Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
930/21.6T9MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ QUARESMA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
Nº do Documento: RP20240306930/21.6T9MTS.P1
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL / CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O “princípio da confiança” não é absoluto e o facto de o semáforo para os veículos se encontrar verde não legitima um início de marcha livre e desonerado, sem deveres de cuidado externos, indiferente ao que ocorre na margem da visão periférica, nem exonera a condutora de prever o comportamento de um peão que iniciara o atravessamento da passadeira, podendo evitar o resultado danoso.
II - Embora a arguida tenha iniciado a marcha com o semáforo verde (e, consequentemente, vermelho para os peões), nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar a ofendida já havia empreendido a travessia da passadeira (ainda que em contraordenação ao que lhe era imposto), traduzindo-se assim a sua presença num obstáculo, num fator disruptivo para o início desembaraçado da marcha, visível para a condutora do automóvel e que lhe impunha que detivesse a marcha e evitasse o embate.

(Sumário da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 930/21.6T9MTS.P1

Acordam em conferência na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I.
I.1
Nos autos de processo comum n.º 930/21.6T9MTS, que correu termos no Juízo Local Criminal de Matosinhos – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por sentença de 16.10.2023, decidiu-se, além do mais:

1. Condenar a arguida AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física negligente, p. e p. pelo artigo 148.º, n.º1, do Código Penal, na pena de 50 (setenta) dias de multa à razão diária de €6 (seis euros).
2. Condenar a arguida na sanção acessória de proibição de conduzir pelo período de 3 (três) meses, advertindo-a que deve fazer a entrega da sua licença de condução na Secretaria deste tribunal ou em qualquer posto de entidade policial no prazo de dez dias a contar do trânsito em julgado da sentença, sob pena de, não o fazendo, a mesma lhe ser apreendida (artigo 500.º, n.ºs2 e 3 do Código de Processo Penal) e de esta incorrer na prática de um crime de desobediência, com o qual, desde já, se comina, nos termos do Ac. Uniformizador de Jurisprudência n.º2/2013 do STJ, publicado no DR, Série I, de 8.01.2013 e artigo 348.º, n.º1, al. b) do Código Penal.
*
I.2
Não se conformando com o decidido veio a arguida AA interpor o recurso ora em apreciação (Ref.ª 37251973) referindo, em conclusões, o que a seguir se transcreve:
1. O presente recurso vem interposto da Sentença proferida em 16 de Outubro de 2023 que condenou a arguida AA pela prática, em autoria material, de 1 (um) crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à razão diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o valor total de € 300,00 (trezentos euros) e na sanção acessória de probição de conduzir pelo período de 3 (três) meses, bem como no pagamento das custas, mantendo-se a mesma sujeita à medida de coação de termo de identidade e residência até à extinção da pena em que foi condenada.
2. A sentença proferida viola o Princípio do In Dubio Pro Reo, referindo que “(…) não foi possível reconstruir, com a necessária dose minima de segurança e para além de qualquer dúvida razoável, toda a dinâmica descrita nos factos provados” – cfr. 2.º parágrafo da página 6.
3. Na dúvida sobre toda a dinâmica descrita nos factos provados, sempre deveria ter aplicado tal princípio que decorre da presunção constitucional de inocência; na dúvida sobre os factos a provar, o Tribunal decide em favor do arguido, pela sua absolvição.
4. No local do acidente, onde a Rua ... forma um cruzamento com a Avenida ..., existe implantada no piso da via, de forma transversal, uma passadeira para peões, sendo o trânsito regulado por sinalização luminosa, vulgo, semáforos que então se encontravam ligados e a funcionar.
5. Quando o veículo da arguida acedeu ao local, os semáforos apresentavam a cor vermelha para os veículos que circulavam nessa rua, razão pela qual, a arguida imobilizou o seu veículo antes dos semáforos e aí aguardou.
6. Quando o semáforo apresentava luz verde para os veículos, a arguida retomou a sua marcha, circulando a uma velocidade bastante reduzida, na ordem dos 10 km/hora.
7. Quando retomou a marcha, a arguida não viu qualquer peão.
8. Sem que nada o fizesse prever, a ofendida iniciou a travessia e atravessou a passadeira com o sinal vermelho para peões, em passo apressado, de forma repentina, e com um copo de café na mão, completamente distraída, sem ter olhado para a sua esquerda quando iniciou e quando efectuou a travessia da via.
9. A arguida nada poderia fazer para evitar o embate.
10. Estando o sinal para os veículos, no momento em que a arguida arrancou, verde, concomitantemente nessa altura o sinal para os peões já estava vermelho há vários segundos; a faixa de rodagem é de largura curta dispondo de uma única fila e sentido de trânsito.
11. Provado que está, que, quando o arguida avançou com a sua viatura o semáforo para os veículos automóveis estava com a luz verde acesa, atendendo a que, os semáforos luminosos estão programados com um lapso de tempo entre a mudança de cor, é evidente que quando a ofendida inicia a travessia da faixa de rodagem, o sinal para peões estava vermelho.
12. Isso mesmo resultou, do depoimento da testemunha BB, a qual relatou os factos de forma convicta, credível e sincera e cujo depoimento foi, aliás, valorado pelo Tribunal a quo e que acima se transcreve.
13. Deve ser dado como provado, porque não o foi e mal, o facto i) dos factos não provados, passando o mesmo a constar dos FACTOS PROVADOS, o que se requer.
14. Devem ser dados como FACTOS NÃO PROVADOS, o que se requer, os factos constantes dos artigos 7.º (excepto “A arguida, quando semáforo ficou verde, fez avançar o ..-EP-..” que deve manter-se como facto provado), 10.º e 11.º.
15. O acidente teve como causa única o comportamento negligente da assistente, na medida em que atravessou a via pública destinada à circulação de viaturas automóveis quando o sinal se encontrava vermelho para os peões, tendo-se atravessado à frente do veículo da arguida de forma inopinada e repentina, sem verificar se o podia fazer em segurança.
16. A arguida nada podia fazer para evitar o embate, devido ao movimento repentino e
inesperado da assistente.
17. A arguida atravessou a via quando o semáforo apresentava a luz vermelha acesa para os peões, a qual, por seu lado, se encontrava verde para os veículos.
18. Tendo a arguida passado com o semáforo verde para os veículos, é evidente que quando o peão iniciou a travessia da passadeira, o semáforo para os peões já se encontrava com a luz vermelha acesa há vários segundos.
19. A assistente atravessou a passadeira sem olhar para o seu lado esquerdo, ou seja, para o lado de onde provinha a viatura da arguida.
20. Pois caso tivesse olhado para a esquerda, logo veria a viatura automóvel e poderia de imediato parar e estacar a marcha.
21. O veículo da arguida tinha acabado de iniciar a marcha e por isso seguia a uma velocidade muito reduzida.
22. Se a ofendida não tivesse circulado quando o semáforo para peões estava vermelho, como poderia e deveria ter feito, o acidente não teria certamente ocorrido.
23. A sua contribuição para a eclosão do acidente foi, assim determinante para a ocorrência do mesmo.
24. A ofendida agiu de forma descuidada, leviana e pouco diligente, conduta esta que
contribuiu, inequivocamente, para a eclosão do acidente por si sofrido.
25. Relativamente à circulação dos peões na via pública, mesmo nos casos em que os peões atravessam a via pública nas passadeiras, sendo este um local de excelência para o atravessamento das faixas e rodagem, antes de atravessar, olham e veem se é possível efectuar a referida circulação a pé em segurança.
26. A ofendida não cumpriu pois a diligência que lhe seria exigível.
27. Não poderia o Tribunal a quo ter concluido que a arguida podia e devia ter agido de forma diferente e que, agindo diversamente, teria evitado o acidente, atendendo à concreta conduta descuidada da ofendida.
28. Não resultou da prova produzida que a arguida tenha violado o cuidado que lhe era exigível e/ou a atenção, a perícia e a diligência exigíveis, ou que conduzisse desatenta e de modo descuidado.
29. Não decorreu da prova produzida que a arguida tenha conduzido o veículo EP com velocidade excessiva – até porque, no momento do acidente, a arguida estava a acabar de iniciar a marcha e por isso circulava a uma velocidade muito reduzida.
30. Nem que a mesma tenha realizado qualquer manobra de forma repentina e brusca.
31. Decorre das regras da experiência e da vivência comuns que, na travessia de ruas ou
estradas, ainda que nas passadeiras, os peões têm que ter cuidado e respeitar os locais de circulação destinados aos veículos automóveis.
