Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1781/21.3T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
PRESSUPOSTOS
CONFISSÃO NOS ARTICULADOS
ÂMBITO
Nº do Documento: RP202403071781/21.3T8PVZ.P1
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As partes podem confessar factos ou confessar o pedido, dispondo do direito, mas não podem confessar ou acordar a conclusão jurídica que está em discussão na acção.
II - Numa acção de responsabilidade civil as partes não podem acordar que a ré é responsável pelos danos que se vierem a provar e a acção prosseguir apenas para julgamento dos danos.
III - Se da fundamentação de facto da sentença não constam os factos atinentes aos restantes pressupostos da responsabilidade civil, a sentença deve ser anulada para ampliação da matéria de facto aos factos atinentes a esses pressupostos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2024:1781.21.3T8PVZ.P1
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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. Relatório:
AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente em Ponte de Lima, instaurou acção judicial contra a A..., S.A., pessoa colectiva com n.º único de identificação e de contribuinte fiscal ..., com sede em Lisboa, pedindo a condenação da ré pagar-lhe a indemnização de €54.180,87, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal de 4% ao ano, desde a instauração da até pagamento, e a indemnização que vier a ser fixada em decisão ulterior ou em incidente de liquidação.
Para fundamentar o seu pedido alegou, em súmula, que quando era transportada como passageira num veículo automóvel este envolveu-se num acidente com outro veículo, segurado na ré, acidente ocorrido por culpa exclusiva do condutor deste e do qual resultaram para a autora danos dos quais pretende ser ressarcida.
A ré foi citada e apresentou contestação, impugnado os factos alegados e concluindo no sentido de a acção ser julgada em conformidade com a prova a produzir.
Na acta da audiência de julgamento consta que aberta a audiência «foi acordado pelas partes, através dos seus ilustres mandatários presentes, de que a ré assume a obrigação de indemnização à autora por pelos danos a apurar e a liquidar na presente audiência que apresentem em nexo de casualidade adequada com o acidente em discussão nos autos».
Encerrada a audiência, foi proferida sentença, em cujo relatório se escreveu a dada altura (sic):
«A assunção pela ré da obrigação de indemnizar a autora pelos danos decorrentes do acidente, cuja determinação será objecto de julgamento constitui uma confissão parcial do pedido.
Considerando a disponibilidade do objecto e a qualidade da declarante, homologo a confissão parcial formulada em audiência, nos termos dos arts. 290.º, n.ºs 1 e 3, e 283.º, do CPC.
Em consequência, o tribunal não se pronunciará sobre a factualidade respeitante ao acidente e respectivo juízo de culpa e ainda a atinente ao contrato de seguro, limitando-se a apurar os danos decorrentes e respectivo nexo de causalidade com o acidente.»
A seguir, conhecendo do mérito, julgou-se a acção parcialmente procedente e condenou-se a ré a pagar à autora: (A) €27.432,28, acrescidos de juros de mora, contados à taxa legal desde a citação até integral pagamento; (B) €10.000,00, acrescidos de juros de mora, contados à taxa legal desde a decisão até integral pagamento; (C) o montante a liquidar em decisão ulterior, respeitante a custos consequente às lesões sofridas no acidente a suportar pela autora respeitantes a tratamentos de medicina física e de reabilitação e de medicação analgésica e/ou anti-inflamatória.
Do assim decidido, a interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I. A data da consolidação médico legal das lesões da autora ocorrida em 05.11.2020, bem como a compatibilidade das sequelas sofridas mesma com o exercício da profissão habitual, implicando apenas esforços suplementares, foram alegadas em sede de petição inicial e confirmadas na perícia médica elaborada pelo INML.
II. Pese embora tais circunstâncias, bem como o facto de se tratarem de factos essenciais para a boa decisão da causa (até mesmo para balizar os danos a indemnizar), o tribunal a quo não incluiu os mesmos no elenco dos factos dados como provados.
III. O que tudo deveria ter feito, requerendo-se sejam aditadas duas alíneas à matéria de facto provada da qual constem os factos em causa, propondo-se que as mesmas tenham a seguinte redacção: - A data da consolidação médico-legal das lesões sofridas pela autora no acidente em causa nos autos ocorreu em 05.11.2019 e - As sequelas resultantes para a autora do acidente de 05.11.2019 são compatíveis com o exercício da profissão habitual, mas implicam esforços suplementares na medida do défice funcional atribuído.
