Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4268/20.8T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO URBANO
CONTRATO VERBAL
PROVA
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP202101114268/20.8T8PRT.P1
Data do Acordão: 01/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito, sendo que na falta na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses (cfr. artigo 1069.º nºs 1 e 2 do CCivil).
II - Daqui se retira que querendo o arrendatário fazer a prova da existência do contrato nos termos da citada norma tem de alegar e provar duas coisas: a)- que a falta de redução a escrito do contrato de arrendamento não lhe é imputável e b)- demonstrar a utilização do locado sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.
III - A acção de reivindicação visa o reconhecimento do direito de propriedade e a consequente restituição da coisa, tendo como causa de pedir os factos jurídicos de onde emerge esse direito.
IV - Excepcionando o demandado um contrato de arrendamento, o tribunal tem que apreciar a sua existência e validade para averiguar da legalidade da recusa de entrega da coisa reivindicada.
V - Não se verifica a figura do abuso de direito se apenas se prova que desde Março de 2013 o Réu vem ocupando a fracção reivindicada pagando uma contrapartida mensal de €250,00 que representa menos de metade do valor que o Autor pretendia aplicar ao arrendamento anterior (€740.00) a pretexto da existência de um arredamento verbal, sem que se alegue um quadro factual que permita concluir, uma vez provado, que o Autor tenha criado no Réu a expectativa ou convicção de que a situação da ocupação nesses moldes se iria manter indefinidamente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 4268/20.8T8PRT.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto
-Juízo Central Cível do Porto-J7
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
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I - RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B…, residente na Rua…, …, na cidade do Porto intentou a presente acção declarativa, na forma comum, contra C…, residente na Rua…, …, … andar, na cidade do Porto.
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Fundamentou o autor a sua pretensão no direito de propriedade da fracção autónoma identificada na petição inicial, registada a seu favor na competente conservatória do registo predial, direito este que o réu violou ao ocupar a aludida fracção autónoma, utilizando para o efeito, abusivamente, o nome da sociedade D…, Lda., sociedade já extinta.
Terminou o autor pedindo a condenação do réu a entregar-lhe o bem imóvel em causa.
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Citado regularmente, o réu contestou alegando, em resumo, que desde 1.03.2013, ocupa a fracção em causa em virtude de um contrato de arrendamento celebrado verbalmente com o autor e mediante o pagamento de uma renda, agindo, assim o autor em abuso de direito ao pedir a entrega da fracção. Mais deduziu reconvenção pedindo a restituição do valor de €18.000,00, pago a título de rendas para o caso de se entender que o contrato celebrado entre as partes é nulo.
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Na réplica, o autor veio impugnar a factualidade invocada pelo réu, pedindo igualmente a improcedência do pedido reconvencional.
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Findos os articulados, e por se afigurar possível conhecer do pedido, foi realizada audiência prévia, onde se tentou a conciliação das partes, sem que tenha surtido qualquer efeito.
Elaborado o despacho saneador foi de seguida proferida decisão que julgou procedente a acção e, em consequência, declarou o autor proprietário da fracção autónoma identificada no ponto 1. do elenco dos factos provados e condenou o réu a restituir-lhe o aludido imóvel.
Mais julgou improcedente o pedido reconvencional e absolveu o autor do pedido.
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Não se conformando com o assim decidido veio o Réu interpor o presente recurso concluindo do seguinte modo:
1ª- Sem realizar a audiência de julgamento dos presentes autos o Mmº Juiz "a quo" afirmou-se habilitado a decidir dos pedidos formulados, quer em sede de acção, quer em sede de reconvenção;
2ª- E nessa medida julgou procedente acção e improcedente a reconvenção;
3ª- Após ter considerado nulo, por falta de redução a escrito do suposto contrato de arrendamento celebrado pelo A. e pelo R. em Março de 2013;
4ª- Concluindo, assim, pela falta de título que legitimasse o R. a manter-se no locado;
5ª- Acontece, porém, que o artigo 1069° do Código Civil, que obrigava à redução a escrito do contrato de arrendamento urbano, sob pena de nulidade, sofreu profunda alteração com a publicação e entrada em vigor da Lei 13/2019 de 12 de Fevereiro;
6ª- Ficando estabelecido que o arrendatário pode provar a existência do título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses;
7ª- Ora na contestação apresentada pelo R. foi alegada factualidade nesse sentido, nomeadamente nos artigos 40º a 18º;
8ª- O que, a provar-se, seria a demonstração inequívoca da existência de título para legitimar a ocupação do imóvel pelo Recorrente e a acarretar a improcedência da acção;
9ª- Já que, quanto à reconvenção a mesma apenas foi deduzida a título subsidiário, ou seja, meramente para ser apreciada caso o contrato verbal celebrado fosse julgado nulo, por vício de forma;
10ª- Sucedendo ainda que a figura jurídica do abuso de direito invocada na contestação e os seus elementos integradores também merecia melhor indagação através da realização de audiência de discussão e julgamento;
11ª- Ou seja, a decisão proferida tem de ser revogada e remetidos os autos à Ia instância para serem apurados os factos e aplicar o direito;
12ª- A menos que se conclua desde já que existe matéria nos autos suficientemente provada para decidir neste Relação a improcedência da acção;
13ª- A decisão proferida violou as disposições normativas contidas na Lei 13/2019 de 12/02.
