Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1097/23.0T8AMT-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA
REQUERIMENTO
PRAZO
Nº do Documento: RP202402201097/23.0T8AMT-B.P1
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Em caso de dispensa da realização da assembleia para apreciação do relatório previsto no artigo 155.º do CIRE, o prazo para o administrador de insolvência ou qualquer interessado requerer a qualificação da insolvência como culposa, conta-se não a partir da apresentação desse relatório quando o mesmo esteja incompleto, mas a partir do momento em que do respetivo complemento, caso revista interesse para aquela qualificação, venha a ser dado conhecimento aos interessados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1097/23.0T8AMT-B.P1

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Sumário

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Relator: João Diogo Rodrigues;
Adjuntos: Fernando Vilares Ferreira;
                 João Proença.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto,

I- Relatório

1- Declarada a insolvência de AA e BB, por sentença proferida no dia 17/08/2023, foi, na mesma altura, dispensada a realização da assembleia para apreciação do relatório do Administrador da Insolvência, previsto no artigo 155.º, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas (CIRE).

2- Posteriormente, no dia 30/09/2023, foi junto aos autos esse relatório e nele o Administrador da Insolvência nomeado requereu um “prazo não inferior a 15 dias para análise que permita concluir se o processo deverá prosseguir pela liquidação do ativo ou culminar com o encerramento por insuficiência da massa insolvente nos termos do art. 232º, nº 1 e 7 do CIRE”.

Isto porque, para além do mais:

“Conforme resultou da consulta às bases de dados públicas disponíveis na plataforma Citius, aferiu-se que os Insolventes transmitiram o único bem imóvel que foi sua propriedade correspondente a um terreno para construção, lote ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Paredes com o nº ... e inscrito na matriz predial urbana sob o art. nº ... da freguesia ..., transmissão da propriedade que ocorreu no dia 10-03-2021 para CC NIF ... casado com DD NIF ....

Conforme se pode vislumbrar de assento de nascimento junto aos autos pelos Insolventes com a sua Petição Inicial, estes venderam o bem imóvel ao pai da devedora AA.

Quanto às condições do negócio, o administrador da insolvência solicitou informações e elementos aos Insolventes, nomeadamente, título aquisitivo da propriedade, comprovativos pagamentos, para melhor aferir das circunstâncias em que o sobredito negócio jurídico foi celebrado, não tendo, os Insolventes, até ao momento, acedido ao pedido do signatário.

No entanto, o (…) signatário considera que o ato não é passível de resolução porquanto a venda do mesmo ocorreu em março de 2021, i.e., não ocorreu dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência, pelo que, não estão preenchidos os pressupostos previstos nos art.s 120º e ss. do CIRE.

Todavia,

O aqui administrador da insolvência permanece a aguardar o envio pelos Insolventes dos elementos e das informações solicitadas, de modo a averiguar os termos em que foi celebrado o negócio e determinar quais as próximas diligências a adotar”.

3- Tomando conhecimento deste relatório, a Banco 1..., S.A. declarou, no dia 02/10/2023, não se opor ao deferimento do prazo pedido “devendo, concluídas que sejam as diligências referidas, ser os credores notificados da proposta do Sr. AI, para que sobre ela se possam pronunciar”.

4- Aquele pedido de prorrogação do prazo foi deferido por 15 dias, por despacho proferido no dia 06/10/2023.

5- Subsequentemente, no dia 25/10/2023, o Administrador da Insolvência apresentou o complemento do aludido relatório e, na mesma data, foram expedidas notificações do mesmo para todos os credores.

