Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
5888/21.9T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: RESPONSABILIDADE POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
VALOR DOS SALVADOS
VALOR DO OBJETO DO CONTRATO DE SEGURO
Nº do Documento: RP202402085888/21.9T8MTS.P1
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO PARCIAL.
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não resultando dos autos que os salvados de um acidente seriam atribuídos à seguradora, o valor dos mesmos, propriedade do sinistrado, deve ser descontado à indemnização a atribuir.
II - Se o segurador, em sede de contrato de seguro facultativo (danos próprios), não proceder à desvalorização do objeto do contrato, responde, em caso de sinistro, pelo valor segurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à verificação desse mesmo sinistro ou, como no caso em concreto, pelo único valor que resulta provado: o constante do contrato.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 5888/21.9MTS.P1.

João Venade.
Ana Luísa Loureiro.
Isabel Silva.

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1). Relatório.

AA, residente na 2.ª Travessa ..., ..., Matosinhos

propôs contra

A... Plc – Sucursal em Portugal, com sede na Rua ..., Lisboa

B..., S. A., com sede na Rua ..., ..., Porto

Ação declarativa de condenação, pedindo que as Rés sejam condenadas a mandar reparar a embarcação sinistrada ou, caso não o façam, a indemnizarem o autor na quantia de 27.099,79 EUR para que possa mandar reparar a embarcação.

O sustento dos pedidos radica na ocorrência de embate datado de 04/01/2019, provocado pela viatura segurada na 2.ª Ré, causando danos em embarcação que seguia atrelada à viatura que ele, Autor, conduzia.

Mais alega que celebrou com a 1.ª Ré um contrato de seguro que garantia a responsabilidade civil da embarcação, onde se contratualizou a cláusula de ressarcimento de danos próprios no valor de 25.000 EUR.


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A 1.ª Ré contestou, alegando que a 2.ª Ré é responsável pelo ressarcimento dos danos causados ao Autor e que ocorreu perda total da embarcação, havendo sempre que, caso seja condenada, se ter em atenção a franquia contratualizada.

A 2.ª Ré apresentou contestação onde assumiu a responsabilidade no embate por parte do seu segurado e questiona o valor pedido, também mencionando que existe perda total da embarcação.


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Foi dispensada a realização de audiência prévia e de despacho saneador.

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Realizou-se audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença onde se decidiu:

a) absolver a 1.ª Ré A... Plc – Sucursal em Portugal dos pedidos formulados contra si.

b) condenar a 2.ª Ré B... – Companhia de Seguros, SA a pagar ao Autor a quantia de 10.000 EUR.

c) absolver a mesma 2.ª Ré do demais peticionado contra si.

Inconformado, recorre o Autor, formulando as seguintes conclusões:

«A - a sentença recorrida faz uma errada interpretação dos factos julgados provados, fazendo uma errada aplicação do Direito aos factos provados e não se pronunciando sobre questões de que devia ter conhecido, verificando-se essa forma um erro de julgamento e erro-vício;

B - O autor intentou a presente ação contra duas companhias de seguros com apenas com um pedido - o pedido de reparação da sua embarcação “...” – mas com causas de pedir diversas em relação a cada uma das rés, pois se em relação à ré B... – Companhia de Seguros, S.A., a causa de pedir era o contrato de seguro de responsabilidade civil que a mesma tinha celebrado para o veículo com a matrícula ..-MR-.., que foi o causador do sinistro – Responsabilidade Civil Extracontratual, em relação à ré A... plc – Sucursal em Portugal, a causa de pedir era o contrato de seguro com danos próprios que a referida A... havia celebrado com o autor para a embarcação ... – Responsabilidade Civil Contratual;

C - O Tribunal a quo conheceu e decidiu da responsabilidade da ré B..., mesmo que a nosso entender de forma errada na interpretação e aplicação do regime dos art.s 562.º e 566.º do C.C., mas não conheceu da responsabilidade da ré A... à luz do contrato de seguro que havia celebrado com o autor, o que constitui uma omissão de pronuncia que conduz à nulidade da sentença, nos termos da al. d), do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C., e que deve ser suprida em sede de recurso – art. 665.º n.º 2 do C.P.C.;

D - Dúvidas não há que o dano sofrido pelo autor foi a perda total do bem que se considerou irrecuperável, pelo que se a reparação o bem – reconstituição natural – não é possível, então teria o Tribunal que atribuir ao autor uma indemnização em dinheiro que o colocasse numa situação semelhante àquela em que o mesmo estaria se não tivesse sofrido o dano – artigos 562.º e 566.º ambos do Código Civil;

