Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4584/17.17.6T8AVR-F.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
INTERESSE SUPERIOR DA CRIANÇA E DO JOVEM
Nº do Documento: RP202403074584/17.6T8AVR-F.P1
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O tribunal deve assumir a defesa do interesse superior da criança e do jovem, tal como lho confia o artigo 4º, a), da LPCJP, fazendo-o prevalecer sobre quaisquer outros interesses envolvidos, atendendo prioritariamente aos interesses da criança e do jovem, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 4584/176T8AVR-F.P1

Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro

Juízo de Família e Menores de Aveiro – Juiz 1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO

Nos presentes autos foi aplicada a favor de AA, nascida a ../../2014, medida de promoção e protecção de apoio junto dos pais a executar junto de ambos os progenitores, em regime de residência alternada, prevista no artigo 35.º n.º 1 alínea a) da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, a qual tem vindo a ser revista e mantida desde a sua aplicação.

Tendo decorrido o prazo de revisão da medida, o Instituto da Segurança Social, I.P. enviou relatório aos autos e pronunciou-se no sentido de manutenção da medida de apoio junto dos pais.

Os progenitores foram notificados nos termos do artigo 85.º da LPCJP, e a mãe nada veio dizer aos autos.

O pai veio pedir a alteração da medida para apoio junto dos pais, na pessoa do pai, alegando, em síntese, que existe falta de supervisão nos trabalhos escolares e que a mãe é negligente com a filha.

O Ministério Público promoveu a revisão e prorrogação da medida decretada.

Após, foi proferida decisão que procedeu à revisão da medida aplicada, com o seguinte dispositivo:

Face ao exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 35º, nº1, al. a), 39º, 62º, nº 3 al. c) e nº 5, da Lei de Promoção e Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, decide-se prorrogar pelo período de 6 meses, a medida aplicada de Apoio Junto dos Pais, mantendo a AA a psicóloga e da terapia da fala e os progenitores e a avó paterna devem ser acompanhados pelo Cafap, para desenvolvimento das suas competências parentais e diminuição do conflito.

A medida será revista decorridos seis meses, devendo o ISS quando tiverem decorrido cinco meses enviar aos autos o respectivo relatório para a revisão (cfr. artigo 62º, nº1, da LPCJP).

Notifique, incluindo o Instituto da Segurança Social, I. P., no sentido de remeter aos autos relatório social para efeitos de revisão da medida até 1 (um) mês antes da data da revisão.

Solicite a técnica do ISS que diligencie para o pai, a mãe e a avó paterna serem acompanhados pelo Cafap, devendo informar os autos no prazo de quinze dias, se esse acompanhamento já se iniciou.

Decorridos cinco meses, solicite ao ISS o envio de relatório para revisão da medida.

Se o ISS não enviar o relatório para revisão da medida, no prazo estabelecido, insista.

Após se encontrar junto aos autos o relatório, abra vista ao M.P. e cumpra o artigo 85º da L.P.C.J.P.

Decorrido esse prazo, conclua.

Notifique e comunique ao ISS”.

O progenitor da AA, BB, não se conformando com tal decisão dela veio interpor recurso de apelação, rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1.º Face ao entendimento generalizado que “a família, elemento natural e fundamental da sociedade e meio natural de crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças, deve receber a protecção e assistência necessárias para desempenhar plenamente o seu papel na comunidade”, entendeu o legislador, nos artigos 36.º, 67.º e 68.º da Constituição da República Portuguesa, conceder tutela constitucional ao direito de constituir família e ao direito e dever de educar e manter os filhos.

2.º Nesse sentido, prevê o artigo 1878.º do Código Civil que “compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens”.

 3.º Mas, além da protecção da família, entendeu o legislador dar tutela constitucional às crianças, atendendo à (especial) necessidade de protecção destas, prevendo a esse respeito, o artigo 69.º da Constituição da República Portuguesa, que “as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições”.

4.º E, dando cumprimento ao aludido preceito constitucional, a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, tendo por objecto “a promoção dos direitos e a protecção das crianças e dos jovens em perigo” e com o intuito de “garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral”, prevê a “intervenção para promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo”.

