Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
117/18.5GBVLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MOREIRA RAMOS
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
INJUNÇÃO DE INIBIÇÃO DE CONDUZIR
PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULO MOTORIZADO
DESCONTO DO CUMPRIMENTO
Nº do Documento: RP20210414117/18.5GBVLG.P1
Data do Acordão: 04/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Nacional: AUJ N.º 4/2017
Sumário: I – Mantém plena atualidade a jurisprudência fixada no acórdão do S.T.J. n.º 4/2017
II – Não tem base legal (considerando, também, o elemento histórico de interpretação) o desconto de período de cumprimento da injunção de inibição de conduzir (no âmbito da suspensão provisória do processo) na liquidação da pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 117/18.5GBVLG.P1

Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO:

Inconformado com o despacho proferido em 18/11/2020, no qual, aderindo-se ao promovido pelo Ministério Público, se decidiu indeferir a pretensão do arguido B…, ora recorrente, no sentido de ser realizada a liquidação da pena acessória de inibição de conduzir a que foi condenado com desconto do tempo de inibição de condução já cumprido em sede de suspensão provisória do processo, dele veio aquele interpor recurso nos termos constantes destes autos e aqui tidos como renovados (refª 27700413), tendo formulado, a final, as seguintes conclusões (transcrição, sem sublinhados):
1º vício

1ª – O despacho em crise, de 18.11.2020, que apenas refere que “Atenta a uniformização de jurisprudência a que se reporta a Digna Magistrada do Ministério Público na promoção antecedente, que avalizamos, indefere-se o requerido”, não cumpre o necessário dever de fundamentação das decisões judiciais e, em acréscimo, fazem do artº 445º/3 CPP e a Lei 59/98 letra morta, devendo ser por isso liminarmente revogado.

2ª – A utilidade e missão dos Tribunais e da Jurisprudência não é a de fixar o Direito (não se confundindo com o poder legislativo), mas antes a de assegurar a sua validade e vigência, fazendo-o evoluir com a constante preocupação de se adaptar e de identificar com a realidade existente a cada momento.

3ª – Os AUJ não são Direito e admitem ser derrogados (porque essa é a referida natureza e especificidade da Jurisprudência). A sua única - mas importante - utilidade é a de estabelecer uma orientação, embora não absoluta, e de facilitar a sua aplicação mas sem que isso resulte numa automatização da aplicação do Direito: “Quando os tribunais concordem com os argumentos do acórdão uniformizador, eles não têm de proceder a uma repetição dos mesmos, mas devem, pelo menos, confrontar os argumentos dos sujeitos processuais com os argumentos do acórdão uniformizador. Não há, portanto, qualquer dispensa do dever de fundamentação.” (PINTO DE ALBUQUERQUE).

Brevíssimo resumo do casu decidendum

4ª - Compulsados os autos, verificamos que o Arguido, antes de ser julgado e condenado pela prática do crime de que vinha acusado (e que confessou), cumpriu 3 meses de proibição de conduzir veículos motorizados no âmbito de suspensão provisória do processo, deferida pelo Tribunal (Juiz de Instrução Criminal).

5ª – Apesar de tal 1ª injunção ter sido integral e pontualmente cumprida, não veio a cumprir-se a 2ª injunção: o dever de entrega de quantia monetária (500€) por dificuldades económicas do Arguido, frustrando-se assim a SPP.

6ª – Em consequência do não cumprimento de tal 2ª injunção (e apenas por essa), o processo prosseguiu para julgamento e o Arguido, assumindo naturalmente a sua responsabilidade no crime, veio a ser condenado por Sentença em pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 4 meses e 15 dias, em nada se referindo quanto ao período de 3 meses já cumpridos, julgando o arguido que seria notificado da liquidação de tal pena acessória com desconto daquele período, a fim de cumprir o período remanescente.

7ª – Face à delonga no recebimento de tal despacho, resolveu o arguido requerer tal liquidação e desconto em requerimento de 5.11.2020 que agora “veio” indeferido no despacho de 18.11.2020 e nos termos que agora se encontram em crise.
2º vício

8ª – Tal como várias vozes na Jurisprudência e Doutrina (tanto antes de Maio de 2017 como depois) discorda-se do decidido no AUJ 4/2017 de Maio que, além de violar a Lei, não é a decisão que melhor aplica o Direito ou que assegura a unidade e coerência de toda a filosofia e sistema penal português e até o respeito pelos mais básicos direitos liberdades e garantias constitucionais, enfim, pela Justiça.

9ª - Faremos nossas as sábias palavras do Ac RE de 11/7/2013 (P. 108/11.7PTSTB.E1) “A afirmação de que «só há duas semelhanças entre a injunção e a pena acessória: em ambas, a arguida tem de entregar a carta e abster-se do exercício da condução» significa que, «bem vistas as coisas, é o mesmo que dizer: as duas figuras são distintas, à excepção do facto de serem iguais...».

10ª – Existem várias razões que não foram adequadamente analisadas ou rebatidas e outras existem que nem sequer foram ponderadas pelo indicado AUJ 4/2017, tornando-o forçosamente vazio, frágil, incapaz de dar uma resposta equilibrada ao problema que aqui se coloca, e até ilegal, por direta violação de princípios constitucionalmente garantidos (como o “ne bis in idem”, o princípio da proporcionalidade e proibição do excesso).

11ª – A primeira razão – substantiva – que contraria o decidido em tal AUJ é a de que a sanção acessória de inibição de conduzir tem o mesmo conteúdo e objeto quer se veja como injunção ou como uma pena.