E – Se para a ré B... o valor que teria de indemnizar poderia ser o do diferencial entre a “situação hipotética actual e a situação real na mesma data”, para a ré A... o valor está pré-fixado e para tal era pago e recebido, imutavelmente, o respetivo prémio de seguro, ou seja os referidos €25.000,00 (vinte e cinco mil euros);

F - tendo sido provado que (1) desde 2009 o autor tinha contratado um seguro com danos próprios para a embarcação denominada “...”; (2) que o valor acordado do bem segurado, e vigente ao longo dos anos, era de €25.000,00; (3) que houve danos na embarcação denominada “...”; e, (4) que esse dano foi a impossibilidade definitiva de o lesado poder, de boa fé, fruir o bem cujo valor a mesma A... assumiu, em caso de houve perda total do bem, o autor tinha o direito de exigir, nos termos contratuais e da Ré A..., ao abrigo do contrato de seguro que com ela celebrou com a cláusula de danos próprios, o pagamento do valor de €25.000,00 (vinte e cinco mil euros), que havia contratado e pelo qual pagava o respetivo prémio;

G - O Tribunal a quo, apesar não especificadamente pedido - como pedido principal – o reembolso do valor contratado, pois a regra legal impõe que se opte pela reconstituição natural, verificada a impossibilidade dessa reparação pela causadora o dano, tinha que aplicar o Direito a todos os factos apurados em sede de audiência de julgamento;

H - O raciocínio apriorístico de que “uma vez que está assente nos autos a responsabilidade do condutor seguro na 2ª ré. A final será a 1ª ré A... absolvida do pedido.”, significou desconhecer que a A... também seria responsável, ainda que a título diferente da B..., pois esta era obrigatoriamente responsável, por força da lei, mas em termos de responsabilidade extracontratual;

I - Houve, pois, erro de julgamento, ao absolver a A..., porque se absteve de conhecer de um pedido contra esta que, nada tinha de solidariedade com a B...;

J - O Tribunal a quo deveria ter conhecido e decidido a questão do direito do autor a ser indemnizado pela Ré A... ao abrigo do contrato de seguro que com ela havia celebrado, com a cláusula de danos próprios para a embarcação “...”, e ao conhecer e decidir essa questão deveria ter condenado a ré A... a indemnizar o autor no valor de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), que era o valor contratualizado entre as partes e que a Ré nunca pretendeu atualizar e com base no qual sempre cobrou o respetivo prémio de seguro ao autor;

K - A vingar a tese defendida pelo Tribunal a quo, ou seja, que tendo sido o sinistro causado por terceiros, e em caso de perda total do bem, prevalece a responsabilidade da entidade seguradora do veículo culpado sobre a responsabilidade da entidade seguradora com cláusula de danos próprios, temos que os proprietários dos bens irrecuperavelmente danificados apenas serão indemnizados pelo valor venal do bem, que como sabemos muitas vezes inferior ao valor contratado no seguro com danos próprios, com claro prejuízo para o titular do direito à indemnização, e com enriquecimento ilegítimo da seguradora do lesado em caso de seguro com danos próprios;

L - Há que revogar a douta sentença na medida em que condenou a ré B... a pagar ao A. a quantia de €10.000,00 (dez mil euros), pois que a regra do art.º 562 do C.C. é clara no sentido que a indemnização deve reportar-se à reconstituição natural, sendo a indemnização pecuniária um sucedâneo, e para determinação da indemnização em dinheiro consagra-se a teoria da diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder se atendida pelo Tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos – artº 566.º do C.C.

M – O bem danificado foi avaliado em €15.000,00 (quinze mil euros) e o salvado em €5.000,00 (cinco mil euros), e devendo a indemnização reportar-se ao valor do bem, não cumpre o comando dos art.s 562.º e 566.º do C.C., a douta decisão que, sem concordância do A., permite ao devedor (no caso a B...), ressarcir sem ser pelo “valor em dinheiro” do bem danificado;».

Termina pedindo a revogação da decisão, substituindo-se por outra que julgue procedente o pedido de condenação da recorrida A... no pagamento do valor de 25.000 EUR, correspondente ao valor acordado e contratado para o bem segurado, ou caso assim não se entender, ser a ré B... condenada no pagamento do valor de 15.000 EUR.