Refere-se naquele complemento, para além do mais, o seguinte com interesse para este recurso:

“(…)

Por um lado, veio a referida Conservatória [Conservatória do Registo Predial de Lisboa] remeter Documento Particular Autenticado pelo qual se constatou que teria sido celebrado negócio jurídico de compra e venda, pelo qual, os devedores vendem ao pai da insolvente o terreno supra identificado pelo preço global de € 500,00,

- Cfr. Documento n.º 1 correspondente a DPA que se junta para todos os devidos efeitos;

8. Por outro lado, entretanto, veio o Ilustre Mandatários dos devedores também prestar esclarecimentos quanto ao negócio jurídico celebrado,

9. Tendo referido que esclarecer que, de facto, o imóvel foi transmitido ao pai da devedora e que a transmissão naqueles termos resulta da circunstância de o comprador, pai da insolvente, ter ao longo dos anos mutuado quantias ao devedor BB para que este fizesse face às suas necessidades, o que totalizou o valor de € 16.000,00.

10. Ora, informou ainda que foi outorgado, a 20.01.2020, título de confissão de dívida pelo devedor BB pelo qual este reconheceu o montante referido em dívida, comprometendo-se a pagar a totalidade até 31.12.2020.

- Cfr. Documento n.º 2 correspondente a título de confissão de dívida que se junta para todos os devidos efeitos;

11. Por fim, informou que, à data do vencimento, o devedor não procedeu ao pagamento de qualquer quantia, pelo que, o atraso no pagamento importava um acréscimo de 2% ao mês a título de juros que se iam acumulando.

12. Em face do exposto e permanecendo a situação de incumprimento por parte do devedor, este decidiu liquidar a dívida por meio de dação em pagamento do prédio em apreço, dação essa que foi configurada como compra e venda em sede de DPA.

(…)”.

6- Depois de tomar conhecimento deste complemento, veio a Banco 1..., S.A., no dia 13/11/2023, requerer que a insolvência dos devedores seja qualificada como culposa e que ambos sejam afetados por essa qualificação, com todas as consequências legais.

Alega, no essencial, o seguinte:

“1º

Analisado o relatório e respetivo complemento, bem como o inventário de bens apresentados pelo Senhor Administrador de Insolvência, verifica-se, em síntese, o seguinte:

a) à data da elaboração do inventário a que alude o artigo 153º do CIRE, os Insolventes eram titulares, cada um, de uma quota no valor nominal de € 2.500,00, representativa de 50% do capital social da sociedade A..., LDA, NIPC ..., sociedade constituída no ano de 2019, com o CAE PRINCIPAL 43110 – Demolição, relativamente à qual a última prestação de contas foi depositada no ano de 2021, referente ao exercício de 2020;

b) foi solicitado aos Insolventes o envio das contas da indicada sociedade, referentes aos exercícios de 2021 e 2022, por forma a aferir da apreensão das quotas para a massa, informação esta que se desconhece se foi disponibilizada, já que o complemento ao relatório apresentado é totalmente omisso em relação a esta matéria;

c) no dia 09/03/2021 os Insolventes transmitiram ao pai da Insolvente AA, mediante documento particular autenticado e pelo preço de € 500,00, o prédio urbano destinado a construção, com a área de 425 m2, sito na freguesia ..., concelho de Paredes, descrito na CRP de Paredes sob o nº ..., inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., com autorização de loteamento registada sob a Ap. ..., de 26/11/1996;

d) de acordo com as informações prestadas pelos Insolventes, a venda do prédio teve por objetivo a liquidação do crédito que o pai da Insolvente AA detinha sobre o Insolvente BB, no valor total de € 17.460,00, proveniente de empréstimos efetuados ao longo dos anos, pelo que, na realidade, não se tratou de qualquer venda, mas de uma dação em pagamento;

e) para justificar o alegado crédito, foi junta pelos Insolventes uma confissão de dívida assinada pelo Insolvente BB, datada de 20/01/2020, mediante a qual o Insolvente BB se confessa devedor ao pai da Insolvente AA da quantia de € 16.000,00, que se obriga a pagar até 31/12/2020, acrescida da quantia de 2% por cada mês de atraso no pagamento.

