Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3654/22.3T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
ABANDONO DO LOCAL DO ACIDENTE
Nº do Documento: RP202403073654/22.3T8AVR.P1
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As cláusulas de um contrato de seguro devem ser interpretadas sob o prisma de um declaratário normal e, em caso de dúvida, no sentido mais favorável ao aderente.
II - No caso de da aplicação da cláusula de contrato de seguro que exclua a responsabilidade da seguradora quando o segurado «abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade”, é necessário, em regra, que tenha efectivamente ocorrido esse chamamento e que o abandono do local tenha ocorrido com conhecimento do mesmo.
III - Em circunstâncias graves e ponderosas comprovadas nos factos, esse clausulado pode ser aplicado quando se conclua que o condutor tinha consciência que as autoridades deviam ser chamadas, mas abandonou o local precisamente para as evitar.
IV - Não se verifica essa circunstância quando o acidente não provocou feridos, danos noutros veículos ou sequer o capotamento do veículo seguro e tudo indica que o condutor não sabia dessa intervenção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 3654/22.3T8AVR.P1

Sumário:

……………………….

……………………….

……………………….


*

I – Relatório

A..., Lda., pessoa coletiva n.º ...28, com sede na Alameda ..., ..., ... Aveiro, intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra B..., S.A., pessoa coletiva n.º ...31, com sede na Avenida da

... Lisboa, pedindo que, na procedência da ação, a ré seja condenada a pagar-lhe uma indemnização no valor de 7.544,77€, acrescida de juros de mora contados desde a data do acidente. Para tanto – e em síntese – alegou a ocorrência de um despiste do seu veículo

automóvel, de que resultaram danos, cujo ressarcimento agora reclama à ré, em virtude do contrato de seguro com esta celebrado incluir a cobertura de danos próprios.

A ré contestou, invocando que o contrato de seguro exclui da cobertura facultativa os sinistros em que o condutor abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade, e que, no despiste em causa nos autos, o condutor do veículo abandonou o veículo e não chamou a autoridade policial.

Pede afinal, pela sua absolvição do pedido.

Foi saneado e instruído o processo. Após julgamento foi proferida sentença que julgou a acção procedente condenando a ré pagar à autora, A..., Lda., a quantia de 7.544,77€ (sete mil, quinhentos e quarenta e quatro euros e setenta e sete cêntimos), acrescida de juros moratórios vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde o dia 4 de julho de 2022, até efetivo e integral pagamento.

Inconformada veio a ré recorrer, recurso esse que foi admitido como de apelação, sobe imediatamente, nos próprios autos e tem efeito meramente devolutivo (artigos 644.º, n.º 1, alínea a), 645.º, n.º 1, alínea a), e 647.º, n.º 1, do mesmo diploma legal).


*

2.1. Conclusões

I. Num acidente em que o veículo fica a ocupar a via pública sem qualquer sinalização, sem que o seu condutor chame sequer qualquer assistência ou reboque, é necessário chamar a autoridade.

II. O acidente em que condutor do veículo acidentado que fica a obstruir parte da via pública, se ausenta do local, sem pedir auxílio ou assistência, sem chamar a autoridade e sem sinalizar a posição da viatura mostra-se excluído da cobertura de danos próprios do contrato de seguro por força do previsto na cláusula 40ª/1, alínea c) da apólice de seguro.

III. Ao não o ter concluído o tribunal a quo fez, salvo o devido respeito, uma errada interpretação da dita cláusula 40ª/1, alínea c) da apólice de seguro e ainda dos artºs 126º/1 e 3 e 101º/1, 2 e 4 da LCS e dos artºs 152º, 153º, 156º e 87º do CE, devendo a sua sentença ser revogada e substituída por acórdão que, reconhecendo a sobredita exclusão, absolva a apelante do pedido.


