Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1595/18.8T8STS-F.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALBERTO TAVEIRA
Descritores: INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO DO ADMINISTRADOR JUDICIAL
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL
Nº do Documento: RP202402201595/18.8T8STS-F.P1
Data do Acordão: 02/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Em processo de insolvência em que haja lugar à liquidação da massa insolvente, o valor da majoração da remuneração variável do administrador resulta da aplicação do factor previsto na lei (5%) à percentagem dos créditos reclamados e admitidos que foi satisfeita e não apenas aplicação directa do factor de 5% sobre o montante dos créditos satisfeitos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º[1] 1595/18.8T8STS-F.P1
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Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 7



RELAÇÃO N.º 110
Relator: Alberto Taveira
Márcia Portela
Fernando Vilares Ferreira

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO


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I - RELATÓRIO.

AS PARTES


         Administrador de Insolvência: AA

         Insolventes: BB e

                            CC


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A)


Por sentença de 06.03.2019 é declarada a insolvência de BB e CC, a requerimento do banco Banco 1..., SA., sendo o sr Administrador de Insolvência nomeado.

B)

Após tramitação legal, a 21.04.2023, o sr Administrador de Insolvência junta requerimento aos autos, pelo qual vem pedir a fixação da remuneração variável, no valor de 15.614,14€, acrescido do respectivo IVA, do seguinte modo:




C)

Os autos são remetidos à conta (20.06.2023), tendo o mesmo feito apreciação quanto ao pedido de remuneração variável (01.09.2023), do seguinte modo:

Termo de Apreciação do cálculo da remuneração variável

Requerimento refª 45369424, de 21-04-2023:

Em 01-09-2023, compulsados os autos, concordamos com o cálculo da remuneração variável apresentado nos termos do artº 23º, nº 4, al. b), do EAJ, mas discordamos do cálculo da majoração, nos termos do artº 23º, nº 7, do EAJ.

No presente caso, afigura-se-nos que o cálculo apresentado não considerou o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, apresentando-se como um cumular de duas operações incidentes em ambos os casos “grosso modo” sobre o resultado da liquidação assim ignorando a variável “(…) do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos” prevista no nº 7 do artº 23º do citado Estatuto do Administrador Judicial, na redacção em vigor desde 11-04-2022.

Nesse sentido apontam igualmente os Acórdãos de 28-09-2022, 29-09-2022, 20-12-2022 e 24-01-2023, dos Tribunais da Relação de Coimbra, Évora, Lisboa e Porto, e o Acórdão de 18-04-2023, do Supremo Tribunal de Justiça.

Entendemos que, na situação em apreço, quanto à fixação da remuneração variável, importará considerar o cálculo que a seguir apresentamos.

É o que se nos oferece dizer, contudo V. Exª ordenará o que tiver por conveniente.

O Mag. do Ministério Público pronunciou-se, quanto a tal informação.


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DA/O DESPACHO/DECISÃO RECORRIDO


De seguida é proferida DECISÃO, nos seguintes termos:

Nesta medida, acompanhamos a apreciação da secretaria e a promoção que antecede no que respeita aos cálculos da remuneração variável do Administrador da Insolvência, para os quais remetemos, e, em consequência, fixa-se a remuneração variável do AI no montante global de €12.949,89 (já com o IVA incluído).“.


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DAS ALEGAÇÕES

O sr Administrador de Insolvência, vem desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir a modificação do cálculo da remuneração variável, nos termos por si requeridos.

Nestes termos e nos melhores de direito, que V.ª Exas. Doutamente suprirão, deve o presente recurso ser admitido e dado o devido provimento, por violação do art. 60.º, n.º 1 do CIRE e do art. 22.º e 23.º, n.º 1, 4, 5, 6 e 7 da Lei n.º 22/2013 de 28 de fevereiro (Estatuto do Administrador Judicial) constante do Despacho em crise, revogando-se o douto despacho que cumpra a Letra da Lei, fixando a Remuneração Variável devida ao Recorrente enquanto AI no valor total de 19.205,40 € (com IVA incluído), ao invés dos recorridos 12.949,89€. “.