5.º A AA encontra-se, desde há mais de três anos, sujeita a sucessivas medidas de promoção e protecção de apoio junto dos pais por ter sido referenciada devido ao “conflito entre os pais”, “superproteção da avó paterna”, “ausência prolongada da mãe, por motivos de trabalho”, “problema de saúde” e “exames invasivos frequentes”.

6.º Ora, face às várias informações que foram sendo juntas ao processo, é manifesto que as mesmas contrariaram sempre a justificações (e consultas/exames médicos) referidos pela progenitora, apontando antes no sentido que “no mínimo” havia negligência ao nível dos cuidados de higiene.

7.º E, se neste momento já não se registam esses problemas (pelo menos com a frequência anteriormente verificada), tal deve-se ao facto da AA entretanto se ter tornado mais autónoma e capaz de realizar a sua própria higiene íntima.

Por sua vez,

8.º No que se refere à “ausência prolongada da mãe, por motivos de trabalho”, verifica-se que tal situação se mantém inalterada e que, quando se encontra junto do agregado familiar materno, os cuidados que a AA necessita são prestados por pessoas que nenhuma relação familiar tem com a criança: o namorado da mãe, a irmã do namorado e os pais do namorado da mãe.

Ora,

9.º Embora essa situação seja aceitável do ponto de vista da organização da vida familiar e da necessidade de a compatibilizar com as necessidades de natureza laboral, trata-se de uma situação que não pode prevalecer sobre a possibilidade de a progenitora [no caso o progenitor] se ocupar directamente desses aspectos, tendo a filha ao seu cuidado”.

E,

10.º Como a própria progenitora reconhece o ora Alegante dá «muita atenção à AA e é muito protetor e investido». Não lhe identifica dificuldades ou fragilidades no exercício da parentalidade”, reconhecendo a existência de “um «vínculo forte» e positivo entre a menina e o pai”.

Aliás,

11.º De acordo com o citado relatório pericial “O perfil cognitivo do Sr. BB constitui um elemento facilitador para o exercício de uma parentalidade capaz. Não evidencia a presença de sintomatologia psicopatológica recente com signiticado clínico (…) Ainda que com as devidas reservas, o perfil obtido no PAI aponta para um indivíduo estável, autoconfiante, ativo e descontraído. Assume-se como uma pessoa franca e flexível nas relações interpessoais, que geralmente perdoa os outros, com autoconceito positivo e estável. Demonstra um controlo razoável sobre os seus impulsos e comportamentos, bem como na expressão da raiva e da hostilidade. Revela ser uma pessoa com vida estável, previsível e sem complicações”.

Por sua vez,

12.º No que respeita à avó paterna, assinala o citado relatório pericial que “Relativamente à interação da AA com a avó paterna, foi pautada por afeto positivo, trato carinhoso e reforço positivo da avó perante o sucesso nas tarefas por parte da neta”, mais acrescentando que “O estilo parental educativo da Sr.ª CC para com a AA remete para suporte e aprovação das características da menina, responsividade e atenção às suas necessidades, sem registo de comportamentos hostis (…)”.

Sendo certo que,

13.º A circunstância de, e quando questionada “se quer realizar o desenho da sua família, a AA adere prontamente e diz «vou desenhar a casa da avó CC», desenhando uma casa de primeiro andar, colorida, com um sol o seu topo”, demonstra uma ligação afectiva estável e saudável com a avó paterna.

Por outro lado,

14.º No que se refere aos conflitos entre os pais - e à possibilidade de agravamento deste caso a AA seja confiada à guarda exclusiva do Alegante -, a postura adoptada pela progenitora no decurso da avaliação a que foi sujeita (mostrando a intenção de facilitar o relacionamento com a família paterna) e a que veio a adoptar durante as férias de Natal e Ano Novo, interrupção lectiva, Carnaval e Páscoa (obrigando o Alegante a recorrer a Tribunal), demonstra que os conflitos são apenas provocados por ela.

Porém,

15.º Tal extraía-se já do aludido relatório pericial que expressamente refere que a progenitora envolve a “menina no conflito parental com o progenitor, nomeadamente referindo-se ao mesmo de forma negativa perante a AA, o que foi confirmado na avaliação da menina, inclusivamente referindo-se de forma negativa à gravidez da AA por comparação com a gravidez do irmão” e lhe transmitiu “que o pai teve um relacionamento duplo com as duas” (referindo-se à companheira do pai).