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Contra-alegaram as Rés, pugnando pela manutenção do decidido.

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As questões a decidir são:

- determinação do valor da indemnização a pagar pela 2.ª Ré (segurado do veículo causador do sinistro), nomeadamente analisar a dedução do valor dos salvados ao quantum indemnizatório;

- apurar se a 1.ª Ré pode ser responsabilizada nestes autos (a título do contrato de seguro facultativo que cobre danos próprios) e, na afirmativa, em que montante.


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2). Fundamentação.

2.1). De facto.

Resultaram provados os seguintes factos:

«1. Mostra-se registada a favor do autor a embarcação de recreio denominada “...” registada na Capitania do Porto de Leixões, no Livro ...2, folha ...6, sob o nº..., conforme resulta do livrete junto como documento 1 com a petição inicial.

2. O autor celebrou com a 1ª ré – A... Plc, um contrato de seguro denominado A... Náutica – Motoristas Profissionais, ao qual foi atribuído o número de apólice ...71, com início em 28/09/2009 e com a validade de 1 ano, sendo renovável automaticamente, conforme apólice junta como documento 2, com a petição inicial.

3. O referido seguro garantia a responsabilidade civil da embarcação referida em 1, tendo sido acordada a cláusula de danos próprios no valor de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros), conforme documento 2 junto com a petição inicial.

4. O autor tinha ainda celebrado com a 1ª ré um contrato de seguro de responsabilidade civil para o veículo automóvel de marca Volkswagen, modelo ..., com a matrícula ..-BM-.., titulado pela apólice n.º ...23, conforme documento 3 junto com a petição inicial.

5. A 2ª ré tinha celebrado um contrato de seguro automóvel de responsabilidade civil com BB, maior, nif ...58, residente em Rua ..., ..., em Vila Nova de Gaia, para o veículo automóvel de marca Mercedes Bens, com a matrícula ..-MR-.., titulado pela apólice nº ...61, conforme documento 1 junto com a contestação da 2ª ré.

6. No dia 04/01/2019, por volta das 14 horas e 30 minutos, na Avenida ..., em ..., Matosinhos, o autor conduzia o veículo de marca Volkswagen, modelo ..., com a matrícula ..-BM-.., no qual rebocava a embarcação de recreio referido em 1.

7. Ao aproximar-se de uma rotunda, atendendo à prioridade de quem circulava na rotunda, abrandou a velocidade a que circulava.

8. O BB, naquele lugar, hora e imediatamente atrás do veículo conduzido pelo autor, conduzia o veículo de marca Mercedes Benz, com a matrícula ..-MR-...

9. O mesmo conduzia o seu veículo no mesmo sentido e atrás do autor, imprimindo-lhe uma velocidade elevada, tendo em consideração o local em causa, e que era no mínimo de 70 km/hora.

10. Por conduzir desatento ou distraído o referido BB, que seguia atrás do veículo do autor, quando o autor reduziu a velocidade por se estar a aproximar de uma rotunda, não reduziu a velocidade que imprimia ao seu veículo.

11. E embateu, com violência, no reboque que se encontrava acoplado ao veículo automóvel conduzido pelo autor.

12. Danificando a embarcação que era transportada, na parte de trás e na parte da frente, que embateu no veículo do autor por ter sido projetada para a frente com o choque.

13. Na altura o autor e o BB entenderam não ser necessário chamar a Polícia de Segurança Pública, considerando ambos que o sinistro se ficou a dever à desatenção do segundo, tendo preenchido e assinado ambos a “Declaração Amigável de Acidente Automóvel”, conforme documento 4 junto com a petição inicial.

14. O acidente foi provocado pelo condutor do veículo com a matrícula ..-MR-...

15. O autor participou posteriormente o acidente à sua companhia de seguros, a 1ª ré, que iniciou o processo administrativo de sinistro, a que coube o número de sinistro ...79....

16. A 1ª ré mandatou a empresa C..., SA, para proceder à peritagem à embarcação, a qual veio a acontecer em 18-01-2019.

17. Essa peritagem confirmou que a embarcação sofreu danos sofridos na zona frontal, lateral e traseira.

18. Tendo amolgado o flutuador direito.

19. Danificado o flutuador esquerdo.

20. Danificado a coluna do motor.

21. E, danificado o trim do motor.

22. O perito atribuiu o valor de 14.366,40€ (treze mil trezentos e sessenta e seis euros e quarenta cêntimos) à reparação e concluído que a reparação não era viável, conforme relatório de peritagem junto como documento 5, com a petição inicial.

