Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
706/22.3SLPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
AGRAVAÇÃO
CRIMINALIDADE VIOLENTA
PERIGOSIDADE
CONTINUAÇÃO CRIMINOSA
PRISÃO PREVENTIVA
PROIBIÇÃO DE CONTACTOS
Nº do Documento: RP20240221706/22.3SLPRT-A.P1
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – Estando um arguido fortemente indiciado pela prática de três crimes de violência doméstica agravados, p. e p. pelo artº 152º, nº 1, al. d) e nº 2 al. a), do Código Penal, tipo legal de crime que integra a noção de “criminalidade violenta”, previsto na alínea j) do artigo 1º do Código de Processo Penal, tal legitima a aplicação da prisão preventiva nos termos do disposto no artigo 202º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal, caso se verifiquem os demais pressupostos legais.
II – Sendo os crimes particularmente graves - integrando três crimes de violência doméstica contra pessoa especialmente indefesa (a mãe muito idosa do arguido), cometidos ao longo de vários anos, tendo o arguido chegado ao ponto de tentar condicionar e impedir a atuação dos elementos do INEM que foram socorrer a vítima, além de ter tentado encobrir a prática dos crimes e o socorro à sua mãe, procurando ainda apurar o seu paradeiro após a mesma ter sido integrada em instituição para protecção contra o seu comportamento violento – e sofrendo o arguido de um transtorno de personalidade (borderline), do qual resulta uma perigosidade acrescida que, no limite, poderá gerar perigo de confronto físico com a sua mãe, colocando em risco a própria vida desta, qualquer outra medida de coação – incluindo a proibição de contactos - que não seja efetivamente privativa da liberdade, seria insuficiente e inadequada para acautelar o perigo de continuação da atividade criminosa, justificando a aplicação de prisão preventiva.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 706/22.3SLPRT-A.P1
Data do acórdão: 21 de Fevereiro de 2024

Desembargador relator: Jorge M. Langweg
Desembargadora 1ª adjunta: Cláudia Sofia Rodrigues
Desembargador 2º Adjunto: Raúl Cordeiro

Origem:
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Instrução Criminal do Porto

Acordam, em conferência e por unanimidade, os juízes acima identificados da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos, em que figura como recorrente o arguido AA;


I -  RELATÓRIO

1. Por despacho datado de 16 de Outubro de 2023, considerando os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, foi aplicada ao arguido a medida de prisão preventiva, substituída pelo internamento preventivo no Anexo Psiquiátrico do EP ... ou estabelecimento análogo adequado ao abrigo do artº 202 º, nº 2 do CPP, por se encontrar fortemente indiciado pela prática de três crimes de violência doméstica agravados, p. e p. pelo artº 152º, nº 1, al. d) e nº 2 al. a), do Código Penal e se indiciar também fortemente que o arguido sofre de anomalia psíquica.

2. Inconformado, o arguido interpôs recurso do despacho, terminando a motivação de recurso com a formulação das seguintes conclusões:

“A 16/10/2023, em 1º interrogatório, foi aplicada ao arguido a medida de coação de prisão preventiva, substituída pelo internamento preventivo.

O arguido discorda da aplicação da medida de coação mais gravosa.

Há mais de um ano (!), em 17/09/2022, a mãe do arguido foi afastada do arguido e colocada numa instituição de solidariedade social, sem ser o arguido informado quanto ao seu paradeiro.

Durante mais de um ano (desde 17/09/2022 até 16/10/2023) o recorrente não foi constituído arguido, nem lhe foram aplicadas quaisquer proibições ou imposições de condutas.

Durante este período temporal, o arguido interrogou os autos sobre o estado de saúde da sua mãe, demonstrou saudade e preocupação com o afastamento aplicado pelo Tribunal.

Durante este período temporal, nunca foi dada qualquer resposta ou esclarecimento ao arguido sobre a sua mãe.

Após o arguido ter contactado telefonicamente uma instituição de solidariedade social acerca do possível acolhimento da sua mãe e não lhe ter sido dada essa informação, tal foi reportado aos autos e decidiu-se promover a detenção do recorrente para o interrogatório, para (finalmente) ser constituído como arguido e foi peticionada a medida de coação de prisão preventiva, no pressuposto de que este telefonema do Arguido era uma tentativa de chegar ao contacto com a sua progenitora e que consubstanciaria uma possibilidade de continuação da atividade criminosa (de praticar novos factos de violência doméstica).