12ª – De outro lado, é também essa a conclusão que o instituto do desconto nos aponta: “O instituto do desconto, em quaisquer das suas modelações legais, é informado por uma ideia de justiça material. Assenta na ideia básica segundo a qual as privações de liberdade de qualquer tipo que o agente tenha já sofrido lhe devem aproveitar, sendo imputadas ou descontadas na pena em que o agente, em virtude de uma condenação já transitada em julgado, deva cumprir. Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2011 DR - 1.ª série - n.º 225 - 23 de Novembro de 2011 e Figueiredo Dias.

13ª - De igual forma, “algumas ordens jurídicas optaram por abrir certas excepções ao instituto do desconto, enquanto que outras, como é o caso português, consagraram-no sem excepções, dando prevalência aos imperativos de justiça material.» (Maria da Conceição Ferreira Da Cunha).

14ª – Em acréscimo, agora no plano processual, vemos que a injunção aplicada em SPP é uma verdadeira sanção processual logo, apesar de não ser propriamente uma “pena”, é perfeitamente adequada ao conceito e fundamento que subjaz ao espírito da figura do desconto, pensada precisamente para sanções processuais.

15ª – De outro lado, a injunção em SPP depende de validação judicial, uma decisão judicial, emitida pelo Juízo de Instrução Criminal, uma decisão homologatória e, por isso, não menos judicial. Isto é: injunção e pena, além de sações processuais, são ambas sanções judiciais.

16ª – Não se diga que o facto da injunção em SPP depender da concordância do arguido lhe retira a natureza judicial ou que por isso deixe de ser menos “pena” pois que não é isso que também retiraria a marca judicial de outras formas processuais como p. ex. o “processo abreviado” ou de várias outras medidas processuais que igualmente dependem de uma anuência do arguido.

17ª - Quando, em sede de SPP, se aplica a injunção do cumprimento de inibição de condução, já aí se sabe (nomeadamente o Arguido e a ordem jurídica) que sempre a mesma seria inevitável em futura condenação. É impensável conceber a possibilidade de se aplicar uma SPP (no âmbito de um crime como este) sem o necessário cumprimento de uma sanção de inibição de conduzir, de tão inevitável que a mesma se apresenta, tornando-a como que um adiantamento da pena.

18ª – Não se diga ainda que o 282º/4 CPP impede o aproveitamento subsequente da injunção de inibição de condução porque a intenção do legislador não foi naturalmente a de abranger condutas que não seriam passíveis de ser “repetidas”, isto é, devolvidas, como é o caso da inibição de conduzir.

19ª - Nenhuma diferença também haverá entre a inibição de condução enquanto injunção e a inibição de condução enquanto pena pois que é exactamente a mesma seja em Direito Penal ou em Direito Contraordenacional.

20ª - Mais: o próprio artº 148º/2 do Código da Estrada equipara a pena acessória de inibição de condução cumprida em sede de SPP (injunção) à pena acessória aplicada no âmbito de uma Sentença judicial condenatória: ambas conduzem ao mesmo resultado: a perda de 6 pontos. Não há diferença de tratamento.

21ª – Existem várias decisões judiciais que apontam no mesmo sentido do acima defendido (sendo que nem todas – tal como o AUJ 4/2017 – abordam os argumentos acima expendidos).

22ª – Ac TRG de 10.10.2016: Atendendo à evidente equivalência substantiva e funcional de ambas as prestações, o tempo da inibição de conduzir veículos motorizados já cumprida pelo arguido a título de injunção, por razões de justiça material, deve ser descontado no da duração da pena acessória de proibição de conduzir tais veículos em que o mesmo veio a ser condenado no mesmo processo, para evitar o duplo sancionamento da mesma conduta”.

23ª – Ac TRP de 25-05-2016, “A não repetição prevista no artigo 282.º 4 CPP, é restrita às prestações de natureza pecuniária.” “- O cumprimento da injunção da proibição de conduzir veículos a motor no decurso da suspensão provisória do processo, deve ser descontado na pena acessória de proibição de conduzir em que o arguido venha a ser condenado”.

24ª – Ac TRP de 27.1.2016, “II - A sanção acessória de inibição de conduzir, aplicada como injunção no âmbito da suspensão provisória do processo, deve ser objecto de desconto na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, aplicada na sentença condenatória”.

25ª – Ac. TRC de 09-01-2017, A inibição de condução de veículos a motor fixada, a título de injunção, no âmbito da suspensão provisória do processo, deve ser descontada na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados que venha a ser imposta, a final, em sentença condenatória, no âmbito do mesmo processo."

26ª – Ac TRE de 26-04-2016, “A injunção "proibição do exercício de condução", integralmente cumprida pelo arguido no âmbito da suspensão provisória do processo, desconta-se no cumprimento da pena acessória de proibição de condução aplicada ao mesmo nesse processo."

27ª – Ac TRL de 11-01-2017, “- A distinta natureza jurídica da pena acessória e da injunção não pode, por si só, constituir impedimento a que se proceda ao desconto na pena acessória de conduzir” (…) “- A pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, imposta ao arguido na sentença, teve por objecto o mesmo facto que constituiu o objecto da injunção que lhe foi imposta na anteriormente determinada suspensão provisória do processo. Os efeitos substantivos de uma e de outra, projectados na sua vida, seriam precisamente os mesmos, já que o cumprimento é feito da mesma forma, afectando ambas, de igual modo, os direitos de circulação rodoviária do arguido.” (…) o que revela o propósito do legislador em estabelecer uma certa 'equivalência' entre a injunção e aquela pena acessória.”