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O ora recorrente apresenta as seguintes CONCLUSÕES:

a. Cremos, salvo o devido respeito por melhor opinião, que a decisão recorrida não fez a correta interpretação e aplicação dos preceitos legais em vigor, do art. 60.º, n.º 1 do CIRE e do art. 22.º e 23.º, n.º 1, 4, 5, 6 e 7 da Lei n.º 22/2013 de 28 de fevereiro (Estatuto do Administrador Judicial);

b. O Despacho em crise viola claramente, os aludidos preceitos, bem como põe em causa a segurança e estabilidade jurídica, por seguir uma linha de pensamento que expressamente contraria o espírito da Lei e a vontade do Legislador;

c. Não fazendo a correta interpretação do n.º 7 do art. 23.º do EAJ;“.


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O Mag do Ministério Público contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

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II-FUNDAMENTAÇÃO.


O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

Como se constata do supra exposto, a questão a decidir, é a seguinte:

A) Quais os pressupostos do cálculo da remuneração variável devida a Administrador de Insolvência correspondente às suas funções no processo de insolvência.


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OS FACTOS


Os factos com interesse para a decisão da causa e a ter em consideração são os constantes no relatório, e que aqui se dão por reproduzidos.

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DE DIREITO.


Dispõe o artigo 23.º, com a epígrafe, remuneração do administrador judicial nomeado por iniciativa do juiz, n.ºs 4, 6 e 7 do Estatuto do Administrador Judicial (Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro):

4 - Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes:

a) 10 /prct. da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5;

b) 5 /prct. do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6.

6 - Para efeitos do n.º 4, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.

7 - O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.

Sustenta o recorrente, Administrador de Insolvência, que o cálculo da remuneração dever ser por referência “a majoração corresponde a 5% do montante dos créditos satisfeitos. A Lei poderia estabelecer de forma diferente. Sucede que não o fez! E o intérprete tem de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9.º, n.º 3, do Código Civil (CC)) “, parágrafo 20 das alegações de recurso.

Por sua vez, a decisão recorrida fundamentou que tal cálculo do seguinte modo:

Não desconhecemos jurisprudência no sentido da aplicação automática da majoração de 5% ao valor obtido com base na al. b) do n.º 4 e n.º 6, sendo que à primeira vista poderia ser essa a melhor interpretação a conferir à letra desta nova redação do art. 23.º EAJ.

Porém, essa forma de cálculo, ao aplicar a majoração de 5% ao valor obtido com base na al. b) do n.º 4 e n.º 6, acaba por não respeitar a letra e o espírito da lei ao estabelecer que esse valor é “majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 % do montante dos créditos satisfeitos”, pois que o valor da remuneração variável deixa de atender ao grau de satisfação dos créditos, sendo exatamente a mesma remuneração variável, seja o passivo reconhecido de cem mil euros, seja de um milhão.

Assim, afigura-se-nos mais adequado e conforme com a letra e espírito da lei encontrar primeiro uma percentagem dos créditos satisfeitos; pelo que, depois de obtido o valor inicial dos 5% nos termos do n.º 4, b), e de deduzir ao resultado liquido (receitas – despesas) esta primeira parcela da remuneração variável e o montante da remuneração fixa, obtemos, então, o valor disponível para a satisfação dos créditos. Com este valor disponível para a satisfação dos créditos vamos, então, encontrar a percentagem de créditos satisfeitos, através da regra de três simples e considerando o valor total dos créditos reconhecidos; aplicando esta percentagem ao valor disponível para a satisfação dos créditos encontramos o grau de satisfação dos créditos e a este resultado obtido vamos então aplicar a majoração de 5%, que se soma ao valor inicial da remuneração e a que acresce o IVA.

Neste mesmo sentido, poderá ver-se o Acórdão da Relação de Évora de 29.09.2022, Proc. 260/14.0TBTVR.E1 e Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto Proc. 2631/20.3T8OAZ-E.P1, Ac. RP de 24-01-2023, Processo 1910/17.1T8STS-F.P1 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.04.2023 (Proc. 3947/08.2TJCBR-AY.C1.S1), disponíveis in www.dgsi.pt.

