Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1598/17.0T8PVZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM CORREIA GOMES
Descritores: EXCEPÇÃO DA CADUCIDADE
CASO JULGADO FORMAL
Nº do Documento: RP201902211598/17.0T8PVZ-A.P1
Data do Acordão: 02/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º163, FLS.285-289)
Área Temática: .
Sumário: I - A força do caso julgado interno respeitante ao conhecimento de uma excepção peremptória, não só fixa a imutabilidade da parte dispositiva como da antecedente e nuclear parte fundamentadora que está em íntima conexão normativa com a mesma.
II - O conhecimento de uma excepção peremptória no despacho saneador exige que ocorra uma estabilidade dos factos e um estabilidade da resposta jurídica a ser dada à solução final, não sendo possível aquela e esta em virtude da factualidade revelar-se, nessa fase, controvertida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso n.º 1598/17.0T8PVZ-A.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes;
Adjuntos; Filipe Caroço; Judite Pires
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
I. RELATÓRIO

1.1. No processo n.º 1598/17.0T8PVZ-A do Juízo Local Cível da Póvoa do Varzim, J3, da Comarca do Porto, em que são:

Recorrente/Réus (RR): B…, Lda.; C…; D….

Intervenientes: E… – Companhia de Seguros, S. A.

Recorrida/Autora (A): F…

foi proferida decisão em 19/jun./2018, que julgou improcedente a excepção de caducidade, considerando-se que os factos aqui em causa correspondem a um contrato de empreitada de bens de consumo, integrando-se o mesmo no regime previsto no DL n.º67/2003, de 8/abr..
1.2 A A. interpôs esta acção contra as RR. em 10/nov./2017, dizendo que procurou os serviços médico-dentários das mesmas, sendo a primeira uma sociedade dentária e de odontologia, enquanto as demais são médicas dentistas que aí prestam serviços, tendo mediante aconselhamento destas últimas acordado na colocação de uma prótese fixa com utilização mínima de quatro implantes, feitas no próprio osso, com o custo de € 6.790,00, sem que a prótese cobrisse o palato, iniciando-se os procedimentos, em 10/abr./2015 e terminando em 14/jul./2016, sendo realizados e efectuados os pagamentos de forma escalonada, não estando, no entanto, a prótese de acordo com o seu perfil, cobrindo o palato, aparentando uma face deformada e causando-lhe desconforto e outros inconvenientes que descreveu. Mais sustentou que informou a segunda R. disso mesmo em 18/jul./2016, sendo-lhe retirada essa prótese em 21/jul./2016 e colocada uma nova prótese em 11/ago./2016, cuja base superior apenas cobria metade do palato, mantendo-se no entanto as queixas funcionais e estéticas anteriormente mencionadas, que logo comunicou, queixando-se da impossibilidade de manter essa mesma prótese, sendo agendada uma consulta para 26/set./2016, onde mais uma vez se queixou disso mesmo, tendo a 3.º R. concordado com a inadequação da prótese, aconselhando a uma outra opinião médica, o que ocorreu em 07/out./2016, onde tal foi reconhecido, informando as RR. disso mesmo em 10/out./2016e solicitando a A. o seu ressarcimento dos serviços pagos, o que foi recusado, tendo na reparação daqueles defeitos despendido €3.240,00, terminando pedindo a condenação das RR. a pagarem-lhe €6.640,00, acrescidos de juros à taxa legal até efectivo pagamento.
1.3 As RR. contestaram em 20/dez./2017 sustentando, na parte que agora releva, que o período de execução da prestação de serviços foi entre meados de 2015 até 26/set./2016, data em que a A. expressamente denunciou todas as queixas que invoca, pelo que há muito que deveria ter exercido o seu direito às indemnizações, face ao disposto no artigo 1224.º, n.º 1 Código Civil, mais suscitando, entre outras coisas, a intervenção provocada da E… – Companhia de Seguros, S. A.,
1.4 A A. replicou 01/fev./2018 mantendo a sua posição inicial e a inexistência de qualquer caducidade, sustentando-se no disposto no artigo 5.º-A, n.º 2, 3 do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08/abr., com as alterações do Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21/mai., considerando que esta legislação aplica-se ao presente caso por via do seu artigo 1.º-A, n.º 1 e n.º 2.