28ª – Ac TRL de 16.11.2016 - “I.O tempo inibição de conduzir imposto como injunção para suspensão provisória do processo e cumprido pelo arguido, deve ser descontado na pena acessória de proibição de conduzir em que o mesmo vier a ser condenado, depois de ter sido determinado o prosseguimento do processo;

29ª – O AUJ 4/2017, apesar de o ser, não representa a melhor solução jurídica nem a que melhor Direito aplica. Sinal disso não são apenas os muitos acórdãos em sua oposição (alguns já referidos), mas ainda vários votos de vencido incluídos em tal AUJ sendo que apenas um deles ocupa mais de 1/3 de todo o acórdão uniformizador (!), facto sintomático da sua controvérsia, incerteza e, assim, da sua fragilidade. Pela sua clarividência, faremos humildemente nossos os argumentos aduzidos por tal voto de vencido do Conselheiro Pires da Graça.

30ª – Apesar do AUJ fazer naturalmente aumentar o número de decisões coincidentes com o que aí se decidiu, não apagou a controvérsia que continua a fazer-se sentir na Doutrina e também em algumas decisões judiciais, tais como o voto de vencido no Ac. TRL de 14-9-2017, emitido já depois do AUJ. Fazendo também da mesma nossa humilde alegação, em resumo:

31ª - Existem argumentos, não considerados no referido aresto do Supremo Tribunal de Justiça (AUJ 4/2017). Desde logo, “A suspensão provisória do processo e a aplicação das injunções e regras de conduta, implica a “concordância do juiz de instrução”, o que confere às mesmas uma natureza jurisdicional.” Sendo que tal determinação resulta aliás de uma decisão em sede constitucional.

32ª – “A voluntariedade na aceitação das injunções é, em nossa modesta opinião, irrelevante para a se aferir da natureza das mesmas. Basta atentar nas várias penas de substituição que exigem a anuência do arguido (regime de permanência em habitação; regime de semi-detenção; trabalho a favor da comunidade; substituição da multa por trabalho), as quais, ninguém duvida ou põe em causa a sua natureza penal, para se concluir que a anuência do arguido é irrelevante para aferir da sua natureza”.

33ª - O artigo 282º, nº 4 do Código de Processo Penal, quando estabelece que em caso de incumprimento e de o processo prosseguir, “as prestações feitas não podem ser repetidas” não pode ter outra interpretação que não seja o de se referir às prestações pecuniárias porque são as únicas passíveis de ser… repetidas, isto é, devolvidas: “o conceito de não repetição das prestações, só pode ser entendido como referindo-se às prestação que pela sua natureza possam ser repetidas, o que não acontece com o cumprimento da proibição de conduzir.

34ª - “As injunções, por força da intervenção do juiz na sua aplicação, com a sua concordância obrigatória, revestem natureza que as aproxima das sanções penais, não podem às mesmas deixar de se aplicar as regras previstas para essas mesmas sanções penais.

35ª – “O legislador no artigo 69º, nº 6 do Código Penal, não incluiu como não contando para efeitos de proibição, o tempo já cumprido em sede de suspensão provisória de processo”. “Se atentarmos no inciso, o mesmo é bastante completo e rigoroso, já que o campo de aplicação é bastante preciso “medida de coacção processual, pena ou medida de segurança”. Este rigor leva-nos a concluir que foi intenção do legislador não incluir na “conta para o prazo da proibição”, as injunções parcialmente cumpridas. “

36ª – Isto é, o legislador não quis, expressa e intencionalmente, incluir na norma as injunções parcialmente cumpridas, como não contando, para efeitos da contagem do prazo de proibição de sanção acessória.

37ª – “Revestindo as injunções natureza próxima das sanções penais, por força da intervenção do juiz de instrução, não poderemos deixar de considerar como uma “renovada sanção jurídico-penal”, o não desconto das injunções já cumpridas sob pena de uma clara violação do princípio “non bis in idem” ínsito no texto constitucional”.

38ª – Nas palavras de Figueiredo Dias, «Da leitura dos artigos 80.º a 82.º parece resultar que, no pensamento da lei, o instituto do desconto só funciona relativamente a privações da liberdade processuais, a penas de prisão e (ou) a penas de multa, já não relativamente a outras penas de substituição e a medidas de segurança. Uma tal restrição não parece porém, ao menos em todos os casos pensáveis, político-criminalmente justificável. Melhor será, por isso, considerar que se está perante uma lacuna, que o juiz pode integrar - tratando-se, como se trata, de uma solução favorável ao delinquente -, sempre que possa encontrar um critério de desconto adequado ao sistema legal e dotado de suficiente determinação.»

39ª – O facto do despacho que determinou a concessão da SPP de 30.4.2019 ter dito apenas que “o incumprimento das injunções supra descritas e o cometimento de factos ilícitos da mesma natureza durante o período da suspensão, determinam a revogação da Suspensão provisória do processo e o prosseguimento dos autos para a fase de julgamento”, fez crer ao Arguido que seria impossível que não se aproveitasse, caso se frustrasse a SPP, o período, sagradamente cumprido, da pena acessória de inibição de condução (3 meses).

40ª – O arguido não acreditou (nem acredita) que o Tribunal tivesse ou tenha em mente que, desse modo, passe a ter que suportar uma inibição pelo prazo cumulado de tais 2 prazos, de 7 meses e 15 dias, pelos mesmos exactos factos, se mais não fosse até por tal colidir com os princípios constitucionais da adequação e da proibição de excesso, de completa desadequação da pena ao crime cometido.