IV. Os factos dados como provados pelo tribunal recorrido nas alíneas f., o. e p. não resultaram provados dos autos.
V. Um dos parâmetros necessariamente avaliados e tidos em consideração nas perícias médico-legais a elaborar pelo INML é a eventual necessidade futura de tratamentos e/ou medicação. Da perícia elaborada nos autos não resulta a necessidade futura nem de quaisquer tratamentos, sejam eles de que natureza foram, nomeadamente de fisioterapia, nem de toma de qualquer tipo de medicação decorrentes do acidente em causa nos autos.
VI. A prova testemunhal não é suficiente para se dar como provada tal matéria, em especial quando em contradição (como é aqui o caso), ou não corroborada pela prova pericial ou quando existam (como também é o caso) outras lesões em nada relacionadas com o evento em discussão (tendinite do ombro esquerdo sofrida pela autora).
VII. Mal esteve, pois, o tribunal recorrido ao dar como provados os factos contestantes das alíneas f., o. e p., devendo a resposta aos mesmos ser alterada para “não provado” e, nessa medida, serem os mesmos excluídos do elenco da matéria de facto provada e incluídos nos factos não provados.
VIII. A condenação da recorrente no pagamento do montante de €5.809,00 por perda de rendimento futuro, aliada à condenação no pagamento da quantia de €21.000,00 por compensação do dano biológico, para além de ser manifestamente excessiva e desproporcionada, constitui uma verdadeira duplicação de danos e de condenação.
IX. O défice funcional permanente de 2 pontos fixados à autora é compatível com o exercício da profissão habitual, não implicando, nessa medida, qualquer perda de rendimento, pelo que a condenação da ré no pagamento à autora da quantia de €5.809,00 deverá ser desde logo revogada.
X. O défice funcional permanente tem vindo a ser entendido pela jurisprudência como indemnizável na vertente patrimonial, cabendo aqui compensar os esforços acrescidos que a autora terá de fazer para continuar a exercer a sua profissão.
XI. O montante de €21.000,00 arbitrado pelo tribunal recorrido é manifestamente excessivo e desproporcionado face às concretas circunstâncias: défice de 2 pontos, vencimento de €625,34, idade da autora e equidade. Quando analisada e confrontada com outras decisões jurisprudenciais recentes, o valor a atribuir à autora pelo défice funcional permanente pela mesma sofrido, não deverá ultrapassar os €8.000,00.
XII. Não resultou provado nos autos que a autora tenho ficado a necessitar de quaisquer tratamentos ou medicação futura pelo que a condenação constante da alínea C) da sentença proferida carece de qualquer fundamento, devendo a decisão proferida ser revogada nessa parte.
Termos em que o presente recurso deverá ser julgado procedente nos exactos termos supra concluídos, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-se a mesma por outra que condene e absolva a ré conforme aqui defendido …
Notificada do recurso, veio a autora apresentar recurso subordinado da sentença, findando as respectivas alegações com as seguintes alegações:
1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos, na parte em que não fixou indemnização por períodos de incapacidade temporária e, por fim, na parte em que fixou a indemnização de €10.000,00, a título de compensação por danos de natureza não patrimonial.
2. Como resulta da acta da sessão de 09/05/2023 da audiência final, “foi acordado pelas partes, através dos seus ilustres mandatários presentes, de que a ré assume a obrigação de indemnização à autora por pelos danos a apurar e a liquidar na presente audiência que apresentem em nexo de casualidade adequada com o acidente em discussão nos autos.”
3. Essa assunção expressa de responsabilidade por parte da ré, reforçada pela posição que já havia sido assumida pela mesma nos articulados, tornou desnecessária a apreciação dos pressupostos gerais de constituição da ré na obrigação de indemnizar, precisamente pelo facto de esta ter assumido expressamente tal obrigação.
