Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
16172/22.0YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUELA MACHADO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
EMPREITADA
DEFEITOS DA OBRA
ACEITAÇÃO DA OBRA
Nº do Documento: RP2024030716172/22.0YIPRT.P1
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Tendo em conta os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, o Tribunal da Relação apenas deve alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, quando seja possível, com a necessária segurança, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
II - Configura em contrato de prestação de serviços, na modalidade de contrato de empreitada, o contrato mediante o qual uma das partes se obriga a executar “a feitio” peças de vestuário com utilização de tecidos fornecidos pela outra, mediante do pagamento de um preço fixado em função das peças executadas.
III - Ficando demonstrado que a obra foi colocada na disponibilidade da Recorrente (dono da obra para o efeito aqui em causa), aquando do levantamento, a qual procedeu à verificação de algumas peças, e tratando-se de defeitos que devem considerar-se aparentes, é forçoso concluir-se que a Recorrente aceitou a obra sem reservas, nos termos da previsão do art. 1218.º, nºs 4 e 5, do Código Civil, ficando, ainda, o empreiteiro dispensado de provar que o dono da obra conhecia o defeito da obra quando a aceitou e, por consequência, fica desonerado da responsabilidade da respetiva reparação, conforme dispõe o art. 1219.º, do Código Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 16172/22.0YIPRT.P1

Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO
A... Lda., titular do nº de identificação fiscal nº ..., com sede na Rua ..., ..., ... - ..., Vila Nova de Gaia, instaurou procedimento de injunção para cumprimento de obrigação pecuniária emergente de contrato, contra a B..., Lda., identificação fiscal nº ... com sede na Rua ..., ... - ..., Vila Nova de Gaia, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de 6801,90 € (seis mil oitocentos e um euros e noventa cêntimos) acrescida dos juros de mora que, à data da apresentação do requerimento de injunção, ascendiam a 113,49 € (cento e treze euros e quarenta e nove cêntimos), o que totaliza a quantia de € 6915,39 (seis mil novecentos e quinze euros e trinta e nove cêntimos). Mais pediu a condenação no pagamento dos juros de mora vincendos e a quantia de €200,00 a título de honorários com a mandatária.
Para tanto alegou que celebrou com a Requerida um contrato de prestação de serviços, nos termos do qual a Requerente se obrigava a confecionar peças a feitio e a Requerida a remunerá-la por tal serviço, e que esta, não procedeu ao pagamento de uma das faturas emitida, incumprindo com a sua obrigação.
A Requerida B..., Lda. apresentou oposição, aceitando a celebração do contrato, mas impugnando o invocado incumprimento, alegando que as peças confecionadas apresentavam defeitos evidentes e que, por isso, não liquidou a fatura, uma vez que a sua cliente final recusou a encomenda, e os prejuízos causados com a confeção foram superiores ao custo de produção.
Os autos foram remetidos à distribuição, e seguiram-se os trâmites da ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato.

Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, que decidiu julgar parcialmente procedente, por provada, a ação e, em consequência, condenar a Requerida B..., Lda. no pagamento à Requerente da quantia de € 6801,90 (seis mil oitocentos e um euros e noventa cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de juro comercial, calculados desde o vencimento da fatura em dívida até efetivo e integral pagamento; e, ainda, condenar a Requerida B..., Lda. no pagamento à Requerente da quantia de €40,00 (quarenta euros) nos termos do artigo 7.º do DL 62/2013, de 10 de maio, absolvendo a requerida do demais peticionado.
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Não se conformando com o assim decidido, veio a Requerida B..., Lda., interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
A apelante formulou as seguintes conclusões:
“I) O mérito do presente recurso prende-se com a ordem de serviço ... – modelo ..., que foi contratado pela Recorrente, à Recorrida, no total de 2.765 peças de calças de criança de cor bege, de cor rosa e de cor azul, de confeção de peça a feitio de vestuário preço unitário de € 2,00 (dois euros), que foram produzidos com defeitos, os quais foram reclamados pela Recorrente, ao invés da ordem de serviço ... – modelo ... – no total de 1.763 peças, calças de criança de cor azul que foram produzidas sem defeitos, assim como, da denúncia dos defeitos da ordem de serviço ..., da prerrogativa dada à recorrente, na tentativa de correção dos mesmos e, do incumprimento sucessivo do prazo de entrega, por parte desta, bem como, da comunicação de interpelação de incumprimento e resolução do contrato, em face da persistência dos defeitos detetados, originando a recusa justificada da obrigação do pagamento do serviço, em face das deficiências de fabrico que as peças apresentavam e da justificação do elevado custo de desmancho e correção dos defeitos;
II) Não se conformando, a Recorrente, com o entendimento na parte dos factos considerados provados nos pontos 5, 6, 10, 12, 14, 17 e, dos factos não provados identificados em a., b., d., e., da douta sentença, que uns e outros, a terem entendimento diferente, levavam inevitavelmente, à improcedência do pedido da ação apresentada pela Recorrida; Porquanto,
III) Do Facto provado 5, 6 da douta sentença, embora a Recorrente reconheça que não impugnou os documentos juntos pela Recorrida, em sede de audiência de julgamento - fatura aqui colocada crise, T01 L21/6213, no valor de € 6,801.90, 2765 peças em malha de cor bege e rosa – A verdade é que o serviço incluía peças de cor azul.
IV) A Recorrida, ao juntar aos autos a fatura ..., na quantidade de 1763 peças, ao preço unitário de € 2,00, no valor total de € 4,380.15, que foi prontamente liquidada, pela Recorrida, uma vez que, não apresentou defeitos, ardilosamente e, com sucesso, induziram em erro o tribunal a quo.
V) Contudo, eram dois serviços com modelos diferentes, um primeiro na sua totalidade (1763 peças) em azul que não apresentou defeito e, outro serviço na cor rosa, bege e azul (2765 peças) que apresentou defeitos, como se constata do documento junto aos presentes autos, pela Recorrente com referência 34478727, com data de 19.01.2023.
VI) Vide os depoimentos contraditórios das testemunhas, AA - filha da legal representante da Recorrida, com evidente interesse no desfecho da causa- no dia 26.10.2022, pelas 14h48m20s e fim às 15h35m38s, ao minuto 18m38s, referindo que era o mesmo modelo só com cores diferente; Vide o depoimento da representante legal da Recorrida, BB, no dia 09.01.2023, com início 11h15m00s e fim às 11h45m00s, referindo ao 01m40s, refere o mesmo que a sua filha; Em clara contradição com estes depoimentos, vide responsável pela confeção, funcionária da Requerida CC, no dia 02.02.2023, pelas 14h56m13s, com fim às 15h23m53s, referindo aos 20m00s, que diz que são dois modelos diferentes ; Vide o depoimento da Testemunha DD, no dia 26.10.2022, com início às 16h26m19s e fim16h51m56s, aos 6m45s e mais à frente aos 13m15s e aos 19m00s; Vide depoimento Eng.ª EE, no dia 10.11.2022, com início às 09h56m06s e fim às 10h47m28s, aos 02m00s aos 24m30s, aludindo às três cores do modelo e não só rosa e bege; E vide, também, o depoimento da controla do cliente final, FF, no dia 10.11.2022, com início ás 10h4812s e fim ás 11h27m47s, aos 33m16s, quando refere que estavam os sacos com as três cores, que são duas mil peças tal quase três mil.
VII) Pelo que o tribunal a quo deveria ter dado como não provado que na segunda encomenda/serviço, para além da cor rosa e bege, existia a cor azul, nas peças que apresentaram defeitos, até porque mesmo que assim não fosse, o que não corresponde à verdade, aquele modelo apresentou defeitos e, por isso não foi liquidada a fatura.
VIII) Quanto ao facto dado como provado 10 da sentença que ora se coloca nem crise, “…tendo o legal representante da Requerida aquando do levantamento verificado um número não determinado de calças.” , porquanto, , o número não determinado, apenas são três, quatro ou cinco peças, num universo de 2765 peças que foram confecionadas a feitio e, que não corresponde à aceitação por parte do dono da obra.
IX) Para tanto, vide as declarações do representante legal da Recorrente, GG, no dia 09.01.2023, ás 10h30m33s e fim às 11h12m29s, quando refere aos 14m25s, prestadas à instancia da Meritíssima juiz e aos 118m44s, a esclarecimentos do mandatário da Recorrente, vide, também o testemunho AA (filha da legal representante da Recorrida) no dia 26.10.2022, pelas 14h48m20s e fim às 15h35m38s, quando refere ao minuto 37m30s do seu depoimento, que refere que o dono da obra quando levantou as peças não as viu, fazendo alusão ao momento após a tentativa de correção com o pesponto /duplo pesponto, que as peças foram sujeitas.
X) O mercado têxtil de fabrico a feitio, tem particularidades próprias, usuais e costumeiros da atividade, que são aceites e reconhecidos no sector, no sentido que há aceitação do dono da obra se verifica, quando o fornecedor, após controle da controladora do cliente, reconhece que as peças têm a qualidade exigida para exportação, no caso vertente, a Recorrida, aceitou proceder à correção dos defeitos (duplo pesponto), conforme facto provado em 13, o que equivaleu a que tacitamente aceita-se a denúncia dos defeitos, por via dos controladores de qualidade da C..., S.A e do do Agente D... , Lda., que recusaram o serviço.
XI) Pelo que entende, a Recorrente, que só por total desconhecimento do trato deste sector industrial, é que se pode ter o entendimento, que o controle de qualidade por amostragem ou a revista das 2675 peças, teria de ser realizada aquando da entrega nas instalações da A..., Lda, tanto mais, que, a verificação cinco num universo de 2765 peças, jamais se pode chegar à conclusão da aceitação pelo dono da obra.
Pelo que não deveria, nesta parte, ter o tribunal a quo ter dado como provado este facto10.
XII) Quanto ao Facto provado 12 e do facto não provado a.) da douta sentença, não se conforma a Recorrente, quanto ao facto provado 12 na parte que refere “Porque um número não concretamente apurado de peças cor de rosa e de peças de cor bege apresentava na linha da costura picados/ traçados na malha.” (sublinhado nosso), pois ao contrário, do que o tribunal a quo entendeu, foi apurado a percentagem de peças com defeito.
XIII) Para tanto, vide as declarações da testemunha controladora de qualidade do agente do cliente final, FF, no dia 10.11.2022, com início ás 10h4812s e fim às 11h27m47s, do depoimento refere as percentagens com defeito, o que é corroborado, também, pela testemunha Eng.ª EE, vide o seu depoimento no dia 10.11.2022, com início ás 09h56m06s e fim às 10h47m28s, aos 24m25s, onde, ainda, é corroborada pelas declarações da testemunha FF, com início às 16h26m19s e fim16h51m56s, aos 07m01s.
XIV) Pelo que deveria ser dado como provado o número concreto de peças que apresentavam defeitos, quanto ao facto 12, pelos aludidos depoimentos, analisando-se a nota de crédito emitida pela Recorrente à C..., S.A, é inegável que se descrimina o número de peças por cores.
XV) Não se conforma, por não se entende, a causa do o tribunal a quo dá como provado do facto 14., “Entre o dia 29.11 e o dia 02.12 a Requerida levantou as peças após a colocação do pesponto pela Requerente verificou algumas e não tendo reportou nenhum problema”, pois bem, equivoca-se o tribunal a quo porque as peças foram sendo entregues à medida que iam sendo produzidas, mesmo as que tinham sido corridas com pesponto ou duplo reforço.
XVI) vide o depoimento da testemunha Eng.ª EE, no dia 10.11.2022, com início ás 09h56m06s e fim às 10h47m28s, aos 38m00s, que salienta que as peças foram entregues em parcelas, à medida que iam sendo produzidas, mesmo as que foram objeto da correção do duplo pesponto, não obstante, foi junto como documento n.º 10 da oposição da Requerida / Recorrente, relativo ao seu correio eletrónico remetido, à Recorrida, na data de 07.12.2021, onde se refere que no dia 03.12.2021 – um dia depois - para a responsável de produção da Recorrida ir às instalações da C..., S.A, verificar como estava a obra, pois apresentava defeitos.
XVII) Pelo que não deveria este facto 14., ser dado como provado, porque as peças foram sendo entregues conforme iam sendo produzidas, até com a correção que se tornou inútil (duplo pesponto), por inabilidade da Recorrida.
XVIII) Do Facto provado no ponto 17 da douta sentença, coloca-se em crise, por a recusa de pagamento da fatura das 2765 peças, não dever-se somente a existirem picados nas costuras, porque salvo o devido respeito que é muito, uma o tribunal a quo, aleou-se de facto que foi discutido em audiência de julgamento, a recusa deveu-se, tal-qualmente, também,, de o custo de reparação ser superior ao custo de produção, cuja explicação consta do correio eletrónico, remetido pela Recorrente à Recorrida, no dia 07.12.2021.
XIX) Vide o depoimento da testemunha Eng.ª EE, no dia 10.11.2022, com início ás 09h56m06s e fim às 10h47m28s, aos 17m00s, aclarando precisamente as causas destes custos de produção, mais, vide as declarações da testemunha controladora de qualidade do agente do cliente final, FF, no dia 10.11.2022, com início ás 10h4812s e fim às 11h27m47s, aos 10m20s, expressamente dizendo que fica muito mais caro resolver o problema, solucionar, que fazer bem à primeira, pelo que se deveria dar como também provado que o custo de reparação das peças e muito superior ao custo de confeção, facto que originou também a recusa de pagamento por parte da Recorrente, à Requerida.
XX) Este facto não provado a.) deveria ser dado como provado, porquanto, foi comunicado à A..., Lda, para procederem à correção, aliás, conforme explanado no facto provado em 10, da douta sentença, pois, dos documentos de correio eletrónico trocado entre as partes, apresentados como doc. n.º 10, do requerimento de oposição, sabe-se que a obra foi aceite pela A..., Lda, na data de 24.11.2023, conhecido, é também que, a Recorrente, no dia 27.11.2021, comunica o defeito de fabrico, mormente, as mensagens WhatsApp - junto com o requerimento da Recorrente de 03.11.2022, com referência 33751413 - trocadas entre o representante legal da Recorrente e a testemunha, responsável pela produção da Recorrida CC, aludem a esse facto, assim, teria de ser dado como provado, o facto não provado em a.);
XXI) É imprevisto e por isso se entende, é o tribunal a quo dar como facto não provado em b.), vide o depoimento da testemunha Eng.ª EE, no dia 10.11.2022, com início ás 09h56m06s e fim às 10h47m28s, aos 39m00s e, mais a frente 27m00s, expressando sem margem para dúvidas que a primeira remessa é rejeitada e devolvida e que na segunda remessa, que existiam das duas, sem a correção e, com a tentativa frustrada de correção, com o duplo / pesponto, todas com defeitos.
XXII) Também, vide as declarações da testemunha controladora de qualidade do agente do cliente final, FF, no dia 10.11.2022, com início ás 10h4812s e fim às 11h27m47s, aos 12m05s, reiterando que as peças continuavam exatamente iguais, mesmo após a correção com o duplo pesponto, pelo que este facto não provado também havia de ser dado como provado.