Finalmente,

16.º As “condições de risco” que a progenitora apresenta, não só vão de encontro aos motivos que levaram o ora Alegante a solicitar a alteração da regulação das responsabilidades parentais, como demonstram que não é do interesse da AA permanecer, ainda que num regime de guarda alternada, com a progenitora.

Nomeadamente,

17.º A “instabilidade nas relações afetivas e na sua rede de suporte, inclusive mãe e irmãs, com quem descreve relações de conflito e distanciamento (…) parentificação afetiva da AA, isto é, a menina assume um papel de suporte emocional da mãe desde bebé, sobretudo após a separação e aquando do agravamento do seu estado depressivo (“era o meu pilar”, aspeto corroborado pela avaliação da AA, em que a menina se sente responsável afetivamente pela mãe e pelo seu bem-estar) (…) dificuldades no exercício da coparentalidade (…) dificuldades nos cuidados básicos de higiene à AA (…) envolvimento da menina no conflito parental com o progenitor, nomeadamente referindo-se ao mesmo de forma negativa perante a AA, o que foi confirmado na avaliação da menina, inclusivamente referindo-se de forma negativa à gravidez da AA por comparação com a gravidez do irmão (…) deixar a menina aos cuidados de pessoas que não lhe são familiares para sair à noite aos fins de semana (…) exposição da AA a vários relacionamentos afetivos temporários”.

Do mesmo modo,

18.º As preocupações manifestadas pela respectiva professora - e a análise do manual da criança contendo (completamente em branco) os trabalhos de casa que, durante as férias, deveriam ter sido realizados junto do agregado familiar materno -, demonstram que é do interesse da criança passar para um regime de guarda única, junto do ora Alegante.

Ou seja,

19.º Tudo motivos que apontam para a conveniência da AA fixar residência unicamente com o ora Alegante por, como o demonstra o referido relatório pericial, ser este que representa “o seu porto de abrigo, o seu espaço de vivência, segurança e felicidade”.

Finalmente,

20.º Como resulta dos vários relatórios sociais junto aos autos, a Senhora Técnica Gestora do processo tem vindo a adoptar uma atitude muito parcial, que em nada contribui para a salvaguarda do interesse da AA, chegando ao ponto de, neste último relatório social, chegar a colocar factos que contrariavam frontalmente o constante do aludido relatório pericial.

E,

21.º Como se tal não bastasse, tendo consciência que a AA havia sido sujeita a uma avaliação psicológica e entrevista, ter sujeitado a criança a uma nova entrevista, onde “a AA mostrou-se um pouco nervosa” e “manteve-se calada o tempo todo, respondendo apenas por gestos de cabeça (Sim/ Não), ao que lhe foi sendo questionado”, apenas para que a criança “(com a cabeça)” lhe dissesse “que não gostava de ter mudanças na sua vida (concretamente no que respeita à residência alternada)”.

Pelo que,

22.º Ao “prorrogar pelo período de 6 meses, a medida aplicada de Apoio Junto dos Pais, mantendo a AA a psicóloga e da terapia da fala e os progenitores e a avó paterna devem ser acompanhados pelo Cafap, para desenvolvimento das suas competências parentais e diminuição do conflito” e indeferir “o pedido de substituição de técnica do ISS, como requerido pelo pai, uma vez que não é o Tribunal que procede a nomeação das técnicas e não existe nenhuma causa que justifique o afastamento desta técnica”, violou a decisão recorrida o disposto nos artigos 69.º, n.º 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, 1878.º, n.º 1, do Código Civil e 3.º, 60.º e 83.º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo.

Termos em que deverá o presente recurso ser provido e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida (refª. 128054877 de 22 de Junho de 2023) e substituída por outra que: a) Proceda à revisão da medida de promoção e protecção aplicada à AA, com a aplicação de uma medida de apoio junto dos pais, na pessoa do pai, com a fixação da residência da criança junto do agregado familiar paterno; b) Determine a substituição da Senhora Técnica Gestora do Processo por, face à parcialidade demonstrada nos autos, não ter condições para diligenciar no sentido de salvaguardar o “superior interesse” da AA, como é de DIREITO E JUSTIÇA”.

