Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
43063/22.2YIPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TERESA FONSECA
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
Nº do Documento: RP2023021943063/22.2YIPRT-A.P1
Data do Acordão: 02/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O regime regra no que respeita à junção de documentos em processo civil consiste em que esta ocorra com os articulados respetivos, constituindo a possibilidade de os carrear para os autos em momento posterior um indesejável desvio.
II - A apresentação da prova documental, à semelhança do que ocorre quanto a outros meios de prova, no âmbito dos procedimentos regulados pelo decreto-lei n.º 269/98, de 1 de setembro, deve ser efetuada no início da audiência aí prevista, e não enquanto esta decorrer.
III - No sentido de manter a clareza do sistema, prevenindo o entorpecimento da justiça, o prazo regressivo de 20 dias previsto no art.º 423.º/2 do C.P.C. deve ser contabilizado da data em que se inicia efetivamente o julgamento, com produção de prova, quer este integre uma única sessão, quer venha a ser constituído por várias sessões, estejam elas ou não previamente previstas.
IV - Outro entendimento, gerando-se um subsistema de prazos de 20 dias dentro da própria exceção, seria passível de constituir um convite a postergar a conclusão da audiência, o que contraria o sentido restritivo da lei.
V - Os princípios gerais de direito constituem os alicerces do ordenamento jurídico e enformam as decisões dos tribunais, mas não precludem a aplicação de normas expressas, assinaladamente aquelas que marcam a marcha processual, pelo que não é de defender a admissão de junção de documentos ou a exigibilidade de o tribunal os solicitar sob a invocação dos princípios do inquisitório, da busca da verdade material ou da cooperação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 43063/22.2YIPRT-A.P1

Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
“A..., Lda.” intentou procedimento de injunção contra “B..., Lda.”. Pediu o pagamento de € 12.571,76, correspondentes a € 6.088,00 de capital, € 5.131,76 de juros, € 102,00 de taxa de justiça e € 1.250,00 de despesas e honorários do mandatário da requerente.
Alegou dedicar-se à atividade comercial de fornecimento de artigos de charcutaria e alimentares, tendo, a solicitação da requerida, procedido à venda e fornecimento de produtos. A requerida teria omitido o pagamento da quantia pedida a título de capital.
A requerida deduziu oposição, invocando, além do mais, ter procedido ao pagamento das quantias pedidas, em numerário e através de cheques.
No início da audiência, a A. juntou 82 faturas e uma conta corrente, não tendo a R. junto qualquer documento.
Tendo sido concedido prazo de exame, por requerimento de 16-9-2022, a R. juntou extrato de conta corrente da sua contabilidade, assinalando os pagamentos feitos à A., especificando os cheques pagos.
Na sessão da audiência de 20-10-2022, o tribunal ordenou oficiosamente a realização da perícia, aduzindo o seguinte:
“Atendendo ao número elevado de documentos juntos aos autos e, à posição das partes, nomeadamente à invocação de pagamentos que são impugnados, pela autora, e à discordância, quanto aos movimentos lançados nas respetivas contas correntes, e considerando que entre o início da relação comercial, entre as partes, e os alegados fornecimentos, sem o correspondente pagamento, alegadamente datados de 2007 e anos seguintes, atento o decurso de pelo menos 15 anos, determina-se oficiosamente a realização da perícia com vista ao apuramento do saldo.”
Foi realizada perícia, concluindo-se que o saldo a favor da A. seria de € 4 188, 03.
Do relatório pericial consta, assinaladamente, o seguinte: apesar de a Ré apresentar os extratos bancários nos quais são descontados cheques que afirma terem sido emitidos à ordem da Autora, no entanto, não apresenta cópia dos mesmos, logo não é possível concluir que, foram efetivamente emitidos a favor da Autora.
Por requerimento de 20-10-2023, a R. requereu a junção de cópias de cheques, alegando a sua imprescindibilidade para fazer a prova do pagamento e sua essencialidade para a descoberta da verdade material, tendo ainda justificado a sua junção tardia por se tratarem de documentos antigos e de difícil obtenção e se encontrarem no arquivo do Banco.