32. O sinistro ficou a dever-se única e exclusivamente à negligência, imprevidência e manifesta falta de cuidado da assistente e às violações que a mesma praticou ao disposto nos artigos 3.º, n.º 2, 99.º, n.º 1, 101.º, n.ºs 1 e 3 do Código da Estrada e alínea a) do artigo 74.º do Decreto Regulamentar 22-A/98, de 01 de Outubro.
33. O embate não se deu no passeio – o qual é destinado à circulação de peões – mas deu-se sim na estrada - a qual é destinada à circulação de veículos automóveis.
34. E como tal, sempre caberia à ofendida, até mesmo mais do que à arguida, um especial dever de cuidado antes de atravessar.
35. Inexistindo qualquer violação de um dever objectivo de cuidado da parte da arguida,
deverá a mesma ser absolvida do crime de que vem acusada.
TERMOS EM QUE SE REQUER A VENERANDAS V. EXAS. SE DIGNE REVOGAR A SENTENÇA RECORRIDA E EM SUA SUBSTITUIÇÃO, SER PROFERIDA DECISÃO NOS TERMOS ALEGADOS, ABSOLVENDO O ARGUIDO DO CRIME PELO QUAL FOI CONDENADO CONFORME É DE INTEIRA JUSTIÇA!!!!!!
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I.3
Admitido o recurso, por tempestivo e legal, veio o Ministério Público apresentar articulado de resposta (Ref.ª 37530557), sem formulação de conclusões, pugnando pela subsistência do decidido, afirmando que a recorrente, à luz de um critério de normalidade, podia e devia ter previsto que a sua conduta era suscetível de conduzir ao embate. Se antes de reiniciar a sua marcha a recorrente tivesse aferido se na passadeira circulavam peões, necessariamente veria que na mesma se encontrava a circular a assistente e teria evitado o embate.
Não restam dúvidas, na ótica do Ministério Público, que a recorrente violou um dever objetivo de cuidado sendo evidente o nexo causal entre a conduta imponderada e o embate de que resultaram as lesões observadas na vítima.
Na sentença recorrida foi valorada a prova produzida de forma coerente e fundamentada, inexistindo qualquer vício ou incorreção, devendo manter-se inalterada a matéria de facto apurada e preservado o por via dela decidido.
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I.4
Neste Tribunal o Digno Procurador-Geral Adjunto teve vista nos autos, tendo emitido parecer (Ref.ª 17665233) referindo, além do mais, que:
“(…) a convicção do Tribunal, longe de ser caprichosa, injusta ou arbitrária, formou-se com dados objetivos, conjugados e articulados com as declarações prestadas em audiência de discussão e julgamento, apreciadas em função do modo como foram concretizadas, do diferente distanciamento de cada testemunha perante os sujeitos e o objeto do processo, da sua razão de ciência, das suas capacidades e manifestações em estreita articulação com as lacunas e certezas de cada depoimento, tudo em intimo entrelaçamento com a prova documental constante do processo, numa proximidade comunicante e cercania difícil de igualar.
O tribunal recorrido não se limitou a ser um mero espectador apático, inerte ou receptor passivo da informação e prova que se produziu em imediação e oralidade na audiência de discussão e julgamento. Com efeito, no estrito cumprimento e observância das prerrogativas legais que lhe estão funcionalmente atribuídas, interveio activamente, com profundidade, acutilância e firmeza, pois questionou as testemunhas e interpretou os diversos documentos e depoimentos, sopesando-os a todos, em particular a da arguida, procurando descobrir a verdade material por meios processualmente válidos, articulando as declarações ou testemunhos de uma forma cuidadosa, racional e coerente, de acordo com as regras de normalidade, experiência comum e razoabilidade, assim procurando criar a sua convicção quanto à forma como ocorreram historicamente os factos, tentando reproduzir e captar com a fidedignidade possível esse «pedaço-de-vida» em julgamento.
Analisada com toda a atenção e minucia as doutas alegações de recurso apresentadas pela recorrente, nenhum argumento relevante e criterioso foi adiantado no sentido de infirmar a profunda ponderação e inquestionável acerto da sentença que questiona.
Com efeito, a argumentação esgrimida nas doutas alegações não encontra respaldo probatório nas regras da experiência comum, nem nas normas pretensamente violadas, afigurando-se-me manifestamente inócua e destituída de fundamento legal.
A decisão criticada, objetivamente, não é passível de crítica relativamente à decisão da matéria de facto e de Direito, não avançando o recorrente razões válidas que permitam, sequer, reavaliar ou revisitar a prova produzida, pois nas doutas alegações de recurso, não aduziu nem desenvolveu um quadro argumentativo que demonstre através da analise das provas por si especificadas que a convicção formada pelo tribunal a quo, relativamente aos pontos de facto impugnados é impossível ou desprovida de razoabilidade. (…)”.
Conclui sufragando por inteiro o entendimento e considerações expendidas na resposta apresentada em primeira instância e, consequentemente, alinha pela improcedência do recurso.
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Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P., tendo a assistente exercido contraditório (Ref.ª 381486), aderindo à posição do Ministério Público.
Foram os autos aos vistos e procedeu-se à conferência, importando, pois, apreciar e decidir.
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II.
Questões a decidir:
Conforme jurisprudência recorrente e pacífica, o âmbito de qualquer recurso é delimitado pelas conclusões que sobrevêm às alegações da recorrente, sem prejuízo do conhecimento, ainda que oficioso, dos vícios da decisão a que se alude no n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P. (cfr. art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, als. a) a c) do C.P.P. e Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19.10).
Assim, atenta a conformação das conclusões formuladas, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência e influência preclusiva:
a) Do erro de julgamento
b) Da violação do princípio in dubio pro reo
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III.
Apreciando.
III.1
Por facilidade de exposição, retenha-se o teor da sentença recorrida no que concerne à respetiva fundamentação de facto:
(…)

III. Fundamentação
A) De facto
Factos Provados
Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 27 de fevereiro de 2021, cerca das 09:10 horas, a arguida conduzia um automóvel da marca Volvo, modelo ..., com a matrícula ..-EP-.., pela Rua ..., em Matosinhos, na direção da Avenida ..., em Matosinhos, no sentido norte-sul.
2. Naquele local, a Rua ..., em Matosinhos entronca na Avenida ....
3. Assim que chegou ao entroncamento acima referido, a arguida imobilizou o automóvel que conduzia no semáforo que tinha acionado o sinal vermelho.
4. No mesmo local, de forma perpendicular ao sentido do ..-EP-.., existe uma passagem para peões, devidamente assinalada no pavimento.
5. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, CC circulava apeada no sentido oeste-este, pelo passeio do lado esquerdo da Avenida ..., atento este sentido.
6. Neste circunstancialismo, CC iniciou a travessia da acima aludida passagem para peões no sentido da sua marcha.
7. A arguida, quando semáforo ficou verde, fez avançar o ..-EP-.., contudo porque não prestou a devida atenção aos demais utentes daquela via, não percebeu a presença de CC na aludida passagem para peões, motivo pelo qual o veiculo que conduzia bateu na parte lateral esquerda do corpo de CC, fazendo-a cair sobre a perna direita.
8. No momento do embate, o semáforo para os peões tinha o sinal vermelho acionado.
9. Em resultado do choque acima descrito, CC sofreu fratura da perna direita, apresentando, no membro inferior direito, no joelho, cicatriz linear de tipo cirúrgico na face lateral do joelho estendendo-se à face lateral da perna com 29cm; uma outra com componente horizontal com 7cm e vertical com 15cm na face medial do joelho e anterior da perna; múltiplas áreas de aspeto cicatricial nacarado, a maior com 6 por 3 cms e as restantes com 3cms de diâmetro, no terço proximal e médio da face anterior da perna; mobilidade preservada e simétrica, dor no stress em varo; manobras meniscais negativas; sem dismetria dos membros inferiores, com comprimento real de 79 cms e aparente de 84 cms, bilateralmente; marcha em piso plano ligeiramente claudicante, consegue efetuar marcha em antepés e calcanhares com apoio, o que provocou 187 dias de doença com afetação da capacidade do trabalho geral.
10. Ao agir de forma inconsiderada e sem o cuidado que o dever geral de providência aconselha e que podia e devia ter observado, não tomando, consequentemente, as precauções necessárias que podia e devia ter observado no exercício daquela condução, designadamente, não adequando a velocidade e direção do veículo que conduzia às condições da estrada por onde circulava e aos restantes utentes nela presentes, iniciando a marcha do ..-EP-.. pela passagem para peões por onde seguia CC, infringiu a arguida o disposto nos artigos 24º, n.º 1 e 103º, n.º 1 do Código da Estrada e provocou o embate em CC, causando-lhe os ferimentos descritos no ponto 8..