No que diz respeito às quotas da sociedade A..., L.DA é o complemento ao relatório apresentado totalmente omisso, pelo que se desconhece se as informações solicitadas foram ou não prestadas pelos Insolventes.

No entanto,

Consultado o portal das publicações, verifica-se que as duas quotas que à data da elaboração do inventário se encontravam registadas em nome dos Insolventes são agora tituladas pela sociedade B..., INC, NIPC ... – cfr. documento que ora se junta sob o número 1.

Desconhece-se a data concreta em que a transmissão das quotas terá ocorrido, o que, como está bom de ver, assume relevância no âmbito dos presentes autos, designadamente para efeito da qualificação da insolvência.

Por outro lado,

No que diz respeito à alienação do imóvel, os elementos constantes dos autos indiciam a eventual existência de intuito fraudulento e má-fé dos devedores, o que, salvo melhor opinião, também parece relevante para efeito da qualificação da insolvência.

6º Note-se que, conforme resulta dos autos:

a) a confissão de dívida que deu origem ao negócio celebrado não se encontra autenticada;

b) conforme confessado pelos Insolventes, o negócio celebrado não se reconduziu a qualquer venda, mas a uma dação;

c) o prédio em causa poderá ter um valor bastante superior ao indicado pelo Senhor Administrador de Insolvência, dado tratar-se de terreno para construção com área de 425 m2, com autorização de loteamento registada, não sendo, por isso, credível que o seu valor de mercado se situe entre os valores indicados (€ 23.375,00 a € 27.625,00).

Posto isto,

Dispõe o artigo 186º nº 1 do CIRE que a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência,

Exigindo-se, assim, um nexo de causalidade entre o comportamento do devedor e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

No caso dos autos, dúvidas não restam de que a alienação do prédio, cujo valor de mercado é com toda a certeza superior ao seu valor patrimonial tributário e ao valor indicado pelo Senhor Administrador de Insolvência,

10º

Assim como a alienação das quotas da sociedade A..., L.DA, se não criaram, pelo menos terão agravado de forma substancial a situação de insolvência,

11º

Sendo certo que ambas as situações ocorreram nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Por outro lado,

12º

Os insolventes tinham pleno conhecimento da sua situação de insolvência, não se tendo, no entanto, inibido de continuar a criar crédito que sabiam que não iria ser pago, com o inerente prejuízo dos seus credores”.

7- Sobre o pedido de qualificação de insolvência, foi, no dia 16/11/2023, proferido o seguinte despacho:

“Dispõe o art. 188.º do CIRE que o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, no prazo perentório de 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes (n.1). O prazo de 15 dias previsto no número anterior pode ser prorrogado, quando sejam necessárias informações que não possam ser obtidas nesse período, mediante requerimento fundamentado do administrador da insolvência ou de qualquer interessado, e que não suspende o prazo em curso. (n.2). A prorrogação prevista no n. 2 não pode, em caso algum, exceder os seis meses após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º (n.º 3).

O prazo de 15 dias para deduzir o incidente de qualificação é perentório, sublinhou-o a Lei n.º 9/2022, de 11/01, e conta-se, no presente caso em que foi dispensada a realização de assembleia de apreciação de relatório, após a junção do relatório e não após a notificação deste.

Neste sentido, veja-se o ACRL de 13/07/2023, rel. Manuel Marques: «São, pois, razões de celeridade que se encontram na base do estabelecimento do prazo de 15 dias para a dedução do incidente de qualificação da insolvência, a contar da junção aos autos do relatório a que alude o art.º 155º do CIRE e não da notificação aos interessados do teor desse relatório, impondo-se a estes o ónus de acompanhamento da marcha do processo, devendo, agindo com a diligência devida, estar atentos à sequência dos prazos, de molde a poderem deduzir, aquele incidente, em conformidade com o disposto no art.º 188º, n.º 1 do CIRE».