A propósito deste requerimento foi proferido o seguinte despacho:
Notificada do relatório pericial veio a Ré juntar aos autos documentos bancários não considerados naquela diligência alegando só agora ter sido possível a sua obtenção.
Notificada a Autora não se pronunciou.
Cumpre apreciar e decidir.
Os presentes autos correm sob a forma de ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias cujo regime estabelecido pelo Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro, em cujo artigo 3º, nº 4, se estabelece que as provas são oferecidas na audiência, ou seja, no início da audiência.
No caso dos autos, iniciada a audiência, em 7.09.2022, pelas partes foi junta a prova que cada uma considerou pertinente, entre a qual a Autora juntou 82 faturas e uma conta corrente.
A Ré, por seu turno, não obstante recair sobre si o ónus da prova do pagamento, não juntou qualquer documento nem não protestou fazê-lo.
Em 20.10.2022 foi oficiosamente determinada uma perícia à contabilidade de cada uma das partes e a Ré uma vez mais não diligenciou para, oportunamente, fazer chegar à ilustre perita nomeada a documentação, aparentemente, em falta.
Ora, tal documentação se tivera sido requerida à instituição financeira em data anterior teria sido, então, disponibilizada. Com efeito, o argumento de que por tratar-se de documentação antiga e de difícil obtenção não colhe quando a Ré não prova em que data requereu tais documentos e tendo-se a audiência iniciado em 7.09.2022 não invocou até agora a intenção ou possibilidade de junção de tais documentos.
Em face do exposto, indefiro a junção dos documentos aos autos e, na impossibilidade do seu desentranhamento eletrónico, dá-se o requerimento como não escrito.
Inconformada, a R. interpôs o presente recurso.
Finalizou com as conclusões que em seguida se reproduzem.
I – A recorrente não se conforma com o d. despacho proferido em 3.11.2023 (ref. 453518898), que indeferiu a junção dos documentos aos autos, considerando como não escrito o requerimento apresentado em 20.10.2023 (ref.ª 46875131);
II – A Mma. Juíza a quo fundamentou a sua decisão no facto de os documentos não terem sido juntos no início da audiência de julgamento, nem durante a realização da perícia.
III – É certo que o artigo 3º, nº 4 do Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de setembro, estabelece que as provas são oferecidas na audiência, e que se entende que tal deve ocorrer no início da audiência.
IV – Contudo, no caso dos autos, a A. apresentou no início da audiência ocorrida em 07.09.2022, 82 faturas datadas do período compreendido entre 2007 e 2012, ou seja, há mais de 10/15 anos e uma conta corrente.
V – Tendo sido concedido prazo de vista, por requerimento apresentado em 16.9.2022, a R. juntou o extrato de conta corrente da sua contabilidade e assinalou os pagamentos que haviam sido feitos à A. e que não constavam no extrato desta, especificando no Ponto 7, os cheques pagos, quer quanto a data (mês e ano), número e valor.
VI - Na sessão da audiência de 20.10.2022, o Tribunal a quo entendeu ordenar oficiosamente a realização da perícia, com os seguintes fundamentos:
“Atendendo ao número elevado de documentos juntos aos autos e, à posição das partes, nomeadamente à invocação de pagamentos que são impugnados, pela autora, e à discordância, quanto aos movimentos lançados nas respetivas contas correntes, e considerando que entre o início da relação comercial, entre as partes, e os alegados fornecimentos, sem o correspondente pagamento, alegadamente datados de 2007 e anos seguintes, atento o decurso de pelo menos 15 anos, determina-se oficiosamente a realização da perícia com vista ao apuramento do saldo.”
VII - A Perícia foi realizada e do Relatório pericial datado de 7.7.2023 junto aos autos, resulta que, da análise efetuada, o saldo existente a favor da A., após as correções é de € 4.188,03.
VIII – E, de acordo com o mesmo Relatório “13 – Apesar da Ré apresentar os extratos bancários nos quais são descontados cheques que afirma terem sido emitidos à ordem da Autora, no entanto, não apresenta cópia dos mesmos, logo não é possível concluir que, foram efetivamente emitidos a favor da Autora”.
