Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
492/21.4IDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO M. MENEZES
Descritores: PESSOAS COLECTIVAS
EXTINÇÃO DA RESPONSABILIDADE CRIMINAL
INSOLVÊNCIA
DISSOLUÇÃO
REGISTO
Nº do Documento: RP20240306492/21.4IDPRT.P1
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL/CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Equivalendo a extinção das pessoas coletivas à sua «morte», a verificação de tal vicissitude implica, por aplicação (ao menos analógica) do artigo 127.º, n.º 1, 1.ª alternativa, do Código Penal, a correspondente extinção da sua responsabilidade criminal.
II - No caso de a pessoa coletiva ter sido declarada insolvente, a sua extinção, para o indicado efeito, só ocorre com o registo do encerramento do correspondente processo, após rateio final, se a ele houver lugar (artigo 234.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).

(da responsabilidade do relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º: 492/21.4IDPRT.P1
Origem: Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia (Juiz 4)


Recorrente: «A..., S. A.»
Referência do documento: 17804249




I - RELATÓRIO

1. A aqui recorrente impugna, com o presente recurso, decisão proferida no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia (Juiz 4) do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, que a condenou «pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 7.º e 105.º, n.º 1 a 4 do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001 de 5 de Junho, na redacção actual, na pena de 100 (cem) dias de multa, à t[a]xa diária de €5,00 (cinco euros)».
2. Este é, na parte aqui relevante, o texto da decisão recorrida:
«I. RELATÓRIO.
Foram acusados, para julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular:
A..., S. A., [...];
AA, [...],
Imputando-lhes a prática, ao arguido AA, em autoria material e na forma consumada, na prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105°, n°1, da Lei nº 15/2001, de 5 de Junho – RGIT e à sociedade arguida nos mesmos termos, por força do artigo 7°, nº1, da Lei n.? 15/2001, de 5 de Junho -RGIT.
* * * * *


I. FUNDAMENTAÇÃO.

II.A. FACTOS PROVADOS.
Da discussão e julgamento, resultou provado, com relevância para a decisão final,
1. A arguida A..., S. A., contribuinte fiscal nº...94, é uma sociedade anónima, cujo objecto social consiste na importação e comércio de malas e carteiras, artigos de viagem, artigos de couro em geral e guarda chuvas, importação e comércio de vestuário e calçado.
2. Na qualidade de sujeito passivo de obrigações ficais foi tributada pelo exercício da actividade de “comércio retalho de marroquinaria e artigos de viagem”, a que corresponde o CAE 47722, tendo estado enquadrada para efeitos do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (lVA) no regime normal de periodicidade mensal.
3. Desde 20/12/2017, o arguido AA é administrador único da referida sociedade, sendo responsável pela administração e gestão dos pagamentos aos credores da sociedade, nomeadamente pelo pagamento de impostos ao Estado.
4. Assim, na qualidade de administrador da sociedade arguida, exerceu desde sempre o giro comercial da sociedade, prestando serviços a titulo oneroso e mediante contrapartida monetária aos mais variados clientes, pessoas colectivas e particulares, desenvolvendo a sua actividade pela área desta comarca e concelhos limítrofes.
5. Enquanto sujeito passivo de IVA, a sociedade arguida estava obrigada a dar cumprimento às regras de liquidação desse imposto nos termos das leis fiscais e a entregar ao credor tributário - Estado - a quantia pecuniária correspondente à diferença positiva entre o IVA liquidado nas operações tributáveis e IVA suportado - dedutível.
6. Por isso, todos os meses, a sociedade arguida, através do seu administrador e representante legal, levava a cabo a operação aritmética de subtracção ao IVA liquidado (lVA cobrado aos clientes) do IVA dedutível (pago aos fornecedores), ao mesmo tempo que declarava, com igual periodicidade, tal operação aos correspondentes Serviços da Administração Fiscal.
7. Para tal, procedia ao envio das competentes declarações periódicas nas quais fazia constar o montante do imposto devido.
8. Ora, no âmbito da sua actividade, a sociedade arguida, por intermédio do arguido, prestou diversos serviços pelos quais liquidou o respectivo IVA.
9. Porém, durante o mês de fevereiro de 2020, março de 2020 e dezembro de 2020, o arguido AA, actuando no exercício da sua função e na qualidade de administrador da sociedade, decidiu fazer suas e da sociedade que representava e não entregar nos cofres da Fazenda Pública as quantias em dinheiro proveniente de IVA por cada transacção ou serviço que a sociedade prestasse ou efectuasse.
10. Assim, nos períodos 2020/02, 2020/03 e 2020/12, o arguido, em representação da sociedade, liquidou, recebeu, e não entregou nos cofres do Estado os montantes de IVA de €10.036,99, €7.501,58 e €18.609,72, respectivamente, conforme melhor referido nos quadros infra:

PERÍODO DE IMPOSTOIVA LIQUI-DADOIVA LIQUIDADO RECEBIDOIVA DEDUZIDOIVA APURADO NA DPIVA PAGO ATÉ À DATA LIMITE DE PAGAMEN-TOIVA COMPROVADAMENTE RECEBIDO (-) IVA DEDUTIVEL
Campo 02 a 41Até ao termo do prazo de pagamento do IVA apuradoAté data da entrega dos elementos pelo SPCampo 20 a 67Até ao termo do prazo de pagamento do IVA apuradoAté data da entrega dos elementos pelo SP
20-04-202015-10-202120-04-202020-04-202015-10-2021
(1)(2)(3)(4)(5J)=(1)-(4)(6)(7)=(2)-(4)-(6)(8)=(3)-(4)-(6)
2020/02Declarado DP27.295,31 €16.531,68 €
Expurgado2.995,77 €2.269,13 €
Valor a considerar24.299,54 €24.299,54 €24.299,54 €14.262,55 €10.763,63 €0,00 €10.036,99 €10.036,99 €

PERÍODO DE IMPOSTOIVA LIQUI-DADOIVA LIQUIDADO RECEBIDOIVA DEDUZIDOIVA APURA-DO NA DPIVA PAGO ATÉ À DATA LIMITE DE PAGAMEN-TOIVA COMPROVADAMENTE RECEBIDO (-) IVA DEDUTIVEL
Campo 02 a 41Até ao termo do prazo de pagamento do IVA apuradoAté data da entrega dos elementos pelo SPCampo 20 a 67Até ao termo do prazo de pagamento do IVA apuradoAté data da entrega dos elementos pelo SP
25 05-202015-10-202125-05-202025-05-202015-10 2021
(1)(2)(3)(4)(5J)=(1)-(4)(6)(7)=(2)-(4)-(6)(8)=(3)-(4)-(6)
2020/03Declarado DP20.068.63 €11.334,69 €
Expurgado1.583,91 €351,55 €
Valor a considerar18.484.72 €18.484,72 €18.484,72 €10.983,14 €8,733,94 €0.00 €7.501,58 €7.501,58 €

Quadro 6 - Apuramento do IVA comprovadamente recebido (2020/12)

PERÍODO DE IMPOSTOIVA LIQUI-DADOIVA LIQUIDADO RECEBIDOIVA DEDUZIDOIVA APURA-DO NA DPIVA PAGO ATÉ À DATA LIMITE DE PAGAMEN-TOIVA COMPROVADAMENTE RECEBIDO (-) IVA DEDUTIVEL
Campo 02 a 41Até ao termo do prazo de pagamento do IVA apuradoAté data da entrega dos elementos pelo SPCampo 20 a 67Até ao termo do prazo de pagamento do IVA apuradoAté data da entrega dos elementos pelo SP
01-03-202115-10-202101-03-202101-03-202115-10-2021
(1)(2)(3)(4)(5J)=(1)-(4)(6)(7)=(2)-(4)-(6)(8)=(3)-(4)-(6)
2020/12Declarado DP28.166,77 €5.412,60 €
Expurgado866,03 €59,00 €
Valor a considerar27.300,74 €25.408,98 €25.408,98 €5,343,60 €22.754,17 €1.455,66 €18.609,72 €18.609,72 €