11. A arguida sabia que, com a sua conduta, violava estas disposições legais.
12. A arguida não tem antecedentes criminais.
13. A arguida reside com o seu marido em casa que pertence à família, aufere o salário mínimo nacional, o seu marido está reformado, recebendo o valor mensal de €900, suporta um empréstimo mensal de €700 a título de um empréstimo que contraíram para fazer obras de melhoramento da habitação. Completou o 12.º ano de escolaridade.
(Da contestação)
14. A assistente não tinha quaisquer danos corporais visíveis.
15. A assistente referiu que tinha apenas uma dor no tornozelo.
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Factos não provados
Com relevância para a decisão da causa não resultou provado:
i.)Quando a assistente iniciou a travessia da faixa de rodagem já a sinalização luminosa para peões se encontrava vermelha.
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Consigna-se que a factualidade vertida na contestação não foi considerada nos factos provados ou não provados por não ser relevante, conclusiva ou de direito.
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Indicação, valoração e análise crítica da prova
A convicção do Tribunal relativamente aos factos considerados provados e não provados fundou-se na apreciação crítica da prova produzida de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, o qual impõe uma valoração de acordo com critérios lógicos e objetivos que determinem uma convicção racional, objetivável e motivável.
§ 0. Indicação da prova
O Tribunal baseou a sua convicção a partir da valoração do seguinte acervo probatório:
» Declarações da arguida e do assistente, nos termos que infra se detalhará.
» Depoimento das testemunhas BB (reformada) e DD (desempregado).
Salienta-se que as supra referidas testemunhas apresentaram depoimentos que mereceram credibilidade do tribunal, quer pela objetividade e distanciamento com que depuseram quer porque relataram factos sobre os quais demonstraram ter conhecimento direto, sendo que algumas hesitações reveladas só reforçaram a confiança do tribunal, atenta a dinâmica dos factos em causa. Ainda a acrescentar que não obstante a testemunha BB estar muito debilitada fisicamente (necessitando de máquina como auxiliar na respiração), revelou ter ainda frescura de memória e lucidez, pelo que foi valorado positivamente o que depôs, embora com a ressalva que a seu tempo se fará.
» Foi valorada a prova pericial, concretamente considerou-se o teor dos relatórios de perícia de avaliação do dano corporal referente a CC, sendo considerado o que decorre do artigo 163.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, nos termos do qual presume-se subtraído à livre apreciação do julgador o juízo de natureza técnica, científica ou artística, podendo o julgador divergir desse juízo desde que fundamente tal divergência e a sua convicção o suporte.
» Por fim, para além da prova direta dos factos, considerou-se, ainda, a prova indireta relativamente a parte da factualidade objeto de julgamento e que infra será expressamente mencionada. Sobre a prova indireta, entende Euclides Dâmaso Simões1, que o uso da mesma implica dois momentos de análise: um primeiro requisito de ordem material exigirá que os indícios estejam completamente provados por prova direta, os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e sendo vários devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência; posteriormente, um juízo de inferência que seja razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, respeitando a lógica da experiência e da vida (dos factos-base há de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, direto, segundo as regras da experiência).
1 In Prova Indiciária, Revista Julgar, n.º 2, 2007, Pág. 205.
2 Disponível, como todos os demais que citaremos sem indicação de fonte, em dgsi.pt, neste caso no âmbito do Processo n.º 679/06.0GDTVD.L1
*
§ 1. Motivação dos factos provados.
Partindo agora para a apreciação crítica da prova, e tentando observar os critérios a que alude o artigo 127.° do Cód. Proc. Penal, importa desde logo ter presente que, tal como se fez impressivamente notar no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 04.07.20122, «como tem sido repetidamente afirmado a partir da lição de Castanheira Neves e de Figueiredo Dias, importa reter que a verdade a que se chega no processo não é a verdade absoluta ou ontológica, mas uma verdade judicial e prática, uma «verdade histórico-prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço mas processualmente válida”3. Por isso, tratar-se-á em todo o caso de uma verdade aproximativa ou probabilística, como acontece com a toda a verdade empírica, submetida a limitações inerentes ao conhecimento humano e adicionalmente condicionada por limites temporais, legais e constitucionais, traduzindo-se num tão alto grau de probabilidade que faça desaparecer toda a dúvida e imponha uma convicção.»
3 DIAS, Figueiredo, Direito Processual Penal, I, 1981, Coimbra Editora, p. 194.
4 Processo n.º434/12.8PASJM
Neste pressuposto, consideramos ainda, na esteira do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08.10.20144 que as provas «não podem ser apreciadas uma a uma, isoladamente, de forma segmentada, devendo ser analisadas e valoradas concatenadamente, conjugando-as e estabelecendo correlações internas entre elas, confrontando-as de forma a que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo inferências ou deduções de factos conhecidos desde que tal se justifique e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência».
Tal introito é particularmente pertinente na situação dos autos, uma vez que, embora o tribunal tenha sido confrontado com diversa prova pessoal (por declarações e testemunhos) baseada em ciência direta, no respetivo confronto, não foi possível reconstruir, com a necessária dose mínima de segurança e para além de qualquer dúvida razoável, toda a dinâmica descrita nos factos provados.
Concretizando.
A data, hora e local do acidente, bem como a identificação do veículo tripulado naquele momento pela arguida, decorre do auto de participação de acidente de viação fls.3 a 4, tendo sido confirmada também pela arguida (cf. pontos 1., 2. e 4. dos factos provados).
Para prova das lesões descritas no ponto 9. o tribunal atendeu ao teor dos relatórios periciais de avaliação do dano corporal, juntos a fls. 86 verso a 89 e 125 a 128.
No que concerne à factualidade atinente à dinâmica do embate, bem como a vertida nos pontos 14. e 15., esta foi apurada tendo por base o auto de notícia, o auto de participação de acidente de viação, os croquis juntos com o referido auto, conjugadamente com o declarado pela arguida e assistente e pelas testemunhas ouvidas em audiência.
Concretizando.
A arguida referiu que após ter parado no semáforo, ao reiniciar a sua marcha já com o sinal verde, focou a sua atenção no seu lado esquerdo, concretamente no trânsito que poderia circular na Avenida ..., após o que olhou para a frente (por ser a direção que ia seguir), pelo que apenas se apercebeu da presença da transeunte, que atravessava a rua vinda do seu lado direito quando embateu com parte da frente/ lateral direita do seu carro na parte esquerda do corpo daquela. Mais referiu que o embate se deu quando ia a uma velocidade muito reduzida, pois tinha acabado de reiniciar a marcha.
Já a assistente referiu que vinha subir a Avenida do lado esquerdo, quando ao chegar à interseção das ruas, viu o semáforo para os peões verde e ao entrar na passadeira olhou para o seu lado esquerdo e viu um carro prateado parado. Começou a fazer a travessia da passadeira e, quando já se encontrava a meio desta, o carro arrancou e foi embatida no seu lado esquerdo por aquele.
BB referiu que vinha a caminhar pela Avenida ... e à sua frente seguia a assistente quando reparou que ela atravessou a rua quando estava o sinal vermelho para os peões; ainda lhe perguntou se ela ia passar mesmo assim, mas ela não a deve ter ouvido.
Por sua vez DD referiu que estava parado na Avenida ... e quando olha para o seu lado direito vê uma senhora deitada na passadeira e um carro ao pé desta. Mais acrescentou que nesse momento o semáforo estava vermelho para os peões.
Do relato feito pela arguida, assistente e testemunhas ficou a dúvida se, no momento em que a assistente iniciou a travessia da passadeira o sinal ainda estava verde, como esta última referiu. É certo que BB disse que aquela passou com o sinal vermelho, mas também referiu que caminhava mais atrás, pelo que, não antevendo o que iria acontecer, percebeu-se do seu relato que se apercebeu que a assistente estava a passar na passadeira com o semáforo vermelho, mas não resultou líquido que tivesse a certeza que quando aquela iniciou a travessia já assim acontecia. Mas não restaram dúvidas que aquando do embate a assistente circulava na passadeira com o semáforo vermelho para si e que seguia de forma distraída, pois, caso contrário, teria visto passagem do semáforo de verde para vermelho e teria previsto o embate antes de acontecer, mesmo que não o tivesse podido evitar - porque veria o carro a vir na sua direção, tanto mais que era uma rua de sentido único - o que referiu não ter acontecido.