IX – De onde se depreende que, no apuro do saldo de € 4.188,03 a favor da A. não foram considerados os cheques mencionados pela R., que foram descontados e constam dos extratos bancários, apenas por não terem sido apresentadas cópias dos mesmos.
X – O que motivou a reclamação e o pedido de esclarecimentos por parte da R. bem como o pedido de comparência da Sra. Perita na audiência de julgamento – requerimento (ref. 46469504).
XI - Não é expetável que a R. tivesse no seu arquivo cópias de cheques emitidos há mais de 10 anos, quando é uma empresa, com contabilidade organizada, e a obrigação de arquivo dos documentos contabilísticos (livros, registos e respetivos documentos de suporte) é apenas de 10 anos – art.º 19, nº 1 do Dec. Lei 28/2019, de 15 de fevereiro e art.º 40, nº 1 do Código Comercial.
XII – Mas como a Sra. Perita entendeu desconsiderar esses pagamentos, por não terem sido apresentadas as cópias dos cheques, obrigou a R. a tentar encontrar as cópias dos cheques junto da entidade bancária para poder cumprir o ónus da prova que sobre si impende.
XIII – Quando logrou obter cópias da maior parte dos cheques, requereu a sua junção aos autos, por requerimento datado de 20.10.2023 (ref. 46875131), alegando a sua imprescindibilidade para fazer a prova do pagamento e sua essencialidade para a descoberta da verdade material, tendo ainda justificado a sua junção tardia por se tratarem de documentos antigos e de difícil obtenção e se encontrarem no arquivo do Banco.
XIV - Os documentos bancários foram juntos antes da continuação da audiência de julgamento (agendada para 06.11.2023), tendo assim sido dada à contraparte prazo para exercer o contraditório.
XV – Notificada do requerimento apresentado pela R. a juntar as cópias dos cheques, a A. não se opôs à sua junção nem sequer os impugnou, pelo que é incompreensível a posição do Tribunal vertida no despacho recorrido.
XVI - Ao indeferir a junção das cópias dos cheques, a Mma. Juíza a quo negou à R. a possibilidade de fazer a prova do pagamento dos fornecimentos reclamados pela A., criando-lhe uma dificuldade acrescida quando já recai sobre si o ónus da prova de pagamentos realizados há mais de 10 a 15 anos atrás.
XVII - Por outro lado, inviabilizou a possibilidade das referidas cópias dos cheques poderem ser apresentados à Sra. Perita, na audiência de julgamento que se veio a realizar no dia 06.11.2023, e esta, em face dos mesmos, modificar ou corrigir o seu Relatório quanto ao saldo apurado.
XVIII - Ao negar a junção das cópias dos cheques aos autos, o Tribunal a quo está a impedir a R. de fazer a prova do pagamento, tanto mais que o próprio Relatório Pericial apontou como razão para não considerar os cheques descontados e constantes dos extratos bancários. o facto de não terem sido apresentadas as respetivas cópias.
XIX - E certamente com esta sua decisão, a Mma Juíza a quo não teve em consideração todos os factos que podia conhecer e estavam ao seu alcance para apuramento da verdade e justa composição do litígio.
XX – Violando assim, o princípio do inquisitório, o direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva e a um processo equitativo, ao não realizar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer – art.º 423º e 411º do CPC.
Termos em que deve o recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser modificado o douto despacho proferido em 3.11.2023 (ref. 453518898) de forma a ser admitido e considerado como escrito o requerimento apresentado pela R. em 20.10.2023 (ref.ª 46875131) bem como a junção das cópias dos cheques que o acompanham, ordenando-se ainda a repetição da sessão de audiência de julgamento ocorrida em 06.11.2023, a fim de essa prova poder ser exibida à Sra. Perita.
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Não houve contra-alegações.
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II - Questão a dirimir:
- se os documentos cuja junção foi requerida pela R. devem ser admitidos por terem sido apresentados dentro do prazo processualmente admissível ou por força da respetiva relevância para a decisão da causa.