4. A indemnização pelo dano corporal passou a contemplar as seguintes 3 (três) vertentes: (i) indemnização pela perda de capacidade de ganho, traduzida no montante indemnizatório destinado a ressarcir o lesado pela perda de capacidade de criação de rendimento, quer na vertente profissional quer pessoal, independentemente da sua tradução em efectivas reduções ou perdas salariais (considerando que, ainda que não haja perda salarial, o sinistrado, por força da sua incapacidade, terá de fazer maior esforço para obter o mesmo rendimento); (ii) indemnização pelo dano biológico, correspondente à perda parcial da disponibilidade do uso do corpo para os normais afazeres do dia-a-dia (que não os profissionais) e fixados numa incapacidade geral ou anátomo-funcional/fisiológica e um dano autónomo que não se confunde com o dano patrimonial futuro; (iii) indemnização pelo dano moral, destinada a compensar as dores, os incómodos e o sofrimento causados ao lesado pelo evento lesivo, tanto no momento subsequente ao sinistro (período de recuperação) como ao longo da sua vida.
5. A indemnização por danos patrimoniais deve contemplar não só a parcela respeitante à perda de capacidade de ganho, como a respeitante ao dano biológico, enquanto perda parcial da disponibilidade do uso do corpo para os normais afazeres do dia-a-dia (que não os profissionais) e fixados numa incapacidade geral ou anátomo-funcional/fisiológica e um dano autónomo que não se confunde com o dano patrimonial futuro.
6. Para esse cálculo releva a retribuição auferida pela autora aquando do acidente dos autos, que se cifrava em 625,34 €, recebidos em 14 (catorze) meses por ano, mas também o volume de trabalho doméstico desenvolvido pela autora, a fixar por recurso à equidade, que deverá considerar um total não inferior a 4 (quatro) horas diárias de trabalho doméstico, em todos os dias do ano, bem como um valor horário de retribuição não inferior a 5,00 €, que é o valor mínimo pago, em regra, para contratação de trabalhador de serviço doméstico que desempenhe as mesmas funções.
7. Deverá, ainda, considerar-se a posição assumida no Douto Ac. STJ de 19/09/2019, proc. nº. 2706/17.6T8BRG.G1.S1 (citando, para o efeito, o Ac. do STJ de 19/04/2018, proc. nº. 196/11.6TCGMR.G2.S1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt, segundo o qual “o recebimento de uma só vez do montante indemnizatório não releva actualmente como em tempos não muito recuados já relevou, tendo em conta que a taxa de juro remuneratório dos depósitos pago pelas entidades bancárias é muito reduzido (…), o que implica, por si só, a elevação do capital necessário para garantir o mesmo nível de rendimento.”
8. Considerando a posição assumida nesses arestos, não deverá aplicar-se qualquer redução, decorrente da antecipação do capital, ao valor encontrado por recurso às fórmulas habituais.
9. Tendo presente o exposto, terá de concluir-se que o valor fixado, nesta sede, na douta sentença recorrida (27.432,28 €), não poderá merecer censura, mostrando-se perfeitamente ajustado às circunstâncias do caso concreto.
10. O Tribunal recorrido não fixou qualquer indemnização pelos períodos comummente designados como de incapacidade temporária para o trabalho.
11. Apurou-se que a Autora sofreu défice funcional temporário de 404 dias, com repercussão temporária total da actividade profissional de 2 dias e parcial de 402 dias.
12. Nessa medida, não poderia deixar de atender-se ao peticionado na p.i., a título de incapacidade temporária para o trabalho doméstico, fixando-se a indemnização devida a esse título em 7.800,00€.
13. Ao decidir em sentido inverso, a douta sentença recorrida violou, além de outras, as disposições dos arts. 562.º e 564.º, n.º 1, do Cód. Civil, pelo que deve ser revogada, nessa parte, e substituída por douto Acórdão que fixe em 7.800,00€ a indemnização devida pelos períodos de incapacidade temporária para o trabalho.
14. O Tribunal recorrido fixou a indemnização devida à autora, a título de danos de natureza não patrimonial, no valor de 10.000,00€, valor que se afigura reduzido, já que é similar ao fixado, em casos análogos, em casos em que não há sequer sequelas.
15. No que diz respeito aos danos de natureza não patrimonial (de elevada monta, como resulta da matéria de facto dada como provada), tendo sempre presente o limite do pedido, deveria ter sido fixada indemnização de valor não inferior a 20.000,00€.