Nesta medida, acompanhamos a apreciação da secretaria e a promoção que antecede no que respeita aos cálculos da remuneração variável do Administrador da Insolvência, para os quais remetemos, e, em consequência, fixa-se a remuneração variável do AI no montante global de € 12 949,89 (já com o IVA incluído).“.

Desde já afirmamos que não procederá a apelação.

Neste Tribunal da Relação do Porto, e nesta secção com competência em matéria de jurisdição do comércio, é entendimento quase uniforme de que “Em processo de insolvência em que haja lugar à liquidação da massa insolvente, o valor da majoração da remuneração variável do administrador resulta da aplicação do factor previsto na lei (5%) à percentagem dos créditos reclamados e admitidos que foi satisfeita e não apenas da aplicação directa do factor de 5% sobre o montante dos créditos satisfeitos.”, sumário do Ac Tribunal da Relação do Porto 1027/13.8TYVNG-K.P1, de 18.04.2023, relatado pelo Des JOÃO RAMOS LOPES, onde se pode ler:

Debate entre duas posições:

- a orientação (defendida pela apelante) que entende que tal majoração, rompendo com a forma de cálculo prevista na legislação pregressa, corresponde a 5% do montante disponível para satisfação dos créditos[4]; defende-se que para a majoração da remuneração variável, em caso de liquidação, a lei pretende a aplicação do factor de 5% sobre o valor pronto para distribuição, ‘«limpo», totalmente líquido, que seria destinado ao pagamento dos créditos, mas que vai ser retirado desse destino para majorar a remuneração do AI, quase como se este fosse um credor’[5]. De acordo com este entendimento ‘a nova fórmula de cálculo da remuneração variável em caso de liquidação, e ao contrário do que a letra do nº 7 parece sugerir, implica a total irrelevância que o grau (ou percentagem) de satisfação dos credores assume agora, face ao universo da totalidade dos créditos’[6],

- a posição (seguida na decisão apelada) que sustenta que o valor de tal majoração deve ser encontrado mediante a aplicação do elemento de cálculo legalmente previsto (5%) à percentagem dos créditos reclamados e admitidos que foi satisfeita e não apenas por aplicação directa desses 5% sobre o montante dos créditos satisfeitos [7]. (…)

Conclui-se, pois, que se mantém, qual eixo central do critério para a majoração da remuneração variável , o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos – que este grau ou medida de satisfação dos créditos reclamados e admitidos se mantém ‘como um dos factores determinantes da majoração da remuneração variável’[19] ou, doutro modo, que a redacção do nº 7 do actual art. 23º do EAJ não foi determinada por qualquer intenção do legislador alhear a majoração da remuneração variável do administrador do grau de sucesso da satisfação dos créditos reclamados e admitidos[20].

Interpretação que nos leva a concluir que o valor da majoração resulta da aplicação do factor previsto na lei (5%) à percentagem dos créditos reclamados e admitidos que foi satisfeita e não apenas da aplicação directa do factor de 5% sobre o montante dos créditos satisfeitos – critério seguido na decisão apelada (que observou as operações aritméticas pelo mesmo implicadas). “.

Em igual sentido, entre muitos outros, Ac Tribunal da Relação do Porto 1910/17.1T8STS-F.P1, de 24.01.2023, relatado pelo Des RODRIGUES PIRES (I – Para determinação da remuneração variável a que tem direito o Administrador da Insolvência, ao abrigo do disposto no art. 23º, nº 7 do Estatuto do Administrador Judicial, na redação da Lei nº 9/2022, de 11.1., há que atender ao grau de satisfação dos créditos. II – Como tal, no cálculo da majoração prevista nesta disposição legal ter-se-á em atenção a percentagem de satisfação dos créditos reclamados que foram admitidos.).

A jurisprudência do nosso mais alto Tribunal é já pacífica e unânime no sentido seguido por este Tribunal da Relação do Porto e pela decisão em crise.