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III - Fundamentação de facto (retirada do apenso e do processo principal)
Os factos com interesse constam do relatório, respigando-se os que se seguem.
1 - Na presente ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, iniciada a audiência em 7-9-2022, a A. juntou 82 faturas e uma conta corrente, não tendo a R. carreado para os autos qualquer documento.
2 - Em 20-10-2022 foi oficiosamente determinada a realização de perícia à contabilidade das partes.
3 - Do relatório pericial datado de 7-7-2023 consta que o saldo existente a favor da A. é de € 4 188, 03.
4 - De acordo com o relatório, apesar de a R. ter apresentado extratos bancários nos quais são descontados cheques que afirma terem sido emitidos à ordem da A., não apresenta cópia dos mesmos, logo não é possível concluir que foram efetivamente emitidos a favor da Autora.
5 - A R. reclamou, solicitou esclarecimentos e pediu a comparência da perita na audiência de julgamento.
6 - Por requerimento de 20-10-2023, a R. requereu a junção aos autos de cheques, alegando a sua imprescindibilidade para a prova do pagamento, a sua essencialidade para a descoberta da verdade material, tendo justificado a sua junção tardia por se tratarem de documentos antigos e de difícil obtenção e por se encontrarem no arquivo do Banco.
7 - A audiência prosseguiu em 6-11-2023 e em 30-11-2023, data em que se finalizou.
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IV - Subsunção jurídica
Os presentes autos correm sob a forma de ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias, cujo regime consta do decreto-lei n.º 269/98, de 1 de setembro.
A A. recorreu ao procedimento de injunção para lograr obter da R. o pagamento de fornecimento de produtos que esta, alegadamente, não pagou. Tendo a R. deduzido oposição à injunção, os autos prosseguiram os seus termos como ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos nos termos do disposto no art.º 16.º/1 e 17.º/1, do regime anexo ao decreto-lei n.º 269/98, de 1 de setembro.
Do preâmbulo deste diploma, que aprovou o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1.ª instância, emerge que constituiu objetivo do legislador a criação de um tipo de ação correspondente a uma versão simplificada do modelo da ação sumaríssima, então existente, em consonância com a simplicidade das pretensões em geral subjacentes,
No art.º 3.º/4 do diploma estabelece-se que as provas são oferecidas na audiência. Vem-se entendendo que a referência à audiência remete para o início da mesma. Efetivamente, aberta a audiência e frustrando-se a conciliação das partes, a mesma prossegue com a produção da prova que ao caso couber (art.º 4.º/1 do aludido regime). Tal só se torna possível se no início da audiência as partes indicarem as provas que ali se propõem apresentar.
A possibilidade de apresentação de prova, nomeadamente documental enquanto a audiência estiver a decorrer não é consentânea com o desiderato de celeridade que preside ao procedimento, já que seria suscetível de ocasionar sucessivos adiamentos ou interrupções da audiência, assinaladamente para exercício do contraditório.
Conclui-se, assim, que a apresentação da prova documental, à semelhança dos outros meios de prova permitidos, no âmbito dos procedimentos regulados pelo decreto-lei n.º 269/98, de 1 de setembro, deve ser efetuada no início da audiência, e não enquanto esta decorrer, sem prejuízo de poder ocorrer em momento anterior.
Neste preciso sentido, veja-se o ac. da Relação de Évora de 24-5-2018 (proc. 69186/16.9YIPRT-BE1, Francisco Xavier), em cujo sumário se lê: o n.º 4 do artigo 3º do regime anexo ao Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro, ao referir que “[a]s provas são oferecidas na audiência”, quer significar que o oferecimento das provas deve ocorrer no início da audiência.
Questão diversa consiste em determinar se a prova poderá ser apresentada em momento posterior ao início da audiência nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do art.º 423.º do C.P.C..
A oportunidade de apresentação da prova documental pelas partes encontra-se regulada no art.º 423.º do C.P.C..
Prevê o seu n.º 1 que os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser juntos com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.
Dispõe o n.º 2 do mesmo art.º 423.º que, se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado.