23. O autor pediu um orçamento à empresa D..., Lda., sita em Vila Nova de Gaia, tendo esta avaliado em 27.099,79€ (vinte e sete mil e noventa e nove euros e setenta e nove cêntimos), o custo dessa reparação, conforme documento 6 junto com a petição inicial.

24. Foi solicitado a uma empresa externa para efetuar a peritagem aos danos sofridos pela embarcação, empresa denominada E... e, efetuada a respetiva peritagem a A... indicou à ré B... que o valor venal da embarcação ascendia a 5.494,99€ (cinco mil, quatrocentos e noventa e quatro euros e noventa e nove cêntimos), conforme documentos 2 e 4 juntos com a contestação da 2ª ré.

25. A 2ª ré colocou esse valor à disposição do autor.

26. A embarcação é do ano de fabrico de 2008.

27. O seu valor venal, à data do embate, era de 15.000,00€.

28. O valor de mercado de uma embarcação do mesmo ano e com as mesmas características é de 12.000,00€.

29. O valor do salvado é de 5.000,00 euros.

30. O custo da reparação, não concretamente apurado, é superior ao valor do veículo.».

E resultaram não provados:

«A peritagem também confirmou que embarcação se encontrava em bom estado de conservação.

2. O autor necessita da embarcação para o desenvolvimento da sua atividade de pesca submarina.

3. A embarcação encontra-se guardada num armazém do autor.».


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2.2). Do mérito do recurso.

A). Responsabilidade da 2.ª Ré.

Esta foi condenada a pagar ao Autor a quantia de 10.000 EUR sendo que a viatura tinha, data do embate, o valor de 15 000 EUR, ocorrendo perda total; e tendo os salvados o valor de 5.000 EUR, foi a 2.ª Ré condenada a indemnizar pelo valor de 10 000 EUR.

Se alcançamos corretamente o teor do recurso apresentado pelo Autor, temos que este discorda da decisão recorrida em dois pontos:

- no que respeita à condenação da 2.ª Ré (companhia de seguros do veículo que embateu na embarcação atrelada a veículo conduzido pelo Autor) quanto ao desconto efetuado pelo tribunal do valor dos salvados da mesma embarcação;

- em relação à 1.ª Ré (companhia de seguros que contratou com o Autor seguro de danos próprios), a absolvição desta por causa da condenação da outra Ré/companhia de seguros.

Assim sendo, está consolidado nos autos que ocorreu um embate entre o veículo segurado na 2.ª Ré e um veículo atrelado a um outro, conduzido pelo Autor, seguindo aquele nas traseiras do indicado atrelado.

O tribunal recorrido não se pronuncia sobre a dinâmica do acidente e as normas que poderão fazer incorrer as Rés em responsabilidade; e também não o faz o recorrente sobre essa parte da decisão, apenas questionando aqueles dois pontos que acima referimos. Por isso, não sendo objeto de recurso, não nos debruçaremos sobre a indicada dinâmica e normas que responsabilizaram a 2.ª Ré e incidiremos de imediato sobre se o valor dos salvados deveria ter sido reduzido ao valor indemnizatório que foi atribuído.


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O Autor, na petição inicial, pediu a reparação ou o pagamento do valor necessário à mesma reparação, o que acaba por redundar num pedido de reparação/restauração natural – a entrega do dinheiro ao lesado visaria a reparação futura do bem

Maria da Graça Trigo, in Excessiva Onerosidade da reconstituição natural (no domínio dos acidentes de viação) Responsabilidade Civil, Temas Especiais, Universidade Católica Editora, 2015, página 42, enumera seis casos de reparação natural, sendo que, para o que aqui releva, temos, entre elas, a condenação a remover pessoalmente o dano causado na coisa, condenação a entregar ao lesado, uma quantia pecuniária para que suporte este os custos da reparação, já efetuada ou condenação a entregar ao lesado, uma quantia pecuniária para que suporte este os custos da reparação, a efetuar no futuro.

Ambos os pedidos do Autor visavam a reconstituição natural (reparação pessoal ou reparação pagando o valor necessário a reparação).

No entanto, não foi essa a decisão do tribunal pois concluiu-se que a reparação não era viável e, por isso, atribuiu-se uma indemnização equivalente ao prejuízo que sofreu no património; o tribunal recorrido terá entendido que estava em causa um pedido alternativo de pagamento de indemnização por equivalente (por não ser reparável e por o Autor eventualmente não a desejar).