Que a arguida atuou nos termos apurados nos pontos 10. e 11. resultou apurado com base nas suas próprias declarações, como já supra se referiu, sabendo que a sua conduta era proibida por lei, também defluiu das suas próprias declarações, uma vez que a mesma acabou por revelar tal conhecimento, tanto mais que nos autos não consta qualquer elemento que permita colocar em causa a arguida como pessoa de inteligência e determinação de vontade média que, necessariamente, estava na posse das suas faculdades mentais e, por isso, sabia do caráter ilícito da sua conduta e era capaz de se determinar de acordo com o juízo de licitude ou ilicitude que faz.
Para prova da ausência de antecedentes criminais, considerou-se o teor do respetivo certificado do registo criminal.
Relativamente às condições económico-financeiras da arguida, o Tribunal atendeu as declarações prestadas por esta, que a esse propósito, que se afiguraram credíveis e sinceras, sem que, em contrário, qualquer outra prova se haja produzido.
No que à matéria não provada tange, ficou a decisão do tribunal a dever à circunstância de não ter sido produzida prova suficiente sobre a mesma que permitisse ao Tribunal concluir com segurança pela sua verificação, ou ter sido produzida prova em sentido contrário, nos termos que já decorrem da fundamentação dos factos provados.
*
B) O Direito
(…)

III.2
Do erro de julgamento
Invoca a recorrente (sendo este o ponto fulcral de dissonância com o decidido) a existência de erro de julgamento quanto à matéria de facto, tendo a Mm.a Juiz efetuado uma incorreta valoração da prova produzida ao considerar não provado que a assistente iniciara a travessia da passadeira de peões já com o respetivo semáforo de passagem vermelho e, por decorrência da alteração pretendida ao substrato factual a considerar para a necessária subsunção, conclui que a responsabilidade pela produção do acidente é da própria ofendida.
Em traços muitos gerais, no entender da impetrante, a prova produzida, se devidamente valorada e de acordo com as regras da experiência, apresentaria resultado diverso e, no caso, conducente, na sua perspetiva, à absolvição.
Vejamos, então, começando por estabelecer os parâmetros da sindicância a que se procede.
Como é consabido, o julgamento da matéria de facto, em primeira instância, é efetuado segundo o princípio da imediação – possibilitando o contacto direto e pessoal entre o julgador e a prova, tangível ao (e próprio do) juiz a quo – sendo “(…) as provas apreciadas por quem assistiu à sua produção, sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de certos elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas” [Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português – Do Procedimento, Univ. Católica Ed., pág. 212]. Além disso, o julgamento da matéria de facto far-se-á segundo o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127.º do C.P.P., interpretado, não num sentido que desonere o julgador de justificar o seu raciocínio e percurso interior para chegar à afirmação do facto ou à sua desconsideração – caso em que falaríamos de arbítrio - mas, apenas, no sentido de que o valor a atribuir a determinado meio de prova não é tarifado ou vinculado (salvo as exceções consignadas na lei), orientando-se o julgador de acordo com os ditames da lógica e da experiência, podendo, por exemplo, atribuir relevância a um depoimento em detrimento de vários e mais numerosos de sinal contrário, desde que o justifique.
A convicção do Tribunal é, reforça-se, formada livremente, de acordo com as regras da experiência, enquanto postulados decorrentes da observação social e dos conhecimentos da técnica e da ciência. A afirmação positiva dos factos deverá fazer-se, não por razões ou argumentos puramente subjetivos e insindicáveis, mas sim concluindo-se através de uma “(…) valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, permitindo “objetivar a apreciação” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo 1993, pág. 111 a propósito da definição do conceito de livre apreciação da prova.].
Destarte, se a decisão do Tribunal recorrido se ancorar numa fundamentação compreensível, com as naturais opções próprias efetuadas com permissão da razão e das regras da experiência comum e a coberto da caraterizada livre apreciação, cumprir-se-á o necessário dever de fundamentação e afirmar-se-á a correção do decidido.
Naturalmente, qualquer dos sujeitos processuais destinatários da decisão poderá discordar do juízo valorativo assim firmado. Ou porque entende que outro meio de prova se sobreporia, ou porque outro, que foi valorado, seria, para si, de credibilidade questionável mas, lembre-se, o poder de valorar a prova e de se determinar de acordo com essa avaliação pertence ao ente imparcial e constitucionalmente designado para a função de julgar - o Tribunal – porque descomprometido com o interesse dos sujeitos processuais.
Aqui chegados, a decisão da matéria de facto – com a qual a recorrente não se conforma na totalidade – só pode ser sindicada, em sede de recurso, por duas vias distintas:
- Por verificação, ainda que oficiosa, dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P., a denominada revista alargada que, a proceder, deflui na realização de um novo julgamento, total ou parcial, apenas excecionalmente o podendo fazer o próprio tribunal superior (art.ºs 426.º, n.º 1, 430.º, n.º 1, e 431.º, als. a) e c), do C.P.P.);
- Através da impugnação ampla, prevista no art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do C.P.P., com eventual correção do decidido pelo tribunal superior (cfr. art.º 431.º, al. b), do C.P.P.).
No segundo caso e que agora nos ocupa – impugnação ampla – a sindicância pode envolver o próprio processo e resultado da formação da convicção do julgador sobre a prova produzida, designadamente a suficiência ou insuficiência desta para justificar a materialidade considerada, a capacidade e a segurança do convencimento que emerge dos meios de prova a valorar, seja à luz dos critérios legais da avaliação (art.º 127.º do C.P.P.), seja sob o espectro das disposições sobre prova vinculada.
Porém, importa ainda reter que mesmo abrangendo o próprio juízo decisório revidendo, a sua verosimilhança e consistência, no cotejo com a prova produzida, o processo de (re)apreciação não envolve um novo julgamento, sobreposto ao realizado em primeira instância e que usufruiu do aporte irrepetível oferecido pela oralidade e pela imediação. A impugnação, ainda que alargada, constitui, tão só, o remédio jurídico apropriado para a deteção de eventuais erros in judicando ou in procedendo, considerando o exame crítico da prova efetuado na primeira instância que está, naturalmente, vinculado a critérios objetivos, jurídicos e racionais e sustentado nas regras da lógica, da ciência e da experiência comum, sendo por isso mister para o sucesso do recurso que se demonstre a impossibilidade lógica e probatória da valoração seguida e a imperatividade de uma diferente convicção.
Mais.
No caso da impugnação alargada, - em que a atividade do Tribunal de recurso não se restringe ao texto da decisão, expandindo-se à análise da prova concretamente produzida em audiência de julgamento e devidamente registada – o juízo de apreciação e conformidade far-se-á de acordo com os limites fornecidos pela recorrente e decorrentes do cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do C.P.P.. Ou seja, sempre que qualquer recorrente vise impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto deve especificar (i) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; (ii) As concretas provas [ou falta delas] que impõem decisão diversa da recorrida; (iii) As provas que devem ser renovadas, ao que acresce que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas (…) fazem-se por referência ao consignado na ata (…) devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. Em epítome e em tese geral, não bastará à recorrente configurar hipóteses decisórias alternativas, da sua conveniência ou modo de ver, mais ou menos compagináveis com a prova produzida, sendo ainda necessário que a eventual insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto que foi tomada, ou, na proposta de apreciação alternativa, a prova que foi produzida, imponha, como conclusão lógica, uma decisão distinta e, em concreto, aquela que na argumentação de recurso se defende.
Neste último aspeto referido importa reforçar que não basta a afirmação do dissídio, a apreciação crítica ou depreciativa do decidido ou a asseveração de considerandos ou propostas de decisão alternativa. Antes, impõe-se à recorrente um dever de fundamentação que torne evidente que as provas indicadas impõem decisão diferente, com o mesmo grau de argumentação e convencimento que é exigível ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados, só assim se percebendo qual o raciocínio seguido pelo impetrante para se poder concluir que o mesmo impõe decisão diversa da recorrida [cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2ª Edição, fls. 1131, notas 7 a 9, em anotação ao artigo 412º, do Código de Processo Penal].
Dito isto e avançando.
O incumprimento do assinalado ónus previsto no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do C.P.P. implica a inconsideração da possibilidade de impugnação alargada [cfr. no mesmo sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09.01.2018, proc. n.º 31/14.3GBFTR.E1, Rel. Ana Barata Brito, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.09.2012, proc. n.º 245/09.8GBACB.C1, Rel. Brízida Martins, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.06.2008, proc. n.º 07P4375, Rel. Raúl Borges, acedidos em www.dgsi.pt], embora não se desconheça a jurisprudência firmada no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 685/2020 [proc. n.º 20/20, Rel. Pedro Machete, in www.tribunalconstitucional.pt].