Assim, sabendo que a 30/09/2023 foi junto relatório a que alude o art. 155.º, do CIRE, o qual veio a ser complementado a 25/10/2023 e ainda que se entenda que o prazo se conta desde esta última data, temos que o requerimento apresentado aos 13/11/2023 extravasa o prazo perentório de15 dias a que alude o art. 188/1 do CIRE.

Pelo exposto, é o pedido de abertura de incidente de qualificação intempestivo, pelo que não se admite o mesmo”.

8- Inconformada com esta decisão dela interpôs recurso a Banco 1..., S.A., terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:

“I. O presente recurso de apelação tem por objeto o despacho proferido em 16/11/2023, que indeferiu liminarmente, por intempestividade, o incidente de qualificação da insolvência deduzido pela ora Recorrente;

II. Nos casos em que os factos que justificam a dedução do incidente de qualificação da insolvência são trazidos aos autos através de requerimento anómalo, denominado “complemento do relatório” do Administrador da Insolvência, o prazo previsto no artigo 188º nº 1 do CIRE conta-se a partir da notificação aos credores de tal complemento;

III. Por se tratar o dito “complemento do relatório” de requerimento anómalo não previsto na lei e para o qual não é fixado qualquer prazo, impõe-se a sua notificação aos credores, não podendo os prazos cuja contagem se inicia com a junção do relatório iniciar-se com a simples junção aos autos do complemento;

IV. Por se tratar de prazo judicial, são aplicáveis a tal prazo as regras contidas no artigo 139º do CPC;

V. In casu, a Recorrente não foi notificada para proceder ao pagamento da multa devida, acrescida da penalização de 25%, o que sempre se imporia;

VI. Por onde se verifica ser o incidente de qualificação da insolvência deduzido pela Recorrente em 13/11/2023 tempestivo;

VII. O prazo a que alude o artigo 188º nº 1 do CIRE é meramente ordenador e não perentório ou preclusivo da prática do ato;

VIII. Esta é a única interpretação compatível com os interesses públicos prosseguidos pela lei em matéria de qualificação da insolvência;

IX. Deve, assim, o despacho proferido ser revogado e substituído por outro que, considerando tempestivo o incidente de qualificação da insolvência deduzido, declare aberto o respetivo incidente, com todas as consequências legais”.

9- O Ministério Público respondeu defendendo a solução contrária e pugnando pela confirmação do entendimento plasmado no despacho recorrido.

10- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la.


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II- Mérito do recurso

           1- Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso e de necessariamente ser levado em conta o teor da decisão recorrida, o objeto dos recursos, como é sabido, é delimitado, em regra, pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608º, nº 2, “in fine”, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (CPC) “ex vi” artigo 17.º, n.º 1, do CIRE].

           Assim, tendo em conta este critério, resume-se este recurso a saber se:

           a) O prazo para a Apelante deduzir o incidente de qualificação da insolvência com carácter pleno, se deve contar a partir da data em que lhe foi notificado o complemento do relatório do Administrador de Insolvência;

           b) Não se entendendo assim, se a Apelante podia deduzir o referido incidente, subordinadamente ao pagamento prévio de multa;

           c) E, se o prazo para a dedução de tal incidente é meramente ordenador e não perentório.


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           2- Tendo em consideração os factos descritos no relatório supra exarado – que são os únicos relevantes para a resolução destas questões – vejamos, então, como soluciona-las:

           O incidente de qualificação da insolvência com caráter pleno pode ser desencadeado pelo juiz na sentença de declaração de insolvência, caso disponha de elementos que justifiquem logo a abertura desse incidente – artigo 36.º, n.º 1, al. i), do CIRE – ou, mais tarde, pelo administrador de insolvência ou qualquer interessado, em requerimento escrito e fundamentado, apresentado “no prazo perentório de 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º” – artigo 188.º, n.º 1, do CIRE.