Derradeiramente, o n.º 3 do mesmo art.º dispõe que, após o referido limite temporal, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
Em resumo, os documentos podem ser apresentados nos seguintes momentos, sendo o primeiro a regra e os seguintes as exceções:
- com o articulado respetivo, sem cominação de qualquer sanção (n.º 1);
- até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, sendo a parte condenada em multa, exceto se provar que não os pôde oferecer com o articulado respetivo (n.º 2);
- posteriormente aos mencionados 20 dias, se estiverem em causa documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento ou cuja apresentação se torne necessária por virtude de ocorrência posterior (n.º 3).
Dos citados artigos decorre que a admissão de documento após os articulados é circunscrita, dependendo a não cominação em multa da prova da superveniência.
A junção com os articulados corresponde, no caso das ações especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias, à junção no início da audiência. Atente-se em que a regra nestas ações consiste na produção imediata da prova, seguida da prolação de sentença (art.º 4.º/1/7).
Só excecionalmente a produção de prova não se iniciará e findará naquela ocasião. É o que ocorre, nos termos do preceituado no n.º 5 do art.º 4.º, se ao juiz parecer indispensável, para a boa decisão da causa, que se proceda a alguma diligência, caso em que suspenderá a audiência na altura que reputar mais conveniente e marcará logo dia para a sua realização, devendo o julgamento concluir-se dentro de 30 dias.
No caso vertente, foi oficiosamente ordenada a realização de perícia contabilística. Uma vez apresentado o relatório, a requerida reclamou e solicitou a presença da perita em julgamento. Em 20-10-2023, requereu a junção dos documentos cuja não admissão pelo tribunal recorrido é objeto do presente recurso, sendo que a audiência se encontrava agendada para 6-11-2023, tendo prosseguido em 30-11-2023.
A primeira questão a aquilatar consiste em determinar se a data a considerar, para o efeito da contagem regressiva dos aludidos 20 dias prévios à realização da audiência final, é a que designa dia para audiência final ou a data da última sessão, para a eventualidade de existirem várias sessões pré-agendadas ou de a audiência, por qualquer motivo, não vir a terminar no dia agendado.
A jurisprudência vem entendendo que a data a atender é a única ou a primeira das datas designadas para audiência final.
Vejam-se António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (in Código de Processo Civil Anotado Parte Geral e Processo de Declaração, vol. I, Almedina, 2019, p. 499): a tal entendimento conduz “a teleologia do preceito, que visa evitar a perturbação resultante da apresentação extemporânea de documentos”.
A jurisprudência neste sentido é significativa e maioritária. Respigamos alguns acórdãos, remetendo, estes, por seu turno, para extensa jurisprudência.
Lê-se no ac. da Relação de Lisboa, de 6-6-2019 (proc. 3211/18.9T8LRS.L1-2, Laurinda Gemas, consultável in http://www.dgsi.pt/, tal como os demais acórdãos que vierem a ser nomeados, salvo indicação diversa): “A propósito deste preceito legal, veja-se a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII (PL 521/2012, de 22-11-2012), que esteve na génese da referida Lei n.º 41/2013: “Em consonância como princípio da inadiabilidade da audiência final, visando disciplinar a produção de prova documental, é estabelecido que os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, assim se assegurando o oportuno contraditório e obviando a intuitos exclusivamente dilatórios”. (…) A nosso ver, o sentido da norma não é o de permitir a “livre junção documental” (ainda que com eventual condenação em multa) até 20 dias antes da data em que se encerre a audiência final ou até 20 dias antes da data em que se conclua uma sessão da mesma. Este entendimento, que nos parece ser maioritário, na doutrina e na jurisprudência, encontra, aliás, paralelismo com o que foi defendido na vigência do anterior Código de Processo Civil relativamente ao art. 512.º-A, que previa a possibilidade de aditamento ou alteração do rol de testemunhas até 20 dias antes da data em que se realizasse a audiência de julgamento. (…) Não falta, é certo, quem defenda a possibilidade de junção documental até 20 dias antes do início de uma das sessões da audiência final. Neste sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15-11-2018, no processo n.º 11465/17.1T8PRT-B.P1, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se afirma: O prazo limite para a apresentação de documentos (bem como o da alteração do rol de testemunhas) tem por referência não a data inicialmente designada para a audiência final mas a data da efetiva realização da audiência, quer haja adiamento ou continuação da audiência). Pensamos, todavia, tratar-se de posição minoritária, que não se coaduna com o espírito da norma, nem com o princípio da continuidade da audiência (cf. art. 606.º do CPC), potenciando o risco de manobras dilatórias para atrasar a conclusão da audiência final e até a necessidade de reinquirição das partes/testemunhas já ouvidas em anteriores sessões a fim de serem confrontadas com os novos documentos, sendo certo que, com o novo regime de junção documental consagrado no CPC de 2013 se pretendeu, precisamente, contrariar o risco de tal acontecer, limitando-se, pois, a possibilidade de apresentação de documentos no decurso da audiência final (até ao encerramento da discussão) às situações previstas no n.º 3 do art. 423.º do CPC (…).”