Ora, no caso, a recorrente não é muito assertiva na especificação das provas que, a seu ver, impõem decisão diversa. Em qualquer dos casos é possível, com um mínimo de segurança, compartimentar o cerne do dissídio e, bem assim, o meio de prova a considerar para eventual reversão do decidido.
Vejamos.
Aponta a recorrente o depoimento da testemunha BB, com as passagens que indica, como indicativo de que a assistente, quando iniciou a travessia da passadeira, já o respetivo semáforo regulador para o trânsito pedonal se encontrava com a luz vermelha, vedando-lhe a passagem.
Como defluência, considera a impetrante necessário proceder às seguintes alterações:
“Deve ser dado como provado, porque não o foi e mal, o facto i) dos factos não provados, passando a constar dos FACTOS PROVADOS, o que se requer que:
Quando a assistente iniciou a travessia da faixa de rodagem já a sinalização luminosa para peões se encontrava vermelha”.
E devem ser dados como FACTOS NÃO PROVADOS, o que se requer, os factos constantes dos artigos 7.º (excepto “A arguida, quando semáforo ficou verde, fez avançar o ..-EP-..” que deve manter-se como facto provado), 10.º e 11.º, o que se requer, passando a constar como factos não provados que:
FACTOS NÃO PROVADOS:
A arguida porque não prestou a devida atenção aos demais utentes daquela via, não percebeu a presença de CC na aludida passagem para peões, motivo pelo qual o veículo que conduzia bateu na parte lateral esquerda do corpo de CC.
Ao agir de forma inconsiderada e sem o cuidado que o dever geral de providência aconselha e que podia e devia ter observado, não tomando, consequentemente, as precauções necessárias que podia e devia ter observado no exercício daquela condução, designadamente não adequando a velocidade e direcção do veículo que conduzia às condições da estrada por onde circulava e aos restantes utentes nela presentes, iniciando a marcha do ..-EP-.. pela passagem para peões por onde seguia CC, infringiu a arguida o disposto nos artigos 24º, n.º 1 e 103º, n.º 1 do Código da Estrada e provocou o embate em CC, causando-lhe os ferimentos descritos no ponto 8.
A arguida sabia que, com a sua conduta, violava estas disposições legais.”
*
Começando pelo ponto essencial de divergência: – a existência (ou não) de desrespeito, por parte da ofendida, da obrigação de se abster de iniciar a travessia da passadeira ante a existência de luz vermelha, considerando que, o mais referido como incorretamente julgado pressupõe, a montante, a alteração fatual preconizada quanto à dinâmica do acidente ou envolve matéria conclusiva, ainda que dada como provada, como a referência à violação de disposições do Código da Estrada.
Apreciando e delimitando o espectro da sindicância.
A motivação da decisão de facto é reveladora – como deve sê-lo – do processo interno de formação da convicção.
Explicitando.
Na lógica argumentativa contida na decisão recorrida a data, hora e local do acidente, bem como a identificação do veículo tripulado pela arguida decorreu do teor do auto de participação de acidente de viação, de fls. 3 e 4, tendo tais elementos sido confirmados pela arguida, tratando-se de factos pacificados nos autos e que a recorrente não contesta.
Quanto às lesões sofridas pela assistente em consequência do embate, o Tribunal atendeu ao teor dos relatórios periciais de avaliação de dano corporal, de fls. 86 v. a 89 e 125 a 128 dos autos, tratando-se, também, de matéria incontestada.
No que tange à dinâmica do acidente, é aqui que se identifica a fonte do dissídio. O Tribunal, neste particular, considerou as declarações da arguida e da assistente, o depoimento das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento e, ainda, o auto de participação de acidente de viação e, em particular, o croquis dele constante.
Em audiência, segundo o relatado, confrontaram-se duas versões.
A primeira, ancorada enfaticamente nas declarações da arguida, indica que esta imobilizou o veículo que conduzia ante a luz vermelha do semáforo existente na via por onde seguia, antecedendo o cruzamento com a Av. ..., onde pretendia passar a circular. Com a luz verde iniciou a marcha, concentrando a sua atenção na via por onde queria passar a circular, apenas se apercebendo da presença da assistente, que atravessava a rua proveniente do seu lado direito, quando embateu com a frente/lateral direita do veículo por si conduzido na perna esquerda do corpo daquela.
A segunda versão, preconizada pela assistente, diverge da primeira ao referir que, quando iniciou a travessia da passadeira, o veículo conduzido pela arguida encontrava-se imobilizado e o semáforo para os peões na luz verde. Quando se encontrava a meio da passadeira o veículo iniciou a marcha e foi por este embatida no seu lado esquerdo.
Para a arguida – porque o semáforo regulador do trânsito dos veículos se encontrava verde – a assistente, necessariamente, iniciou a travessia da passadeira quando já não o podia fazer porque o respetivo semáforo encontrar-se-ia vermelho, excluindo a partir desta construção a existência de qualquer comportamento imponderado da sua parte que permita a imputação do crime de ofensa à integridade física por negligência. Para a assistente, o início da travessia da passadeira foi legítimo, com o sinal verde, sendo embatida a meio do seu trajeto, assacando a responsabilidade pelo evento à atuação da arguida, que terá iniciado a marcha sem atentar na travessia de peões que se processava.
Perante estas duas versões conflituantes, sobre a dinâmica do acidente foram inquiridas duas testemunhas. A saber, BB e DD.
A primeira “referiu que vinha a caminhar pela Avenida ... e à sua frente seguia a assistente quando reparou que ela atravessou a rua quando estava o sinal vermelho para os peões; ainda lhe perguntou se ela ia passar mesmo assim, mas ela não a deve ter ouvido.”. A segunda “referiu que estava parado na Avenida ... e quando olha para o seu lado direito vê uma senhora deitada na passadeira e um carro ao pé desta. Mais acrescentou que nesse momento o semáforo estava vermelho para os peões.”.
Em resultado do sobredito resumo dos meios de provas produzidos em audiência afirmou o Tribunal a quo que “Do relato feito pela arguida, assistente e testemunhas ficou a dúvida se, no momento em que a assistente iniciou a travessia da passadeira o sinal ainda estava verde, como esta última referiu. É certo que BB disse que aquela passou com o sinal vermelho, mas também referiu que caminhava mais atrás, pelo que, não antevendo o que iria acontecer, percebeu-se do seu relato que se apercebeu que a assistente estava a passar na passadeira com o semáforo vermelho, mas não resultou líquido que tivesse a certeza que quando aquela iniciou a travessia já assim acontecia. Mas não restaram dúvidas que aquando do embate a assistente circulava na passadeira com o semáforo vermelho para si e que seguia de forma distraída, pois, caso contrário, teria visto a passagem do semáforo de verde para vermelho e teria previsto o embate antes de acontecer, mesmo que não o tivesse podido evitar - porque veria o carro a vir na sua direção, tanto mais que era uma rua de sentido único - o que referiu não ter acontecido” (sublinhado nosso).
Ante as dúvidas confessadas, o Tribunal reconstruiu a verdade que apreendeu, traduzida nos factos assentes, expressando, apenas, as certezas a que chegou, ou seja, deu como assente que quando o embate ocorreu o semáforo para os peões já se encontrava vermelho (e verde para os automóveis) e deu como não provado que quando a assistente iniciou a travessia da via o semáforo para os peões já estava vermelho, ficando este último aspeto por determinar, o que a recorrente contesta, tendo em conta o depoimento da testemunha BB e as regras da experiência.
Vejamos então.
Se observarmos o teor do auto de participação de acidente de viação e considerando as medições constantes do croquis, verificamos que a via, de sentido único, tinha, no local, 6,50 m de largura, medida de passeio a passeio. Nesta medida, retendo os critérios de normalidade que a experiência demonstra, no funcionamento dos semáforos existe um hiato de segurança entre a passagem a vermelho para os peões e a “abertura” da luz verde para os veículos, precisamente para permitir que os peões que tenham iniciado o atravessamento da via com a luz verde para si possam concluir essa travessia em segurança, sem serem surpreendidos pelo início da marcha dos veículos impulsionada pelo correspetivo verde, não sendo, portanto, a mudança de verde para vermelho para os peões e de vermelho para verde para os veículos abrupta e simultânea.