           O referido prazo de 15 dias “pode ser prorrogado, quando sejam necessárias informações que não possam ser obtidas nesse período, mediante requerimento fundamentado do administrador da insolvência ou de qualquer interessado, e que não suspende o prazo em curso” sendo que a prorrogação “não pode, em caso algum, exceder os seis meses após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º” – artigo 188.º, n.ºs 2 e 3, do CIRE.

           Excedidos esses prazos, ou melhor, excedido o prazo inicial de 15 dias ou a sua eventual prorrogação, que, como vimos, não pode alongar aquele prazo inicial para além de seis meses, fica precludida a possibilidade do administrador da insolvência ou qualquer interessado requerer a qualificação da insolvência com caracter pleno[1]. O carácter perentório de tal prazo, presentemente prescrito na lei (n.º 1 do citado artigo 188.º, na versão introduzida pela Lei n.º 9/2922, de 11/11), não deixa margem para dúvidas a esse respeito.

           Coloca-se, porém, a questão de saber quando se deve considerar iniciado esse prazo nas situações, como a dos autos, em que o relatório do administrador de insolvência não vem inicialmente completo e vem a ser terminado ulteriormente com informações relevantes para a qualificação da insolvência.

           Ora, em situações deste tipo, temos para nós como líquido que o início de tal prazo só a partir da notificação dessas informações aos interessados pode começar a correr.

           E a justificação é simples: se atentarmos no disposto no artigo 188.º, n.º 1, do CIRE, facilmente constatamos que o prazo de 15 dias aí indicado pressupõe sempre o prévio conhecimento pelos interessados do relatório do administrador da insolvência, previsto no artigo 155.º do CIRE. Sinal, portanto, que a lei atribui particular relevância a esse relatório, inclusive para efeitos de eventual qualificação da insolvência.

           E faz sentido que assim seja.

           Com efeito, resulta do disposto nesse artigo 155.º, n.º 1, do CIRE, que tal relatório deve conter:

           “a) A análise dos elementos incluídos no documento referido na alínea c) do n.º 1 do artigo 24.º;

           b) A análise do estado da contabilidade do devedor e a sua opinião sobre os documentos de prestação de contas e de informação financeira juntos aos autos pelo devedor;

           c) A indicação das perspetivas de manutenção da empresa do devedor, no todo ou em parte, da conveniência de se aprovar um plano de insolvência, e das consequências decorrentes para os credores nos diversos cenários figuráveis;

           d) Sempre que se lhe afigure conveniente a aprovação de um plano de insolvência, a remuneração que se propõe auferir pela elaboração do mesmo;

           e) Todos os elementos que no seu entender possam ser importantes para a tramitação ulterior do processo”.

           A esse relatório são anexados o inventário e a lista provisória de credores (n.º 2).

           E é sempre dado tempo aos interessados para analisar todos estes elementos. Seja antes da data da assembleia de apreciação do relatório (n.º 3), seja, posteriormente, pois, como vimos, a lei concede, pelo menos, 15 dias para o mesmo efeito, em caso de dispensa dessa assembleia (artigo 188.º, n.º 1, do CIRE). Sinal, portanto, de que o legislador atribuiu a tais elementos um valor muito relevante, inclusive, para a questão de saber se a insolvência deve ser qualificada como fortuita ou como culposa.

           Evidentemente que pode daí não resultar informação significativa, nesse sentido. Pelo menos de forma direta. Mas, também pode suceder que, mesmo nessa hipótese, seja através dos elementos analisados pelo administrador de insolvência, conjugados com a instrução levada a cabo pelos interessados, que surja maior clarificação sobre a matéria. E daí que esses mesmos interessados possam, após conhecer plenamente aqueles elementos, requerer a prorrogação do prazo, nos termos já explicitados.

           Bem se vê, assim, como é importante que a comunicação do relatório do administrador da insolvência e de todos os dados a ele agregados, seja completa e elucidativa. Isto porque só assim os respetivos destinatários poderão inteirar-se do respetivo objeto.