 O Ministério Público contra-alegou, argumentando no sentido da improcedência do recurso.

II.OBJECTO DO RECURSO

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelo recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se deve ser prorrogada a execução da medida de promoção e protecção de “apoio junto dos pais”, a executar junto de ambos os progenitores, fixada a favor da menor AA, ou, ao invés, se a medida antes decretada deve ser alterada para “apoio junto dos pais”, a executar junto do progenitor.

 

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

Resulta documentalmente comprovado nos autos o seguinte circunstancialismo fáctico:

- AA nasceu a ../../2014, sendo filha do recorrente BB e DD.

- A mesma reside com ambos os progenitores, em regime de guarda partilhada, na sequência de acordo homologado por sentença de 22 de Fevereiro de 2018.

- A sinalização da criança à CPCJ ocorreu a 21.10.2019, segundo o progenitor por iniciativa da avó paterna, com fundamento na falta de cuidados de higiene quando se achava aos cuidados da mãe, tendo sido invocada, pelo progenitor e pela avó paterna, a possibilidade daquela ter sido vítima de abusos sexuais, os quais, após realização dos competentes exames médicos, não se confirmaram.

A avó paterna alegou ainda que a criança, no período em que estava a residir com a mãe era deixada ao cuidado de terceiros, devido ao horário laboral da progenitora.

- No âmbito do processo que correu termos pela CPCJ foi proposta medida de promoção e protecção de apoio junto dos pais, direcionado, quanto à mãe, para cuidados de higiene íntima da criança e, quanto ambos os pais, comunicação positiva entre eles.

- Na ausência de acordo do progenitor, foi demandada intervenção judicial a 3.03.2020, tendo sido aplicada medida de apoio judicial junto dos pais, a qual, sucessivamente revista, tem sido prorrogada.

- Consta do último relatório social do ISS junto aos autos que: “A AA completa 9 anos de idade, no próximo dia 12 e continua com residência alternada, entre os pais.

A menina encontra-se a frequentar o 3º ano de escolaridade, turma ..., no ..., não havendo preocupações significativas a ressaltar, no ano letivo em curso, conforme Informação escolar em anexo. A aluna é assídua e pontual e está bem integrada no grupo de pares, sendo uma criança educada. Revela algumas dificuldades de aprendizagem que, segundo a professora, poderão ser ultrapassados com mais estudo e treino.

Em termos familiares, a AA continua a crescer numa família com uma dinâmica muito disfuncional, mantendo-se o conflito parental, continuando os pais a não salvaguardar a filha deste conflito e da discórdia que se verifica entre ambos”, concluindo pela necessidade de prorrogação da medida de apoio junto dos pais, mantendo-se o acompanhamento psicológico da AA.

- Retira-se, por sua vez, do relatório pericial da Universidade de Coimbra: “consideramos importante a realização de um trabalho psicoterapêutico de cariz familiar que incida sobre a capacidade reflexiva dos progenitores e avó paterna da AA relativamente ao exercício do seu papel de cuidado, promovendo as suas competências parentais, familiares por parte da avó, e o saudável convívio da criança com a sua família alargada.

Recomendamos, ainda, a manutenção do acompanhamento psicológico da menina.”

- E a psicóloga que acompanha a AA fez constar no seu relatório: “De referir que os problemas relacionais em contexto familiar, mais especificamente, a vivência de uma relação parental de discórdia e conflito, resultante de processo de divórcio aparentam influenciar negativamente a sintomatologia observada e interferir com o desenvolvimento de relações interpessoais adaptativas. Adicionalmente, a criança apresenta insegurança, baixa autoestima e baixa autoconfiança associadas às relações com os seus pares em contexto escolar, notando sentimentos de inferioridade face aos mesmos, pelo que as referidas dificuldades interferem atualmente com o bem-estar social e psicológico da AA.

No geral, as problemáticas acima supracitadas interferem com o seu bem-estar físico e psicológico, relacionamentos interpessoais e desempenho académico.