Após 1º interrogatório, o Tribunal de Instrução Criminal determinou a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, substituída pelo internamento preventivo que o arguido discorda.

O arguido não tentou insistentemente saber o paradeiro da sua mãe.

O arguido não forçou o contacto com a sua mãe.

O arguido não tentou insistentemente contactar a sua mãe.

O arguido não tentou nem importunou a paz e a tranquilidade da sua mãe.

Inexiste qualquer probabilidade de o arguido continuar a importunar, maltratar e desrespeitar a sua mãe.

Se o arguido não o fez durante mais de um ano em que não estava sequer proibido, muito menos o faria ou se pode dar como uma forte probabilidade que o faça após ser constituído arguido e após, caso assim o entendam, lhe aplicarem proibições e imposições de condutas.

Até ser aplicada pelo Tribunal uma proibição de contactar, não se pode afirmar e supor que o recorrente (à data nem sequer arguido) possa já estar proibido de contactar ou de tentar saber da sua mãe.

Se o Tribunal e o Ministério Público não aplicaram qualquer imposição ou proibição ao arguido até 16/10/2023 é porque assim o entenderam fazer.

O que não pode ser tolerado é o que agora se pretende, isto é, utilizar essa não aplicação de imposições ou proibições a alguém que nem sequer era Arguido, para fundamentar que essa suposta medida foi violada e assim aplicar uma medida mais gravosa, a prisão preventiva.

Inexiste perigo de continuação da atividade criminosa.

A ofendida está albergada em instituição de solidariedade social.

Não se vislumbra como o arguido possa aceder à mesma.

Nem sequer como a ofendida com mais de 90 anos possa receber um contacto à distância por parte do arguido, sem que esses meios de contacto não sejam controlados por pessoas da instituição.

Recorde-se que, se até ao momento, inexistiu qualquer contacto ou tentativa de contacto por parte do arguido, muito menos o será a partir do momento em que se possa aplicar a proibição de tais contactos.

A aplicação de uma medida de coação privativa da liberdade, nomeadamente a prisão preventiva, apenas pode ser aplicada em ultima ratio.

A serem aplicadas medidas de coação ao arguido, parece-nos que a primeira medida minimamente plausível seria a imposição de condutas, nomeadamente a de proibir de contactar, de tentar contactar e de se aproximar da ofendida.

Imposições essas que poderiam ser controláveis com recurso a meios técnicos de controlo à distância e com o auxilio das pessoas da instituição.

O despacho que decretou a medida de coação ao Arguido violou assim os artigos 193.° e 204.° do CPP.

Deve assim ser revogada a medida de coação de prisão preventiva aplicada ao Arguido, substituindo-a por outra menos gravosa, que não implique a privação da liberdade.

Termos em que, e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogado o despacho que aplicou a medida de coação de prisão preventiva aplicada ao arguido,

Substituindo-a por outra menos gravosa, que não implique a privação da liberdade.”

3. Notificado da motivação do recurso, o Ministério Público junto do Tribunal a quo apresentou resposta, reiterando, no essencial, os factos fortemente indiciados, bem como a fundamentação jurídica do despacho recorrido e acrescentando, nomeadamente, as seguintes passagens:

“Deste modo, resultam, das declarações do próprio arguido, as seguintes conclusões:

O AA foi para a residência da ofendida por motivos «de comodidade pessoal», ainda que a mesma, a dado momento, não o quisesse num arrendamento que datava antes da respetiva viuvez e de onde aquele saiu e, depois do(s) divórcio(s), regressou.

Que a sua mãe só teria «mau feitio» com ele. Que o arguido tinha conhecimento que a ofendida estava recolhida por ordem do Tribunal, em instituição cujo nome e localização lhe era de conhecimento vedado.

Ainda assim, arrogou-se (também no interrogatório) do direito de aceder a estes dados e não se absteve de fazer uma série de diligências para o efeito. Mas não para o bem da sua mãe (até porque obstou a entrega, por intermédio da polícia, dos bens/medicação essencial à mesma).

