Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3055/22.3T8AVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL MACHADO
Descritores: LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
INTERVENÇÃO PROVOCADA
SOCIEDADE COMERCIAL
SOCIEDADE EM LIQUIDAÇÃO
PERSONALIDADE JURÍDICA
Nº do Documento: RP202403073055/22.3T8AVR-A.P1
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nos termos do art. 316.º, nº 1 do CPC, a intervenção provocada só pode ter lugar “ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário”.
II - A intervenção principal provocada pode ser pedida nos termos do art. 261.º, nº 1 do CPC, até ao trânsito em julgado da decisão que julgue ilegítima alguma das partes por não estar em juízo determinada pessoa, mas também nesta situação, quando se diz “que julgue ilegítima alguma das partes por não estar em juízo determinada pessoa”, deve entender-se que isso apenas ocorre em casos de litisconsórcio necessário, já que só nessa situação existe ilegitimidade por não estar em juízo determinada pessoa que deveria estar ao lado do autor que sozinho é parte ilegítima.
III - Nos termos do artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais as sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem; gozando de personalidade jurídica gozam também de personalidade judiciária (art. 11.º CPC); e nos termos do art. 146.º, nº 2 do CSC, a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica e, salvo quando outra coisa resulte das disposições subsequentes ou da modalidade da liquidação, continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas, pelo que, enquanto não terminar a liquidação e for declarada extinta, a sociedade em liquidação pode estar por si em juízo, ainda que representada pelo liquidatário.
IV - A intervenção provocada será o meio próprio para sanar uma ilegitimidade plural em que existe litisconsórcio necessário, mas já não para sanar uma qualquer ilegitimidade singular, a qual, aliás, é insanável.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 3055/22.3T8AVR-A.P1





Acordam na 3ª secção do Tribunal da Relação do Porto



Relatório:

AA intentou ação com processo comum contra a sua ex-mulher BB, pedindo a condenação desta, na restituição à sociedade A..., Lda., da quantia de € 76.009,59 que diz ter recebido indevidamente.
Na petição inicial, pede a intervenção principal provocada da sociedade A..., Lda., “como seu associado, para assegurar a legitimidade ativa, porquanto, o valor de € 76.009,59 que peticiona, pertence à sociedade A..., Lda., e, consequentemente, metade ao A.”.
A Ré veio, no que para o caso interessa, arguir a ilegitimidade ativa do autor, alegando que a requerida intervenção principal provocada não é adequada a sanar uma ilegitimidade verificada ab initio.
Por despacho de 06-02-2023, foi decidido não admitir a requerida intervenção principal provocada, tendo a decisão o seguinte teor:
“Pedido de intervenção principal provocada da sociedade A..., L.da.
O A. AA demanda a ex-mulher BB pedindo a sua condenação na restituição à sociedade A..., L.da, da quantia de € 76.009,59 que recebeu indevidamente do Senhor Agente de Execução por transferência bancária.
Pede a intervenção principal provocada da sociedade A..., L.da, “como seu associado, para assegurar a legitimidade ativa, porquanto, como supra exposto, o valor de € 76.009,59 pertence à sociedade A..., L.da, e, consequentemente, metade ao A.” – fls. 6v..
Estranha ação é esta em que o A., declarado insolvente por sentença transitada em julgado a 09/07/2019 – fls. 9v. -, pede a condenação da demandada, também declarada insolvente, por sentença de 28/01/2018 – fls. 38v./40 -, a pagar à sociedade A..., L.da, que se encontra em liquidação (fls. 10), parece que em resultado de dissolução, desconhecendo-se quem sejam os liquidatários (estes é que têm, “em geral, os poderes e a responsabilidade dos membros do órgão de administração da sociedade” – nº 1 do art. 152.º do CSC).
No entanto, o A. demanda, a título individual, a Ré para obter o pagamento de € 76.009,59 depositados pelo Agente de Execução na conta indicada a fls. 20, pretensamente da Ré.
Claro que o A. carece de legitimidade ativa para pedir a condenação da Ré a pagar à sociedade A..., L.da, a quantia referida, até por ser terceiro na ação.
Por isso, pede a intervenção principal desta sociedade como sua associada.
O art. 316.º, nº 1, do CPC, faculta a qualquer das partes o chamamento de interessado com legitimidade para intervir na causa seja como seu associado, seja como associado da parte contrária. No entanto, este chamamento só pode ter lugar “ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário” – início do nº 1 do art. 316.º do CPC. Quer isto dizer que, não existindo litisconsórcio necessário, o autor não pode chamar a juízo interessado como seu associado, ou seja, como autor.
Não se vê de onde possa derivar o litisconsórcio necessário ativo, face ao disposto no art. 33.º do CPC. Titular do crédito, mesmo nos termos da petição inicial, é a sociedade A..., L.da.
Por isso, o A. pede a condenação da Ré a restituir o dinheiro apenas a esta sociedade.
E não poderia ser assim se houvesse litisconsórcio necessário ativo.
Consequentemente, não admito a pedida intervenção principal provocada da sociedade A..., L.da. (…)”.
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Não se conformando com tal decisão, o Autor interpôs o presente recurso, que foi admitido como de apelação, a subir em separado e com efeito meramente devolutivo.
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O apelante apresentou as seguintes conclusões:
“1- A sociedade A..., Lda. está em liquidação.
2- O autor é sócio-gerente da sociedade, tendo-se tornado, com a liquidação da sociedade, nos termos do artigo 151º nº 1 do Código das Sociedades Comerciais, liquidatário da sociedade.
3- O autor, nos termos do disposto no artigo 152º nº 3 al. c) Código das Sociedades Comerciais, como liquidatário, tem o dever de cobrar os créditos da sociedade.
4- O autor requereu a intervenção principal provocada da sociedade A..., Lda, com base no disposto no artigo 77º nº 4 Código das Sociedades Comerciais- situação de litisconsórcio necessário activo-, uma vez que a lei assim o exige.
5- Pelo que deve ser deferida a intervenção principal provocada da sociedade A..., Lda, e ser o despacho recorrido revogado por violação do disposto nos artigos 33º, 316º ambos do CPC e 77º nº 4 CSC.
6- Assim se fazendo Justiça!”.