16. A douta sentença recorrida, na parte respeitante à fixação de danos de natureza não patrimonial, violou, além de outras, as disposições dos arts. 496.º, n.º 1, 562.º e 564.º, n.º 1, do Cód. Civil, pelo que deve ser revogada na parte em que condenou a ré a pagar a quantia de 10.00,00€, a título de indemnização por danos não patrimoniais, e substituída por douto Acórdão que condene a ré a pagar à autora, a esse título, a quantia peticionada de 20.000,00 €.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, com a consequente revogação da douta sentença recorrida, na parte visada por este recurso, e prolação, em sua substituição, de douto Acórdão que esteja em conformidade com as conclusões acima formuladas.
A ré respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. A título de questão prévia: se a sentença possui a fundamentação de facto indispensável para se poder conhecer do objecto do recurso.
ii. Se decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada.
iii. Qual o valor da indemnização a que a ré tem direito.

III. Fundamentação de facto:
Em 1.ª instância foram julgados provados os seguintes factos:
a. Em consequência do acidente a autora sentiu dor na articulação temporo-mandibular e temporo-occipital esquerda.
b. Em consequência das lesões sofridas no acidente a autora foi assistida no próprio dia 29/9/2019 no Centro Hospitalar ... onde se submeteu a exames radiográfico e teve alta no mesmo dia, mantendo-se um dia em casa em descanso, sofrendo de dores.
c. Posteriormente, em 3/10/2019, com queixas de cefaleias, cervicalgia e dificuldade em mastigar, foi observada em consulta de ortopedia no Hospital 1....
d. Para tratamento das lesões sofridas no acidente foi sujeita a 20 sessões de fisioterapia entre 9/10/2019 e 11/11/2019.
e. Posteriormente, por persistência de cefaleias, foi observada em consulta de neurologia no Hospital 1... em 6/12/2019, e foi sujeita a ressonância magnética e prescrita medicação analgésica e anti-inflamatória, que ingeriu.
f. Pontualmente, toma ainda hoje anti-inflamatórios ou paracetamol para alívio de dores.
g. Como sequelas das lesões após tratamento a autora sofre de dor a digito pressão nas apófises espinhosas cervicais e contractura para vertebral bilateral.
h. Em consequência de tais sequelas a autora tem dificuldade em posicionar os membros superiores no espaço, por vezes dorme mal, sofre de cervicalgia com irradiação ao ombro esquerdo, e frequentemente ao ombro direito, pontualmente agravadas com alterações climáticas e esforços, tem dificuldade em lavar o cabelo, realizar tarefas domésticas, como passar a ferro, aspirar e usar esfregona, sofre algumas dificuldades na condução automóvel em períodos de maior cervicalgia, reduziu a actividade de organista na paróquia e passou a sentir mais dificuldade em tocar em casamentos, actividade a que se dedica, e tem alguma dificuldade de permanecer muito tempo sentada ao computador.
i. Antes da consolidação das lesões, a autora sentiu grandes dificuldades em prestar cuidados ao seu filho, que à data do acidente não completara ainda dois anos de idade, e em algumas actividades profissionais que implicassem pegar em pesos, como distribuição de cabazes por pessoas necessitadas.
j. Em consequência das lesões sofridas, a autora sofreu défice funcional temporário de 404 dias, com repercussão temporária total da actividade profissional de 2 dias e parcial de 402 dias, quantum doloris de grau 3 em 7, e défice funcional permanente na integridade físico-psíquica fixado em 2 pontos.
k. A autora nasceu em ../../1991.
l. Em consequência do acidente e das lesões sofridas, bem como ao longo do período de recuperação, a autora sentiu susto, dores, que ainda hoje mantém, e sente desgosto e frustração pelas limitações físicas de que padece.
m. À data do acidente a autora exercia as funções de assistente operacional por conta do Município ... e auferia uma remuneração líquida pelo seu trabalho no montante de cerca €625,34 por mês, catorze meses por ano.
n. À data, a autora executava também as tarefas domésticas inerentes à sua vida familiar, com marido e um filho.
o. Mais recentemente, em Setembro a Novembro de 2021, submeteu-se a novos tratamentos de fisioterapia por queixas de cervicalgias.
p. De futuro, e em consequência das lesões sofridas no acidente, a autora continuará a necessitar de recorrer pontualmente a toma de medicação analgésica e anti-inflamatória e submeter-se a tratamentos de fisioterapia, com frequência não determinada.
q. Em consultas médicas, meios auxiliares de diagnóstico e sessões de fisioterapia para tratamento das lesões consequentes ao acidente a autora despendeu €520,87.
r. A autora percorreu 502 km em deslocações para os tratamentos e consultas descritos em c. a e., o. e q..