*

2.2. A parte contrária contra-alegou, nos seguintes termos

A) O Tribunal a quo fez uma correta interpretação da cláusula 40.ª, n.º 1, alínea c) da apólice do contrato de seguro, bem como dos arts. 126.º, n.º 1 e 101.º, n.º 1, 2 e 4 da LCS e dos arts 152.º, 153.º, 156.º e 87.º do CE. Ora, atendendo aos factos provados pelo tribunal a quo, que não foram colocados em causa pela Recorrente, nenhum deles é passível de ser enquadrado como causa excludente de responsabilidade prevista na cláusula 40.ª, n.º 1, al. c) da referida apólice.

B) De acordo com os factos provados o veículo foi o máximo encostado para o lado direito da faixa rodagem, tendo o veículo ficado com apenas uma roda sobre a faixa de rodagem, não é suficiente para se concluir como fez a Recorrente que está a obstruir a via pública. Nem é suficiente para se dizer que o condutor não empregou os meios ao seu alcance para prevenir ou evitar danos. Porquanto, mesmo constando dos factos provados que o condutor AA ausentou-se do local sem chamar as autoridades e sem pedir assistência e considerando ainda que o tribunal a quo não se pronunciou sobre a demais factualidade alegada por ser irrelevante, designadamente tendo sido amplamente discutido que o condutor encontrava-se impossibilitado de pedir assistência ou de chamar as autoridades. Por ter considerado o tribunal a quo que a exclusão da cobertura só tem razão de ser se o condutor do veículo, sem motivo que o justifique, abandonar o local do acidente, depois de saber que as autoridades policiais foram chamadas para tomar a ocorrência e por ser este o entendimento que melhor se coaduna com a letra da cláusula 40.ª, n.º 1, al. c) da apólice. Na situação em apreço, o condutor ausentou-se do local do sinistro e só volvidas mais de 4 horas é que as autoridades foram alertadas.

C) Por outro lado, a Recorrente não fez prova dos factos excludentes da responsabilidade e além de não ter feito menciona ao longo das alegações de Recurso a respeito do condutor - “por se encontrar sob o efeito do álcool e não querer, como tal, chamar a atenção de ninguém”, ou “sem querer saber, como não quis, do sobredito veículo, nem também do risco que ele representava, para os demais utentes da via pública”, factos que não logrou provar. Sendo que de acordo com a repartição do ónus da prova caberia à Recorrente provar os factos excludentes da responsabilidade.


*

3. Questões a decidir

1 determinar o sentido da cláusula 40 da apólice de seguro e, face ao mesmo analisar se os danos do acidente devem ou não ser suportados pela ré/apelante.


*

4. Motivação de facto

1.º No dia 23 de abril de 2022, pelas 22h00m, o trabalhador da autora, AA, conduzia o veículo automóvel com a matrícula ..-XC-.. (XC), deslocando-se para a sua residência, em ....

2.º A dada altura, na estrada que liga ... a Leiria, AA despistou-se e foi embater com o veículo XC numa manilha de água.

3.º Em virtude do acidente descrito, AA encostou o veículo o máximo que conseguiu ao lado direito da faixa de rodagem, tendo o veículo ficado com uma roda sobre a faixa de rodagem.

4.º Após, AA ausentou-se do local, sem pedir auxílio ou assistência, sem chamar a autoridade e sem sinalizar a posição da viatura.

5.º Foi outro cidadão que chamou ao local a GNR de Leiria, que ali acorreu pelas   02h30m do dia 24 de abril de 2022.

6.º O custo da reparação do veículo ascendeu a 7.544,77€.

7.º A autora e a ré celebraram um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, com cobertura de danos próprios, relativamente ao veículo XC, com efeitos desde 22 de fevereiro de 2022, sob a apólice n.º ...11.

8.º A cláusula 40.ª, n.º 1, alínea c), da apólice do contrato de seguro, sob a epígrafe «Exclusões», prevê que o contrato não garantirá sinistros quando o condutor do veículo, «voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade».