Com interesse direto para a questão, veja-se o ac. da Relação de Lisboa, de 4-6-2020 (proc. 9854/18.3T8SNT-A.L1-2, Pedro Martins), onde se escreve: “Para que os documentos possam ser utilizados na audiência final, é necessário que tenham sido admitidos (arts. 443, 427 e 415, todos do CPC). Antes disso acontecer, tem de ser dada oportunidade à parte contrária de impugnar a genuinidade dos documentos, ou arguir factos para ilidir a sua autenticidade ou força probatória, para o que existe o prazo de 10 dias que, grosso modo, conta a partir da notificação da apresentação (arts. 444/1 e 446, ambos do CPC). Só com isto - mesmo sem contar que depois, a parte que impugne pode querer produzir prova desses factos, e a parte que apresentou os documentos pode querer produzir prova destinada a convencer da sua genuinidade (art. 445 do CPC); tal como relativamente à arguição de factos, pode a parte apresentante responder (para o que tem 10 dias: arts. 448 e 149 do CPC) e depois ambas podem querer produzir prova (art. 449 do CPC) -, só com isto, dizia-se, já são esgotados, por regra, 13 dias (os 3 da notificação: arts. 248 e255 do CPC e os 10 do prazo), o que torna impossível, nas hipóteses normais, que, se o prazo de 20 dias for contado com referência à última sessão de julgamento, nas sessões anteriores os documentos possam ser utilizados. Ora, também normalmente, os documentos podem ser necessários para confrontar as testemunhas com eles, ou para que as testemunhas esclareçam o seu conteúdo. E a parte contrária à apresentante, pode querer pôr em causa os documentos, com as suas testemunhas ou com outros documentos que tenha em seu poder. Assim, não se pode minimamente dizer que a apresentação de documentos sem observância do prazo de 20 dias em relação à sessão da audiência final onde vá ser produzida prova testemunhal, não provoque qualquer perturbação. Pelo contrário, é quase certo que a provocará, levando ou ao adiamento da 1.ª sessão ou à necessidade de repetição de prova (com testemunhas já ouvidas a terem de ser ouvidas de novo para serem confrontadas com documentos só admitidos posteriormente), ou à produção de prova com eventual prejuízo do contraditório da parte contrária (quando esta, para evitar o adiamento, prescinda do adequado exame do documento).”
O acórdão que vimos de citar exemplifica com precisão os aproveitamentos indevidos e os transtornos em que uma tese mais permissiva desembocaria.
Numa ação especial como a presente os documentos deveriam ter sido juntos até à data da audiência em que, previsivelmente, a própria sentença seria prolatada. Mas mesmo que se concedesse que a junção poderia ter lugar até 20 dias antes de 6-11-2023, data em que a audiência prosseguiu, o que é facto é que a junção em 20-10-2023 não respeita o prazo de 20 dias.
Resta aferir se se justifica a admissão dos documentos, ou que o tribunal se substitua à parte na sua obtenção, à luz do preceituado no citado n.º 3 do art.º 423.º, ou seja, se é possível afirmar que a sua apresentação não foi possível até àquele momento ou/e se a sua apresentação se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior.