Poder-se-á dizer que a regra supra exposta pode sofrer alguns escolhos, não sendo inédito que um peão, iniciando a travessia no final da temporização do verde possa, no meio da travessia, ser confrontado com a passagem à luz verde para os veículos. Tal sucede, no entanto, quando a dilação no mecanismo de segurança atrás caraterizado não é suficientemente prolongada, o que normalmente só sucede quando a via a atravessar é larga, com várias vias de trânsito e o peão, por impossibilidade ou indisponibilidade, não estuga suficientemente o passo para poder concluir a travessia. No caso, porém, trata-se de uma via com apenas 6,50m de largura e se o veículo embateu no peão com a sua frente/lateral direita, atento o seu sentido de marcha (a parte mais próxima do ponto onde o peão iniciara a travessia) quando iniciou a marcha após a passagem do semáforo a verde, o peão estaria, necessariamente, no início da travessia da passadeira, percorrendo menos de metade do trajeto, o que implica que se o embate ocorre, como demonstrado, com a luz verde para os veículos e vermelha para os pesões, já assim estaria no momento imediatamente anterior em que iniciou a curta travessia.
Esta mesma conclusão - retirada da observação das caraterísticas da via e do local, patentes na participação valorada pelo Tribunal e alicerçada nas regras de funcionamento das luzes reguladoras de trânsito, que são comummente conhecidas, podendo, pelo seu caráter empírico, não sobrepassar a mais-valia decorrente da imediação de que beneficiou a audiência em primeira instância - encontra ainda arrimo no depoimento da testemunha BB.
Explicando.
A testemunha BB e a prova testemunhal, em geral, foi caraterizada pelo Tribunal da seguinte forma: - “Salienta-se que as supra referidas testemunhas apresentaram depoimentos que mereceram credibilidade do tribunal, quer pela objetividade e distanciamento com que depuseram quer porque relataram factos sobre os quais demonstraram ter conhecimento direto, sendo que algumas hesitações reveladas só reforçaram a confiança do tribunal, atenta a dinâmica dos factos em causa. Ainda a acrescentar que não obstante a testemunha BB estar muito debilitada fisicamente (necessitando de máquina como auxiliar na respiração), revelou ter ainda frescura de memória e lucidez, pelo que foi valorado positivamente o que depôs, embora com a ressalva que a seu tempo se fará.”.
A testemunha em causa, ainda na perspetiva do Tribunal a quo, referiu que “vinha a caminhar pela Avenida ... e à sua frente seguia a assistente quando reparou que ela atravessou a rua quando estava o sinal vermelho para os peões; ainda lhe perguntou se ela ia passar mesmo assim, mas ela não a deve ter ouvido.”.
Ouvido o teor do respetivo depoimento (ficheiro 20230929142004_16314101_2871551.wma) pela testemunha foi referido que: “(…) ia uma senhora à frente de mim um bocadinho (…) vai atravessar no vermelho? (…) ela ia a olhar para cima e de copo na mão (…) ela atravessou já com o vermelho (…) eu parei. Ela andou para a frente (…) [o embate] não foi bem ao meio, foi quase no princípio [da passadeira].
Do exposto resulta que a testemunha mencionada em sede de fundamentação da decisão de facto, por conhecimento direto e ciência própria, refere que a assistente iniciou a travessia da passadeira já com o semáforo para os peões com a luz vermelha, o que já resultava, quanto a nós, da dinâmica acima enunciada, das caraterísticas do local, e da forma como funcionam as luzes reguladoras do trânsito e das regras da experiência.
Tendo o Tribunal a quo considerado a testemunha em causa credível, a afirmação complementar de que “percebeu-se do seu relato que se apercebeu que a assistente estava a passar na passadeira com o semáforo vermelho, mas não resultou líquido que tivesse a certeza que quando aquela iniciou a travessia já assim acontecia” utilizada como forma de afastar a credibilização da plenitude do seu relato, mesmo considerando o ganho próprio da imediação de que não dispomos, afigura-se-nos algo desprovida de conteúdo e injustificada pois aquele depoimento, concatenado com a dinâmica do acidente, os demais factos assumidos (designadamente que a arguida iniciou a marcha com o semáforo na luz verde para os veículos, que quando se verificou o embate o semáforo estava vermelho para os peões, que a via tinha apenas 6,50 m e o embate ocorreu com a frente/lateral direita do veículo e, portanto, quando a assistente ainda iniciava a passagem pela frente do veículo) leva-nos a concluir que os meios de prova considerados impunham, no caso, que se considerasse provado o facto não provado “Quando a assistente iniciou a travessia da faixa de rodagem já a sinalização luminosa para peões se encontrava vermelha”, merecendo acolhimento, neste particular, a argumentação da recorrente, transitando tal facto para o elenco dos factos provados.
No entanto, como veremos infra, a alteração da matéria de facto não assume a virtualidade de poder exonerar a arguida de responsabilidade na produção do evento, sendo que os restantes factos que a recorrente assinala como incorretamente julgados (7, 10 e 11) se prendem, na parte não conclusiva, não propriamente com a existência de provas que imponham decisão diversa (que a recorrente não indica, permitindo, nesta parte, a impugnação alargada) mas, tão só, com a interpretação da dinâmica do acidente, ante os factos reconstituídos, operação que também iremos realizar.
Efetivamente e se considerarmos aqueles factos que a recorrente (também) pretende impugnar notamos que:
(i) O facto 7 – expurgado da parte referente ao juízo de censura que a seguir analisaremos – demonstra-se plenamente a partir das declarações da própria arguida: - Fez avançar o veículo que conduzia quando a luz do semáforo mudou para verde e, confessadamente, não percebeu a presença da assistente, embatendo-lhe (questão diversa é saber se o facto de não ter atentado naquela presença, embatendo, lhe é censurável).
(ii) Os factos 10 e 11, por se reportarem aos elementos subjetivos e à apreciação da relevância da conduta da arguida – ante o que se entendeu que lhe seria exigível naquelas circunstâncias – mostram-se motivados e inexistem outras provas (mencionadas pela recorrente) que imponham decisão diversa embora, nas premissas de tal juízo conclusivo, importe apreciar da validade do “novo” quadro factual e da sua suscetibilidade para o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo, o que nos propomos fazer infra.
Neste parte, porém, considerar-se-á não escrito, atento o seu cariz conclusivo, o segmento constante de 10 infringiu a arguida o disposto nos artigos 24º, n.º 1 e 103º, n.º 1 do Código da Estrada” e de 11 “estas”.
Por fim, resultando do assumido pela arguida e pela assistente e pressuposto pela decisão recorrida importará acrescentar, na matéria de facto (porque facilitador da compreensão da dinâmica do acidente) e quanto ao ponto 7, que o embate se deu entre a frente/lateral direita do veículo e a parte lateral esquerda do corpo da assistente.
*
III.3
Da violação do princípio in dubio pro reo
Refere a recorrente que o Tribunal a quo violou o sobredito princípio, bem como o “princípio da autorresponsabilização do lesado para a produção do dano” porquanto, em vários momentos da valoração da prova se afirmou com dúvidas, concluindo, a final e em violação daquele(s) princípio(s), que o acidente ocorreu em virtude do comportamento desatendo e descuidado da arguida. Ora, afirmando-se na dúvida, o Tribunal teria que decidir em favor da arguida, concluindo pela sua absolvição.
Apreciando.
O princípio in dubio pro reo é um princípio estruturante do processo penal, decorrência da presunção de inocência, consagrada constitucionalmente e que, na aplicação prática, constitui limite exógeno à liberdade de apreciação da prova.
Com efeito, o princípio da presunção de inocência destina-se a proteger as pessoas que são objeto de uma acusação, garantindo que não serão condenadas enquanto não se demonstrarem os factos da imputação, através de uma atividade probatória inequívoca. Significa tal princípio constitucional que toda a decisão condenatória deve ser sempre precedida de uma mínima e suficiente atividade probatória, impedindo a condenação sem provas seguras.
Sendo esse princípio uma norma diretamente vinculante e constituindo um direito fundamental dos cidadãos (cfr. art.ºs 32.º, n.º 2 e 18º, n.º 1 da C.R.P.), reconhecido no direito internacional (cfr. art.º 11º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e art.º 6º, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos), impõe-se, quando não for demonstrada e provada a culpabilidade do arguido, a sua absolvição.
Embora frequente, a dúvida não pode obstar ao ato de julgar. Sendo proibido o non liquet fundado na insuficiência de provas, em caso de dúvida insanável o facto deve resolver-se em desfavor da acusação, porquanto o arguido se presume inocente. Se o Tribunal não lograr obter a certeza dos factos, permanecendo em dúvida razoável, deve absolver o arguido por falta de provas.
Note-se, em todo o caso, que a dúvida que legitima a invocação do princípio in dubio pro reo deve ser, além do mais, insanável, pressupondo, em aliteração de ideias, que houve a montante todo o empenho e diligência no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível, a final, ultrapassar o estado de incerteza que funda a ativação do princípio.