O processo de intervenção pretende atuar nestas problemáticas causadoras de mal-estar, procurando colmatar as limitações causadas na saúde psicológica da criança, desempenho académico, bem como no desenvolvimento de relações interpessoais adaptativas, pelo que a intervenção psicológica, será baseada no Modelo Cognitivo- Comportamental, abrangendo os domínios cognitivo, emocional e comportamental.”

IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Segundo o n.º 1 do artigo 1878.º do Código Civil, “compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens”.

Deste preceito decorre que as responsabilidades parentais devem ser exercidas na prossecução do “interesse dos filhos”, e nos casos em que é demandada a intervenção do poder judicial, este deve decidir assegurando igualmente o interesse do menor, ainda que o faça em prejuízo dos pais ou de terceiros[1].

Tal entendimento ancora-se ainda no que dispõe o artigo 3.º, n.º 1 da Convenção Sobre o Direito da Criança, de 1989, quando determina: “todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança”.

Esta é reconhecida, sem dúvida, como um verdadeiro sujeito de direitos, pelo que todas as decisões que a envolvam devem sempre ser norteadas em ordem à satisfação do seu interesse.

E de tal forma assim é que conceitos e expressões como “poder paternal”[2] foram banidos com a Lei n.º 61/2008, que introduziu importantes alterações ao Código Civil, para serem substituídos pela expressão “responsabilidade parentais”[3], que melhor se adequa ao ordenamento jurídico que encara a criança como verdadeiro sujeito de direitos e destaca a natureza funcional deste instituto, concebido como conjunto de poderes-deveres, de exercício vinculado no interesse do filho.

Outros países europeus substituíram nas respectivas ordens jurídicas internas expressões equivalentes ao “poder paternal” por expressões próximas da terminologia adoptada pela ordem jurídica portuguesa, fazendo notar Jean Carbonnier[4] que não se tratou de uma simples mudança de palavras, passando a autoridade a ser exercida para protecção dos interesses da criança, sendo igualmente exercida pelo pai e pela mãe.

As responsabilidades parentais constituem uma resposta, a dar por quem está mais próximo da criança e por isso também melhor habilitado a conhecer as suas necessidades, a uma situação de imaturidade (física, emocional, psíquica) decorrente da menoridade.

Cabe, assim, aos pais, em primeira linha, desempenhar esse papel protectivo, exercendo os poderes funcionais que integram as responsabilidades parentais, zelando pelo desenvolvimento integral da criança, proporcionando-lhe alimentação, afecto, condições de saúde, de educação, de segurança, promovendo a sua autonomia e independência.

Quando as responsabilidades parentais não são exercidas no interesse dos filhos, porque os pais não querem, ou são incapazes de fazê-lo, deve o poder judicial intervir de forma activa, tomando as medidas adequadas à tutela do interesse da criança. Como se escreveu no Acórdão da Relação de Coimbra 03.05.2006[5], “quando os pais não cumprem com tais deveres fundamentais, a ordem jurídica confere às crianças, enquanto sujeitas de direito, mecanismos de protecção, podendo os filhos deles serem separados, como determina o n.º 6 do art.36 da CRP”.

Segundo Filipa Daniela Ramos de Carvalho[6], “o interesse do menor, embora se consubstancie numa dificuldade prática acrescida, resultante da indeterminação do critério, absorve ou deve absorver todas as orientações vertidas no Código Civil, nomeadamente os artigos 1878º (segurança, saúde, sustento e autonomia do menor), 1885º, nº1 (desenvolvimento físico, intelectual e moral dos filhos), 1878º, nº2 (opinião dos filhos). Outrossim, a natureza dos processos de regulação das responsabilidades parentais como processos de jurisdição voluntária atribuem ao juiz um papel fundamental na adequação, in casu, das orientações legais sobre o conteúdo do exercício das responsabilidades parentais e o critério do interesse do menor”, que, assim, conclui: “Deste modo, é da intercepção entre as orientações legais e das orientações jurisprudenciais que se alcança, paulatinamente, um conteúdo do conceito indeterminado em questão”.

Refere o Acórdão da Relação do Porto, de 06.03.2012,[7] que “o interesse da criança ou jovem deve ser realizado na medida do possível no seio do seu grupo familiar. Porém, em caso de colisão, sempre sobrelevará o interesse em se alcançar a plena maturidade física e intelectual da criança/jovem, ainda que, o interesse de manter a criança/jovem no agregado familiar seja postergado (…).