XXIII) Do facto não provado no ponto d.) na douta sentença, também não se concebe, porquanto,” A requerida solicitou à requerente que a funcionária CC se deslocasse às instalações da C..., SA com vista a verificar as peças, o que foi recusado.” Esta referência é comunicada no correio eletrónico trocado, no dia 07.12.2021, pelo que deveria ser dado como provado.
XXIV) Do facto não provado no ponto e.) na douta sentença, entende a Recorrente que o tribunal a quo, ajuizou de forma errónea, que “A Requerida teve de parar a sua produção na confeção para colocar as suas funcionárias a proceder aos arranjos devidos”, pois, não considerou o doc. n.º 10 do requerimento de oposição), onde a C..., S.A, na data de 07.12.2021, onde esclarece de forma cabal, clara, concisa e sucinta que tiveram de para uma seção para desfazer e refazer as inúmeras peças com defeitos.
XXV) Similarmente, vide o depoimento da testemunha Eng.ª EE, no dia 10.11.2022, com início ás 09h56m06s e fim às 10h47m28s, aos 17m15s, referindo a paragem de produção da C..., S.A, para revistar a obra e proceder aos arranjos devidos, a qual também é atestada pela testemunha DD, no dia 26.10.2022, com início às 16h26m19s e fim16h51m56s, aos 7m30s, pelo que deveria ser dado como provado este facto e.).
XXVI) O que é certo, é que tribunal a quo, inexplicavelmente, não valorou o depoimento das testemunhas arroladas pela Recorrente, e deveria ter valorado, testemunhas essas, apresentadas pelo Recorrente não têm ou tinham qualquer interesse na no desfecho da causa porque funcionarias de entidades terceiras, C..., S.A (Eng.ª EE e DD) e do do Agente D... , Lda.( FF), ademais diga-se foi requerido que fossem notificadas oficiosamente, pois, havia recusa e desinteresse destas sociedades terceiras na demanda.
XXVII) Ao invés, o tribunal, a quo da credibilidade ao testemunho de AA, no dia 26.10.2022, pelas 14h48m20s e fim às 15h35m38s, aos 33m03s, onde põe em causa que aquelas peças, não eram as que saíram da A..., Lda, afirmando ainda, que têm um controle tão apertado de qualidade, contradizendo-se conforme o correio eletrónico trocado pelas partes, onde a Recorrida aceita expressamente reparar os defeitos no dia 29.11.2023, para já não aludir ao testemunho da responsável de produção da Recorrida CC, cujo depoimento, ao contrário que refere o tribunal a quo em nada é claro e escorreito, atente-se as mensagens WhatsApp (junto com o requerimento da Recorrente de 03.11.2022, com referência 33751413) em que esta afirma que estão fora do contexto, muito embora, são mensagens trocadas de minuto a minuto, nos mesmos dias, entre esta e o representante da recorrida. Assim,
XXVIII) Não conformar, a Recorrente com a interpretação normativa do paradigma do contrato de empreitada que o tribunal a quo, entendeu seguir, ao afirmar que a Requerida / Recorrente, aceitou a obra.
XXIX) Quanto à verificação da obra, versa o art.º 2218 n.º 2 e n.º 4 do C.C, e os defeitos foram denunciados dentro do prazo usual, numa primeira fase verbalmente e na segunda fase por correio eletrónico trocado, junto com o doc. nº 10, junto com a oposição da Recorrente, outrossim, pelas mensagens WhatsApp (junto com o requerimento da Recorrente de 03.11.2022, com referência 33751413) trocadas entre o representante legal da Recorrida e a testemunha, responsável pela produção da Recorrida CC.
XXX) Em tempo algum, a Recorrente, aceitou total ou parcialmente a obra que a Recorrida produziu, pois, esta tentou concretizar o serviço que a proprietária e fornecedora da malha para confeção das peças de vestuário lhe havia encomendado, mas esse resultado não foi utilmente produzido pela Recorrida.
XXXI) Pelo supra alegado, e dos factos existentes nos presentes autos, explicam consistentemente, que o preço deve ser pago, com a exceção da norma de uso em contrário, do n.º 2, do art.º 2211 n.º 2 do C.C, porquanto, é uso e costume neste sector comercial de confeções, que a aceitação verifica-se quando por parte do cliente final se dá a obra como apta para a exportação, aliás, conforme, a Recorrida, reconheceu o dever de reparação, aquando da primeira devolução da mercadoria com defeito, caso contrario não aceitaria os defeitos.
XXXII) E, não faria sentido ser de outra forma, porque a revista da obra dá-se a final, pela controladora de qualidade, pelas regras convencionadas de amostragem, ou, de revista vigentes no sector, uma vez que, a existir revista das peças, obrigaria o dono da obra a deslocar funcionários seus para as instalações da Recorrida, para verificar se as peças estavam aptas, em termos de qualidade exigida para exportação.
XXXIII) A falta, por parte da Recorrida, de execução útil e eficaz, da obra encomendada pela Recorrente, torna manifesto que aquela não pode adquirir o direito a receber o preço respeitante a uma obra que não concretizou, ou, que concretizou com inúmeras peças com defeito e, mesmo que se entenda que os numerosos defeitos da obra, não obstam a que se sustente que a Recorrida executou, embora com defeitos, o serviço encomendado pela Recorrente, sempre haveria que atentar no disposto nos art.º 1218 e seguintes. do C. C.
XXXIV) A dona da obra, nunca aceitou qualquer parte desta, justificadamente, face aos referidos defeitos, que verificou logo no próprio decurso do processo de tentativa de execução e que de imediato comunicou à Recorrente.
XXXV) No contrato de empreitada e havendo defeitos, resulta do disposto nos arts. 1221º e 1222º do C. C., que os direitos do dono da obra devem ser exercidos segundo determinada ordem, ou seja, em primeiro lugar, há que verificar se os defeitos podem ser suprimidos ou não (o que aconteceu num primeiro momento o caso concreto) em segundo se o puderem ser, o dono da obra tem o direito de exigir do empreiteiro a sua eliminação, em terceiro se não puderem ser eliminados, o dono da obra pode exigir nova construção, em quarto lugar só não sendo eliminados os defeitos ou construída de novo a obra, é que o dono pode exigir a redução do preço ou a resolução do contrato, se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina.
XXXVI) No caso concreto, é manifesto que a Recorrida tentou a eliminação os defeitos, o que significa que interpretou sem margem para qualquer dúvida, a comunicação dos defeitos, feita pela Recorrente, e que esta pretendia a sua eliminação, tanto bastando para se concluir que a Recorrente, iniciou por exercer o direito de pedir a eliminação desses defeitos, contudo, a Recorrida nunca conseguiu corrigir os defeitos que foram detetados ao longo do processo de fabrico, mesmo após a retificação com duplo pesponto para proceder à correção, reiteraram com as deformidades, ora, é bom de perceber que essa possibilidade de correção lhe fora dada pela Recorrente, que é precisamente o que a lei pretende ao determinar que o dono da obra comece por pedir ao empreiteiro a eliminação dos defeitos, mas mesmo assim os defeitos persistiram.
XXXVII) Ora, podendo os defeitos ser suprimidos – tendo-o sido pela entidade terceira - a verdade é que a Recorrida, não os conseguiu eliminar, assim, face à possibilidade de eliminação dos defeitos, não tinha a Recorrente de exigir nova obra, precisamente porque o direito de exigir nova construção dependia da impossibilidade de eliminação.
XXXVIII) Destarte, note-se a agravante, da forte probanidade e do justificante receio, por parte da Recorrente, da Recorrida vir a inutilizar definitivamente as peças, originando elevadíssimos custos que iriam ser reclamados deste cliente final e da consequente perda de confiança por parte deste.
XXXIX) Quanto à redução do preço, este dependia de ser devido um preço, mas este não se podia considerar devido enquanto a obra não fosse executada pela Recorrente, em condições de o seu resultado poder ser utilizado para a exportação a que se destinava, por forma a que a Recorrente a pudesse aceitar, nos termos do art.º 428º do C.C, coisa que não aconteceu por incapacidade da Recorrida.
XL) Embora a Recorrente não fale expressamente em resolução do contrato, os factos por ela invocados não deixam de integrar essa resolução, implicitamente declarada à Recorrida, com a comunicação por correio eletrónico, trocado, datado de 07.12.2021, onde salienta ter a C..., S.A de ter funcionários a proceder aos arranjos, providenciar por desmanchar as peças e por as refazer, tudo decorrendo por a Recorrida se ter mostrado incapaz de a efetuar, já depois de esgotados os prazos da coinfecção para entrega - 6.11.2021 e 02.12.2021 – ou seja, sucessivos atrasos na remessa das peças para o cliente final na Alemanha, reflete claramente uma perda objetiva de interesse, por parte da Recorrente, das obrigações contratuais da Recorrida, nos termos do art.º 808 (perda de interesse da Recorrente) e arts. 798 e 799, (responsabilidade pela mora da Recorrida) dos do C.C.
XLI) Há perda da confiança nas capacidades da Recorrida, pela Recorrente, visto que perante a data em que as peças deviam ser exportadas para Alemanha e que a esta conhecia, havia manifesta urgência do dono da obra na confeção das peças e na reparação dos defeitos, para não se atrasar ou se atrasar o menos possível esta encomenda, para não perder a confiança do cliente.
XLII) In casu, não se justificaria que fosse dada à Recorrida nova oportunidade de reparação, quando esta já se mostrara incapaz de eliminar os defeitos das peças, até porque, tal seria perfeitamente inútil e determinante de ainda maior atraso, ocorrendo, assim, uma atendível e uma notória perda de interesse da Recorrente, no cumprimento do contrato pela Recorrida, determinante da resolução do contrato, por esta, que se encontrava em mora, quer quanto à confeção quer quanto à reparação dos defeitos, por não ter logrado a reparação até à data de entrega fixada, ter incumprido definitivamente a sua prestação devido à sua incapacidade, nos termos do art.º 808 do C.C.
XLIII) Lembre-se que no ramo de confecção, as encomendas têm um prazo muito curto para produção dos modelos encomendados que são destinados a ser comercializados, neste caso, no estrangeiro na época / estação a que se destinam.
XLIV) Por outro lado, seria impensável a exportação das peças, em causa, para o cliente final na Alemanha, as peças - calças em malha de criança - com os defeitos em que enfermavam e que por isso as tornavam inadequadas para os fins comerciais a que se destinavam, tudo originando que, mediante aquela comunicação, se deva ter o contrato por resolvido, com os efeitos previstos nos arts. 432.º n.º 1, 433.º, 434.º, n.º 1, e 289.º, n.º 1, do C.C, do que resulta nada haver a pagar pela Recorrente à Recorrida, por esta não ter prestado com utilidade e eficácia o serviço encomendado.
XLV) Na realidade, quando muito, poderia haver lugar a uma redução do negócio, com base no disposto nos arts. 433..º e 292.º do C.C, porque na verdade resulta dos factos que nem todas as peças confecionadas pela Recorrida tinham defeitos, mas reforce-se mais uma vez que se deve ter em consideração que o custo total de reparação das peças com defeitos, inválida tal redução do preço, porque os custos com a paragem de um sector fabril e colocação de funcionárias, para ter desfazer e refazer as peças, foi muito superior ao custo unitário de € 2,00, que seria cobrado pela Recorrida.
XLVI) Porventura, a Recorrente, em reconvenção pedir indeminização pelas inúmeras peças que apresentavam defeitos, mas o Decreto-Lei DL 269/98 (superior Alçada 1.ª Instância) Ação Especial para Cumprimento de Obrigações pecuniárias emergentes de contrato, pela sua tramitação simplificada o não permite.
XLVII) Pelo supra alegado, violou o tribunal a quo na interpretação normativa do paradigma do contrato de empreitada, em face da perda de interesse no cumprimento do contrato art.º 808, sendo aplicável os arts. 2211.º n.º 2, (art.º 777.º “prazo razoável”), 1218.º n.º 2 e n.º 4, 1221.º, 1222.º, bem como, no mesmo normativo, os arts. 428.º, 432.º n.º 1, 433.º 434.º n.º 1 e 289.º n.º 1 todos do código Civil.”.
Pede, assim, que, julgado procedente o recurso, deve ser revogada a sentença proferida pelo Tribunal a quo, e substituída por outra que declare totalmente improcedente o pedido da Requerente/Recorrida.