Não foi suscitada qualquer objeção a o tribunal ter trilhado esse caminho, antes se questionando apenas o valor em concreto.

Vejamos então.

Os argumentos que o recorrente apresenta são:

- não lhe pode ser imposto que fique com o salvado quando não consentiu ou manifestou a intenção de ficar com o mesmos, cabendo à seguradora ficar com o salvado;

- não tendo a Ré consentido ou manifestado a intenção de ficar com o salvado, não podia o tribunal impor ao Autor a dedução do respetivo valor na indemnização a receber;

- se o salvado se encontra ainda na posse do Autor é porque ninguém até esta data compareceu no local onde o mesmo se esta guardado para o levantar, sendo que a venda do salvado cabe sempre à seguradora;

- a dedução do valor do salvado não garante o sucedâneo da reconstituição natural.

Vejamos então.

O salvado é o resultado material do bem após o embate, ou seja, o que se salva do acidente e que ainda tem algum valor económico (não é sucata)[1], podendo até ser reparado e voltar a entrar no mercado. E, estando em causa a parte sobrante de um veículo (no caso, náutico), pertencente ao Autor/recorrente, essa parte remanescente também lhe pertence. Assim sendo, tem direito a ficar como sua pertença, continuando a integrar o seu património.

Como tal, se o salvado integra o seu património, parte da restauração natural faz-se com a manutenção do mesmo na sua propriedade e, por isso, a indemnização que for atribuída ao Autor para reconstituir a situação anterior ao acidente, deve descontar o valor do salvado pois é a soma do valor deste e da outra parte da indemnização que reconstitui o seu património.

Não há norma legal que imponha que a seguradora tem de ficar dona do salvado, nomeadamente no âmbito do contrato de seguro obrigatório; aliás, o que existe é uma norma, fixada para a fase extrajudicial, que determina a possibilidade de a seguradora adquirir o salvado, conforme artigo 43.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/08 (Regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, que dispõe que: verificando-se uma situação de perda total, em que a empresa de seguros adquira o salvado, o pagamento da indemnização fica dependente da entrega àquela do documento único automóvel ou do título de registo de propriedade e do livrete do veículo.

Ou seja, se a empresa de seguros adquirir o salvado, então o pagamento da indemnização fica condicionado à entrega dos competentes documentos da viatura, sendo que naturalmente que, neste caso, à indemnização não se desconta o valor do salvado mas antes contempla esse valor pois o anterior dono fica desapossado da sua propriedade por força do acidente e da celebração desse acordo.

O Acórdão do S. T. J. de 28/09/2021, processo n.º 6250/18.6T8GMR.G1.S1, www.dgsi.pt, menciona que inexiste no ordenamento jurídico preceito a impor que o salvado fique na posse do lesado, prevendo-se, aliás, a possibilidade de a seguradora adquirir o salvado, para daí concluir que o valor do salvado, devendo este ser entregue à seguradora, não pode ser descontado à indemnização já que esta só é paga depois de entregue os competentes documentos.

Citamos este Acórdão porque se nos afigura que segue o caminho que o recorrente doutamente expõe no recurso, sendo que se desconhece qual a posição do tribunal recorrido; no entanto, com o devido e elevado respeito, não é essa a nossa visão pois o artigo 43.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21/08 apenas condiciona a entrega dos documentos do salvado à seguradora se esta adquirir o veículo («… em que a empresa de seguros adquira o salvado…»), não estatuindo que a indemnização só é paga após entrega do salvado, sem menção à aquisição do mesmo.

Se fosse essa redação, sem se referir à aquisição, então efetivamente a conclusão seria de que havia o pressuposto de que a empresa de seguros era a proprietária do salvado e, por isso, os documentos tinham de lhe ser entregues; mas existindo a menção a que a entrega dos documento ocorre nos casos em que a empresa adquira o salvado, é porque se trata de uma regra aplicável quando ocorre essa aquisição. Quando não há tal compra, segue-se a regra de que os salvados pertencem ao dono da viatura e, por isso, o valor dos mesmos têm de ser descontados à indemnização que é paga (neste sentido, Ac. da R. P. de 21/03/2013, processo n.º 7269/10.0TBMAI.P1, no mesmo local: I- Os salvados são propriedade do dono da viatura sinistrada, pelo que, na falta de acordo, não podem ser atribuídos à seguradora. II- A seguradora goza do direito de deduzir ao montante da indemnização devida o valor dos salvados, mesmo que o titular da indemnização seja um terceiro).[2]

Competia ao Autor alegar, nos articulados, que havia celebrado um acordo no sentido de a 2.ª Ré adquirir os salvados, ou que esta os tinha adquirido; contudo, não consta dos factos provados qualquer referência a tal circunstancialismo. A alegação aduzida no recurso é inócua pois trata-se de matéria não anteriormente exposta nos autos e que, por isso, determina a impossibilidade de apreciação ao tribunal de recurso, por se tratar de uma questão nova.