No Ac. do Supremo Tribunal de Justiça 1892/19.5T8AVR-L.P1.S1, de 17.10.2023, relatado pela Cons MARIA OLINDA GARCIA, podemos ler:

Apesar de serem legítimas as diferentes correntes interpretativas que se têm registado sobre o tipo de problema em análise nos presentes autos, decorre do art.14º do CIRE que a intervenção do STJ em matérias insolvenciais visa a orientação da jurisprudência, em nome da certeza e segurança na aplicação do direito.

Assim, na 6ª Secção do STJ, à qual cabe a competência especializada em matéria de insolvência, formou-se jurisprudência, decorrente de um entendimento unânime, no sentido de que o n.7 do artigo 23º do EAJ deve ser interpretado em sentido diverso daquele que se encontra sustentado no acórdão recorrido.

Deste modo, devem ser reiterados no presente caso os argumentos que determinaram o STJ a seguir, no acórdão proferido em 18.04.2023 (no processo n. 3947/08.2TJCBR-AY.C1.S1)2, interpretação divergente daquela que é sustentada no acórdão recorrido quanto à questão normativa em causa.

Extrata-se a fundamentação desse acórdão nos seguintes termos:

A formulação literal do n.7 do art.23º do EAJ não é isenta de dificuldades interpretativas.

Tais dificuldades identificam-se também quanto à determinação do sentido e alcance de outras disposições que regem a remuneração do administrador judicial (tanto enquanto administrador de insolvência, como enquanto administrador judicial provisório), das quais aqui se não cuidará porque o objeto do presente recurso se restringe ao n.7 do art.23º3.

A remuneração do administrador judicial em processo de insolvência, havendo liquidação, é integrada por uma parte fixa (art.23º, n.1) quantificada em €2.0004 e por uma parte variável, subdividida em dois vetores: um previsto nos números 4 e 6 do art.23º e outro previsto no n.7 (majoração). É apenas este segundo vetor da remuneração variável que está em causa no presente recurso.

Dispõe o n.7 do art.23º do Estatuto do Administrador Judicial5:

«O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.»

A interpretação seguida no acórdão recorrido implica desconsiderar um segmento literal do n.7 do art.23º; precisamente aquele onde se lê: «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos».

Amputando a norma deste segmento literal, ela apresentaria a seguinte configuração:

«O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado (…) em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos (…)».

Com tal literalidade, o n.7 do art.23º expressaria claramente a tese sufragada pelo acórdão recorrido.

Porém, desconsiderar um segmento de uma norma (como se dele tivesse sido amputada) equivale a fazer uma interpretação ab-rogante dessa norma, ou seja, significa concluir que o legislador expressou aquilo que não queria dizer, e que, portanto, tal disposição não pode ter qualquer sentido normativo útil.

O intérprete concluiria, como afirma Oliveira Ascensão «(…) que esse texto proclamado como lei não contém, apesar das aparências, nenhuma regra.»6

Porém, tendo presentes o “princípio do aproveitamento das leis” e a “presunção de racionalidade da legislação”7, no percurso interpretativo do conjunto das regras que disciplinam a remuneração do administrador de insolvência, chega-se à conclusão que não existe oposição com qualquer outra norma que permita sustentar uma interpretação ab-rogante (lógica ou valorativa) do segmento literal «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» do n.7 do art.23º.

Efetivamente, numa análise intra-sistemática, conclui-se que esse segmento do n.7 não conflitua com qualquer outro dos números do art.23º (que preveem hipóteses distintas da hipótese de majoração da remuneração do administrador). Ampliando o campo de análise às demais normas que, direta ou indiretamente, respeitam à matéria da remuneração do administrador, também não é identificável qualquer disposição de natureza especial ou de prioridade sistemática que pudesse esvaziar de sentido lógico ou normativo o segmento do n.7 do art.23º que aqui está em equação.

Conclui-se, portanto, não existir fundamento para fazer uma interpretação ab-rogante do referido segmento dessa norma.

