto. * II. FUNDAMENTOS - OBJETO DO RECURSO Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal. Assim, as questões a decidir são as seguintes: - Se a decisão recorrida - “decisão surpresa” - viola o princípio do contraditório e consequências dessa inobservância. - Da responsabilidade tributária. * II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO 1. FACTOS PROVADOS Os factos provados com relevância para a decisão, vicissitudes processuais, constam já do relatório que antecede. * II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO - Da violação do contraditório: decisão surpresa Sustentando ter o menor CC sido levado, em setembro de 2022, para França, pela Requerida, sem consentimento prévio do pai ou do Tribunal, insurge-se o apelante contra a decisão recorrida que, sem observância do contraditório, julgou verificada a exceção dilatória da incompetência absoluta, decorrente da infração das regras de incompetência internacional, e, em consequência, absolveu a requerida da instância. Conclui o Apelante que o tribunal a quo aniquilou o seu direito de defesa, pois que proferiu decisão sem aguardar o prazo, ainda em curso, de 10 dias, tendo desrespeitado o contraditório legalmente previsto quanto a exceção invocada, assim violando o artigo 3.º, nº 3, do Código de Processo Civil, diploma a que nos reportamos na falta de outra referência, cometendo uma nulidade processual dado a omissão verificada influir no exame e decisão da causa, tornando a própria decisão final nula – artigo 195.º, no 1 e 2 do CPC. * Consequência da inobservância do contraditório. A não observância do contraditório, no sentido de se não conceder a possibilidade de pronúncia sobre a questão a conhecer, na medida em que possa influir no exame ou decisão da causa, constitui uma nulidade processual, nos termos do art. 195º, que consagra, no seu nº1, “… a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”, nulidade essa que tem de ser arguida, de acordo com a regra geral prevista no art. 199º[9]. * - Da responsabilidade tributária. As custas do recurso são da responsabilidade do recorrente dado a parte contrária não ter apresentado resposta ao mesmo, tirando o recorrente, ao ver a decisão contra que se insurge anulada, proveito do recurso (artigo 527º, nº 1 e 2 do Código de Processo Civil). * III. DECISÃO Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência, anulam a decisão recorrida para que seja observado o contraditório prévio. * Custas pelo apelante – art. 527º, nº1 e 2, do CPC. Porto, 19 de fevereiro de 2024 _____________Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores Eugénia Cunha Manuel Domingos Fernandes Ana Olívia Loureiro [1] FREITAS, Lebre de (1992), Inconstitucionalidades do Código de Processo Civil, em Revista da Ordem dos Advogados, 1992, I, pp. 35 a 38. [2] FREITAS, José Lebre de; Redinha, João; Pinto, Rui (1999), Código de Processo Civil (anotado), vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, pág. 8. [3] Freitas, 2006:115 a 118. [4] REGO, Carlos Lopes do (2004). Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., vol. I. Coimbra: Almedina, pág 32. [5] cfr. Ac. do STJ de 04/05/99, proc. nº 99057, in dgsi.net. [6] cfr, neste sentido Ac. do STJ de 15/10/2002, proc. 02A2478, Ac. da RL de 11/03/2008, proc. 2051/2008-7, Ac. da RL de 21/05/2009, proc. 1490/04.8TBPDL.L1-6 e Ac da RP de 10/01/2008, proc. 0736877, todos in dgsi.net. [7] Ac. RC de 13/11/2012, proc. 572/11.4TBCND.C1, in dgsi.net. [8] Ac. RC de 20/9/2016, proc. 1215/14.0TBPBL-B.C1, in dgsi.net [9] Cfr. Acs STJ de 13/1/2005, proc. 04B4031, de 11/12/95, proc. 96A483, de 03/12/96, proc. 97A232, de 06/05/97, proc. 97A232 e de 22/01/98, proc. 98A448, Ac. RE de 1/4/2004, proc. 2737/03-2 e Ac. RP de 10/01/2008, proc. nº 0736877, todos in www.dgsi.pt [10] Acs. STJ. de 13/01/2005, Proc. 04B4031; RP de 18/06/2007, Proc. 0733086, in dgsi.net. [11] Ac. RL de 9/10/2014, proc. 2164/12.1TVLSB.L1-2, in dgsi.net. |