[O parágrafo 11 não contém qualquer texto]
12. A sociedade arguida, tal como obrigada, procedeu ao envio das declarações periódicas de IVA relativas às quantias e períodos mencionados, no entanto, desacompanhadas dos respectivos meios de pagamento, sendo que tais quantias deveriam ter sido entregues nos Serviços da Administração Fiscal até aos dias 20/04/2020, 25/05/2020 e 01/03/2021, respectivamente, o que não sucedeu, nem nos 90 (noventa) dias subsequentes ao termo do prazo dos respectivos pagamentos, apropriando-se, assim, o arguido e a sociedade de tais quantias.
13. De igual modo, tais quantias, respectivos juros e demais acréscimos não foram entregues nem satisfeitas junto da Fazenda Nacional no prazo de 30 (trinta) dias subsequentes à notificação que, para o efeito, foi expressamente feita à sociedade arguida e ao arguido a 19/11/2021.
14. Em vez de entregar nos cofres da Fazenda Pública as quantias referidas, nos valores de €10.036,99, € 7.501,58 e € 18.609,72, que recebeu a titulo de IVA nos períodos de tempo acima compreendidos, por titulo não translativo de propriedade, como podia e devia, o arguido, enquanto administrador e representante da sociedade arguida, fez suas e integrou-as no respectivo património, locupletando- se à custa do Estado, do erário publico e dos contribuintes em geral.
15. Até à presente data, a sociedade arguida, através do arguido, não regularizou integralmente a sua situação fiscal.
16. Actuou o arguido de forma livre e deliberada, com a intenção conseguida de fazer suas e de integrar no património da sociedade que representava as quantias em dinheiro que recebeu e reteve, por titulo não translativo de propriedade e por via do exercício da sua actividade profissional, invertendo assim o título de posse em relação ao dinheiro e quantias que reteve ou recebeu e comportou-se em relação a elas como se fosse o seu legítimo proprietário, não obstante saber que aquelas quantias de IVA não lhe pertenciam e que actuava contra a vontade e em prejuízo do Estado.
17. Sabia ainda que tinha de entregar nos cofres da Fazenda Pública a quantias em dinheiro relativas ao imposto de IVA que cobrava e ilegitimamente reteve.
18. Agiu ainda lucidamente, com a perfeita consciência de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
19. Contudo, tal ocorreu na sequência da situação financeira da arguida se ter degradado acentuadamente nos anos anteriores ao período objeto dos autos, fruto de diversas condicionantes, designadamente por o seu comércio ser desenvolvido em sete estabelecimentos, na sua totalidade instalados em superfícies comerciais, essencialmente ligados à venda de artigos de viagens.
20. Por força de uma pandemia global epidemiológica provocada pela Covid-19, foi declarado estado de emergência e estado de calamidade no nosso país, o que fez cessar, total e repentinamente, por duas vezes, as fontes de receitas desta sociedade comercial, por força do encerramento da sua atividade nas lojas;
21. A primeira, no período compreendido entre 18 de março de 2020 e 1 de junho de 2020, e a segunda, desde 15 de janeiro de 2021 até 30 de abril de 2021.
22. O que causou significativos constrangimentos ao normal fluxo turístico mundial e, consequentemente, em todas as atividades económicas a ele associadas.
23. E por força das acentuadas quebras na faturação, emergentes das medidas de segurança impostas para evitar a propagação da Covid-19, a arguida viu-se obrigada ao encerramento da sua atividade.
24. Correu termo um plano de revitalização aprovado e homologado por sentença no âmbito do Processo Especial de Revitalização no Juízo do Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 2 –, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, sob o número 1081/18.6T8VNG;
25. Desde logo e num primeiro momento, o arguido tentou reduzir as rendas dos estabelecimentos comerciais logrando que o total das rendas referentes ao ano de 2020 fosse reduzida em mais de €50.000,00.
26. Paralelamente, a arguida aderiu ao regime do Lay-Off simplificado no período compreendido entre 22 de março de 2020 e 14 de junho de 2020, e novamente desde 15 de janeiro de 2021.
27. A 15 de abril de 2021, depois de se ter apresentado à insolvência, a referida sociedade foi declarada insolvente, nos termos da sentença de declaração de insolvência, proferida no âmbito do Proc. 2656/21.1T8VNG, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, no Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 4;
28. E porque o arguido assegurava, enquanto avalista, a atividade económica da arguida e fiador, a 28 de fevereiro de 2022, foi o arguido, declarado insolvente, no âmbito do Proc. 9211/21.4T8VNG, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, no Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 1;
29. O arguido tem diabetes;
30. O arguido aufere o salário mínimo a titilo de reforma;
31. Paga € 750,00 de renda de casa;
32. Tem o 5.º ano de escolaridade;
33. Foi declarado insolvente no âmbito do processo n.º 9211/21.4T8VNG, conforme referido, sendo que foi deferido o pedido de exoneração do passivo restante foi liminarmente admitido e o valor disponível a favor do Arguido foi fixado no montante de € 881,25;
34. No âmbito do processo de insolvência da sociedade M. L. Bolsas – Importação e Comércio de Artigos de Viagem e Guarda-, com o n.º 2656/21.1T8VNG-E, foi julgada extinta a liquidação do respetivo ativo;
35. O arguido não tem antecedentes criminais;
36. A sociedade arguida não tem antecedentes criminais.