Por último refira-se, em acrescento, que o princípio em análise tem o seu campo de aplicação na apreciação da questão de facto e nunca na matéria de direito. A sua relevância contém-se na apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos factuais do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
Revertendo ao caso em apreço o Tribunal a quo nunca se afirmou perante qualquer estado de dúvida inultrapassável que tenha, em entorse a tal princípio, superado em desfavor da posição da arguida.
A dúvida confessada – atinente à dinâmica do acidente – prendeu-se com a circunstância, alegada pela arguida, de a assistente ter (ou não) iniciado a travessia da passadeira com a luz do semáforo para peões vermelho e que considerou não provado. No mais, e quanto aos factos constantes da acusação de a arguida ter iniciado a marcha sem atentar na presença da ofendida (pese embora o semáforo para os veículos estivesse verde), o Tribunal não teve dúvidas, concluindo, a final, para responsabilização da arguida pela eclosão do embate. Ademais, diga-se, o princípio em análise não se afirma ou releva ante a dúvida se a arguida cometeu (ou não) o crime em causa. Esse momento definidor ocorre na subsunção, não funcionando, na aplicação do direito, o indicado benefício. O que o Tribunal fez, sem dúvidas a montante que despoletassem o funcionamento do princípio in dubio pro reo, foi caraterizar a dinâmica do acidente (na parte em que não teve dúvidas) e ante tal dinâmica concluir pela violação de um dever objetivo de cuidado com relevância criminal, não se verificando, pois, qualquer violação do proclamado princípio.
Sem que o Tribunal se tenha confrontado com um estado inultrapassável de dúvida, o princípio in dubio pro reo, decorrente da presunção de inocência, “parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador.” [Cfr. Cristina Líbano Monteiro, In Dúbio Pro Reo, Coimbra, 1997], dúvida positiva que, in casu, não existe.
Assim e sem necessidade de outros considerandos, não existiu qualquer violação do princípio constitucional invocado.
*
III.4
Sinopse da alteração da matéria de facto
Em concretização do acima exposto:
O facto não provado em “i.)” da sentença deixará de existir, passando ao elenco dos factos provados, sob o n.º 6A, com a seguinte redação:
6A. Quando CC iniciou a travessia da faixa de rodagem já a sinalização luminosa para peões se encontrava vermelha.
O facto 7. passará a ter a seguinte redação (por acrescento):
7. A arguida, quando semáforo ficou verde, fez avançar o ..-EP-.., contudo porque não prestou atenção aos demais utentes daquela via, não percebeu a presença de CC na aludida passagem para peões, motivo pelo qual o veiculo que conduzia bateu com a frente/lateral direita na parte lateral esquerda do corpo de CC, fazendo-a cair sobre a perna direita.
Os factos 10. e 11. passarão a ter a seguinte redação (por ablação):
10. Ao agir de forma inconsiderada e sem o cuidado que o dever geral de providência aconselha e que podia e devia ter observado, não tomando, consequentemente, as precauções necessárias que podia e devia ter observado no exercício daquela condução, designadamente, não adequando a velocidade e direção do veículo que conduzia às condições da estrada por onde circulava e aos restantes utentes nela presentes, iniciando a marcha do ..-EP-.. pela passagem para peões por onde seguia CC, provocou o embate nesta, causando-lhe os ferimentos descritos no ponto 8.
11. A arguida sabia que, com a sua conduta, violava disposições legais.
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III.5
Das consequências da alteração da matéria de facto
Tendo em conta o decidido em III.2 e expresso em III.4, importa aquilatar da sua eventual relevância no resultado final da operação.
Foi a arguida condenada pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelos art.ºs 148.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a) do C.P.
Em perspetiva ordenada são estes os factos que fundaram a condenação:
- A arguida conduzia um veículo automóvel, pela Rua ..., em Matosinhos, no sentido norte-sul, em direção à Av. ....
- Ao chegar ao entroncamento daquela rua com a avenida por onde pretendia passar a circular, a arguida imobilizou o veículo ante a luz vermelha existente no semáforo colocado junto à interseção.
- No mesmo local, de forma perpendicular ao sentido de marcha do veículo, existe uma passadeira para peões, assinalada no pavimento.
- Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar circulava apeada a ofendida, no sentido oeste-este, pelo passeio existente na Av. ... (lado esquerdo, atento esse sentido).
- A ofendida iniciou a travessia da passadeira quando o semáforo para peões já se encontrava vermelho.
- A arguida, ao sinal verde, iniciou a marcha do veículo, mas não se apercebeu da presença da ofendida na aludida passagem para peões, vindo a embater com a parte da frente/lateral direita do veículo na parte esquerda do corpo da ofendida.
Aqui chegados e retendo a dinâmica assinalada, a comissão do crime de ofensa à integridade física por negligência, atenta a excecionalidade da punição a título negligente – art.º 13.º do C.P. – tem que pressupor, além de uma conduta imponderada consubstanciadora do juízo de censura, a imputação objetiva do resultado violador do bem jurídico a essa conduta, impondo, para correta compreensão, uma delimitação dos conceitos em causa: - o que é a negligência e quais as condições necessárias para a imputação do resultado lesivo à conduta imponderada.
A negligência está prevista no artigo 15.º, do C.P.
Como resulta deste preceito legal, age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas atua sem se conformar com essa realização (negligência consciente) ou não chega sequer a representar a possibilidade da realização do facto (negligência inconsciente).
Maia Gonçalves escreve a propósito desta última modalidade de negligência que se trata daquela que suscita maiores dificuldades operativas. Nos casos subsumíveis a esta modalidade de imputação subjetiva, a lei, para evitar a realização dos resultados típicos antijurídicos, proíbe a prática das condutas idóneas para os produzirem, querendo que eles sejam representados pelo agente, ou permite tais condutas, mas rodeadas dos necessários cuidados para que os resultados se não produzam. Esta permissão de condutas potencialmente perigosas é geralmente devida a imperativos de desenvolvimento científico, técnico ou económico. É o caso dos meios de transporte, das armas, da eletricidade, da radioatividade, etc., meios em si perigosos, mas cujo uso é permitido mediante cuidados adequados a evitar desastres pessoais e danos. Quando estes cuidados são acatados, o risco esbate-se; na omissão dos mesmos cuidados se radica o fundamento principal da punição da negligência inconsciente [Código Penal Português Anotado, 13.ª ed., pág. 115].
A negligência consiste, assim, na violação de um dever objetivo de cuidado, que pressupõe que o agente não tenha usado da diligência necessária para evitar o evento a que, segundo as circunstâncias concretas em que se encontre, os seus conhecimentos e capacidades pessoais, estava obrigado, e que em consequência disso, não previu – como podia – aquela realização do facto, ou tendo-a previsto, confiou que a mesma não se verificaria. Nas palavras de Eduardo Correia, é necessário que o agente possa ou seja capaz segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais de prever ou de prever correctamente a realização do tipo legal de crime [Direito Criminal, Vol. I, pág. 444].
Em resumo, a violação do dever de cuidado determinar-se-á por critérios objetivos, nomeadamente, pelas exigências postas a um homem avisado e medianamente diligente ante a posição do agente.
A preservação do dever de diligência e a correspondente aferição de critérios objetivos que indiciem a sua violação, expressa-se, por exemplo, através da criação e imposição de regras – como as normas de trânsito – ou pela definição de boas práticas ou modos de atuação (legis artis) inerentes a determinadas profissões, a tudo se acrescentando que a convivência social, e o Direito em particular, impõem a todos um dever de atuação que previna a sobrepassagem ou a violação de direitos individuais ou interesses coletivos que se condensa na afirmação de um dever geral de cuidado.
Destarte, ao apreciar determinada conduta imputada a um agente, devemos prefigurar que atuação preconiza a ordem jurídica para lidar com a repontada realidade para, a partir daí, avaliar a concreta atuação do agente assumida no caso e, a final, verificar se a mesma correspondeu àquela que era exigível para evitar o resultado típico.
Em paralelo, quando falamos em vida comunitária e sociedades politicamente organizadas existirão, nas suas concretizações e necessidades, atuações que são, no plano natural, perigosas e suscetíveis de – pelo simples facto de existirem – provocarem dano. Ainda assim e porque essenciais, são permitidas pelo Direito e compreendidas e toleradas no plano comunitário, como seja, para o que agora releva, a circulação automóvel. Falamos, então, no plano do risco permitido, em que a participação do agente, no desenvolvimento de uma atividade perigosa, mas útil, necessária e por isso não proibida pelo Direito, não pode ser, por si só, indiciadora da violação de um dever geral de cuidado.