41ª - Especialmente quando a frustração da SPP nada teve a ver com o não cumprimento ou cumprimento defeituoso de tal injunção de inibição de conduzir, pois que aquela se deveu exclusivamente a motivos de ordem financeira (que o levaram a não poder cumprir com a 2ª injunção, de pagamento da quantia de 500€).

42ª - O AUJ 4/2017 (como qualquer AUJ) não determina a aplicação obrigatória do seu sentido de decisão. Existem muitos e bons argumentos que o AUJ entendeu nem analisar e que o minam por completo. Não deve pois tal AUJ ser razão suficiente ou bastante para impedir a aplicação da melhor solução jurídica ou, pelo menos, a necessidade de se analisarem e se pensarem os argumentos aqui expendidos.

O recurso foi regularmente admitido (refª 420472800).

O Ministério Público respondeu nos termos constantes dos autos, aqui tidos como reproduzidos (refª 27828283), tendo concluído no sentido de que o recurso deverá ser julgado improcedente.

Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer junto aos autos e aqui tido como renovado (refª 14303664), através do qual preconizou que o recurso deverá ser rejeitado por manifestamente improcedente.

No cumprimento do artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, o arguido veio responder nos moldes insertos nos autos e aqui considerados como repetidos (refª 311658), através do qual anotou a existência de lapso em parte de tal parecer e, no mais, sublinhou as razões da sua discórdia quanto ao mesmo.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir, pois que nada obsta a tal.
II – FUNDAMENTAÇÃO:

a) a decisão recorrida:

O despacho recorrido é do teor seguinte (transcrição):

“Atenta a uniformização de jurisprudência a que se reporta a Digna Magistrada do Ministério Público na promoção antecedente, que avalizamos, indefere-se o requerido”.

Por seu turno, a promoção a que ali se alude é tem a seguinte redacção (transcrição):

Reqº de 05.11.2020 – B): Promovo se indefira o requerido, em conformidade com o disposto no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ 4/2017, que fixou Jurisprudência nos seguintes termos: “Tendo sido acordada a suspensão provisória do processo, nos termos do artº 281º do Código de Processo Penal, com a injunção da proibição da condução de veículo automóvel, prevista no nº 3 do preceito, caso termine aquela suspensão prosseguindo o processo, ao abrigo do nº 4 do artº 282º do mesmo Código, o tempo em que o arguido esteve privado da carta de condução não deve ser descontado no tempo da pena acessória de inibição da faculdade de conduzir aplicada na sentença condenatória que venha a ter lugar.”
*
b) apreciação do mérito:

Antes de mais, convirá recordar que, conforme jurisprudência pacífica[1], de resto, na melhor interpretação do artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, o objeto do recurso deve ater-se às conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo, obviamente, daquilo que possa e deva ser oficiosamente conhecido, devendo sublinhar-se também que importa apreciar apenas as questões concretas que resultem das conclusões trazidas à discussão, o que não significa que cada destacada conclusão encerre uma individualizada questão a tratar, tal como sucede claramente no caso vertente.
*
Neste contexto, e tendo em conta as efetivas conclusões aduzidas pelo recorrente, importa saber:

1 – se o despacho recorrido não contém fundamentação suficiente, devendo ser liminarmente revogado;

2 – se deverá proceder-se ao desconto no período de proibição de conduzir fixado na sentença do tempo que o mesmo havia já cumprido no âmbito da decretada suspensão provisória do processo que precedeu o seu julgamento.

Vejamos, pois.
1 – da insuficiência de fundamentação.

Alega o recorrente que o despacho recorrido não cumpre o necessário dever de fundamentação das decisões judiciais e, em acréscimo, faz do artigo 445º, nº 3 do Código de Processo Penal e da lei nº 59/98 letra morta, ilação que suporta na afirmação e citação que consta da conclusão 3ª, aqui tida como renovada, e que dá conta de que, mesmo que concorde com os argumentos do acórdão uniformizador, que pode ser derrogado, o tribunal deve confrontar os argumentos dos sujeitos processuais com aqueles, inexistindo dispensa do dever de fundamentação, sustentando, por isso, que o mesmo deve ser liminarmente revogado.

Do que se apreende, o Ministério Público, em ambas as instâncias, não tratou desta específica questão.

Apreciando.

É indubitável a necessidade de fundamentar os atos decisórios, tal como decorre do estipulado no artigo 97º, nºs. 1, al. b), 4 e 5, do Código de Processo Penal, preceito que navega à vista do artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
Disso cientes, cremos que é por demais evidente que o despacho recorrido padece de insuficiência de fundamentação, pois que, e mesmo considerando que dele faz parte integrante o ter da promoção também supra transcrita, no mesmo não é feita a mínima alusão à argumentação do recorrente, que este explanou ao longo de 71 pontos contidos no requerimento em apreço, como se impunha.
Porém, uma tal falência não nos remeteria para a peticionada revogação liminar do despacho recorrido, mas apenas para a constatação da sua mera irregularidade, que deveria determinar o suprimento de uma tal insuficiência de fundamentação.
No entanto, tal já não é possível.
Com efeito, e uma vez que não existe aqui um dever especial de fundamentação, cuja falta fosse cominada doutra forma[2], não se descortina que a alegada falência de fundamentação constitua uma qualquer nulidade, tal como as definem os artigos 118º a 120º, o que nos remete para a mera irregularidade a que alude o nº 1 do artigo 123º, todos os citados preceitos do Código de Processo Penal, a qual, como se prevê neste último preceito, deveria ter sido arguida no prazo de três dias após a notificação de tal despacho, e só depois poderia recorrer-se do despacho que sobre tal alegação viesse a recair por parte do tribunal ora recorrido, se fosse desfavorável, obviamente, o que, não se vislumbrando que tivesse ocorrido, dita a inexorável sanação de uma tal constatada irregularidade.
Nada a determinar, portanto.
2 – do peticionado desconto.