IV. Matéria de Direito:
O presente recurso evidencia uma situação insólita que, com todo o devido respeito, não podia ocorrer.
A sentença recorrida, com efeito, não possui a fundamentação de facto necessária ao preenchimento dos pressupostos do instituto da responsabilidade civil que constitui o fundamento do pedido de indemnização. Não se alcança como foi possível proferir-se uma sentença a condenar a ré a pagar à autora uma indemnização com fundamento no artigo 483.º do Código Civil quando não existe na sentença absolutamente nenhum facto que permita o preenchimento dos requisitos do aludido instituto, com excepção apenas do requisito do dano.
É certo que na acta da audiência consta o seguinte: «foi acordado pelas partes, através dos seus ilustres mandatários presentes, de que a ré assume a obrigação de indemnização à autora por pelos danos a apurar e a liquidar na presente audiência que apresentem em nexo de casualidade adequada com o acidente em discussão nos autos».
Todavia, ao assinalarem isto os mandatários lavraram num manifesto erro, indevidamente tolerado pelo tribunal.
A lei permite às partes confessar factos (artigos 352.º e seguintes do Código Civil) ou confessar pedidos (artigo 283.º do Código de Processo Civil).
Também é possível o reconhecimento de qualidades jurídicas, mas isso apenas quando essas qualidades jurídicas não são precisamente o objecto do processo, nem são determinantes para a solução do caso.
O réu pode assim confessar factos ou confessar o pedido, dispondo do direito, mas não pode confessar a conclusão jurídica que está em discussão na acção.
Numa acção de responsabilidade civil, por exemplo, pode admitir-se que o réu reconheça que o autor é proprietário da coisa danificada, mas já não que o réu reconheça que a responsabilidade pelos danos provocados é sua. A responsabilidade pelos danos resultará sempre da aplicação do direito aos factos, o que é tarefa do tribunal.
Com efeito, desde que na sequência da instauração da acção e na falta de transacção das partes sobre o respectivo objecto, a decisão do conflito esteja confiada ao tribunal, como nessa tarefa o tribunal é livre (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), o tribunal não pode ser forçado pelas partes a tirar a conclusão jurídica que corresponde à interpretação de qualquer das partes ou de ambas.
Se quiser assumir a responsabilidade, independentemente da sua culpa ou contra esta, o demandado poderá confessar o pedido ou os factos que o suportam, mas, nesta hipótese, fica sempre sujeito ao que for entendido como resultante da aplicação do direito aos factos confessados (que, independentemente da opinião das partes, podem ser ou não suficientes para alicerçar o juízo de responsabilidade formulado pelo autor).
Em boa lógica, a aceitação do contrário impunha que se admitisse também que as partes pudessem acordar qual a disposição legal que o tribunal devia aplicar para resolver o conflito e/ou o modo como a devia interpretar, ou ainda, acordar que, não obstante a norma aplicável contemple vários requisitos ou pressupostos da sua aplicação, o tribunal só deva analisar um deles ou se um deles está preenchido, o que, como estamos todos a ver, é juridicamente absurdo.
Parece-nos, aliás, óbvio que não há principio da cooperação ou poderes de agilização ou de gestão processual que permitam prescindir do … imprescindível, sobretudo quando até havia uma forma legal de (com forte probabilidade) alcançar o resultado desejado pelas partes e que teria na mesma permitido (na medida legalmente possível) evitar o dispêndio de tempo que as partes invocando aqueles princípios declaram (ouvidas nesta Relação sobre a possibilidade desta decisão) agora ter pretendido evitar.
Não se compreende igualmente que na sequência daquela declaração feita para a acta o Mmo. Juiz a quo tenha, no relatório da sentença, escrito que «a assunção pela ré da obrigação de indemnizar a autora pelos danos decorrentes do acidente, cuja determinação será objecto de julgamento constitui uma confissão parcial do pedido. Considerando a disponibilidade do objecto e a qualidade da declarante, homologo a confissão parcial formulada em audiência, nos termos dos arts. 290.º, n.ºs 1 e 3, e 283.º, do CPC
O pedido formulado pela autora não é «que a ré seja condenada a reconhecer que é responsável pelo pagamento de uma indemnização à autora». O pedido é o da «condenação da ré pagar-lhe a indemnização de 54.180,87 €, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal de 4% ao ano, desde a instauração da até pagamento, e a indemnização que vier a ser fixada em decisão ulterior ou em incidente de liquidação».