1.5 A interveniente E…, S. A., contestou em 21/mai./2018 invocando, entre outras coisas, que a execução do serviço reporta-se ao período entre meados de 2015 e setembro de 2016, pelo que há muito deveria ter exercido o direito de reclamar a indemnização a que diz ter direito.
2. As AA. interpuseram recurso da referida decisão em 13/jul./2018, pugnando pela sua revogação, concluindo do seguinte modo:
1. In casu, estamos perante a realização de um ato médico, nomeadamente de Medicina Dentária, mais especificamente por todo o processo de subtracção dentária, colocação de implantes, osteintegração e que culmina com a aplicação de uma prótese dentária;
2. O Tribunal a quo e o Mm.º Juiz qualificaram a relação contratual entre médico e paciente como um Contrato de venda de bens ao consumo, pelo regime de empreitada, de acordo com o DL nº 67/2003, de 8 de Abril;
3. Ora, na situação vertente, conforme acima invocado não se está somente perante a aquisição de uma prótese e, sempre se diga, nem sequer essa prótese foi a sugerida pelas recorridas;
4. Estamos perante uma prestação de serviços médicos, complexa, dilatada no tempo e que finaliza com a aplicação da prótese;
5. Salvo o devido respeito, um tal serviço não é compaginável com a aplicação ao mesmo do contrato de compra de bens de consumo;
6. Por definição, todo o processo ortodôntico de aplicação de prótese dentária, não cabe na letra da lei, do art.º 1.º-B, al. b) do DL n.º 67/2993 de 8 de Abril, e muito menos no seu espírito;
7. Não podemos de forma alguma comparar a realização de uma intervenção cirúrgica e ato médico, à compra, como já foi referido ao longo deste recurso, de uns simples electrodomésticos ou vestuário, por exemplo, para consumo próprio;
8. A relação jurídica aqui em causa e, consequentemente, a relação contractual no caso em questão, é efetivamente um Contrato de Prestação de Serviços, na modalidade de Contrato de Empreitada, pela realização da obra, que consiste em vários serviços que culminam na aplicação de prótese dentária;
9. Por via de regra, o Médico Dentista, tem uma Responsabilidade Civil Contratual, art.798º e ss. do Código Civil (CC), para com o paciente, onde caso haja qualquer violação de direitos e deveres na prestação dos serviços médicos, ou incumprimento do contrato tem o paciente o direito de indemnização;
10. Na situação vertente foram cumpridas as leges artis e amis do que contemplação, as Recorrentes, contra o seu parecer médico acederam a colocar uma terceira prótese fixa porque a Recorrida assim entendeu;
11.Ora, se regra geral, o médico está vinculado a uma obrigação de meios, quer dizer, que apenas lhe é exigível de tudo o que está ao seu alcance para atingir determinado fim, não se podendo nunca comprometer com o resultado final;
12. E tal foi o que aconteceu no caso em apreço;
13. Não se poderá, pois, confundir a mera entrega de uma prótese dentária, com todo o processo médico e ortodôntico, correspondente a diversas fases que se prolongam por mais de meio ano;
14. Tal processo, que só poderá ser levado a cabo por um medico dentista, é uma verdadeira prestação de serviços, mas ainda que se considere que se estabeleceu um contrato de empreitada, do mesmo resulta uma obrigação de meios para o médico e não uma obrigação de resultado, como sustenta a Jurisprudência e a Doutrina acima citadas;
15. Uma coisa é a prótese propriamente dita, a sua qualidade, eficácia, o facto de conforme às características materiais e técnicas garantidas;
16. Outra coisa é a sua aplicação a um paciente, sujeita às contingências específicas da sua compleição física, do osso, do processo prévio de osteointegração dos implantes;
17. O que reconduz à situação em apreço, pelo que a consideração de um processo médico e clínico, como venda de um bem de consumo, é algo que fere a sensibilidade de qualquer bonus pater familias, e não se compagina com a complexidade, particularidade e especialidade do serviço em causa.
3. A A. contra-alegou em 20/set./2018 pugnando pela improcedência do recurso, apresentando as seguintes conclusões:
1- Entre A./Recorrida e RR/Recorrentes foi celebrado um contrato de prestação de serviços, no âmbito médico dentário, para colocação de próteses e realização de implantes.
2- (independentemente da qualificação deste contrato como de empreitada).