II.B. FACTOS NÃO PROVADOS.
Da discussão e audiência não se provaram os seguintes factos:
a) Os valores referidos em 10) e 14) são de €10.762,63, €8.733,94 e €21.522,96;
b) A arguida reclamou ainda ao abrigo do disposto no número 5, do artigo 168.º-A da Lei n.º 2/2020 de 31 de Março junto do Centro Comercial ... €14.892,46, do ..., €13.719,78, do ... €10.648,50, da ... €5.694,70 e do ... €4.812,62, valores esses que aqueles Centros Comercias se recusam a creditar à Requerente.
* * * * *


II. D. ENQUADRAMENTO JURÍDICO.

1. Do crime de abuso de confiança fiscal.
* * * * *

Há que reter, face ao exposto, que o artigo 7º, nº 1, do RGIT, determina que “as pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo”.
Para que haja responsabilidade da pessoa colectiva ou equiparada, torna-se necessário que o facto seja praticado “por quem actua em termos de exprimir ou vincular a vontade da pessoa colectiva, sociedade ou associação de facto, procurando a satisfação de interesses, embora ilícitos, dessa pessoa colectiva, sociedade ou associação de facto” (ANTÓNIO LOPES ROCHA, in “Direito Penal Económico”, p. 164, C.E.J., 1985).
Do exposto se deduz que, actuando as sociedades, juridicamente, através dos seus órgãos ou representantes, se estes violam a lei, cometendo uma infracção fiscal em nome e no interesse da sociedade, a sanção repercute-se na pessoa colectiva em causa.
Assim, este artigo 7º do RGIT consubstancia uma excepção legal ao princípio do carácter pessoal da responsabilidade criminal, previsto no artigo 11º, nº 1, do Código Penal, ao determinar a responsabilidade das pessoas colectivas pelos crimes cometidos pelos seus órgãos e representantes, em seu nome e no seu interesse (excepções que foram recentemente aumentadas com a entrada em vigor da Lei nº 59/2007, de 04 de Setembro).
No caso dos autos, atenta a matéria de facto provada, quanto à actuação de quem, de facto, geria a sociedade, actuava por forma a exprimir a vontade da sociedade, a responsabilidade penal da arguida tem lugar, em conformidade com o disposto no artigo 7º, nº 1, do RGIT.
Por fim, não se descortinam causas eximentes ou de desculpação que afastem a ilicitude ou a culpa e, deste jeito, obstem à punibilidade da sociedade arguida.

II. DA PENA.
i) DA ESCOLHA DA PENA.
O crime imputado aos arguidos é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
O artigo 13.º do RGIT estipula que a determinação da medida da pena se faz dentro dos limites definidos na lei, de acordo com o CP e considerando, sempre que possível, o prejuízo sofrido pela Fazenda Nacional.
A aplicação de penas e de medidas de segurança assume uma finalidade de protecção dos bens jurídicos (prevenção geral positiva) e de reintegração do agente na sociedade (prevenção especial) – artigo 40.º do C.P..
A finalidade de protecção de bens jurídicos visa tutelar as expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida, decorrendo do princípio da necessidade da pena, consagrado no artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa – neste sentido, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS (Cfr. em Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, reimpressão, pág. 227).
As exigências de prevenção geral são elevadas, atento o impacto que o mesmo tem na população em geral.
Retendo que o arguido e sociedade arguida não tinham antecedentes criminais à data da prática dos factos, pelo que se opta pela aplicação de pena de multa.