Não vislumbramos nesta situação um enriquecimento sem causa da seguradora pois o valor que desconta na indemnização a pagar é porque o Autor permanece dono e possuidor do salvado, bem com um valor económico, como provado; se porventura esse salvado é imprestável, não podendo ter qualquer possibilidade de recuperação, então a questão colocar-se-ia ao nível do seu valor: se assim fosse, provavelmente não seria um salvado mas sucata, sem valor, o que permitiria não haver qualquer dedução ao montante da indemnização.

Tal factualidade não resulta dos factos, tendo antes sido apurado que os salvados têm o valor de 5.000 EUR, valor não despiciendo.

Deste modo, mantém-se o valor indemnizatório fixado de 10.000 EUR.


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Da responsabilidade da 1.ª Ré.

O recorrente alega que o tribunal teria de apreciar a responsabilidade desta Ré, enquanto seguradora de um contrato de seguro facultativo pois é matéria que tem subjacente uma diferente causa de pedir e pressupostos diferentes, pelo que, verificada a impossibilidade de reparação pela outra seguradora, o pedido tinha de ser decidido.

O tribunal recorrido não apreciou a responsabilidade desta 1.ª Ré, referindo que: «Temos então preenchidos os necessários elementos para a responsabilização da 2ª ré, conforme peticionado pelo autor e aceite pela própria. Assim, fica desde já afastada a necessidade de analisar a responsabilidade da 1ª ré, A... Plc – Sucursal em Portugal, uma vez que está assente nos autos a responsabilidade do condutor seguro na 2ª ré. A final será a 1ª ré A... absolvida do pedido.».

Não se explica o motivo concreto porque não se aprecia o pedido, ou seja, porque razão, sendo a 2.ª Ré condenada, a 1.ª tem de ser absolvida (pedido subsidiário, total ressarcimento pelo Autor, em valor que a 1.ª Ré teria de pagar, impossibilidade de cumulação de pedidos, …).

E, na nossa opinião, não se deteta motivo válido para não apreciar este pedido pois, como refere o recorrente, está em causa a celebração de um outro contrato de seguro (facultativo), tendo o Autor cumulado tais causas de pedir e pedidos, não existindo norma que exclua a responsabilidade contratual em questão se ocorrer responsabilidade extracontratual; acresce que se está perante um caso em que a responsabilidade contratual não assenta na exata mesma realidade fáctica daquela em que se suporta a extracontratual (ali celebração de contrato e danos no objeto seguro, aqui preenchimentos dos pressupostos da responsabilidade extracontratual, conforme artigos 483.º e seguintes, do C. C.).

Como se menciona no Ac. da R. E. de 12/01/2017, processo n.º 97/14.6TBPTG.E1, www.dgsi.pt, «I- No caso de perda total do veículo seguro motivado por um sinistro de responsabilidade de terceiro, nada impede o lesado, com fundamento na responsabilidade contratual de uma seguradora que se obrigou a indemnizá-lo pelos danos próprios sofridos pelo seu veículo, nomeadamente por via de choque ou colisão, de demandá-la, tendo em vista obter o pagamento de danos emergentes do acidente de viação não indemnizados, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, pela outra seguradora a coberto do contrato de seguro automóvel obrigatório que a ligava ao proprietário do veículo causador do acidente;

II- Sem embargo, terá de ser respeitado o princípio indemnizatório plasmado no artigo 562º do Código Civil porquanto o que através dele se visa impedir é que o lesado seja duplamente ressarcido, ou seja, que o lesado cumule indemnizações que se sobreponham, mas não obsta a que se cumulem indemnizações que se complementem tendentes a eliminar a integralidade dos prejuízos que determinado evento cause na sua esfera jurídica.».

Por isso, o que importa aferir é se o lesado não irá obter uma cumulação de indemnizações sobrepostas (visando-se em ambas as situações a reconstituição do património do lesado, este não pode obter duplamente o valor do seu património).