O recorrente alega, em suma, que, tal como várias vozes na jurisprudência e doutrina, tanto antes de Maio de 2017, como depois, discorda do decidido no AUJ 4/2017, que, além de violar a lei, não é a decisão que melhor aplica o Direito ou que assegura a unidade e coerência de toda a filosofia e sistema penal português e até o respeito pelos mais básicos direitos liberdades e garantias constitucionais, enfim, pela Justiça, em termos que depois explicita, argumentação essa que, no essencial, vem vertida nas correspondentes conclusões 8ª a 42ª supra transcritas[3] e que, por economia, aqui se considera renovada, contexto em que pugnava, neste particular, e por via subsidiária, que se julgasse tal como havia peticionado, no sentido da realização da liquidação da pena com desconto do tempo já cumprido em sede de suspensão provisória do processo, mais concretamente, três meses, como comprovado nos autos.

Respondendo, o Ministério Público sublinhou, em síntese, que à questão aqui em apreço, e em jeito de resolução da divergência jurisprudencial que surgiu a este propósito, responde o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ 4/2017, ao plasmar que «A opção pela suspensão do processo e sua aceitação é uma aposta no consenso entre os sujeitos do processo, uma pacificação entre arguido e assistente, que tem o sentido da reconciliação do agente do crime com a ordem jurídico-penal. Ora, o não cumprimento das injunções ou regras de conduta que o arguido aceitou, ou o cometimento de crime da mesma natureza no período da suspensão, pelo qual venha a ser condenado, são a revelação de que a aludida aposta falhou. Afinal, o arguido revela-se ainda, indireta ou diretamente, desrespeitador dos bens jurídico-penais e, nessa medida, um cidadão que continua a incidir negativamente na ordem social.
Ora, porque o falhanço referido se deve só ao arguido, entendeu a lei que "as prestações feitas não podem ser repetidas"», anotando depois que, embora seja evidente que as prestações em causa dirão respeito, antes do mais, às injunções das als. a) e c), do n.º 2, do artigo 281º, do Código de Processo Penal, e não à do seu nº 3, relativa à proibição de conduzir veículos com motor, a razão de ser da impossibilidade de repetição das prestações feitas tem que ter consequências equivalentes no tocante ao tempo de proibição de conduzir cumprido, pelo que, a recorrer-se no caso a qualquer analogia, ela levaria a um raciocínio por paridade de razão, sendo certo que a explicação para que a prisão preventiva ou privações de liberdade que a lei lhe equipara sejam descontadas na pena da condenação, assenta em imperativos de justiça material, que não são para aqui transponíveis, pelas razões que indica, concluindo que foi por tudo isso que entendeu o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 4/2017 não estarem, no caso, preenchidos os pressupostos de que depende a configuração de uma lacuna da lei, que se preencheria com recurso à analogia, fixando a jurisprudência aqui questionada, que entende dever ser seguida.

Por seu turno, o Ex.mo PGA emitiu parecer consonante sustentando que a referenciada jurisprudência fixada deverá manter-se, conforme jurisprudência de apoio que cita, concluindo, pois, que não deveria proceder-se ao pretendido desconto[4] e preconizando, até, que o recurso deveria ser rejeitado por manifestamente improcedente.

Respondendo ao parecer, e no que aqui importa reter, o arguido veio anotar que o parecer apenas transcreve passagens do AUJ 4/2017, não adiantando mais do que vem dito nesse aresto, não sendo usados ou sequer desenvolvidos quaisquer argumentos que defendam a posição de tal aresto, pelo que, adianta, falha no seu objetivo, considerando que está ainda errada a acusação de que existe manifesta improcedência, apenas e tão só porque existe um AUJ, violando tal conclusão inclusivamente o disposto no artigo 445º do Código de Processo Penal, à semelhança do que fez o despacho recorrido, de uma forma igualmente não fundamentada, aspecto este que, estranhamente, o parecer silenciou, sublinhando ainda que, ao contrário do que alega o parecer, com uso exclusivo de acórdãos que não se debruçam propriamente sobre o problema, expôs diversos argumentos que conduzem a uma decisão diferente daquela que aquele AUJ alcançou, mas não foram sequer abordados pelo AUJ e nem sequer pelos votos de vencido que aí ficaram consignados, destacando ainda que nem a AUJ é “Lei”, nem a mesma deverá ser assim encarada, sob pena da jurisprudência falhar na sua axial tarefa de contínua verificação de interpretação e de avaliação da vigência normativa.

Apreciando.