ii) DA MEDIDA CONCRETA DA PENA.
Considerando o disposto no artigo 71.º, n.º 1 do C.P., a medida concreta da pena determina-se em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção.
A culpa fornece o limite máximo da pena que ao caso cabe aplicar, sendo que, até esse limite, e dentro da moldura penal abstracta, são as necessidades de prevenção geral que determinarão, face ao caso concreto, um limite mínimo de prevenção a observar, sendo que a prevenção especial de ressocialização deve ser tomada em consideração para determinar a medida concreta da pena.
De acordo com o que dispõe o artigo 71.º, n.º 2 do C.P., “na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”, nomeadamente, as circunstâncias elencadas no n.º2 do referido normativo.
À ainda que reter o disposto no artigo 13.º do RGIT, quanto ao prejuízo. Assim, há que ponderar, como elementos agravantes que:
- o arguido actuou com dolo directo e com plena consciência da ilicitude;
- o montante de IVA retido não é muito elevado, pelo que a ilicitude é moderada.
- a culpa é diminuta, atentas as dificuldades da empresa, que veio a encerrar;
- o arguido encontra-se familiar e profissionalmente integrado, o que milita também a seu favor, bem como o facto de ter encerrado a atividade da sociedade arguida.
Tudo ponderado, entende-se adequado aplicar ao arguido, pela comissão do crime de abuso de confiança fiscal, a pena de 100 dias de multa.
Retendo os fatores atrás referidos, entende-se adequado aplicar à sociedade arguida, pela comissão do crime de abuso de confiança fiscal, a pena de 100 dias de multa.
No que respeita à razão diária da multa, considerando a factualidade provada e o disposto no artigo 47.º, n.º 2 do C.P., fixa-se no valor de € 5,00 (cinco euros) para o arguido e sociedade arguida.

iii) Da Pena Substitutiva.
Considerando a natureza do crime em apreço nos autos, bem como as fortes necessidades de prevenção geral que se fazem sentir quanto ao mesmo, entende-se necessário que o arguido, de forma a consciencializar-se da necessidade de não voltar a delinquir, em especial cometendo factos idênticos aos ora apreciados, cumpra a pena de multa supra fixada.
Afasta-se, por isso, a substituição de tal pena pela de admoestação – artigo 60.º do C.P..

III. DECISÃO.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decido:
a) condenar o arguido, pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105.º, n.º 1 a 4 do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001 de 5 de Junho, na redacção actual, na pena de 100 (cem) dias de multa, à txa diária de €5,00 (cinco euros);
b) condenar a sociedade arguida, pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 7.º e 105.º, n.º 1 a 4 do RGIT, aprovado pela Lei 15/2001 de 5 de Junho, na redacção actual, na pena de 100 (cem) dias de multa, à txa diária de €5,00 (cinco euros);
c) custas pelos arguidos, que se fixam em duas UC’s, reduzida a metade atenta a admissão dos factos pelo arguido – artigo 513.º do CPP e 7.º RCP, bem como tabela anexa.
[...]».


3. A recorrente verbera a esta decisão (reproduzem-se as «conclusões» com que termina o seu arrazoado):
«A. Conforme provado presentes autos, a sociedade recorrente foi declarada Insolvente, cessou atividade e o processo de liquidação encontra-se encerrado e findo, inexistindo quaisquer bens.
B. A sociedade recorrente apenas não foi dissolvida, por ainda não ter sido efetuado o registo do encerramento da liquidação.
C. Decorre, pois, que não sendo o registo constitutivo, mas tão só meramente declarativo, a sua falta não impede que o facto registado, ali omitido, produza efeitos no processo de natureza criminal.
D. Esta circunstância tem efeitos idênticos ao da morte de uma pessoa singular, acarretando quer a extinção da responsabilidade criminal quer da pena de multa que aqui lhe foi aplicada, nos termos do disposto nos artigos 127º e 128º do Código Penal.
E. Uma vez que esta circunstância tem efeitos idênticos ao da morte de uma pessoa singular, nos termos do disposto nos artigos 127º e 128º do Código Penal, acarretando quer a extinção da responsabilidade criminal quer da pena de multa que foi aplicada.
F. Por outro lado, entendemos que a partir do momento em que se realiza a liquidação, a empresa passa a representar apenas a soma de elementos patrimoniais, sem personalidade jurídica, pelo que a aplicação de uma pena de multa, neste ambiente circunstancial, constitui uma inutilidade patente, uma vez que a empresa arguida cessou a sua atividade com a comunidade jurídica.
G. A aplicação de uma pena de multa, apenas poderia ter sido tida em conta no processo durante o processo de liquidação, e não depois do respetivo encerramento.
H. Pelo que não é possível realizar o pagamento da pena de multa por parte da empresa arguida, uma vez que já não possui, nesta fase, qualquer património.
I. Por outro lado as exigências de prevenção geral e especial, no caso em concreto, são inexistentes, uma vez que estamos perante uma sociedade insolvente e com a liquidação extinta, ou seja estamos perante uma sociedade materialmente extinta.
Termos em que, deverá ser revogada a sentença proferida pelo Tribunal a quo e extinta a responsabilidade criminal da sociedade recorrente e, em consequência, ser revogada a aplicação da pena de multa em que foi condenada.
[...]».