A requerente/recorrida A... LDA., por sua vez, apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, com a consequente confirmação da sentença recorrida.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DO MÉRITO DO RECURSO
1. Objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, são as seguintes as questões a apreciar:
- Se ocorre erro de julgamento, por errada apreciação das provas, e consequente alteração da decisão da matéria de facto;
- Decidir se em conformidade, face à alteração, ou não, da matéria de facto e subsunção dos factos ao direito, deve ser alterada a análise jurídica, nomeadamente com a total improcedência da ação.
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2. Recurso da matéria de facto
2.1. Factualidade considerada provada na sentença
O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1. A Requerente tem como atividade comercial, entre outros, a confeção de vestuário de trabalho e atividades de estampagem, designadamente em têxteis 2. Tendo a requerida como atividade a indústria de confeção e vestuário em série, entre outros.
3. A requerida tem como cliente regular a sociedade C..., SA que lhe solicita o serviço de confeção de peça a feitio por peça de vestuário em malha quando não lhe é possível a ela própria fazer face às encomendas dos seus clientes nacionais e internacionais.
4. Antes da entrega das peças à requerida, a sociedade C..., SA procede ao corte do tecido, e entrega à requerida juntamente com o modelo, a tabela de medidas e materiais necessários à confeção das peças.
5. No início de novembro de 2021, no normal desenvolvimento da sua atividade, mediante duas encomendas da Requerida (que lhe haviam sido solicitadas pela cliente C...), que recebeu e aceitou, a Requerente acordou proceder à confeção de:
- 1.763 peças por feitio de calças de bebé (cor azul), ao preço unitário de € 2,00 (dois euros);
-2.765 (duas mil setecentas e sessenta e cinco) peças por feitio de calças de bebé (cor rosa e bege), ao preço unitário de € 2,00 (dois euros);
E a Requerida obrigava-se ao pagamento do preço.
6. Por conta dos serviços prestados, a Requerente emitiu duas faturas:
a) Fatura n. º..., correspondente às peças cor azul, no valor de €4.380,15, com vencimento a 11-11-2021.
b) Fatura n.º ..., correspondente as peças cor de rosa e bege, no valor de €6.801,90, com vencimento a 24-11-2021.
7. Uma das máquinas de corte e cose, foi fornecida pela Requerida à Requerente.
8. Todas as peças a incluir na peça (como a malha e as linhas) foram fornecidas pela requerida.
9. O processo de produção iniciou mediante aprovação pela Requerida de 5(cinco) amostras relativas ao produto a confecionar.
10. Após a confeção a Requerente colocou todas as peças na disponibilidade da requerida, tendo o legal representante da Requerida aquando do levantamento verificado um número não determinado de calças.
11. A Requerida entregou à sua cliente final, C..., S.A, as referidas peças.
12. Porque um número não concretamente apurado de peças cor de rosa e de peças de cor bege apresentava na linha da costura picados/ traçados na malha, a cliente final da Requerida rejeitou a encomenda das peças.
13. A Requerente, por solicitação da Requerida (através de email enviado à requerente em 27.11) e por sugestão do cliente final desta, acedeu a colocar um pesponto/duplo reforço nas costuras das referidas peças (através de email enviado à requerida em 29.11).
14. Entre o dia 29.11 e o dia 02.12 a Requerida levantou as peças após a colocação do pesponto pela Requerente verificou algumas e não tendo reportou nenhum problema.
15. No dia 07.12.2021 a requerida enviou à requerente um email (que se encontra junto aos autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido) recusando-se a pagar a fatura emitida.
16. No dia 14.12.2021 a Requerida liquidou a totalidade da fatura em a).
17. A cliente da requerida recusou pagar-lhe a encomenda de 2765 calças identificada em 5 alegando existirem picados nas costuras.
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2.2. Factualidade considerada não provada na sentença
O Tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:
a. Aquando da entrega da primeira remessa de calças a Requerente foi alertada para que procedessem à correção dos picados.
b. Após a colocação do duplo pesponto por parte da Requerente, as peças continuavam a apresentar picados nas malhas.
c. Todas as peças de confeção a feitio produzidas pela Requerente apresentavam as malhas picadas.
d. A requerida solicitou à requerente que a funcionária CC se deslocasse às instalações da C..., SA com vista a verificar as peças, o que foi recusado.
e. A Requerida teve de parar a sua produção na confeção para colocar as suas funcionárias a proceder aos arranjos devidos.
f. A Requerente pagou a quantia de €200,00 a título de honorários com a mandatária subscritora.
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2.3. Apreciação da impugnação da matéria de facto
Nas conclusões de recurso veio a apelante requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação a um conjunto de factos julgados provados e não provados, com fundamento em erro na apreciação da prova.
O art. 640º do CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
O mencionado regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão de facto, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, o qual terá que apresentar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, o ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar os concretos pontos da decisão que pretende questionar, ou seja, delimitar o objeto do recurso, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto, a fundamentação, e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pelo Tribunal da Relação.
No caso concreto, o julgamento foi realizado com gravação dos depoimentos prestados em audiência, sendo que a apelante impugna a decisão da matéria de facto com indicação dos pontos de facto alvo de impugnação, indica a prova a reapreciar, bem como a decisão que sugere, mostrando-se, assim, reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão.
Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “(…) se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem um meio a utilizar apenas nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância.
No presente processo, como referido, a audiência final processou-se com gravação da prova produzida.
Segundo ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225, e a respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova.
Assim, compete ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, face ao teor das alegações do recorrente e do recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Cabe, ainda, referir que neste âmbito da reapreciação da prova vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Código Civil.
E é por isso que o art. 607º, nº 4 do CPC impõe ao julgador o dever de fundamentação da factualidade provada e não provada, especificando os fundamentos que levaram à convicção quanto a toda a matéria de facto, fundamentação essencial para o Tribunal de Recurso, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, com vista a verificar se ocorreu, ou não, erro de apreciação da prova.