           Ora, no caso, não foi isso que sucedeu.

           O relatório do Administrador da Insolvência nomeado foi junto aos autos no dia 30/09/2023, mas logo no mesmo relatório foi requerido prazo para o completar. Completar com informações sobre a venda de um imóvel que teria sido pertença dos insolventes e que no dia 10/03/2021, teria sido transmitido ao pai da devedora, AA.

           E, efetivamente, as ditas informações foram recolhidas pelo referido Administrador.

           Como já demos conta, o mesmo informou nos autos que se confirmava aquela venda e para ela foram apresentadas explicações pelo mandatário dos insolventes que a Apelante considera poderem indiciar a “existência de intuito fraudulento e má-fé dos devedores”. Isto, em conjugação com os elementos documentais recolhidos pelo Administrador de Insolvência. Tanto assim, que, a par de outro negócio, requereu com tais fundamentos, a qualificação desta insolvência como culposa.

           Ora, neste contexto, não pode deixar de se reputar o relatório do Administrador da Insolvência como incompleto. Incompleto porque não continha todas as informações que devia conter. Designadamente, sobre um negócio cujos contornos não podiam, nem podem. deixar de ser cabalmente apurados, em ordem a concluir se os devedores tiveram ou não alguma culpa na situação de insolvência a que chegaram.

           Deste modo, em resumo, tendo o referido relatório sido apresentado sem todas as informações e elementos relevantes para a qualificação da insolvência apurados pelo próprio Administrador da mesma e tendo-lhe sido concedido prazo para completar esse relatório, o prazo para os interessados requererem tal qualificação deve contar-se não a partir da junção aos autos de tal relatório, mas dos elementos e informações que, mais tarde, o vieram a completar.

           Não ignoramos, com isto, que o processo de insolvência tem caráter urgente e está todo ele imbuído de uma preocupação de celeridade, com o estabelecimento de prazos sucessivos, inclusive neste domínio – artigos 9.º, 36.º, n.º 4 e 188.º, do CIRE. Mas, como se sumariou no Ac. deste Tribunal da Relação do Porto, de 28/10/2021([2]), “o interesse da celeridade processual, ainda que relevante, não se pode sobrepor aos princípios subjacentes a um processo equitativo, nomeadamente ao princípio do contraditório – poder de influenciar a decisão e de defesa perante as pretensões da parte contrária - e do tratamento tendencialmente igualitário de todos os interessados no processo – igualdade em termos de utilização e uso dos meios processuais disponíveis”.

           Donde só se pode concluir que, tendo a Apelante sido notificada do complemento já referido, por ofício eletrónico expedido no dia 25/10/20223, quando no dia 13/11/2023, requereu que a insolvência dos devedores seja qualificada como culposa, ainda estava em prazo para o fazer. Isto, por força da aplicação das regras previstas nos artigos 138.º e 219.º, n.º 6, do CPC.

           Esse requerimento, assim, ao contrário do que se decidiu no despacho recorrido, é tempestivo e, por conseguinte, torna-se inútil apreciar as demais questões colocadas, que desde modo ficam prejudicadas.


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III - Dispositivo

Pelas razões expostas, concede-se provimento ao presente recurso e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido.


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- Sem custas, por delas estar isento o Ministério Público – artigo 4.º, n.º 1 al. a), do RCP.

Porto, 20/2/2024
João Diogo Rodrigues
Fernando Vilares Ferreira
João Proença
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[1] Neste sentido, por exemplo, Catarina Serra, O Incidente de Qualificação da Insolvência depois da Lei n.º 9/2022 – Algumas Observações ao Regime com Ilustrações de Jurisprudência, Revista Julgar, n.º 48 – 2022, Almedina, pág. 13.
[2] Processo n.º 2422/20.1T8AVR-A.P1, consultável em www.dgsi.pt (citado igualmente pela Apelante).