Quanto ao sentido da expressão legal “documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”, elucidam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (in Código de Processo Civil Anotado Parte Geral e Processo de Declaração, vol. I, Almedina, 2019, p. 499) que, ultrapassado o limite temporal do n.º 2 do art.º 423.º do C.P.C., “apenas são admitidos documentos cuja junção não tenha sido possível, atenta a verificação de um impedimento que não pôde ser ultrapassado em devido tempo, ou quando se trate de documentos objetiva ou subjetivamente supervenientes, isto é, que apenas foram produzidos ou vieram ao conhecimento da parte depois daquele momento.”
Como se elucida no ac. da Relação de Lisboa de 12-10-2021 (proc. 5984/18.0T8FNC-B.L1-7, Cristina da Silva Maximiano), a apreciação da impossibilidade da prévia apresentação dos documentos para efeitos do preceito legal ora em referência, tem de ser aferida segundo critérios objetivos e de acordo com padrões de normal diligência (a diligência de um bom de família: cfr. art. 487º, nº 2 do Cód. Civil) em face das circunstâncias do caso; ou seja, o desconhecimento ou a falta de acesso anterior ao documento deve assentar em razões atendíveis, não podendo ser imputável à falta de diligência dos sujeitos, sob pena de se desvirtuar a relação entre a regra (nº 1 do art. 423º) e a exceção (nºs 2 e 3 do art. 423º). Ora, a razão invocada pelos Autores no requerimento de 19/05/2021 não se afigura como atendível, no sentido de ser apta ou adequada a demonstrar a impossibilidade dos Autores, num quadro de normal e razoável diligência, terem tido conhecimento anterior da existência dos aludidos documentos.
É apodítico que não foi invocada factualidade suscetível de se subsumir a esta previsão.
Desde o momento em que tomou conhecimento do requerimento de injunção que a R. sabia quais as quantias cujo pagamento lhe era exigido e que podia ter diligenciado junto da entidade bancária pela obtenção de cópias dos cheques que teriam servido de meio de pagamento, conforme alega na oposição à injunção.
Conclui-se, por conseguinte, que a apresentação dos documentos poderia ter tido lugar anteriormente e que a apresentação não se tornou necessária em virtude de ocorrência posterior. Pelo contrário, era necessária desde a primeira hora.
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A apelante sustenta que a junção sempre se justificaria por a decisão do tribunal ter violado o princípio do inquisitório, o direito de acesso à justiça e à tutela jurisdicional efetiva e a um processo equitativo, ao não realizar todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e justa composição do litígio.
O direito à prova mereceu particular atenção na reforma do processo civil emergente do decreto-lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro e do decreto-lei n.º 180/96, de 25 de setembro. Veja-se o art.º 6.º/1 do C.P.C., que atribui ao juiz o dever de dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação (…). Leia-se ainda o art.º 411.º do C.P.C., nos termos do qual incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é lícito conhecer.
É certo que o princípio do pedido está ínsito na figura estruturante do princípio dispositivo que continua a caracterizar o processo civil (art.º 661.º/1 do C.P.C.).
Sem embargo, o princípio da cooperação entre o tribunal e as partes que preside ao atual modelo de processo civil dita que, previamente à prolação de qualquer decisão que impeça a prossecução dos autos, se esgotem as tentativas de alcançar um resultado útil. Está em causa o primado do conteúdo sobre a forma, do direito substantivo sobre o direito adjetivo.
Conforme enfatiza Lopes do Rego (Rego, Carlos Francisco de Oliveira Lopes do, 2004, Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª edição, vol. I, Livraria Almedina, p. 265), “não se prevê expressamente - como decorrência da cooperação do tribunal com as partes - a existência de um genérico dever de prevenção e esclarecimento das partes sobre quaisquer insuficiências e deficiências das peças processuais que apresentem em juízo, de modo a caber ao juiz sugerir-lhes os comportamentos processuais que repute mais adequados, incluindo - como sucede no sistema jurídico alemão - a própria alteração das pretensões deduzidas”.