Posto isto, cabe analisar se assiste razão à apelante, na parte da impugnação da matéria de facto.
Como resulta das respetivas conclusões do recurso, a apelante entende que deve ser alterada a matéria de facto dada como provada nos números 5., 6., 10., 12., 14. e 17., dos factos provados, e nas alíneas a), b), d) e e) dos factos não provados.
Impugna a recorrente os factos provados 5 e 6, por entender que a fatura ..., no valor de € 6 801,90, em causa nos autos, incluía peças de cor azul, e não apenas bege e rosa.
Contudo, admite que não impugnou a fatura em causa, a qual se mostra junta aos autos e da qual consta “Obra a executar: Calça Criança Cor Rosa/Beje”.
Por conseguinte, os factos em causa mostram-se de acordo com a prova que resulta dos autos, pelo que nada há a alterar, sendo certo, aliás, que a cor das peças nenhuma influência tem para a decisão, dado estar em causa saber se as peças em questão apresentam defeitos, tempestivamente denunciados, ou não, independentemente da cor respetiva.
Assim, também não tem interesse a transcrição dos depoimentos das testemunhas e partes, feita pela recorrente, já que, repetimos, o que está em causa é saber se as peças “calça criança” faturadas na fatura em causa, apresentam defeitos ou não, independentemente da cor.