3- A tal relação, atenta a natureza e qualidade das partes (consumidor e vendedor, ou seja, quanto a este último, pessoa que exerce com carácter profissional a actividade económica em causa), é aplicável a legislação sobre defesa do consumidor, a Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08 de Abril, com a redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio.
4- Aplicando-se a Lei de Defesa do Consumidor aos contratos de fornecimentos de bens e de prestação de serviços ou da transmissão de quaisquer direitos, apenas no âmbito dos contratos de consumo, ou seja, daqueles que envolvem actos de consumo, que vinculam o consumidor a um professional (produtor, fabricante, empresa de publicidade, instituição de crédito…).
5- E embora numa primeira análise pareça que o citado Decreto-Lei nº 67/2003 é aplicável somente ao contrato de compra e venda, tal não se verifica, sendo aplicável também, e nomeadamente: aos contratos de fornecimento de bens de consumo a fabricar ou a produzir, e, no que a este caso interessa, à prestação de serviços acessória da compra e venda (cfr. artigo 2º, nº 4, do Decreto-Lei nº 67/2003), e
6- E no regime da empreitada de bens de consumo, tendo em conta o disposto no n.º2 do art. 1.º-A, quanto aos meios de defesa conferidos ao dono da obra/consumidor, quer quanto à previsão de prazos especiais de caducidade previstos no art.5.º-A do aludido Diploma; pois:
7- As RR/Recorrentes têm o seu consultório aberto ao público e com a sua placa, enquanto Médicas Dentistas, encontram-se numa situação de proponentes contratuais.
8- Por seu turno, a A./Recorrida dirigiu-se às RR, tendo em vista beneficiar dos seus serviços clínicos, manifestando a sua aceitação a tal proposta.
9- Sendo hoje comummente aceite que o Médico e o Cliente estão ligados por um contrato, consensual, de execução continuada, oneroso, comutativo e sinalagmático.
10- Contrato que para além de um contrato civil é também um contrato de consumo e, portanto, merecedor de aplicação das adequadas regras de proteção dos consumidores.
4. Admitido o recurso foi o mesmo remetido a esta Relação, onde foi autuado em 30/out./2018, tendo sido proferido despacho liminar e remetido aos vistos.
5. Não existem questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito do presente recurso.
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O objecto deste recurso cinge-se à decisão que julgou improcedente a invocada caducidade do direito da A.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. A decisão recorrida
Nesta e entre outras coisas conheceu-se dos seguintes pressupostos, transcrevendo-se a parte relevante dos mesmos, para a questão aqui em apreço.
1.1 Legitimidade processual
“Assim, independentemente da qualificação jurídica dos factos – isto é, de saber se, como a autora sustenta, é de convocar o instituto da responsabilidade civil contratual ou se aqueles mesmos factos permitem também julgar verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, o que apenas revelará ao nível do mérito da causa –,impõe-se concluir que, em face da relação material controvertida, as segunda e terceira rés têm interesse em contradizer a pretensão da autora. Nesta medida, é de concluir que também estas rés são parte legítima.”
1.2 caducidade do direito
“As rés e a interveniente principal defenderam-se por excepção e sustentaram a caducidade do direito invocado pela autora. Analisando a factualidade alegada e a qualificação jurídica de tais factos que as partes convocam, importará perspectivar o sinalagma obrigacional assumido contratualmente como um contrato de empreitada. Conforme prevê o art. 1207.º do Código Civil, diz-se de empreitada o contrato “pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço”, sendo a obra aqui a prótese realizada e colocada na autora.
Ao nível do contrato de empreitada, o Código Civil prevê um regime especial para o cumprimento defeituoso, seja quanto aos meios de defesa conferidos ao dono da obra, estabelecendo um iter sequencial, nos arts. 1221.º e 1222.º, seja quanto à previsão de prazos especiais de caducidade a que aludem os arts. 1120.º e 1224.º.
Contudo, tendo em conta a qualidade das rés conforme alegado nos arts. 1.º e 2.º da petição inicial, factualidade aliás aceite, e o tipo de obra realizada, isto é, a colocação de uma prótese dentária na autora, julga-se ser de convocar o regime da empreitada de bens de consumo, concretamente o regime previsto no DL n.º67/2003, de 8 de Abril, tendo em conta o disposto no n.º 2 do art. 1.º-A, tanto que este regime é, em benefício do consumidor, mais flexível quer quanto aos meios de defesa conferidos ao dono da obra/consumidor, quer quanto à previsão de prazos especiais de caducidade previstos no art. 5.º-A do aludido Diploma.