4. Em resposta, o Ministério Público junto da 1.ª instância defende, em síntese, a improcedência do presente recurso.


5. O Ministério Público junto deste Tribunal aderiu às alegações do Magistrado do Ministério Público junto da 1ª Instância, pugnando, também, pela improcedência do presente recurso.
6. Cumpridos os legais trâmites importa decidir.
II
7. O presente recurso não merece provimento.
8. 1. Só a extinção das pessoas coletivas poderá justificar a concomitante extinção da sua eventual responsabilidade criminal. Tal, no caso das sociedades comerciais insolventes, só ocorrerá «[c]om o registo do encerramento do processo após o rateio final» (artigo 234.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
9. a) Constitui orientação claramente maioritária dos nossos Tribunais Superiores o entendimento de que a extinção das pessoas coletivas equivale à sua «morte», e, por isso mesmo, que a verificação de tal vicissitude implica, por aplicação (ao menos analógica) do artigo 127.º, n.º 1, 1.ª alternativa, do Código Penal, a correspondente extinção da sua responsabilidade criminal.
10. Contudo, é também claramente maioritário o entendimento – relativamente ao qual não vemos motivo para nos afastarmos – de que a extinção das sociedades comerciais só ocorre com o registo do encerramento da respetiva liquidação, nos moldes previstos no artigo 160.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais (vd., ainda, o preceituado no artigo 146.º, n.º 2, deste mesmo diploma legal), ou o que dá no mesmo, nos casos em que a sua dissolução se siga ao decretamento da sua insolvência, com o registo do encerramento do correspondente processo, após rateio final, se o houver, tal como estabelecido no artigo 234.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (cf., sobre tudo isto, v. g., na doutrina, Jorge dos Reis Bravo, Direito Penal de Entes colectivos, págs. 91 e segs., e na jurisprudência, por todos, o acórdão desta mesma Relação de 25/01/2023, tirado no processo n.º 542/22.7T8PFR.P1, disponível na base de dados de jurisprudência do Tribunal no endereço www.dgsi.pt).
11. b) Ora, conforme resulta da matéria de facto dada por assente na decisão recorrida, «[n]o âmbito do processo de insolvência da sociedade «A..., S. A.
-», com o n.º 2656/21.1T8VNG-E, foi julgada extinta a liquidação do respetivo ativo» (facto provado n.º 34), não tendo tal extinção, no entanto, sido ainda objeto de registo, como, aliás, reconhece expressamente a própria recorrente (na sua Conclusão B: «[a] sociedade recorrente apenas não foi dissolvida, por ainda não ter sido efetuado o registo do encerramento da liquidação»).

12. Independentemente, pois, da natureza (sc., «constitutiva» ou «declarativa», para usar a terminologia empregue pela recorrente) do ato de registo em apreço, o certo é que a lei (os preceitos legais já citados) é clara, sendo que na ausência de norma que, no âmbito da responsabilidade criminal, imponha expressamente critério diverso, não se vê motivo para afastar a solução nela consagrada.
13. Até porque, por outro lado, a afirmação da responsabilidade criminal – da pessoa como de um ente coletivo – constitui sempre um instrumento relevante para a realização da função positiva da prevenção geral, contribuindo para a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e, bem assim, para a defesa dos bens jurídicos juscriminalmente tutelados, o que afasta decisivamente qualquer argumento contrário à conclusão precedentemente enunciada, fundado na (suposta) desnecessidade da intervenção juscriminal face à dissolução da pessoa coletiva e à (de novo, suposta) falta de eficácia prática da sua respetiva condenação em processo penal.
14. 2. Face à decisão que irá ser proferida, terá a recorrente que suportar custas adequadas à atividade que desencadeou.
15. Conforme decorre do preceituado no n.º 1 do artigo 513.º do Código de Processo Penal, o arguido suporta o pagamento de taxa de justiça «quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso».
16. Sendo este o caso, terá, assim, a recorrente, de suportar as custas devidas nesta instância.
17. Considerando, nos termos previstos no artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, a tramitação processual ocorrida, afigura-se adequado fixar em 4 Unidades de Conta a taxa de justiça devida.


III
18. Pelo exposto, acordam os da 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em, negando provimento ao presente recurso, confirmar a decisão recorrida.

19. Custas pela recorrente (artigo 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) Unidades de Conta.




Porto, 06 de março de 2024.

Pedro M. Menezes (relator)
Luís Coimbra
Lígia Trovão
(acórdão assinado digitalmente).