Ultrapassada que ficou a questão da falta ou insuficiência ao nível da fundamentação, a questão aqui em apreço cinge-se ao facto de saber se o referenciado período de três meses de proibição de conduzir que o ora recorrente cumpriu mercê da injunção fixada no âmbito da decretada suspensão provisória do processo, cujo incumprimento parcial determinou o ulterior prosseguimento dos autos, culminando no seu julgamento pelo ilícito em questão e na sua condenação também em proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de quatro meses e quinze dias, deverá ser descontado neste último, pelas referidas razões que aponta o recorrente e que, na sua tese, levariam a que não fosse aplicada a jurisprudência uniformizada de que se socorreu o tribunal recorrido para lhe denegar uma tal pretensão.
O recorrente começa por assentar o almejado desconto naquilo que apelida de razões substantivas que, em suma, dão nota de que existe uma inegável relação de conteúdo entre injunção e pena, tendo por substrato uma sanção com o mesmo objecto e ambas determinadas pelo fundamento da prevenção (remete para os artigos 281º nº 1, do CPP e 40º, nº 1 e 71º, nº 1, estes do CP), e de que a aparente mudez da lei perante o tudo ou nada (desconto ou não da injunção efectivamente cumprida) é apenas “aparente”, pois faz depender de uma interpelação do pensamento do sistema na determinação da sua axiologia funcional, no sentido de fazer justiça, isto é, adianta, devemos analisar e determinar a função da repercussão da pena e do comportamento explicitado na injunção, sublinhando, a coberto do acórdão nº 9/2011 do STJ e de citação de Figueiredo Dias, que o desconto prende-se com imperativos de justiça material, razão pela qual o instituo do desconto foi acolhido na ordem jurídica português sem excepções (cita nesse sentido Maria da Conceição Ferreira da Cunha).
Depois, socorre-se de razões processuais e que, também em síntese, derivam do facto de a injunção em suspensão provisória do processo tratar-se de uma verdadeira sanção processual, logo, apesar de não ser uma “pena”, ser perfeitamente adequada ao conceito e fundamento que subjaz ao espírito da figura do desconto, pensada precisamente para sanções processuais, além de que, e apesar da injunção depender da concordância do arguido, a verdade é que a sua validação depende de uma homologação por decisão judicial, emitida pelo Juízo de Instrução Criminal, logo, assume um cunho verdadeiramente judicial, tratando-se de uma verdadeira pena, cujo cumprimento naquela sede é incontornável, e compreensivelmente necessário, ao que acresce que é notório, como tem sido entendido, que o facto da lei processual penal (282º/4) referir que as prestações/injunções, frustrando-se a suspensão provisória do processo, não podem ser “repetidas”, destina-se tão unicamente para as injunções monetárias, pois que essas seriam as únicas que poderiam, em tese, ser devolvidas, pois que o cumprimento de uma inibição de condução nunca poderia, em circunstância alguma, ser juridicamente “repetido”, por ser impossível a devolução de algo que… não tem existência corpórea, pelo que entende que daí poderá concluir-se que o legislador, com tal exclusão e previsão legal, não pensou na sanção da inibição de condução, nem a quis aí abranger, encontrando-se ainda outra equiparação legal da inibição da condução, enquanto injunção ou pena, nos termos do nº 2, do artigo 148º, do Código da Estrada, já que ambas dão lugar à subtração de seis pontos ao condutor, isto justamente porque, legalmente, ambas as situações conduzem ao mesmo resultado e são por isso equiparadas, anotando seguidamente que grande parte destes argumentos não foram analisados pelo referenciado AUJ 4/2017 e que todas as razões materiais e processuais têm sido continuamente confirmadas pela, para si, melhor jurisprudência, pois que, além de ser a mais sensata, é a que melhor faz respeitar o espírito e finalidade das penas e de todo o sistema garantístico que as enforma.
Finalmente, anotou as razões de discordância quanto ao supra referido AUJ 4/2017 e a jurisprudência subsequente, destacando os votos de vencidos presentes naquele, e a extensão e valia de um deles, e um aresto do TRL que dele igualmente discorda, e cujas razões transcreveu, concluindo depois que todos os diversos argumentos expendidos demonstram que a teleologia funcional e normativa do instituto do desconto na dogmática jurídico-penal é idónea e adequadamente fundada ao poder e dever de suprir por analogia, se necessário fosse, a consequência jurídica da aparente omissão da referida injunção cumprida, na execução da pena acessória aplicada a final, e que, por outro lado, considerar-se a inexistência de desconto da proibição de condução de veículos com motor, decorrente da injunção e, cumprida, na pena acessória aplicada na decisão final, seria atentar-se contra a regra do “ne bis in idem” (cita o artigo 29º nº 5 da Constituição da Republica Portuguesa), sendo manifesto que a dupla execução sancionatória da mesma conduta colide com os princípios constitucionais da adequação e da proibição de excesso, agravando a responsabilidade do agente pelos mesmos factos dessa única conduta, no mesmo processo, argumentação que depois reverteu para o caso concreto, acrescentando, a finalizar, que o AUJ 4/2017, como qualquer AUJ, não determina a aplicação obrigatória do seu sentido de decisão, existindo muitos e bons argumentos que aquele AUJ entendeu nem analisar e que o minam por completo, pelo que entendia que não deveria assim ser tal aresto razão suficiente para impedir a aplicação da melhor solução jurídica ou, pelo menos, a necessidade de se analisarem e se pensarem os argumentos aqui expendidos.
Com antes se viu, e ao invés, a posição do Ministério Público em ambas as instâncias vai no sentido de que tal jurisprudência fixada deverá ser acatada, razão pela qual no aludido parecer propõe-se até a rejeição do recurso.

Ora bem.