Assim, na nossa visão, não foi correta a opção do tribunal recorrido em entender que era desnecessário apreciar a fundo a responsabilidade da 1.ª Ré.

Tal não constituiu uma nulidade por omissão de pronúncia (o tribunal acaba por mencionar que não aprecia o pedido, justificando porque absolve a indicada Ré do mesmo, não omitindo assim a pronúncia sobre essa questão) mas antes uma incorreta apreciação da questão.

Apreciemos então.

Está provado que:

O autor celebrou com a 1.ª Ré um contrato de seguro denominado A... Náutica – Motoristas Profissionais, apólice n.º ...71, com início em 28/09/2009 e com a validade de 1 ano, sendo renovável automaticamente, garantindo a responsabilidade civil da embarcação referida em 1, tendo sido acordada a cláusula de danos próprios no valor de 25 000 EUR (factos 2 e 3).

Está aqui vertida a prova (aliás inquestionada nos autos) de que o Autor celebrou com a 1.ª Ré um contrato de seguro facultativo em que se garantia o ressarcimento dos danos ocorridos na viatura, até ao limite de 25.000 EUR.

Nada mais sabemos sobre se esse valor sofreria algum tipo de redução caso ocorresse perda total do objeto seguro ou ainda se houvesse responsabilização de um terceiro pelo pagamento de indemnização por danos criados no mesmo bem. Pensamos que está assim assente que foi celebrado esse contrato de seguro e que a Ré se obrigou a ressarcir os danos sofridos até aquele valor (e não que se tenha obrigado sempre a pagar 25.000 EUR ao Autor).

E, cingindo-nos ao objeto do recurso, importa somente aferir se a 1.ª Ré pode então ser condenada; e, na nossa visão, pode sê-lo.

Na verdade, no contrato de seguro que o Autor celebrou com a 1.ª Ré, prevê-se o pagamento de danos sofridos pelo Autor na sua viatura; ora tendo ocorrido perda total, há que indemnizar essa perda; e sendo aquele valor de 25.000 EUR o máximo previsto, certamente está vocacionado para a perda total da viatura.

O Decreto-Lei n.º 214/97, de 16/08 que institui regras destinadas a assegurar uma maior transparência nos contratos de seguro automóvel que incluam coberturas facultativas relativas aos danos próprios sofridos pelos veículos seguros (artigo 1.º), dispõe no artigo 2.º que o valor seguro dos veículos deverá ser automaticamente alterado de acordo com a tabela referida no artigo 4.º, sendo o respetivo prémio ajustado à desvalorização do valor seguro.

Ora, no caso dos autos, desconhece-se se foi efetuado algum tipo de atualização do valor seguro face à desvalorização do veículo; o que sabemos é que o contrato se iniciou em 29/04/2009 e que terá tido alterações em 28/09/2018, conforme consta da apólice cuja cópia foi junta como documento n.º 2 com a petição inicial (em rigor, até se desconhece que situações permitem acionar o seguro – choque, colisão, .. -, sendo certo que a Ré não questiona, nomeadamente no recurso, que o acidente esteja fora das situações de risco, apenas questionando que seja responsável por pagar o valor não só por que o Autor já será ressarcido por outra companhia de seguros mas também porque o valor de referência não pode ser 25.000 EUR).

Prosseguindo, aquele Decreto-Lei n.º 214/97 determina, no artigo 3.º, que:

«Incumprimento.

A cobrança de prémios por valor que exceda o que resultar da aplicação do disposto no número anterior constitui, salvo o disposto no artigo 5.º, as seguradoras na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro, sem direito a qualquer acréscimo de prémio e sem prejuízo de outras sanções previstas na lei.».

Sabemos que a viatura, à data do embate, tinha o valor de 15.000 EUR (facto 27) e que o valor de mercado de uma embarcação do mesmo ano e com as mesmas características é de 12.000 EUR (facto 28).

Por isso, tudo aponta para que o valor assumido no contrato como sendo de 25.000 EUR para o máximo de indemnização a atribuir (certamente abrangendo o caso de perda total) já não seria aquele a atender no caso de perda total; porém, não estando demonstrado nos autos que esse valor foi atualizado em cumprimento do disposto no citado artigo 2.º, do mesmo diploma legal, terá de responder a companhia de seguros pelo valor que estiver fixado na data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro.