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Devidamente notificado o Autor não contra-alegou.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II - FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa decidir:
a)- saber se a acção devia prosseguir para se apurar se o Réu tem, ou não, título legítimo que lhe permite a ocupação do imóvel objecto de reivindicação ou, não o tendo, se se verifica uma situação de abuso de direito por banda do Autor ao pedir a restituição do imóvel.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1. Encontra-se registada a favor do autor a aquisição da propriedade, pela inscrição AP. 683 de 2012.03.14, da fracção autónoma, designada pela letra A sita no rés- do-chão, destinada comércio, do prédio urbano sito na Travessa…, .. e Rua…, …, na freguesia de …, do concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número 684/19961016 da dita freguesia, e inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo 9440, conforme certidão do registo predial junta a fls. 10 a 11 e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
2. Em 12.08.1975, a aludida fracção autónoma foi dada em arrendamento à sociedade D…, Lda.
3. O réu C… era sócio gerente da referida sociedade, conforme certidão de fls. 25 a 26 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
4. A sociedade D…, Lda foi objecto de procedimento oficioso de dissolução e liquidação, encontrando-se registado o cancelamento da respectiva matrícula na Conservatória do Registo Comercial pela Ap. 70 de 3.12.2008, conforme certidão de fls. 25 a 26 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
5. Por carta de 26.11.2012, dirigida à aludida sociedade, o autor comunicou a actualização da renda para o valor mensal de € 740,00.
6. Em resposta, o réu, na qualidade de sócio gerente da sociedade D…, Lda. comunicou ao autor a rescisão do contrato por incapacidade financeira de suportar a aludida renda.
7. Desde Março de 2013, o réu vem ocupando a aludida fracção autónoma mediante o pagamento da contrapartida mensal de €250,00.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se a acção devia prosseguir para se apurar se o Réu tem, ou não, título legítimo que lhe permite a ocupação do imóvel objecto de reivindicação ou, não o tendo, se se verifica uma situação de abuso de direito por banda do Autor ao pedir a restituição do imóvel.
Como se evidencia das conclusões recursivas o Réu recorrente questiona a decisão recorrida quando conclui pela nulidade, por falta de forma, do alegado contrato de arrendamento celebrado entre as partes em Março de 2013.
E esta dissensão fá-la o Réu recorrente assentar na circunstância de que nos termos do nº 2 do artigo 1069.º na redacção introduzida pela Lei 13/2019 de 12/02 podia fazer a prova da existência do contrato de arrendamento por qualquer forma admitida em direito, razão pela qual acção devia prosseguir face à factualidade vertida nos artigos 4º a 18º da contestação.
Que dizer?
Estatui o artigo 1069.º do CPCivil (na redacção introduzida pela Lei 13/2019 de 12/02) sob a epígrafe “Forma” que:
1 - O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito.
2 - Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.
Não há dúvida de que por força do nº 2 do artigo 12.º do CCivil, as condições de validade substancial ou formal de um contrato se aferem pela lei vigente ao tempo em que foi celebrado.
Ora, à data da celebração do suposto contrato (Março de 2013), para a validade ou eficácia do contrato, o artigo 1069.º, do CCivil, com a redacção introduzida pelo NRAU, exigia a forma escrita, aliás, desse inciso até a alteração introduzida pela Lei 13/2019, constava apenas o seu corpo (agora nº 1) cuja redacção inicial foi ainda alterada pela Lei 31/2012 de 14/08 que suprimiu a referência à duração do contrato.