O tribunal deve assumir a defesa do interesse superior da criança e do jovem, tal como lho confia o artigo 4º, a), LPCJP, fazendo-o prevalecer sobre quaisquer outros interesses envolvidos, atendendo “prioritariamente aos interesses da criança e do jovem, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto”.

Dispõe o nº 1 do artigo 3.º da LPCJP que “a intervenção para promoção dos direitos de protecção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de acção ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo”.

O n.º 2 do mesmo normativo descreve, a título exemplificativo, algumas das situações de perigo com as quais a criança ou o jovem se possa deparar, integrando-se nesse conceito normativo a situação em que “está sujeita, de forma directa ou indirecta, a comportamentos que afectem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional” – alínea e).

Como sublinha o acórdão da Relação de Coimbra de 22.05.2007[8], o conceito de perigo deve ser entendido como o risco actual ou iminente para a segurança, saúde, formação moral, educação e desenvolvimento do menor.

E para Tomé d´Almeida Ramião[9], “O perigo a que se reporta este normativo traduz a existência de uma situação de facto que ameace a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento da criança ou do jovem, não se exigindo a verificação da efectiva lesão da segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento. Basta, por isso, a criação de um real ou muito provável perigo, ainda longe do dano sério.

E tem de ser actual, como decorre do art.º 111.º, onde se refere que se não subsistir a situação de perigo, o processo será arquivado”.

O artigo 34.º da LPCJR define deste modo as finalidades das medidas de promoção dos direitos e de protecção das crianças e dos jovens em perigo:

“a) Afastar o perigo em que estes se encontram;

b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral;

c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso”.

No caso vertente, a situação de perigo em que se encontrava a AA foi sinalizada à CPCJ a 21.10.2019, quando a mesma tinha cinco anos de idade, tendo então sido invocados como factores desse perigo falta de cuidados de higiene da criança, no período em que se achava a residir com a progenitora, chegando a ser aludida a possibilidade de ter sido vítima de abusos sexuais, hipótese que viria a ser descartada após realização dos pertinentes exames médicos, além do facto de a criança ser confiada aos cuidados de terceiros pela mãe durante o horário laboral da mesma.

A intervenção judicial, justificada pela não anuência do progenitor relativamente às medidas protectivas propostas pela CPCJ, iniciou-se a 3 de Março de 2020, quando a AA ainda tinha cinco anos de idade, tendo sido aplicada medida de apoio junto dos pais, a executar junto de ambos, que vem sendo sucessivamente prorrogada.

O progenitor nunca aderiu quer à medida proposta pela CPCJ, quer à aplicada em sede judicial.

E, uma vez mais, valendo-se dos mesmos argumentos e sem indicar novas provas, insiste no propósito de que seja a medida aplicada alterada, passando a criança a residir junto do agregado familiar paterno, sendo pelo progenitor o apoio a prestar àquela.

Apesar dos argumentos do recorrente, e da invocação de alguns factos relatados no relatório pericial, cirurgicamente escolhidos para reforço dos mesmos, não se vê fundamento para a pretendida alteração, que nenhum dos técnicos, de resto, sequer sugeriu.

Nada nos autos, com efeito, permite concluir que o progenitor se ache mais habilitado que a mãe ao exercício das competências parentais relativamente à filha AA[10], carecendo ambos de auxílio de terceiros para cuidar da filha durante os períodos das respectivas actividades profissionais.

Dos relatórios juntos aos autos ressalta ainda que a criança mantém vínculo afectivo com ambos os progenitores, que também revelam preocupação com o bem estar da filha, apesar da acentuada conflituosidade entre eles acabar por negativamente se repercutir na filha, que, dando-se conta das recíprocas recriminações infundadas, fica triste e preocupada, como atesta o relatório pericial.

Os últimos relatórios juntos aos autos dão conta de uma evolução positiva relativamente à situação da AA, nenhum deles fazendo alusão a qualquer odor corporal.

A esse propósito, o relatório escolar menciona que a AA “apresenta-se com roupa adequada à época e limpa. Traz sempre lanche e gosta de partilhar com os colegas”.