A cooperação do tribunal com as partes traduz-se, essencialmente, no convite ao aperfeiçoamento dos articulados que comportem alegações de facto incompletas, ambíguas, lacunarmente concretizadas ou densificadas, bem como na ultrapassagem de obstáculos de natureza formal à realização da função substancial do processo.
Neste sentido, preceitua o art.º 411.º do C.P.C. (princípio do inquisitório) que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio. E prevê o art.º 436.º/1 do C.P.C. (requisição de documentos) que incumbe ao tribunal, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objetos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade.
Dever-se-ia, então, ter admitido/solicitado a junção dos documentos visados ao abrigo deste normativo?
A resposta a esta questão não poderá deixar de ser negativa. Os princípios gerais de direito constituem os alicerces do ordenamento jurídico e enformam as decisões dos tribunais, mas não precludem a aplicação de normas expressas, assinaladamente aquelas que marcam a marcha processual. É inadmissível a obnubilação de normas expressas a pretexto da relevância da pretensão da parte. Defender semelhante tese equivaleria a, em todas as fases processuais, e qualquer que fosse o fundamento, aceitar sempre mais um e outro meio de prova, uma e outra alegação.
Pela sua inteira propriedade para o caso vertente, leia-se ainda no já citado ac. da Relação de Lisboa de 4-6-2020 (proc. 9854/18.3T8SNT-A.L1-2, Pedro Martins): “o art.º 411.º do CPC não pode nem deve servir para afastar as regras processuais que disciplinam a produção de prova, impondo prazos, ónus e preclusões à atividade das partes para se vir a obter um resultado probatório formalmente válido da verdade das alegações de facto que as partes fizeram. “[A] responsabilidade probatória do juiz” tem “uma natureza meramente complementar ou acessória” e a respetiva “atividade não pode ter lugar com prejuízo para o sistema de ónus e preclusões previstos no código.” E ainda: “em regra deve ser perante a prova já produzida que se deve manifestar a necessidade objetiva da prática do ato de obtenção de prova pelo juiz, e não perante o conteúdo de uma sugestão feito nesse sentido por uma parte, depois da fase dos articulados, sem nada ter ocorrido entretanto, apenas porque a parte quer que seja o tribunal a obter a prova, ou não quer pagar a multa devida pela apresentação tardia da mesma, ou porque já perdeu o direito de a requerer. Isto é, a atividade instrutória do tribunal não é nem deve ser uma forma de suprir a atividade que a parte devia ter tido e que não teve porque não quis ou não soube ou não cuidou ou não se preocupou em ter antes. Ainda de outro modo: o art. 411 do CPC não pode nem deve servir para afastar todas as regras processuais que disciplinam a produção de prova, imponho prazos, ónus e preclusões à atividade das partes, de modo a vir a obter-se um resultado probatório formalmente válido da verdade das alegações de facto que as partes fizeram”.
E no ac. desta Relação do Porto de 18-2-2016 (proc. 788/14.1T8VNG, Pedro Martins): o princípio do inquisitório (art. 411 do CPC) não pode ser utilizado para auxiliar uma das partes, prejudicando a outra, permitindo àquela introduzir no processo documentos que não apresentou atempadamente nos termos do art. 423 do CPC. O princípio da “verdade material”, muitas vezes invocado a propósito desta norma e nestes casos, não é uma varinha mágica que sirva para ultrapassar as regras legais. A verdade é só uma e só pode ser obtida validamente com observância daquelas regras.
No caso vertente, é claro que a parte poderia ter diligenciado em devido tempo pela junção de documentos e/ou pela formulação de pedido de colaboração junto do tribunal, caso não tivesse logrado a obtenção dos documentos por si só, o que, de resto, não se verificou.
Esta objeção da apelante não merece, por conseguinte, também ela, acolhimento.
A pretensão da recorrente está, assim, votada ao insucesso.
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V - Dispositivo
Nos termos sobreditos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se o despacho recorrido.
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Custas pela apelante por ter decaído na sua pretensão (art.º 527.º/1/2 do C.P.C.).
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Porto, 19-2-2024
Teresa Fonseca
Eugénia Cunha
Manuel Domingos Fernandes