Prossegue a recorrente, referindo que não se conforma, em parte, com o facto provado no ponto 10, quando refere “… tendo o legal representante da Requerida aquando do levantamento verificado um número não determinado de calças”, e isto porque diz que o número não determinado, apenas são três, quatro ou cinco peças, num universo de 2765.
Ora, quanto a esta questão, apenas se nos oferece dizer que três, quatro ou cinco, não é um número exato, e não o sendo, é um número não determinado, pelo que sem necessidade de outras considerações, se mantém o facto tal como consta da decisão recorrida.

No que diz respeito ao ponto 12 dos factos provados, entende a recorrente que devia ser dado como provado o número concreto de peças que apresentava picados na malha, em vez de “um número não concretamente apurado”.
Na oposição apresentada pela requerida/recorrente, a mesma não refere o número de peças com defeito, nem o faz quando se pronuncia, nos termos do art. 590.º do CPC, depois de aperfeiçoado o requerimento inicial.
Ouvida a prova testemunhal, a testemunha FF, ao contrário do que a recorrente refere, não concretizou o número de peças com defeito, tendo mesmo dito expressamente que “não tenho números certos”, “trabalho sempre por amostragem”, “as rosa, no geral, estavam todas mal, (…) “azul 50%” (…) “bege era menos” (…).
Não se mostrando evidente o número de peças com defeito, não assiste razão á recorrente, também quanto a este facto provado que se mantém.