Acresce que o arguido escreveu uma série de cartas de conteúdo intimidatório, apresentou denúncia contra a Sra, Juiz que (como sabia) havia tomado declarações para memória futura, contra a Dirigente SEIVD e contra a Diretora do DIAP Regional e afirmou, perante a Polícia de Segurança Pública que tinha estado na guerra do Ultramar e que mataria um azgnte, um chefe, um procurador, sem problemas.

O arguido responsabilizou a ofendida por uma série de atitudes e condutas pensadas («claro que há interesses, atualmente, há interesses, a minha mãe tem muito interesse»), mas - em manifesta contradição e sempre que lhe convinha - invocava um estado demencial da mesma (que o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses infirmou), acrescentando (ele) «nós não podemos acreditar em tudo o que as pessoas dizem».

E o arguido fez referência a uma anterior cuidadora da ofendida, que poderia apresentar como testemunha do que alegou, mas que (por azar) ja tinha falecido.

No entanto, de acordo com o depoimento de fls. 556, a anterior cuidadora chegou a desabafar que «não aguentava ver tanto mau trato na idosa por parte do filho», o qual «era uma pessoa de má índole e provocadora e malcriada e que tratava mal a sua mãe».

Por fim, não é despiciente que o arguido, conforme admitiu: «Acerca das doenças: portanto, eu, realmente, sofro do stresse pós-traumático da Guerra Colonial e foi-me diagnosticado no…, no…, no… , Eu estive em Moçambique, estive cá e estive em Moçambique e, portanto, e foi-me diagnosticado no Hospital Militar ..., ali na ..., uma doença que eles chamaram “Borderline”, Borderline 1...

(…)

Acresce que a ofendida ja prestou declarações para memória futura, confirmando as imputações efetuadas ao arguido, declarando não pretender voltar a residir com o mesmo.

(…)

Face à brevidade da presente resposta, dispensamo-nos de efetuar qualquer tipo de conclusões; pelo que:

e atento o aduzido supra, pugna-se pela manutenção da situação processual do arguido.”

4. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, subindo nos termos legais - imediatamente, em separado e com efeito devolutivo -.
5. Nesta instância, o Ministério Público emitiu parecer, propugnando a confirmação do despacho recorrido, atento o teor deste e pelas razões constantes da resposta do MP na 1ª instância, “com o qual estamos de acordo, e aderimos, não oferece razão a posição do arguido Recorrente”, pelo que sou de parecer que o recurso não merece provimento mantendo-se na íntegra o despacho recorrido.
6. Não foi produzida qualquer resposta ao parecer.
7. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal].


*

Questões a decidir:

Do thema decidendum do recurso:

Para definir o âmbito do recurso, a doutrina[1] e a jurisprudência[2] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.

A função do tribunal superior perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à sua apreciação, mediante a formulação de um juízo de mérito.

Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir as questões substanciais a seguir concretizadas – sem prejuízo de conhecimento de eventual questão de conhecimento oficioso – que sintetizam as conclusões do recorrente:

a) O arguido não violou qualquer proibição ou imposição de conduta, nem havia sido constituído, previamente, como arguido;

b) O arguido não tentou insistentemente contactar a sua mãe;

c) A prisão preventiva mostra-se excessiva, sendo suficiente a sujeição do recorrente à proibição de contactos com a sua mãe;


*

II – FUNDAMENTAÇÃO


Para aferir o mérito do recurso, importa começar por recordar o teor da fundamentação do despacho recorrido:

A - Os crimes fortemente indiciados:

No despacho recorrido, o tribunal “a quo” considerou fortemente indiciada a prática, pelo recorrente, em autoria imediata, na forma consumada e em concurso efetivo de fortemente indiciada a prática pelo arguido de três crimes de violência doméstica agravados, p. e p. pelo artº 152º, nº 1, al. d) e nº 2 al. a), do Código Penal.

B - Os factos concretos fortemente indiciados e não impugnados no recurso:

“A ofendida BB nasceu a ../../1929, contando portanto, em 2022, com 93 anos de idade.

A mesma enviuvou no ano de 1998, passando a residir sozinha, na morada sita na Rua ..., Porto, até aí ter acolhido o denunciado, seu filho, após cumprimento de cinco anos de prisão efetiva.