Também é verdade que nos termos do artigo 14.º, nº 2 da lei 13/2019 (Norma transitória) o disposto no n.º 2 do artigo 1069.º do Código Civil, com as alterações introduzidas pela presente lei, se aplica igualmente a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma.
Isto dito, não se põe em causa que o Réu recorrente podia, como lhe é permitido pelo nº 2 do artigo 1069.º[1] supra transcrito, fazer a prova da existência do contrato de arrendamento, por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses, e, portanto, para o preenchimento dessa facti species, mostrar-se-ia relevante a matéria articulada nos artigos 4º a 18º da contestação.
Repare-se, todavia, que o citado nº 2 do artigo 1069.º, faz depender a prova da existência do contrato por essa via, desde que a falta de redução a escrito não seja imputável ao arrendatário.
Daqui se retira que querendo o arrendatário fazer a prova da existência do contrato nos termos da citada norma tem de alegar e provar[2] duas coisas:
a)- que a falta de redução a escrito do contrato de arrendamento não lhe é imputável;[3]
b)- demonstrar a utilização do locado sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respectiva renda por um período de seis meses.[4]
Acontece que, ainda que se possa admitir que o Réu recorrente, na respectiva contestação, alegue a utilização do locado sem oposição do Autor recorrido e o pagamento de uma renda desde 1 de Março de 2013 até ao presente, nenhuma referência factual faz a que a falta de redução a escrito do contrato não lhe é imputável, sendo que apenas em sede recursiva e em forma conclusiva a isso se refere.[5]
Ora, sem essa alegação e prova, torna-se evidente, não poder o Réu recorrente fazer a prova da existência do contrato de arrendamento verbal pela via estatuída no artigo 1069.º, nº 2 do CCivil e que ao caso era aplicável, alegação que, aliás, o Réu não devia ter olvidado tanto mais que no artigo 34º da sua contestação faz alusão a um possível vício de forma do suposto contrato de arrendamento.
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Destarte, nenhuma censura nos merece a decisão recorrida quando conclui pela nulidade por vício de forma do alegado contrato de arrendamento e que poderia obstar à entrega do imóvel reivindicado.
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Alega depois o Réu recorrente que o Autor se apresentou a exercer nos autos a desocupação do imóvel em nítido abuso de direito.
Será que assim é?
Analisando.
Importa, desde logo, enfatizar que estamos perante uma acção de reivindicação onde o Autor alega que sendo proprietário da fracção autónoma identificada na petição inicial e registada a seu favor na competente Conservatória do Registo Predial, o Réu a vem ocupando sem qualquer título legítimo.
Portanto, o Autor não vem dizer que o Réu ocupa a fracção por força da existência de um contrato de arrendamento, mas que esse contrato é nulo por não ter respeitado a forma legal.
Se assim tivesse alegado poder-se-ia colocar a questão de o tribunal dever abster-se de declarar a nulidade por se verificar uma situação que poderia configurar um abuso de direito, ou seja, tal situação remeter-nos-ia para a questão de saber se a invocação e declaração de nulidade de um negócio, por vício de forma, pode ser paralisada pelo instituto do abuso de direito, resposta que, aliás, não é linear do nosso direito.[6]
Ora, o que o Autor alega é que, perante o pedido do Réu que solicitou tempo adicional para a desocupação do imóvel, face a cessão do contrato de arrendamento celebrado com a sociedade D…, Lda., foi tolerando tal situação, mas aceitando o pagamento da quantia de €250,00 por mês para custear as despesas de condomínio e carga fiscal até que a referida desocupação ocorresse.
Perante esta alegação vem então o Réu, na sua contestação, alegar que celebrou com o Autor um contrato de arrendamento verbal para aquele espaço comercial com a fixação de uma renda mensal no montante de €250,00 por tempo indeterminado e que, portanto, desde 1 de Março de 2013 e até hoje vem ocupando o imóvel através de título legítimo.
Em face desta alegação o tribunal recorrido depois de afirmar que o Réu não era titular de uma qualquer posse real e efectiva sobre o imóvel do Autor, vem também a concluir, e bem, que também não era mero detentor ou possuidor precário, por o alegado contrato de arredamento celebrado entre as partes ser nulo por vício de forma, nulidade que, como se sabe, é de conhecimento oficioso.