O facto provado 14, refere que “Entre o dia 29.11 e o dia 02.12 a Requerida levantou as peças após a colocação do pesponto pela Requerente verificou algumas e não tendo reportado nenhum problema”.
Se bem entendemos a pretensão da recorrente, a mesma diz que as peças foram entregues em parcelas, o que não é contrariado pelo facto em causa, que refere um determinado período de vários dias em que ocorreu o levantamento das peças, pelo que não se entende sequer a alteração pretendida.

Finalmente, quanto ao ponto 17 dos factos provados, nada consta desse facto que não corresponda ao que resultou da prova e, aliás, foi alegado pela própria recorrente/requerida.
Ainda que tenha havido outros motivos para a recusa, o que foi dado como provado, está correto do ponto de vista da prova produzida, pelo que nada há a alterar.

No que diz respeito aos factos não provados, refere a recorrente que o facto da alínea a) deveria ser dado como provado, mas não lhe assiste razão, nem este facto está em contradição com o provado sob o número 10.
O que resulta da prova produzida, é que as peças foram recebidas pela requerida, a qual apenas procedeu ao pedido de correção dos picados, quando a sua cliente não aceitou o produto.
Mantém-se, pois, o facto como não provado.

Quanto à alínea b) dos factos não provados, refere a recorrente que o Tribunal a quo não valorou os depoimentos das testemunhas, mas também sem razão.
Antes pelo contrário, o tribunal a quo pronunciou-se de forma clara e bem fundamentada sobre tal questão, quando refere: “Com efeito, não ignoramos que as testemunhas arroladas pela requerida, funcionárias da C..., SA, explicaram que um número significativo de peças continuava a apresentar picados, mesmo após a retificação. Sucede que para ficar demonstrado que as peças continuavam com os mesmos problemas seria imperioso que a requerida juntasse aos autos fotografias das peças em questão (tiradas aquando da remessa retificada) para que o tribunal pudesse analisar e concluir se os problemas persistiam. Note-se que as testemunhas arroladas pela requerida salientaram que nem todas as peças tinham problemas sendo que a testemunha FF acabou por referir que tinha perdido confiança na obra. Do mesmo modo, também não ficou demonstrado que a requerida tenha dado oportunidade à requerente de ver as peças. Aliás, o que se denota especialmente do teor das conversas trocadas entre o legal representante da requerida e a testemunha CC em que aquele refere “Porque foi rejeitado e então foram ver tudo e encontraram defeito” e ainda que “mais vale deixar assim para que não complique mais”. Destas mensagens, em momento algum o legal representante da requerida solicita a CC que se desloque às instalações da cliente para verificar as peças. Pelo contrário, o que se retira é que o legal representante da requerida, sem enviar qualquer prova do estado das calças, aceita a posição assumida pela sua cliente, emite uma nota de crédito, eventualmente por receio que deixem de lhe solicitar outros serviços. Apesar de as mensagens terem sido juntas para mostrar que CC “assumiu a culpa”, importa atender ao contexto da conversa pois o legal representante da requerida toma como certo que “muita obra” está estragada.
Na dúvida, e tendo em conta as regras do ónus da prova, o facto foi corretamente dado como não provado, o que vale igualmente para o facto que consta da alínea d) da matéria de facto não provada, face à transcrição da fundamentação ora feita, e que resulta da prova ouvida e da consulta da documentação que consta dos autos.

Por último, o facto dado como não provado sob a alínea e), que refere que “A Requerida teve de parar a sua produção na confeção para colocar as suas funcionárias a proceder aos arranjos devidos”, resulta da prova produzida, tal como a própria recorrente alega.
É esta que refere, ao citar a correspondência trocada e os depoimentos das testemunhas EE e DD, que foi a cliente da Requerida/recorrente quem terá parado a produção da confeção para as suas funcionárias procederem ao arranjo do produto, como também confirmamos pelos depoimentos que ouvimos.