Considerando que o legislador se pode expressar de modo imperfeito, mas que não cria disposições inócuas, deverá o intérprete encontrar um sentido normativamente útil para o referido segmento do n.7 do art.23º, tendo presentes os parâmetros previstos no art.9º do Código Civil.

Nestes termos, e num percurso dialógico com a interpretação do acórdão recorrido, cabe apurar se as alterações introduzidas pela Lei n.9/2022 permitirão uma interpretação restritiva do n.7 do art.23º, teleologicamente orientada pelo propósito legislativo de aumentar a majoração da remuneração do administrador.

Para se responder a tal questão, e perceber se a Lei n.9/2022 teve como propósito alterar o critério normativo destinado a encontrar a fórmula da majoração, há que ter presente a evolução legislativa das disposições reguladoras da majoração da remuneração do administrador de insolvência.

Que a Lei n.9/2023 alterou a percentagem a aplicar ao montante a ser considerado para efeitos de majoração não existem dúvidas, pois a nova redação dada ao n.7 do art.23º é clara ao consagrar uma percentagem de 5%, em vez da percentagem que se encontrava estabelecida, entre 1% a 1.6%, pela Portaria n.51/2005, de 20 de janeiro (que, nessa matéria, ficou esvaziada de sentido normativo).

Questão diferente, e é essa que ocupa o objeto do presente recurso, é a de saber a que montante se aplica aquela percentagem de 5%.

Como já referido, a atual redação do n.7 do art.23º do EAJ foi introduzida pela Lei n.9/2022. Porém, a expressão «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» não surgiu ex novo com a reforma introduzida por essa lei; ela já constava das normas que antecederam o n.7 do art.23º.

Tal expressão tem um lastro legislativo que remonta à Lei n.32/2004 (antigo Estatuto do Administrador da Insolvência)8, cujo artigo 20º, n.4 dispunha:

«O valor alcançado por aplicação da tabela referida no n.º 2 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos factores constantes da portaria referida no n.º 1.»

A portaria para a qual esta norma remetia era a Portaria n.51/2005, de 20 de janeiro, do Ministério das Finanças e da Administração Pública e do Ministério da Justiça, cujo Anexo II continha uma tabela onde se encontravam previstos os fatores de majoração da remuneração do administrador, estabelecendo uma lista de correspondência entre a percentagem dos créditos reclamados que foram satisfeitos e o respetivo fator de majoração (entre 1% e 1,6%).

Quando a Lei n.32/2004 foi revogada pela Lei n.22/2013 (que estabeleceu o Estatuto do Administrador Judicial) aquela norma passou a corresponder ao n.5 do artigo 23º do EAJ, com o seguinte teor:

«O valor alcançado por aplicação das tabelas referidas nos n.os 2 e 3 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria referida no n.º 1. »

Continuou a fazer-se a remissão para a referida Portaria n.51/2005, a qual continuou em vigor, apesar de ter ficado desatualizada, pois literalmente continuava a referir-se ao artigo 20º da Lei 32/2004 (revogada pela Lei 22/2013).

Com a alteração introduzida no art.23º pelo DL n.52/2019 (de 17 de abril), o alcance normativo do n.5 deste artigo não se alterou, tendo a alteração consistido apenas num ajustamento à numeração que antecedia esta norma. O seu teor passou a ser o seguinte:

«O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 3 e 4 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria referida no n.º 1.»

Com a Lei n.9/2022, a previsão que até então se encontrava no n.5 do art.23º passou para o n.7 deste artigo, tendo desaparecido a remissão para a Portaria n.51/2005. Ao mesmo tempo, o legislador operou uma alteração relativamente às percentagens que antes constavam dessa portaria. Assim, em vez da percentagem que variava entre 1% e 1.6%, aplicáveis ao montante resultante do fator de satisfação, a lei 9/2022 estabeleceu uma percentagem fixa de 5%, que passou a constar do n.7 do art.23º.

Constata-se, assim, que com a Lei n.9/2022 o legislador não abandonou o critério normativo correspondente à expressão «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos», que já vinha da Lei n.32/2004.