9.º No dia 4 de julho de 2022, a autora enviou uma mensagem de correio eletrónico à ré, solicitando «que seja assegurada a responsabilização pela regularização do presente sinistro».


*

5. Motivação Jurídica

A única questão a decidir diz respeito à interpretação e aplicação da cláusula nº 40 que dispõe: “o contrato não garantirá sinistros quando o condutor do veículo, «voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade.

Esta admite, no seu sentido literal, duas interpretações:

a) a primeira no sentido de que (todo e qualquer) abandono do local do acidente pelo condutor antes da chegada da autoridade policial mesmo que desconheça esse facto;

b) outra mais teleológica no sentido de a norma pressupor um abandono do local relevante e que a chamada da entidade seja efectiva e cognoscível do condutor

Qual dessas opções escolher ?

O caminho para essa resposta é simples.

Estamos perante uma estipulação contratual, situada no âmbito de um contrato de seguro.

Ora, na interpretação das declarações negociais vigora no nosso direito, por força do disposto no art. 236º, nº 1, do Código Civil, a denominada teoria da impressão do destinatário, que estabelece como regra que "o sentido da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, isto é, um declaratário medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante".

Nestes termos o teor da cláusula impõe uma previsão simples e clara “que as forças policiais tenham sido chamadas pelo condutor ou outra entidade”.

Desta condição parece resultar que o abandono para integrar a cláusula terá de ser efectuado com conhecimento dessa chamada das forças de autoridade. Na verdade, esta cláusula só se compreende, no quadro dos deveres contratuais da seguradora, como forma de assegurar a recolha imediata de prova em acidentes graves e de assegurar que é feita a despistagem da condução sob o efeito de álcool que pode vir a sustentar um pedido de regresso da eventual indemnização.

Parece ser esse o sentido apreensível por qualquer declaratório normal.

 A este propósito observa Paulo Mota Pinto (Declaração Tácita e Comportamento Concludente, 1995, pg. 208): “O declaratário normal deve ser uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas fixando-se na posição do real declaratário, isto é, acrescentando às circunstâncias que este conheceu concretamente e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo.”

Ora, a posição da apelante exige no fundo que na parte em que se impõe que não abandone o local se “for chamada uma entidade”, passe a constar “ou se existir um dever de a chamar”.

In casu, o evento não teve outros sinistrados, e o evento correu cerca das 22 h tendo a autoridade policial chegado ao local, chamada por outro cidadão cerca das 2H.

Acresce que foi alegado, que o veículo estava a obstruir a via e que o condutor abandonou o local devido à TAS, mas nada disso foi provado.

Deste modo a factualidade não se integra na previsão contratual, nem estão demonstrados factos que permitam concluir pelo efectivo conhecimento pelo condutor da necessidade de intervenção policial a qual note-se ocorreu ao local chamada por um terceiro quatro horas depois do evento.


*

Em segundo lugar, em matéria de cláusulas contratuais gerais o art.º 11º, n.º 2, da respectiva lei LCCG, estabelece o princípio do in dubio contra proferentem, de acordo com o qual, existindo dúvidas quanto ao entendimento do destinatário prevalece o sentido mais favorável ao aderente, neste caso o segurado.

Sob um prisma semelhante o art.º 237º, do Código Civil, dispõe que em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.

Ora, parece pacifico que o sentido mais conforme não apenas com a interpretação de um declaratário normal, mas do segurado, será aquele que impõe o não abandono do local quando chame ou saiba que tenha sido chamada a entidade policial.

Portanto, em caso de dúvida sobre o sentido a dar à cláusula redigida pela apelante, ter-se-ia de escolher aquele que não apenas é o “normal”, como o mais favorável ao aderente e, nesta medida a apelação teria de improceder.

2. Da jurisprudência aplicável em casos semelhantes

Teremos de notar, que esta mesma cláusula ou com uma redacção aproximada foi analisada por várias decisões nacionais.