Pelo exposto, julgo improcedente a excepção da caducidade.”
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2. Fundamentos do recurso
O NCPC estabelece no seu artigo 595.º, n.º 1, que “O despacho saneador destina-se a: ... b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção peremptória.” Tal despacho, transitado em julgado, fixa de modo imutável o sentido decisório quanto a essa excepção, face ao disposto no artigo 91.º, n.º 2, por interpretação a contrario – aqui se preceitua que “A decisão das questões e incidentes suscitados não constitui, porém, caso julgado fora do processo respetivo, exce[p]to se alguma das partes requerer o julgamento com essa amplitude e o tribunal for competente do ponto de vista internacional e em razão da matéria e da hierarquia”.
Para o efeito, a jurisprudência tem considerado que as excepções peremptórias, “como fundamentos de defesa, traduzem-se em questões fundamentais, preliminares em relação ao thema decidendum, delimitando, negativa e internamente, a pretensão deduzida pelo autor”, observando que a decisão que conheça dessa mesma excepção peremptória “inscreve-se no domínio da relação material controvertida e pode ser proferida imediatamente no despacho saneador, se o estado do processo o permitir sem necessidade de mais provas, mesmo que, quando julgada improcedente a excepção, o processo deva prosseguir para conhecimento da existência do direito em causa” – Ac. STJ de 26/mar./2015, Cons. Tomé Gomes, www.dgsi.pt, assim como os demais a que se faça referência sem indicação da sua origem, sendo nosso o negrito.
Também tem sido sustentado que a força do caso julgado abrange tanto as questões directamente decididas, assim como o antecedente lógico e necessário a essa mesma decisão, de modo que sem aquela fundamentação esta não existia – Ac. STJ de 29/set./2018, Cons. Tomé Gomes.
Daqui decorre que a força do caso julgado interno respeitante ao conhecimento de uma excepção peremptória, não só fixa a imutabilidade da parte dispositiva como da antecedente e nuclear parte fundamentadora que está em íntima conexão normativa com a mesma. Mais acresce, que o conhecimento dessa excepção peremptória no despacho saneador exige que ocorra uma estabilidade dos factos que estão subjacentes à apreciação dessa mesma questão, ou seja, que essa factualidade não se mostre controvertida.
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Por sua vez, a responsabilidade civil por actos médicos tanto pode ter incidência contratual (405.º Código Civil), mais precisamente como um contrato de prestação de serviços (1154.º C. C.), como extracontratual (483.º Código Civil), ou mesmo ambas – tanto mais que podemos estar perante uma sociedade que prestou esses serviços através de médicas-dentistas por si contratadas. Este alinhamento tem sido sustentado pela generalidade da jurisprudência, como sucede com os Ac. STJ de 27/nov./2007, Cons. Rui Maurício; 28/mai./2015, Cons. Abrantes Geraldes; 07/mar./2017, Cons. Gabriel Catarino; 22/mar./2018, Cons. Maria Graça Trigo.
No que concerne ao exercício da medicina-dentária, partindo da distinção entre obrigações de meios e de resultado, a jurisprudência, mormente desta Relação, tem vindo a colocar-se na posição que estamos no âmbito dos contratos de prestação de serviços, ocorrendo com alguma frequência esta última modalidade da obrigação de resultado. Tal sucedeu nos casos de “intervenções médico-dentárias com fins predominantemente estéticos, tais como colocação de próteses, restauração de dentes e até a realização de implantes” (TRP de 05/mar./2013, Des. Henrique Araújo), a “colocação de 21 coroas em zircónia e duas pontes no mesmo material em determinados dentes ... estando a boca já devidamente preparada para o efeito” (TRP Ac. 17/jun./2014, Des. Pinto dos Santos), “a colocação de próteses e certas operações onde os objectivos a alcançar não dependem senão da competência técnica dos médicos, podem e devem configurar-se como obrigações de resultado” (Ac. TRP de 28/mar/2017, Des. Fernando Samões).