Ou seja, visando acção de reivindicação o reconhecimento do direito de propriedade e a consequente restituição da coisa, tendo como causa de pedir os factos jurídicos de onde emerge esse direito, e excepcionando o demandado um contrato de arrendamento, o tribunal tem que apreciar a sua existência e validade para averiguar da legalidade da recusa de entrega da coisa reivindicada.
Aqui chegados e não tendo o Autor admitido a existência de qualquer contrato de arrendamento ainda que nulo por vício de forma, não se vê como possa existir abuso no exercício do seu direito, quando vem pedir a restituição do imóvel de que é proprietário e que o Réu recorrente ocupa sem que alegue e prove a existência de qualquer título válido.
O artigo 334.º do Código Civil, sob a epígrafe “Abuso do direito”, no capítulo das disposições gerais relativamente ao exercício e tutela dos direitos, estabelece que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
O abuso do direito traduz-se numa utilização do direito que não foi querida pelo legislador.
No ensinamento ainda actual de Pires de Lima e Antunes Varela[7] “a concepção adoptada de abuso do direito é a objectiva; não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito atingido; basta que se excedam esses limites. Isto não significa que ao conceito em questão sejam completamente alheios factores subjectivos, como a intenção com que o titular tenha agido; exige-se, por outro lado, que o excesso cometido seja manifesto.
Nos tipos de actos abusivos inclui-se o comportamento que se denomina “venire contra factum proprium”.
A conduta social castigada pelos civilistas com tal qualificação (que lembra na sua traça a mordacidade do dar o dito por não dito) traduz-se de um modo geral na pretensão de alguém extinguir certa relação subjectiva, recorrendo ao direito de anular, resolver, revogar ou denunciar o negócio que lhe serviu de fonte, depois de fazer crer à parte contrária, por actos ou por palavras, que não exerceria tal direito”.[8]
Assim, o comportamento que se qualifica como venire contra factum proprium traduz, em geral, o exercício de uma posição jurídica em contradição com comportamento anteriormente assumido, pelo que, constituindo o novo comportamento uma clamorosa injustiça, permanecerá o comportamento inicial que tenha imprimido confiança aos sujeitos envolvidos.
Segundo o ensinamento do Prof. Baptista Machado[9] a aplicação da proibição do “venire contra factum proprium”, além da imputabilidade do facto gerador da confiança e da boa-fé da contraparte que confiou e, com base nessa confiança legítima, planeou a sua vida, fez disposições ou investimentos, tomou ou deixou de tomar outras iniciativas, exige que os danos que essa contraparte viria a sofrer sejam por outro modo “irremovíveis”.
A ideia imanente na proibição do “venire contra factum proprium” assenta na verificação, em primeiro lugar, de uma situação objectiva de confiança, numa conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura; depois, num “investimento” na confiança e irreversibilidade desse “investimento”; finalmente, na boa-fé da contraparte que confiou.
Em sentido semelhante, pronuncia-se Almeida Costa[10], quando refere que, para se concluir que uma conduta é abusiva, com fundamento no “venire contra factum proprium”, não basta concluir pela presença de uma situação objectiva de confiança, havendo ainda que averiguar a presença de outros dois aspectos: o investimento da confiança (correspondente às disposições ou mudanças na vida do destinatário que, não só evidenciam a expectativa nele criada, como revelam os danos irreversíveis que resultarão da falta de tutela eficaz) e a boa fé do sujeito que confiou (entendendo-se que a confiança apenas se mostra digna de protecção jurídica se o destinatário se encontrar de boa fé em sentido subjectivo, ou seja, se houver agido na suposição de que o autor do factum proprium estava vinculado a adoptar a conduta prevista e se, ao formar tal convicção, tiver tomado todos os cuidados e precauções usuais no tráfico jurídico).
Abrange-se na manifestação típica de “abuso do direito” uma posição jurídica que não tenha sido exercida, em certas circunstâncias e por certo lapso de tempo, não mais podendo sê-lo dado que, de outro modo, se estaria a contrariar a boa-fé.
Ora, transpondo estas considerações para o caso sub judice, facilmente constatamos que não existem elementos suficientes para concluir pela verificação de uma clamorosa ofensa ao princípio da boa fé que justifique a manutenção da ocupação do imóvel reivindicado por parte do Réu recorrente.