Subscrevendo a tese ampla, de que basta o abandono, sem efectivo chamamento da autoridade policial, temos dois arestos da Relação de Coimbra:

1. Ac da RC de 13.12.22, nº 2456/20.6T8LRA.C1 (Carlos Moreira) : “Basta, para a aplicação da cláusula de contrato de seguro que exclua a responsabilidade da seguradora quando o segurado «abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade”, que o abandono se verifique com consciência por banda deste da necessidade de tal chamamento, pelo que é irrelevante que aconteça antes ou depois do mesmo. Provado tal abandono, sem justificação, num acidente ocorrido cerca das 6,00 horas da manhã de um sábado e em que a entidade policial tinha de ser chamada, pois que provocou danos avultados em veículos e em bens do domínio publico, tem de concluir-se que o interveniente se quis escapulir a ser fiscalizado, por motivos de atuação menos lícita, pelo que, mesmo que a tal atuação não se subsumisse na aludida clausula excludente, sempre estaria inquinada de abuso de direito, ao menos na modalidade do tu quoque”.

2. Acórdão do RC de 28/03/2023 nº 1247/21.1T8GRD.C1, (Tiago Fernandes) : “Basta, para a aplicação da cláusula de contrato de seguro que exclua a responsabilidade da seguradora  quando o segurado «abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade”, que o abandono se verifique com consciência por banda deste da necessidade de tal chamamento, pelo que é irrelevante que aconteça antes ou depois do mesmo”.

2. Noutro sentido, subscrevendo uma tese restritiva (impondo que tenha existido um abandono com conhecimento do efectivo chamamento da autoridade policial) temos 3 arestos, um da RC um RL e outro do STJ:

1. Ac. da RC de 23.11.21, nº 3310/20.7T8LRA.C1 (Arlindo Oliveira): Constando das condições gerais de um contrato de seguro facultativo de responsabilidade civil automóvel que o contrato também não garantirá a situação em que o condutor do veículo, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade, essa exclusão de responsabilidade só ocorre se a autoridade policial já tiver sido chamada no momento do abandono.

2. AC da RL de 22.11.22, nº 2517/20.1T8VFX.L1-7 (ANA RODRIGUES DA SILVA); exclusão da cobertura do seguro facultativo de danos próprios quando o condutor do veículo, voluntariamente e por sua iniciativa, abandone o local do acidente de viação antes da chegada da autoridade policial, quando esta tenha sido chamada por si ou por outra entidade, só ocorre se a autoridade policial já tiver sido chamada no momento do abandono e o condutor tenha conhecimento desse facto.

3. Ac do STJ, de 18 de Março de 2021, nº 1542/19.0T8LRA.C1.S1 (Mário Morgado) onde se decidiu: “na referida cláusula é possível descortinar dois momentos relevantes para a verificação da exclusão: o do abandono do local do acidente antes da chamada das autoridades e o da chamada das autoridades policiais. Neste contexto somos levados a considerar que a exclusão da cobertura do sinistro só tem razão de ser se o condutor do veículo, sem motivo que o justifique, abandonar o local do acidente, depois de saber que as autoridades policiais foram chamadas para tomar conta da ocorrência.[1] Aliás, o segmento final da referida cláusula apenas adquire alguma utilidade quando interpretado no sentido que acabamos de enunciar, ou seja o de que a seguradora apenas poderá opor a exclusão da garantia contratada ao tomador se a autoridade policial tiver sido chamada ao local pelo condutor do veículo ou por outra entidade e, não obstante, aquele, depois disso tiver voluntariamente e por sua iniciativa abandonado o local do acidente de viação antes da chegada dessa autoridade”.

Analisando estas duas correntes.

Cumpre notar que os dois arestos citados da tese “ampla” não têm força de precedente neste caso, já que pouco têm a ver com a nossa factualidade.