A própria criança referiu ao perito que elaborou o relatório constante dos autos que “toma banho todos os dias em ambas as casas, e o cabelo dia sim, dia não”.

Apesar dessa evolução favorável, há ainda caminhos a trilhar, impondo-se uma apertada responsabilização de ambos os progenitores, demovendo-os dos comportamentos desadaptativos em que têm persistido, e que vêm causando na filha perturbação emocional, contribuindo para a sua insegurança e baixas autoestima e autoconfiança, repercutindo-se negativamente no seu desempenho e aproveitamentos escolar.

Neste enquadramento, concluiu o exame pericial pela importância “de um trabalho terapêutico de cariz familiar que incida sobre a capacidade reflexiva dos progenitores e avó paterna paterna relativamente ao exercício do seu papel de cuidado, promovendo as suas competências parentais, familiares por parte da avó e o saudável convívio da criança com a sua família alargada” com “manutenção do acompanhamento psicológico da menina”, convergindo também nesse entendimentos as demais técnicas que nos autos se pronunciaram, nenhuma delas ventilando a necessidade ou conveniência de alteração da medida que vem sendo executada.

Não se justifica, assim, a alteração da medida reclamada pelo progenitor/recorrente, devendo antes ser prorrogada a sua execução para que seja prosseguido o trabalho terapêutico aconselhado pelo Sr. Perito.

Impõe-se antes, e com urgência, que ambos os progenitores adeqúem os seus comportamentos de forma a não comprometer o bem estar físico e emocional da AA, que, apesar da separação dos pais, continua a ser filha de ambos, nenhum deles podendo, sob qualquer pretexto, reclamá-la como troféu, ou usá-la como arma de arremesso em campo de batalha que, seguramente, não é dela.

Por fim, a pretendida substituição da técnica do ISS: como bem refere a decisão sob recurso, para além de não ser ao tribunal reservada competência para nomeação/destituição dos técnicos do ISS que devam proceder ao acompanhamento das crianças ou jovens aos quais haja sido aplicada medida de promoção e protecção, as razões invocadas nunca poderiam constituir fundamento para o afastamento daquela técnica.

Improcede, como tal, o recurso, mantendo-se o decidido.


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Síntese conclusiva:

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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.

As custas da apelação são da responsabilidade do recorrente: artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Notifique.


Porto, 7.03.2024
[Acórdão elaborado pela signatária com recurso a meios informáticos]
Judite Pires
Francisca Mota Vieira
António Carneiro da Silva
___________________
[1] Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra, 19.04.88, C.J., tomo II, pág. 68.
[2] Que, desde há muito, vinha suscitando várias críticas por lhe estar associada uma ideia de posse, de sujeição, de ascendência dos pais em relação aos filhos, tendo já em 1977 se discutido a possibilidade de alteração dessa designação.
[3] Com o que Portugal passou a estar em conformidade com a Recomendação nº R (84) 4, e com a Convenção Europeia sobre o Exercício dos Direitos da Criança (1996).
[4] “Droit Civil, La Famille, L´Enfant Le Couple”, 20ª ed., Presses Universitaires de France, 1999, pág. 93.
[5] Processo nº 681/06, www.dgsi.pt.
[6] “A (Síndrome de) Alienação Parental e o Exercício das Responsabilidades Parentais: Algumas Considerações”, Coimbra Editora, págs.
[7] Processo nº 43/09.9TBCPV-A.P1, www.dgsi.pt.
[8] Processo nº 289/07.4TBVNO.C1, www.dgsi.pt.
[9] Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, 6,ª ed. actualizada e aumentada, “Quid Juris – Sociedade Editora”, pág. 27, 28.
[10] A própria criança relatou ao perito que ao sábado, quando está na companhia do pai, este “passa o dia inteiro a ir ao café”, limitando-se ela a acompanhá-lo, ficando sentada ao lado dele, sem fazer nada, adiantando ainda que “os domingos são iguais aos sábados e não costuma estar com mais família ou amigos, que está só com o pai”, o que, além do justificado desagrado manifestado pela AA, se revela comportamento pouco adequado a uma salutar convivência pai/filha e às necessidades de socialização desta e de interação com outros elementos da família e mesmo de outros pares.