Consoante se considere existir um contrato de prestação de serviços ou então um acto de responsabilidade extracontratual, os prazos de prescrição do direito são distintos, porquanto na responsabilidade contratual a regra geral é de 20 anos (309.º Código Civil), enquanto na responsabilidade delitual a regra geral é de 3 anos (498.º Código Civil). Por sua vez, o regime legal de uma e outra responsabilidade são igualmente diferenciados, designadamente quanto ao ónus de prova da culpa, porquanto, e em regra, na contratual, designadamente quando se trata de uma obrigação de resultado, o mesmo está a cargo de devedor (799.º, n.º 1 Código Civil), enquanto na extracontratual esse ónus de prova é da incumbência do lesado (487.º, n.º 1 Código Civil).
No caso em apreço as RR. colocaram, na sua versão dos factos, como aplicável o regime legal do contrato de empreitada, cuja noção encontra-se no artigo 1207.º do Código Civil, estando a disciplina dos defeitos de obra elencados nos artigos 1218.º a 1226.º, enquanto a decisão recorrida proferida no âmbito do despacho saneador, convocou o regime do contrato de empreitada de bens de consumo, por via do artigo 1.º- A, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 08/abr., que estabelece o regime jurídico para a conformidade dos bens móveis com o respectivo contrato de compra e venda. No regime geral da empreitada o prazo regra para denúncia dos defeitos é de 1 ano (1224.º), enquanto o prazo regra da empreitada para bens de consumo é de 2 anos (artigo 5.º, n.º 1), sem cuidar de algumas especificidades dessas disciplinas. O ónus de prova num caso e noutro é semelhante, cabendo ao credor o cargo da existência do defeito (342.º, n.º 1 Código Civil) e ao devedor que a culpa não é sua (799.º, n.º 1 Código Civil).
Daqui decorre a possibilidade de existência de uma multiplicidade de respostas jurídicas, com pressupostos e regimes distintos, as quais aconselham uma ajustada ponderação decisória sobre a oportunidade de conhecimento de uma excepção peremptória na fase do despacho saneador, atento os vínculos daí decorrentes do caso julgado interno, não só da sua parte decisória, mas também da sua fundamentação normativa intimamente conexionada. Mais acresce, que para a apreciação dessa mesma excepção peremptória na fase do despacho saneador deve existir uma estabilidade dos factos que estão subjacentes ao conhecimento dessa questão de direito.
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A decisão recorrida optou por enquadrar, desde já, a prestação dos serviços médico-dentários aqui em causa, respeitantes a todas as RR., no contrato de empreitada de bens de consumo, baseado nos artigos 1.º e 2.º da p.i., partindo do pressuposto que esta factualidade está assente por acordo, assim como do tipo de obra realizada. No entanto, a matéria daquele artigo 2.º está parcialmente impugnada pelo artigo 21.º da contestação das RR. e o cerne daquilo que a decisão recorrida considerou como “obra”, que está descrito no artigo 6.º da p.i., foi totalmente impugnado pelo artigo 23.º da referida contestação. Aliás, no conhecimento da excepção dilatória da legitimidade deixou-se em aberto a qualificação jurídica dos factos, tanto no âmbito da responsabilidade contratual, como na responsabilidade extracontratual.
Isto significa que não estando estabilizados os factos, em virtude dos mesmos estarem controvertidos, que permitem o conhecimento da invocada prescrição ou caducidade do direito – tratam-se, como se sabe, de institutos e regimes jurídicos distintos –, e não havendo uma unanimidade na resposta jurídica que possa ser dada ao caso jurídico a final, o qual condiciona a solução a dar relativamente à presente excepção peremptória, porquanto até se pode tornar completamente estéril a sua apreciação face ao mencionado prazo-regra de 20 anos, tudo aconselhava que tivesse sido remetido para final o conhecimento da mesma. Nesta conformidade, a decisão recorrida deve ser revogada, ainda que por razões totalmente distintas das formuladas pelas recorrentes.
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Tendo a A. recorrida decaído no presente recurso, as custas do mesmo ficam a seu cargo – 527.º, n.º 1 e 2 NCPC.
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No cumprimento do disposto no artigo 663.º, n.º 7 do NCPC, apresenta-se o seguinte sumário:
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III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, delibera-se conceder provimento ao recurso interposto pelas RR. C…, Lda., C… e D… contra a A. F… e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida quanto à mencionada excepção peremptória, remetendo o seu conhecimento para final.

Custas deste recurso pela recorrida.

Notifique.

Porto, 21 de fevereiro de 2019
Joaquim Correia Gomes
Filipe Caroço
Judite Pires