Sem prejuízo da valia da argumentação pormenorizadamente aduzida pelo recorrente, estamos do lado desta última tese, adiante-se, a qual, de resto, o aqui relator já antes sustentou[5] e depois reiterou[6].
Na verdade, tal como se escreveu nesse citado acórdão, aqui seguido, e depois se renovou no seguinte, e em face da discussão então reinante ao nível jurisprudencial, entendíamos que a razão penderia para a tese que sustenta que não deve ser efetuado o desconto[7], mormente pelo facto de nenhum normativo o permitir e, ao invés, tal nos parecer resultar do consignado no artigo 282º, nº 4, do Código de Processo Penal, quando ali se estipula que, em caso de incumprimento ou de cometimento de crime da mesma natureza no período em questão, e inerente condenação, as prestações não podem ser repetidas.
Com efeito, adiantava-se ali, sintetizando a argumentação que tem vindo a sustentar esta tese ao nível da jurisprudência, a suspensão provisória do processo não envolve qualquer julgamento sobre o objeto do processo e necessita da concordância do arguido, pelo que não pode ser considerada uma pena, sendo consabido que o processo poderá vir a prosseguir para julgamento e que o cumprimento pode ser interrompido a todo o tempo pelo arguido, o que, no caso da proibição de conduzir, implica que o mesmo possa reaver a sua carta de condução em qualquer altura, sendo certo que o próprio incumprimento dessa proibição “negociada” não tem as mesmas consequências que decorrerão do incumprimento da pena acessória de conduzir.
Em suma, temos uma natureza diversa da pena e um percurso perfeitamente diferente que, no caso de incumprimento das injunções ou regras de conduta, implica apenas o normal prosseguimento dos autos, e nada mais, o que nos afasta da pretendida equiparação, bem como da alegada preterição do princípio “in dúbio pro reo”.
Claro está que é discutível se a injunção de proibição de conduzir veículos com motor configura uma verdadeira prestação a que alude o citado artigo 282º, nº 4, do Código de Processo Penal.
Temos para nós que, ao menos numa fase inicial, o legislador quis referir-se apenas a injunções ou regras de conduta diversas daquilo que poderiam ser as normais sanções legalmente previstas para as condutas abarcadas pelo regime da suspensão provisória do processo, v.g, pagar determinada quantia a instituições de solidariedade social, frequentar ações de sensibilização relativamente a certos comportamentos associados à indiciada infração, etc…, o que, de resto, seria mais condizente com a própria natureza desta medida, que, consabidamente, visava simplesmente a obtenção de soluções de consenso em situações de menor gravidade, evitando o estigma da própria condenação.
Apesar disso, não poderia ficar aqui esquecida a necessidade de proteger os bens jurídicos alegadamente violados em cada caso específico e, obviamente, a de procurar contribuir para a própria ressocialização dos visados, sob pena de se esvaziar de conteúdo o núcleo essencial que está subjacente à tutela penal, alicerce estruturalmente comum a ambas as soluções, à do consenso e à da aplicação de penas.
Ora, foi precisamente este tipo de preocupações que levou o legislador, atenta a “praxis” (menos boa, diríamos nós) instalada, tivesse tido a preocupação de, através da Lei nº 20/2013, de 20/01, ter transposto para o nº 3, do artigo 281º, do Código de Processo Penal, a obrigatoriedade de aplicação de injunção de proibição de conduzir veículos com motor quando estivessem em causa crimes que previssem a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, assim se colmatando a constatada lacuna que resultava do esvaziamento de conteúdo útil da função da pena acessória de proibição de conduzir e, simultaneamente, da disfuncionalidade que daí derivava paras as contraordenações que tratavam da mesma matéria, como no caso da condução sob o efeito de álcool.
E, convém anotar, que esta foi a solução minimalista em face da proposta de lei nº 77/XI, que esteve na génese da sobredita lei, pois que ali se previa que este tipo de crimes, que implicassem a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, deveria ficar pura e simplesmente arredado da própria possibilidade de suspensão provisória do processo[8].
Assim sendo, e partindo-se do princípio de que o legislador tem um cabal conhecimento do sistema legal, soube exprimir o seu pensamento em termos adequados e consagrou seguramente as soluções mais acertadas (cfr. artigo 9º do Código Civil), deverá concluir-se que, quando aditou esta nova preocupação ao instituto aqui em apreço, estaria ciente das implicações do incumprimento, pelo que, nada tendo dito expressamente a um tal respeito, quis que também esta proibição, necessariamente oponível ao arguido, ficasse abrangida nas prestações que, consabidamente, sabia que não poderiam ser repetidas.
Neste contexto, e revendo-nos ainda na fundamentação vertida num aresto proferido neste TRP[9], no qual se sustenta e explicita devidamente as razões que levam a concluir que “O entendimento jurisprudencial que procede ao desconto do período de cumprimento de injunção de inibição de condução à sanção acessória de inibição de condução de veículos com motor não tem, por conseguinte, qualquer base legal – leia--se, norma que o permita” e que, “Pelo contrário, importa salientar de que existe legislação que impede tal solução”, resta concluir que, por falta de suporte legal mínimo, não poderá ser feito o aludido desconto, pelo que deverá manter-se o decidido também neste particular
Ora, cremos que esta argumentação mantém plena atualidade e sai agora até reforçada pela sobredita jurisprudência fixada, sendo certo que, nos termos do no nº 3 do artigo 445º do Código de Processo Penal “A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão.
Trata-se, por isso, de um dever de fundamentação especial, diríamos, acrescido ao que impende sobre os demais atos decisórios, incluindo o já específico das sentenças{10], uma vez que a regra será acatar tais decisões, tendo-se considerado como motivos para alicerçar a tal possível divergência, tal como anota Vinício Ribeiro[11]:
Os Tribunais devem, em princípio, acatar a jurisprudência fixada pelo STJ.
Tal só não acontecerá quando houver algum argumento, ou argumentos novos, e de valor, não tomados em consideração no acórdão uniformizador e que sejam suscetíveis de alterar os termos da discussão jurídica; quando for evidente que a evolução doutrinária e ou jurisprudencial alterou, de modo significativo, o peso da argumentação usada no acórdão, suscetível de conduzir a um diferente resultado; quando se verificarem alterações na composição do STJ donde ressalte, clara e inequivocamente, que a maioria dos juízes das secções criminais deixaram de defender a posição fixada”[12].
A este propósito convirá anotar ainda que “Quando a lei diz que as divergências com a decisão do S.T.J. que fixa jurisprudência têm que ser fundamentadas quer dizer que terão que ser usados argumentos novos, relevantes, nunca anteriormente ponderados. Donde resulta que não cumpre as exigências legais da fundamentação da divergência a invocação de argumentos já anteriormente usados e que nunca mereceram acolhimento”[13], jurisprudência a que nos permitimos aderir e que nos afasta da argumentação contida nos votos de vencido, mormente do mais extenso e que vinha convocado como um dos fortes argumentos do recorrente.