Na declaração dos mandatários registada na acta não há nenhuma confissão deste pedido, ainda que parcial, tanto mais que, inclusivamente, o que resulta dessa declaração é que a obrigação de pagamento da indemnização dependia ainda do que se viesse a provar quanto aos danos; ou seja, nem sequer é uma assunção em definitivo da responsabilidade pelo pagamento de qualquer indemnização.
A homologação da “confissão parcial” é assim uma decisão inexistente porque carecida de objecto, sendo certo que nos termos do artigo 290.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, a homologação compreende a condenação ou absolvição da parte «nos precisos termos» da confissão.
Ora não tendo a ré assumido a obrigação de pagar qualquer parte da indemnização (repete-se que a responsabilização estava ainda dependente da futura demonstração da existência de danos), não podia ser e não foi condenada a pagar qualquer indemnização, como teria de ocorrer se ela tivesse confessado (parte do) pedido.
Nesse sentido, jamais o Mmo. Juiz podia fazer o que fez, ou seja, decidir que «não se pronunciar(ia) sobre a factualidade respeitante ao acidente e respectivo juízo de culpa e ainda a atinente ao contrato de seguro, limitando-se a apurar os danos decorrentes e respectivo nexo de causalidade com o acidente
Qual a consequência deste erro técnico-jurídico para efeitos do processo?
A consequência é a de que a sentença recorrida não possui a fundamentação de facto indispensável para permitir a esta Relação conhecer do objecto dos recursos.
Com efeito, ainda que o objecto do recurso seja apenas a medida da indemnização (mas nem é esse o caso, porque na parte em que o recurso tem por objecto a condenação por danos futuros é a própria condenação que está em causa), a Relação tem sempre de verificar o preenchimento dos pressupostos que permitem a condenação, isto é, os requisitos do instituto da responsabilidade civil.
A Relação pode mesmo negar provimento ao recurso ou confirmar a decisão recorrida por outros motivos que não propriamente os apresentados pelo recorrente ou pelo recorrido, razão pela qual, em rigor, se tivesse de conhecer do recurso com base nos factos provados, teria necessariamente de revogar a decisão recorrida e absolver a ré do pedido por falta de demonstração dos pressupostos da respectiva responsabilidade.
Quando a fundamentação de facto é insuficiente para a apreciação do mérito da causa em relação a algum dos pedidos, a Relação é obrigada a determinar a ampliação da matéria de facto, nos termos da alínea c) dos n.ºs 2 e 3 do artigo 662.º do Código de Processo Civil.
Sendo indispensável a ampliação da matéria de facto, a decisão proferida na 1.ª instância é anulada (ainda que o tribunal de recurso tenha à sua disposição a totalidade dos meios de prova, note-se, o que aqui nem sucede porque as partes prescindiram da prova testemunhal relativamente a esses factos!) e repete-se o julgamento na parte respeitante à ampliação, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, para evitar contradições.
No caso, estamos perante factos cujo relevo jurídico é indesmentível para o preenchimento dos pressupostos do instituto jurídico que serve de fundamento ao pedido da autora, e que foram expressamente alegados pela autora, estando alguns deles provados por confissão da ré na contestação e outros controvertidos e carecidos de prova por terem sido impugnados pela ré no seu articulado de defesa.
Em suma, impõe-se anular a sentença recorrida para se proceder à indispensável ampliação da matéria de facto, procedendo-se à discussão e julgamento dos factos alegados pelas partes e atinentes aos restantes pressupostos do instituto da responsabilidade pelas consequências do acidente (o facto, a ilicitude, a culpa ou risco e o nexo de causalidade), elaborando-se de seguida sentença de cuja fundamentação de facto constem os factos provados e os factos admitidos por acordo atinentes a esses pressupostos.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em anular a sentença recorrida para ampliação da matéria de facto no que respeita aos factos essenciais alegados pela autora nos artigos 1º a 115.º da petição inicial.
Custas dos recursos pelos respectivos recorrentes.
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Porto, 7 de Março de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 806)
António Carneiro da Silva
Paulo Duarte Teixeira

[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]