Não foram apresentadas contra-alegações.
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Apreciação de direito:
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, a única questão a decidir é saber se deve, ou não, ser admitida a intervenção principal provocada da Sociedade identificada nos autos.
O recorrente pede, na petição inicial, que a ré seja condenada na restituição à sociedade A..., Lda., da quantia de € 76.009,59 que diz pertencer à sociedade e que a ré terá recebido indevidamente.
Mais pede a intervenção principal provocada da dita sociedade A..., Lda., “como seu associado, para assegurar a legitimidade ativa”.
De acordo com o disposto no art. 316.º, nº 1 do CPC, quanto à intervenção provocada, ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário, qualquer das partes pode chamar a juízo o interessado com legitimidade para intervir na causa, seja como seu associado, seja como associado da parte contrária.
Como resulta do teor do preceito citado, o chamamento só pode ter lugar “ocorrendo preterição de litisconsórcio necessário”.
Ora, ocorre litisconsórcio necessário, nos termos do art. 33.º do CPC, se a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, caso em que a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade, ou, se a intervenção de todos os interessados for necessária, pela própria natureza da relação jurídica, para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
E não se diga que a intervenção principal provocada prevista no art. 316.º, nº 1 do CPC, pode sempre ser pedida nos termos do art. 261.º, nº 1 do mesmo diploma legal, como o recorrente parece fazer crer, quando aí se dispõe que “Até ao trânsito em julgado da decisão que julgue ilegítima alguma das partes por não estar em juízo determinada pessoa, pode o autor ou reconvinte chamar essa pessoa a intervir nos termos dos artigos 316.º e seguintes.”.
É que, também nesta situação, quando se diz “que julgue ilegítima alguma das partes por não estar em juízo determinada pessoa”, deve entender-se que isso apenas ocorre em casos de litisconsórcio necessário, já que só nessa situação existe ilegitimidade por não estar em juízo determinada pessoa que deveria estar ao lado do autor que sozinho é parte ilegítima.
Posto isto, diga-se, ainda, que a legitimidade se afere, como resulta do disposto no art. 30.º do CPC, quanto ao autor, quando tem interesse direto em demandar; e quanto ao réu quando tem interesse direto em contradizer, sendo que o interesse em demandar se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
Finalmente, na falta de indicação da lei em contrário, existe um critério supletivo que determina que são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
No caso em apreciação, é o próprio autor/recorrente que apresenta uma relação material controvertida, da qual não é parte, já que alega que a ré se apropriou indevidamente de determinada quantia de dinheiro que pertence à sociedade cuja intervenção pretende.
Sucede que, ao contrário do que o recorrente pretende, o facto de a sociedade A..., Lda. se encontrar em liquidação, e ainda que se aceite que o recorrente que era sócio-gerente da sociedade, se tenha tornado, com a liquidação da sociedade, nos termos do artigo 151º nº 1 do Código das Sociedades Comerciais, liquidatário da mesma sociedade, tal não tem como consequência que possa ser o autor, por si, a reclamar o pagamento à sociedade da quantia em causa nos autos.
É que, quando no artigo 152.º, nº 3, al. c) do Código das Sociedades Comerciais, se diz que o liquidatário tem o dever de cobrar os créditos da sociedade, o certo é também que no nº 1 desse mesmo preceito consta que, com ressalva das disposições legais que lhes sejam especialmente aplicáveis e das limitações resultantes da natureza das suas funções, os liquidatários têm, em geral, os deveres, os poderes e a responsabilidade dos membros do órgão de administração da sociedade.
Ou seja, o liquidatário, no caso, tem as mesmas funções dos gerentes da sociedade por quotas, gerentes que representam a sociedade, mas é esta quem tem personalidade jurídica e judiciária.
Nos termos do artigo 5.º do Código das Sociedades Comerciais as sociedades gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registo definitivo do contrato pelo qual se constituem, sem prejuízo do disposto quanto à constituição de sociedades por fusão, cisão ou transformação de outras.
Por sua vez, resulta do art. 146.º, nº 2 do CSC, que a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica e, salvo quando outra coisa resulte das disposições subsequentes ou da modalidade da liquidação, continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas.
Ora, quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária, ou seja, é suscetível de ser parte – art. 11.º do CPC.
Perante o exposto, a sociedade A..., Lda., enquanto não terminar a liquidação e for declarada extinta, pode estar por si em juízo, ainda que representada pelo liquidatário.
Pelo contrário, tal como o autor apresentou a relação material controvertida, é o mesmo parte ilegítima do lado ativo.
Finalmente, e decidindo o objeto do recurso, ou seja, a admissibilidade, ou não, da pretendida intervenção principal provocada da sociedade mencionada, a fim de assegurar a legitimidade ativa do autor/recorrente, bem andou o tribunal recorrido, quando não admitiu a intervenção.
E isto, porque, o autor é parte ilegítima na ação, nos termos expostos.
Não ocorre uma situação de litisconsórcio necessário, como também já se decidiu.
A intervenção provocada será o meio próprio para sanar uma ilegitimidade plural em que existe litisconsórcio necessário, mas já não para sanar uma qualquer ilegitimidade singular, a qual, aliás, é insanável.
Deste modo, terá que improceder o recurso e manter-se a decisão recorrida.
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Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação interposta do despacho que não admitiu a intervenção principal provocada requerida pelo autor, mantendo a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.


Porto, 2024-03-07
Manuela Machado
Ernesto Nascimento
Ana Luísa Loureiro