Na verdade, com relevância para a questão, apenas vem provado que desde Março de 2013, o Réu vem ocupando a aludida fracção autónoma mediante o pagamento da contrapartida mensal de €250,00 (ponto 7. da fundamentação factual).
Mas esse facto é, só por si, insuficiente para concluir pela existência de abuso de direito.
Efectivamente, nenhum quadro factual foi alegado pelo Réu, na contestação que apresentou, que permitisse concluir, uma vez provado, que o Autor nunca iria reivindicar o imóvel e que por consequência exigisse daquele a sua entrega, ou seja, que lhe tivesse criado uma qualquer expectativa ou convicção de que a situação da ocupação se iria manter indefinidamente.
Por outro lado também nada foi alegado pelo Réu que permitisse concluir da sua boa fé, no que toca à expectativa de que a ocupação do imóvel nos moldes que vinha sendo feita se iria manter por tempo indeterminado.
Com efeito, o que perpassa dos autos é que o Réu se foi acomodando a uma situação que lhe era vantajosa, isto é, manter-se na ocupação do imóvel pagando uma contrapartida que era muito inferior àquela que o Autor pretendia aplicar ao arrendamento anterior (€740.00) e que foi rescindido pelo Réu, na qualidade de sócio gerente da sociedade D…, Lda., por incapacidade financeira desta sociedade de suportar a aludida renda, ou seja, o Réu quer manter a ocupação da fracção refugiando-se num suposto contrato verbal de arrendamento que sabe ser nulo, mas
por uma contrapartida que representa menos de metade do valor que o Autor pretendia do anterior arrendatário, conquanto se pode conceber a ideia de que o Réu, tendo que formalizar qualquer contrato de arrendamento, estava ciente que o valor da renda seria muito superior à contrapartida de €250,00 que hoje paga pela sua ocupação.
A matéria de facto que ficou provada e alagada não aponta, pois, para uma clamorosa e intolerável ofensa ao princípio da boa fé e ao sentimento de justiça geralmente partilhado pela comunidade que possa justificar a manutenção da ocupação do imóvel por parte do Réu sem qualquer título que o legitime a tal.
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Improcedem, desta forma, todas as conclusões formuladas pelo Réu recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente por não provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pelo Réu apelante (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 11 de Janeiro de 2021.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] Esta norma, ao admitir a prova do contrato de arrendamento por qualquer meio, revela que a forma do contrato tem agora natureza inequivocamente ad probationem.
[2] Porque factos constitutivos da excepção a opor à nulidade por falta de forma.
[3] Alegando um continente factual do qual, uma vez provado, se retire tal conclusão.
[4] Concretizando factualmente essa utilização e demonstrando o pagamento da renda há já mais de seis meses.
[5] Porém, é consabido que a lei impõe às partes o ónus de alegação: ao autor, o de expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir (seja, a alegação dos factos essenciais que se inserem na previsão abstracta da norma ou normas jurídicas que definem o direito cuja tutela jurisdicional se pretende); ao réu, o de alegar os factos essenciais em que se baseiam as excepções invocadas.
Assim era no revogado Código de Processo Civil (cfr. artigos 264.º e 664.º) e assim continua a ser no novo CPC (artigo 5.º, n.º 1).
Na acção declarativa, sobre o réu impende o ónus de, na contestação, impugnar os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor, sob cominação de tais factos serem considerados admitidos por acordo (artigo 490.º, n.ºs 1 e 2, do anterior CPC, artigo 574.º, n.ºs 1 e 2, do novo CPC) e de deduzir todas as excepções que não sejam de conhecimento oficioso, à data conhecidas (artigo 489.º do anterior CPC, artigo 573.º do novo CPC).
Toda a defesa deve ser deduzida na contestação (princípio da concentração da defesa na contestação), exceptuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado; depois da contestação, só podem ser deduzidas as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.
[6] Cfr. por todos, Ac. da Relação de Lisboa de 04/11/2004 in www.dgsi.pt.
[7] In “Código Civil Anotado”, volume I, página 296, em anotação ao artigo 334.º.
[8] Antunes Varela, “Revista de Legislação e de Jurisprudência”, ano 127.º, n.º 3845, página 236.
[9] In Tutela da Confiança e “Venire Contra Factum Proprium”», em “Obra Dispersa”, volume I, Scientia Iuridica, Braga, 1991, página 406.
[10] In RLJ Ano 129º, pág. 62.