Todavia, na nova redação do n.7, ao procurar explicitar o objeto de referência daquela percentagem, o legislador referiu-se ao «montante dos créditos satisfeitos», o que sustenta a tese no sentido de os 5% respeitarem à totalidade dos créditos satisfeitos, rectius, ao montante total destinado à satisfação dos créditos.

Apesar de literalmente imperfeita, essa expressão [montante dos créditos satisfeitos] não é necessariamente contraditória com o segmento literal que a antecede.

Na realidade, o montante a que se chega depois de aplicado o fator correspondente ao grau de satisfação dos créditos não deixa de ser um montante de créditos satisfeitos, ou seja, um montante destinado à satisfação de créditos.

Feito este percurso histórico, pode concluir-se que se o legislador da Lei n.9/2022 tivesse pretendido alterar o critério normativo (que já vinha da Lei n.32/2004) dificilmente se compreenderia que não o tivesse feito de forma clara, abandonando a expressão «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos».

Porém, não se identifica qualquer argumento sólido para sustentar essa eventual mudança de orientação legislativa. É inequívoco que a Lei n.9/2022 pretendeu favorecer o administrador, alterando a percentagem da majoração para 5%, em vez dos valores mais reduzidos que constavam da Portaria n.51/2005. Mas não é possível concluir que o legislador o tivesse pretendido favorecer em mais do que isso.

Ao manter o valor da remuneração fixa (em 2.000 €), no n.1 do art.23º, não parece que o legislador tenha dado um sinal de pretender melhorar significativamente a remuneração do administrador independentemente dos resultados alcançados pelo seu labor em cada caso concreto. Neste sentido, é possível concluir que o legislador terá pretendido fazer depender uma maior remuneração de um maior grau de empenho do administrador na satisfação do interesse dos credores.

Por outro lado, tendo presente que a Lei n.9/2022 transpôs a Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, importa indagar se (nos considerandos ou no articulado) tal Diretiva contém alguma referência à remuneração do administrador.

Entre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos de insolvência, encontra-se o artigo 27º daquela Diretiva, o qual se refere à supervisão e à remuneração do administrador.

No n.4 deste artigo dispõe-se que:

«Os Estados-Membros asseguram que a remuneração dos profissionais se reja por regras que sejam compatíveis com o objetivo de uma resolução eficiente dos processos.»

Embora desta disposição não resulte um comando legislativo destinado a modelar diretamente as normas reguladoras da remuneração do administrado, o apelo a um propósito de eficiência compatibiliza-se melhor com uma majoração calculada «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» (como consta do n.7 do art.23º do EAJ) do que com uma interpretação que não depende de qualquer grau de satisfação.

Pode ainda acrescentar-se que, caso subsistissem dúvidas interpretativas quanto à definição do critério de calculo da majoração que o legislador terá pretendido consagrar no n.7 do art.23º, constatando-se que determinado critério favorece mais os interesses do administrador, enquanto que o critério alternativo favorece mais os interesses dos credores, sempre os princípios estruturantes do regime da insolvência haveriam de ser ponderados para dissipar tais dúvidas. E a resposta encontrar-se-ia no artigo 1º do CIRE, nos termos do qual o processo de insolvência tem como finalidade a satisfação dos credores, nomeadamente através da repartição do produto da liquidação do património do devedor.

Em síntese, tendo-se formado jurisprudência unânime no STJ em sentido diverso daquele que é defendido no acórdão em revista, esta decisão terá de ser revogada. “.

Em igual sentido Ac Supremo Tribunal de Justiça 453/11.1TBCDN-M.C1.S1, de 16.05.2023, relatado pela Cons MARIA OLINDA GARCIA, e 476/12.3TYLSB-K.L1.S1, de 0.11.2023, relatado pelo Cons RICARDO COSTA.

Pelo exposto, nada mais resta do que confirmar na integra a decisão recorrida, julgando improcedente a apelação.


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III DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).

DN


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Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.
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Porto, 12 de Fevereiro de 2024
Alberto Taveira
Márcia Portela
Fernando Vilares Ferreira
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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.