Em suma.

Flui de todo o exposto que, além de não nos revermos na jurisprudência de sinal contrário aduzida pelo recorrente, anterior ou posterior à sobredita jurisprudência fixada, nem na apontada doutrina, não vemos ainda razões, e particularmente novas, que nos possibilitassem divergir de uma tal jurisprudência, ao menos sem colidir com a “ratio” que dimana do supra mencionado artigo 445º, nº 3, do Código de Processo Penal, o que significa que, seguindo tal jurisprudência fixada, resta confirmar o despacho recorrido que indeferiu o almejado desconto peticionado pelo ora recorrente.
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Não procede, pois, o recurso, o que, logicamente, implica a inerente tributação em sede de custas, considerando-se adequado fixar em quatro UC a taxa de justiça devida, nos termos dos artigos 513º, nºs 1 a 3 e 514º, ambos do Código de Processo Penal e 8º, nº 9 e tabela III, do Regulamento das Custas Processuais.
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Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste TRP em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, em consequência do que, e sanada que ficou a sobredita irregularidade decorrente da insuficiência ao nível da fundamentação, decidem confirmar o despacho recorrido que indeferiu o almejado desconto peticionado pelo ora recorrente.

Custas pelo recorrente, fixando-se em quatro UC a taxa de justiça devida.
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Porto, 14/04/2021.
Moreira Ramos
Maria Deolinda Dionísio
______________
[1] Vide, entre muitos outros, o Ac. do STJ, datado de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt, no qual se sustenta que “Como decorre do art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso”.
[2] E aqui impõe-se anotar que o especial dever de fundamentação contido no artigo 445º, nº 3 do Código de Processo Penal invocado pelo recorrente, a que se aludirá mais adiante, só seria aplicável caso o tribunal divergisse da jurisprudência fixada, o que não é o caso, além de que ali não é cominada a falência de fundamentação, o que nos remete para o sobredito regime geral.
[3] Conclusões que, na sua globalidade, não sendo verdadeiras conclusões, foram transcritas precisamente porque reproduzem a base argumentativa crucial (quase total) que consta da motivação ou argumentação recursiva e, por isso, e até por razões de economia, permite-nos não a repetir neste lugar.
[4] Por mero lapso, provavelmente pela utilização de base inserta em parecer anterior sobre a mesma questão, alude-se ali ao desconto do período de tempo de trabalho a favor da comunidade prestado na suspensão provisória do processo, por virtude do prosseguimento do processo, em vez de se reportar ao período de proibição de conduzir.
[5] Decisão datada de 20/04/2016, proferida no âmbito do processo nº 635/13.1 PFPRT.P1; ao contrário doutros, trata-se de acórdão não publicado.
[6] Decisão datada de 08/02/2017, proferida no âmbito do processo nº 363/15.31 GBMTS.P1, igualmente não publicado.
[7] Tese igualmente sustentada pela aqui Adjunta no acórdão datado de 04/05/2016, por si relatado no processo nº 260/14.0 PFVNG, a consultar in www.dgsi.pt, aresto que a aludida resposta cita e tem até como emblemático.
[8] Tal como nos é relembrado no acórdão deste TRP de 27/01/2016, relatado por Renato Barroso, que, para nós um tanto paradoxalmente, com todo o respeito, acaba por defender a solução do desconto.
[9] Acórdão relatado por Jorge Lanweg, datado de 13/04/2016 e proferido no âmbito do processo nº 471/13.5 GBFLG.P1, a consultar in www.dgsi.pt.
[10] Neste sentido, vide o acórdão do TRC datado de 14/01/2015, Apud Código Penal da PGDLisboa, em anotação ao artigo 445 do CPP, no qual se sustentou que “Quando a lei, no nº 3 do art. 445º do C.P.P., determina que os tribunais que divirjam da jurisprudência fixada pelo S.T.J. devem fundamentar as divergências certamente quererá um mais em relação ao dever geral de fundamentação da decisão, que estando já previsto noutras normas não careceria de específica consagração caso o objetivo fosse o mesmo”.
[11] In Ob. Cit., pág. 1053, ponto 2, cuja posição também já antes seguimos por estarmos inteiramente de acordo com a mesma, sendo certo que o mesmo autor explica ainda, no ponto anterior, as razões que ditaram a atual exigência de fundamentação das divergências com tal tipo de jurisprudência e para cuja leitura, por economia, se remete.
[12] No supra referido acórdão do TRC datado de 14/01/2015 (vide nota 10), sustentou-se ainda que “Quando a lei diz que as divergências com a decisão do S.T.J. que fixa jurisprudência têm que ser fundamentadas quer dizer que terão que ser usados argumentos novos, relevantes, nunca anteriormente ponderados. Donde resulta que não cumpre as exigências legais da fundamentação da divergência a invocação de argumentos já anteriormente usados e que nunca mereceram acolhimento”.
[13] Citação extraída do supra referido acórdão do TRC datado de 14/01/2015 (vide nota 10),