Para Claus Roxin “(…) uma acção que não ultrapassa o risco permitido, que não incrementa o perigo de produção do resultado, em justiça, se é causadora de um resultado, tem se der julgada nesse prisma da mesma maneira que a conduta não proibida.” [Problemas Fundamentais de Direito Penal, Vega Universidade, pág. 258].
Nestes casos de risco permitido a figura da negligência evidencia-se quando esse risco, como se disse co-natural à própria atividade (nessa medida atípico por, em si mesmo, não representar a violação de um dever de cuidado), é exponenciado de forma intolerável, o que será objetivável e apreensível, por exemplo, através da violação das normas estradais, enquanto mecanismos ordenadores dessa atividade (perigosa), adequando-a à contenção do risco nos limites do comunitariamente aceitável e, por essa via profilática, preventores do dano.
Assim, no caso específico dos acidentes de viação, a omissão do dever de cuidado, enquanto elemento da conduta negligente, poderá expressar-se, como se vê, através do desrespeito ou da falta de observância de quaisquer disposições que condicionem e disciplinem a circulação de veículos e que o agente detinha capacidade instrumental para observar e, por essa via, prever e prevenir o resultado danoso.
Destarte, o facto negligente só é punível se for, neste contexto, juridicamente censurável. Sem culpa não há responsabilidade penal (nullum crimen sine culpa) pelo que tal elemento - a culpa na prática do facto negligente - tem por base a sobredita e pressuposta comprovação de que o agente estava em condições, face às suas faculdades, aos seus conhecimentos e perícia, de antever a produção do resultado desvalioso, de reconhecer o conteúdo do dever objetivo de cuidado violado e de respeitar as exigências que do mesmo resultavam.
Em resumo, para que o resultado em que se materializa o ilícito típico possa fundamentar a responsabilidade do agente não basta a sua existência fáctica, sendo necessário que possa imputar-se objetivamente à conduta e subjetivamente ao agente, i.e., deve existir um nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado ocorrido (art.º 10.º, do C.P.).
A atuação negligente, analisa-se, assim, em três elementos intimamente associados entre si: - a causação do resultado, a violação do dever de cuidado objetivo e a imputação objetiva do resultado baseado no erro de conduta, orientada no sentido da finalidade protetiva das normas de cuidado.
Revertendo ao caso, sabemos que a arguida era detentora de carta de condução e, por esse via, comungando do conhecimento das normas estradais que a obtenção do título habilitante pressupõe e, concomitantemente, não se alcança que a mesma, no momento da atuação, estivesse toldada ou afetada nas suas faculdades de entendimento e de ação.
Por outro lado, a ofensa no corpo ou na saúde da ofendida é diretamente decorrente do embate ocorrido.
Aqui chegados e no que tange à violação do dever objetivo de cuidado importa referir, em benefício da arguida e em resultado da alteração da matéria de facto que, no domínio da circulação rodoviária, existe um princípio, desenvolvido pela jurisprudência, denominado "princípio da confiança" que a impetrante considera violado. Efetivamente, na circulação automóvel, como noutras atividades em que são detetáveis condutas simultâneas que mutuamente se influenciam, para a definição do que é o cuidado exigível adaptado ao caso, importará reter o sobredito princípio que, na prática, se desvela na consideração de que cada utilizador da via pública, cada comparticipante na realidade ordenada, deve poder confiar que os outros co-utilizadores adotarão e cumprirão as mesmas regras o que, em imagética concreta, defluirá na inexigibilidade de que um condutor preveja ou antecipe situações resultantes de atos negligentes de terceiro, ou seja, um condutor, em correta posição de marcha, confiará que o outro, circulando em sentido contrário, adotará a mesma posição, circulando pelo lado direito da via e sem invadir a hemi-faixa contrária. Da mesma forma – e porque pertinente no caso que nos ocupa – confiará que os peões respeitam a sinalização luminosa existente.
Assim, em virtude da alteração, nesta parte, da matéria de facto, sabemos que a assistente desrespeitou a regra enunciada no art.º 74º do Regulamento de Sinalização de Trânsito: – iniciou a travessia da faixa de rodagem no momento em que o sinal luminoso que a si se dirigia se encontrava vermelho e que lhe impunha obrigação de se abster de iniciar a travessia, mantendo-se no passeio até que o sinal luminoso mudasse para verde.
Como utente da via, também à assistente/ofendida são aplicáveis as considerações acima expendidas, pelo que o seu comportamento não corresponde à conduta que o peão, medianamente diligente, sagaz, atento e capaz, adotaria no caso, caso se encontrasse na situação daquela no momento do acidente. É visível, aqui, um claro comportamento negligente, imputável ao peão e que contribui para o seu próprio atropelamento e consequente produção de lesões.
Não obstante, o resultado líquido destas afirmações não aportará a preconizada absolvição.
O indicado princípio da confiança não é absoluto e o facto de o semáforo para os veículos se encontrar verde não legitima um início de marcha livre e desonerado, sem deveres de cuidado externos, indiferente ao que ocorre na margem da visão periférica, nem exonera a condutora de prever o que aqui se seguiu, podendo evitar o resultado danoso.
Em pormenor.
O art.º 3.º, n.º 2, do C.E. (Código da Estrada) prevê um dever geral de cuidado que se consubstancia no dever geral que cabe a todas as pessoas de se absterem de atos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou comodidade dos utentes da via.
Decorre do art.º 12° do C.E. que os condutores não devem iniciar a marcha do veículo "... sem adotar as precauções necessárias para evitar qualquer acidente".
Por fim, o art.º 103.º, n.º1, do C.E. estabelece que “ao aproximar-se de uma passagem de peões ou velocípedes assinalada, em que a circulação de veículos está regulada por sinalização luminosa, o condutor, mesmo que a sinalização lhe permita avançar, deve deixar passar os peões ou os velocípedes que já tenham iniciado a travessia da faixa de rodagem”.
Ora, no caso vertente, tendo em conta a dinâmica apurada para o acidente, embora a recorrente tenha iniciado a marcha com o semáforo verde (e, consequentemente, vermelho para os peões) a verdade é que, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, a ofendida já havia iniciado a travessia da passadeira (ainda que em contraordenação ao que lhe era imposto), traduzindo-se assim a sua presença num obstáculo, num fator disruptivo para o início desembaraçado da marcha, visível para a condutora do automóvel e que lhe impunha, como aliás impõe o art.º 103.º do C.E., que detivesse a marcha e evitasse o embate. Ademais, como resulta de 6 e 7 (e sendo o embate com a frente/lateral direita do veículo) a ofendida já havia iniciado a travessia (ou seria o próprio peão a “atropelar” o veículo e não o oposto) e não resultando que o fizesse a correr ou que existisse obstáculo que impossibilitasse a visão, poderia a arguida retardar o início da marcha ou imobilizar o veículo (até porque circularia a muito baixa velocidade).
Contudo, não o fez e como resulta das suas declarações, inscritas na motivação (o que é intuitivo e pode perfeitamente suceder) “olhou para a frente (por ser a direção que ia seguir), pelo que apenas se apercebeu da presença da transeunte, que atravessava a rua vinda do seu lado direito, quando embateu com parte da frente/ lateral direita do seu carro na parte esquerda do corpo daquela”.
Mesmo beneficiando do sinal verde, que possibilitaria o seu avanço para fora da área protegida pelo sinal, não estava a condutora/recorrente dispensada de prestar especial atenção aos peões, mesmo aqueles que, como a assistente, se predispõem a iniciar a travessia com o vermelho, de forma temerária. Aliás, poderia ser uma criança, um animal, qualquer outro obstáculo que importaria considerar e que o facto de o semáforo permitir o avanço do trânsito automóvel não pode desvalorizar.
A recorrente, ainda que lhe possa ser assacada uma menor percentagem de culpa, ainda assim, concorreu para o acidente e para o dano corporal verificado, nos sobreditos termos, sendo no demais válido o constante da sentença, que aliás também censurou a conduta da assistente e a afirmou concorrente para a produção do dano, com reflexos nas penas concretamente individualizadas e próximas dos mínimos legais.
Assim e sendo o resultado da alteração efetuada anódino para o decidido, ante a pretensão da recorrente, terá o recurso que improceder.
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IV.
Decisão:
Por todo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em:
(i) alterar a matéria de facto nos moldes destacados e indicados em III.4 supra;
(ii) negar provimento ao recurso da arguida AA e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UC (art.º 513.º, n.º 1, do C.P.P. e art.º 8.º, n.º 9, do R.C.P., com referência à Tabela III).
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Porto, 6 de março de 2024
José Quaresma
Paula Natércia Rocha
Eduarda Lobo