Com efeito, neste acidente não ocorreu qualquer embate entre veículos, mas um mero despiste; não existiram danos graves ou ferimentos pessoais; e por isso não era evidente que a autoridade policial tivesse de ser chamada (excepto pela não sinalização do veículo que ficou indemonstrada).

Nesses termos, as duas correntes não são dispares entre si, mas essencialmente a factualidade provada nos dois núcleos essenciais de casos é que é distinta.

Nos primeiros arestos, temos uma situação em que o condutor terá abandonado o local sabendo que as forças policiais tinham, necessariamente de ser chamadas, assim pondo em causa não apenas o interesse publico na resolução do sinistro, como evitando a sua eventual responsabilidade criminal.

Ou seja, estes dois arestos efectuam uma equiparação entre o dever de chamar a autoridade e o seu efectivo chamamento porque naquele caso “o autor, abandonando o local, eximiu-se, de caso pensado, à pesquisa de álcool no sangue ou ao teste de pesquisa de consumo de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas que, na hipótese de “dar positivo”, lhe trariam responsabilidade”.[2]

Sendo que “Ou seja, o recorrente sabia que, máxime devido à sua saída do local, a autoridade policial teria de deslocar-se ao local do acidente”.

Ora, tanto quanto resulta dos factos provados não é essa a situação dos autos.

Desde logo, nada foi alegado sobre a cognoscibilidade da chamada, sendo que face ao lapso de tempo decorrido podemos presumir que este ocorreu depois do condutor se ter retirado do local.

Assim compreendemos a extensão da interpretação da aplicação da cláusula a certas situações em que o abandono visa impedir não apenas a sua aplicação como a prática de possíveis actos criminais, mas essa circunstância não pode implicar que, em todo e qualquer acidente, sem embates entre veículos, os condutores tenham de chamar a entidade policial.

Na sua contestação a apelante limita-se a alegar existir um dever de remover o veículo da via, sendo que curiosamente consta do documento por si junto no mesmo articulado que o condutor declarou ter colocado o triângulo.

Note-se aliás que neste caso, como consta da contestação, o perigo para os utentes da ocupação da via podia ser afastado com o simples chamamento da assistência incluída no seguro, o que só por si põe em causa decisivamente a tese da apelante.[3]

Acresce que essa interpretação implicaria um grave prejuízo para toda a sociedade, já que em todo e qualquer embate (e há dezenas de milhares por ano), implicaria a imobilização do veículo no local; a chamada das autoridades, a elaboração de autos pelas entidades policiais.

Não pode a apelante pretender que uma cláusula simples e precisa, que deve ser aplicada a casos graves, seja utilizada para eximir a sua responsabilidade em situações em que nada permite comprovar a efectiva necessidade ou cognoscibilidade da intervenção das forças policiais.

Tanto mais que existe uma discussão nos autos, não comprovada nos factos, sobre se o condutor tinha ou não telemóvel carregado e se o sistema de indução funcionava com o seu telemóvel.

Logo, nada comprova no caso concreto que possa existir uma extensão da previsão contratual e, nenhum facto permite concluir que, no caso presente, o condutor tenha abandonou o local eximindo-se à sua responsabilidade criminal.

Nestes termos, a apelação terá de improceder e a restante parte da decisão (que não foi posta em causa), deve ser confirmada.


*

*


6. Deliberação

Pelo exposto este tribunal julga o presente recurso não provido e por via disso confirma integralmente a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante porque decaiu inteiramente.

Porto em 7.3.24.
Paulo Duarte Teixeira
Ernesto Nascimento
Isabel Peixoto Pereira
__________________
[1] Nosso sublinhado.
[2] Nosso sublinhado.
[3] Bastará dizer que foi um reboque chamado pelas autoridades que retirou o veículo conforme consta da contestação. Logo ao contrário do alegado essa assistência podia ter sido chamada sem a intervenção das forças de autorida