Ou seja, ouvida a prova produzida em audiência de julgamento, e analisada a documentação que consta dos autos, não se vislumbra que o Tribunal a quo tivesse feito uma errada interpretação da prova.
Aliás, analisada a prova, conclui-se que a Meritíssima Juíza a quo fez uma correta interpretação da mesma, de acordo com a livre apreciação da prova, como lhe compete, conforme o disposto no art. 396.º do Código Civil.
Por outro lado, e face ao disposto no já citado art. 662.º, nº 1 do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Como se diz, a título de exemplo, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 21-06-2021, Processo 2479/18.5T8VLG.P1, Relator PEDRO DAMIÃO E CUNHA, disponível em dgsi.pt:
“I - Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efetuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
II - Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efetuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efetiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância.”.
Ora, como resulta do que já se disse, não é o que ocorre no caso, nada se verificando que imponha a alteração da matéria de facto, não se verificando outro qualquer motivo para alterar a decisão recorrida, mantendo-se, assim, a decisão de facto da 1ª Instância.
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3. Recurso de Direito
O Tribunal a quo qualificou o contrato em causa como de prestação de serviços e dentro destes, como de empreitada.
E bem.
O art. 1154.º do Código Civil define o contrato de prestação de serviço como aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição, prevendo o art. 1155.º que são modalidades do contrato de prestação de serviço, o mandato, o depósito e a empreitada.
De acordo com o disposto no art. 1207.º do mesmo diploma legal, por sua vez, «a empreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra mediante um preço».
Ou seja, o contrato de empreitada, é um contrato bilateral ou sinalagmático, do qual resultam prestações correspetivas para cada uma das partes, cabendo ao empreiteiro a obrigação de realizar a obra, e recaindo sobre o dono da obra, a obrigação do pagamento do preço.
É o que acontece no caso, atuando a Requerente/recorrida como empreiteiro e a Requerida/recorrente como dono da obra.
Neste sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo 142046/08.3YIPRT.P3, de 20-10-2015, Relator: Aristides Rodrigues de Almeida, onde se diz que “O contrato mediante o qual uma das partes se vincula a executar “a feitio” peças de vestuário com utilização de tecidos e demais acessórios fornecidos pela outra, a troco do pagamento de um preço fixado em função das peças executadas, é um contrato de empreitada.”.
Ora, no caso concreto, e como consta da decisão recorrida, ficou provado que a Requerente acordou proceder à confeção de 2.765 (duas mil setecentas e sessenta e cinco) peças por feitio de calças de bebé (cor rosa e bege), ao preço unitário de € 2,00 (dois euros) e a Requerida obrigava-se ao pagamento do respetivo preço por essa confeção, pelo que foi celebrado entre ambas, um contrato de empreitada.
No âmbito do contrato de empreitada cabe ao empreiteiro, como resulta do disposto no art. 1208.º do CC, executar a obra em conformidade com o que foi convencionado, e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato.
Foi o que a Requerente alegou.
A Requerida, por sua vez, veio invocar a existência de defeitos da obra executada.
Ora, no que aos defeitos da obra diz respeito, prevê o art. 1218.º do CPC, que o dono da obra deve verificar, antes de a aceitar, se ela se encontra nas condições convencionadas e sem vícios, sendo que os resultados da verificação devem ser comunicados ao empreiteiro e a falta da verificação ou da comunicação importa aceitação da obra.
E o art. 1219.º estabelece que o empreiteiro não responde pelos defeitos da obra, se o dono a aceitou sem reserva, com conhecimento deles, presumindo-se conhecidos os defeitos aparentes, tenha ou não havido verificação da obra.
Acresce que, nos termos do art. 1220.º do CC, o dono da obra deve, sob pena de caducidade dos direitos conferidos, denunciar ao empreiteiro os defeitos da obra dentro dos trinta dias seguintes ao seu descobrimento, equivalendo à denúncia o reconhecimento, por parte do empreiteiro, da existência do defeito.
Finalmente, em relação ao regime previsto legalmente para o caso de defeitos da obra, cabe, ainda, referir que ao abrigo do disposto no art. 1221.º do diploma legal que vimos citando, se os defeitos puderem ser suprimidos, o dono da obra tem o direito de exigir do empreiteiro a sua eliminação; se não puderem ser eliminados, o dono pode exigir nova construção, e, não sendo eliminados os defeitos ou construída de novo a obra, o dono pode exigir a redução do preço ou a resolução do contrato, se os defeitos tornarem a obra inadequada ao fim a que se destina (artigo 1222.º).

Posto isto, quanto ao caso dos autos, temos, antes de mais, que ter em conta que se provou que as peças entregues pela Requerente à Requerida apresentavam malhas com picados, o que podemos considerar como defeito, que, aliás, foi aceite pela Requerente que se disponibilizou para corrigir tal defeito, colocando um duplo pesponto nas peças.
Contudo, tal não significa que assista razão à Recorrente quando vem dizer que o defeito foi denunciado atempadamente, que não pode dizer-se que aceitou a obra ou que invocou implicitamente a resolução do contrato.
É que, após essa primeira situação, em que a Recorrida aceitou corrigir os defeitos da obra, a Recorrente procedeu ao levantamento das peças e nada reportou à Recorrida, nomeadamente demonstrando que a obra continuava a apresentar problemas.
A Recorrente, no ato de levantamento das peças, não reportou ou reclamou a existência de qualquer vicio/defeito/anomalia que as peças pudessem, ainda, apresentar, tanto que aceitou a obra e a remeteu ao seu cliente.
Ficando demonstrado que as peças foram colocadas na disponibilidade da Recorrente (dono da obra para o efeito aqui em causa), aquando do levantamento, a qual, aliás, procedeu à verificação de algumas peças, e tratando-se de defeitos que devem considerar-se aparentes, é forçoso concluir-se que a Recorrente aceitou a obra sem reservas, nos termos da previsão do art. 1218.º, nºs 4 e 5, do Código Civil, já citado supra, ficando, ainda, o empreiteiro dispensado de provar que o dono da obra conhecia o defeito da obra quando a aceitou e, por consequência, fica desonerado da responsabilidade da respetiva reparação, conforme dispõe o art. 1219.º, do Código Civil.
Não colhe, assim, a alegação da Recorrente de que não aceitou a obra, e muito menos, colhe a alegação de que invocou implicitamente a resolução do contrato, nenhuma evidência se descortinando nos autos, nesse sentido.

A apelante impugnou a decisão de direito, fazendo-o, contudo, no seguimento da impugnação da matéria de facto, provada e não provada.
Mantendo-se a decisão da matéria de facto, manter-se-á igualmente a decisão de direito, afigurando-se correta a subsunção dos factos ao direto que foi feita pelo tribunal recorrido, a qual não nos merece qualquer reparo.
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III- DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante (art. 527.º, nºs 1 e 2 do CPC).

Porto, 2024-03-07
Manuela Machado
António Carneiro da Silva
Isabel Silva