Ao contrário do disposto nos artigos 128.º e 130.º, n.º 1, no que aqui releva), do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (R. J. C. S. – Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16/04)[3], em que a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro e no seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro, respetivamente, por força da falta de atualização do valor, a seguradora tem de indemnizar pelo valor equivalente àquele por que fixa o valor do prémio.

No Ac. do S. T. J. de 03/05/2023, processo n.º 4280/21.0T8VIS.C1.S1, no mesmo sítio, menciona-se que cabe ao tomador de seguro fornecer ao segurador os elementos que permitam a este a determinação do valor da indemnização em caso de perda total e do capital seguro, tendo em conta as tabelas de desvalorização a que se refere o DL 214/97 mas que, caso o segurador não proceda a tal determinação – caso aceite acriticamente o valor indicado pelo tomador do seguro e cobre o prémio correspondente ao valor indicado (superior ao valor do veículo) – responde, em caso de sinistro, pelo valor seguro à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à verificação desse mesmo sinistro (nos termos do art.º 3.º do DL 214/97), ou seja, satisfaz uma prestação superior ao valor do veículo (uma vez que tal art. 3.º do DL 214/97 constitui uma exceção ao “princípio indemnizatório” consagrado nos arts. 128.º, 130.º e 132.º do RJCS), sendo que o vertido naquele Decreto-Lei n.º 214/97 tem um natureza sancionatória da inércia da seguradora. [4]

Competiria assim à Ré alegar que o valor tinha sido atualizado por ter ocorrido desvalorização da viatura (artigo 342.º, n.º 2, do C. C.), o que não fez; assim, a consequência, é que a 1.ª Ré terá de suportar o pagamento da indemnização contratada (único valor de que se dispõe nos autos), ou seja, 25.000 EUR, deduzida uma franquia de 1% (250 EUR), no total de 24.750 EUR.

Como ao Autor já foi fixada uma indemnização, pela perda do seu património correspondente ao valor da viatura, de 10.000 EUR (descontado o valor dos salvados), a 1.ª Ré terá de cumprir a sua obrigação na parte restante de modo a que não haja cumulação de indemnização pelo mesmo dano, ou seja, 14.750 EUR.

Procede assim parcialmente este pedido.


*


3). Decisão.

Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso intentado pelo Autor e, em consequência, decide-se:

1). Condenar a 1.ª Ré «A...…» a pagar ao Autor a quantia de 14.750 EUR.

2). Manter a condenação da 2.ª Ré «B...…» no valor de 10.000 EUR.

Custas do recurso a cargo do recorrente e recorrida «A...…» na proporção dos respetivos decaimentos (total decaimento do recorrente em relação a «B...…» e parcial em relação a «A...…»).

Registe e notifique.



Porto, 2024/02/08.
João Venade.
Ana Luísa Loureiro.
Isabel Silva.
______________
[1] Salvados são as coisas com valor económico que escapam ou sobram do sinistro - José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, página 310 -.
[2] Também no sentido de que o valor dos salvados, não havendo aquele acordo com a seguradora, deve ser descontado à indemnização por ser um bem do segurado, Ac. da R. P. de 11/09/2018, processo n.º 3004/17.0T8OAZ.P1, também em www.dgsi.pt.
[3] E, apenas por que já nos reportamos a esta questão, o artigo 129.º deste diploma menciona que o objeto salvo do sinistro só pode ser abandonado a favor do segurador se o contrato assim o estabelecer, o que, apesar de se estar perante um contrato de seguro facultativo, pode reforçar a ideia de que, para o legislador, o salvado, por regra, fica na posse e pertença do segurado.
[4] Em igual sentido, Ac. R. G. de 26/09/2019, processo n.º 314/18.3T8FAF.G1, Ac. do S. T. J. de 26/01/2021, processo 3652/17.9T8LSB.L1.S1, Ac. R. C. de 12/07/2023, processo n.º 95/22.6T8MMV.C1, referindo este que «sucede que o art.º 3º - que prevê a determinação do valor da indemnização em caso de perda total do veículo - vale apenas para a hipótese aí prevista. E essa hipótese é a de a seguradora não ter cumprido os deveres que lhe são impostos pelo art.º 2º, concretamente não ter cumprido o dever de alterar automaticamente o valor seguro do veículo de acordo com a tabela referida no art.º 4º e o dever de ajustar o prémio à desvalorização do valor seguro, cobrando, em consequência, prémios por um valor que exceda o que resultava do cumprimento de tais deveres», todos no mesmo sítio.