Mercê da sua idade avançada e à sua fragilidade física (nomeadamente, por artroplastia total do joelho direito no ano de 2012), a ofendida não tinha capacidade física, mas também psíquica ou emocional para reagir aos destrates do denunciado, seu filho.

Por seu turno, este conta com um longo historial de condenações, nomeadamente:- por um crime de violação, cometido a 23 de Fevereiro de 1992; - por um crime de sequestro, cometido na mesma data; - por um crime de violação na forma tentada, cometido a 4 de Abril de 1992; - por um crime de sequestro, cometido na mesma data; - por um crime de violação na forma tentada, cometido a 2 de Maio de 1992; - por um crime de sequestro cometido na mesma data; - um crime de burla agravada, cometido em Dezembro de 1987; - um crime de burla agravada, cometido em Novembro de 1990; - um crime de burla agravada, cometido em Dezembro de 1990; - um crime de burla agravada cometido em Dezembro de 1987; - um crime de «ofensas corporais», cometido a 4 de Fevereiro de 1992 - um crime de cheque sem provisão cometido a 29 de Janeiro de 1993;

Por estes factos, o arguido cumpriu uma pena de prisão (beneficiando de vários perdões legais) desde 20 de Outubro de 1995 e até 29 de Dezembro de 2000, data em que lhe foi concedida a liberdade condicional até 29 de Dezembro de 2005.

Acresce que o aqui denunciado, AA, foi ainda condenado:

- no Processo nº 2109/02.7TAMTS, por um crime de denúncia caluniosa;

- no Processo nº 7856/09.0TDPRT, por um crime de injúria;

- no Processo nº 908/15.9PPPRT, por um crime de ofensa à integridade física qualificada e um crime de perseguição, em relação a uma ofendida que chegou a prestar serviço de apoio domiciliário à aqui ofendida; e

- no Processo nº 734/01.2PCMTS, por um crime de ofensa à integridade física, um crime de ameaça, um crime de dano, um crime de difamação e um crime de injúria, reportados a uma pretérita relação de intimidade com CC.

Aliás, o denunciado contraiu matrimónio:

- com DD a 29 de Junho de 1979, tendo o divórcio sido decretado logo no dia 22 do mês seguinte;

- com EE a 30 de Abril de 1982, com divórcio decretado a 29 de Novembro de 1985;

- com que voltou a casar a 5 de Junho de 1987 e a divorciar a 11 de Fevereiro de 1991.

Ora, já no período da liberdade condicional concedida ao denunciado na primeira cumulação de penas, foi dado nota – para além da incapacidade do mesmo em manter um contrato de trabalho (supondo-se sempre vítima de desconsideração) – de um clima de conflito desta com a mãe que o havia acolhido na respetiva residência, sita na Rua ..., Porto.

Na realidade, desde que foi morar com a ofendida, que o denunciado – com uma frequência quase diária – a destratava, apodando-a de «velha» e «puta velha» e declarando-lhe «vai para um lar», «vá para um manicómio, é o que você precisa de ir».

Nestas circunstâncias, o denunciado desferia-lhe murros na cabeça e batia com esta nas paredes da habitação.

Acresce que, não obstante a sua idade avançada, era a ofendida quem limpava a casa e tratava de toda a roupa, limitando-se o denunciado a criticar e, muitas vezes,  porque não satisfeito, a agredi-la.

Também, num número indeterminado de ocasiões, o denunciado arrombou e, depois, abriu a porta do quarto onde a ofendida descansava e – sem mais – desferia-lhe, com as mãos, pancadas na cabeça ou puxava-a para a sala.

Acresce que, em data não apurada, por volta do ano de 2018, o denunciado conduziu a ofendida até à Banco 1..., logrando a que a mesma o colocasse como pessoa autorizada a movimentar a sua conta bancária.

A partir daí, a ofendida deixou de ter acesso ao seu dinheiro ou aos montantes mensais que recebia como reforma.

E numa das ocasiões em que a ofendida referiu: «então eu trabalhei tanto, tanto, tanto, na costura, em casa, ajudar o teu pai e não vejo dinheiro nenhum meu», o denunciado declarou-lhe – em tom sério, convincente e intimidatório – «se você me pedir outra vez o dinheiro, eu mato-a».

Com medo, a BB nunca mais ousou falar do assunto com o denunciado.

Acresce que, o mesmo não trabalhava, vivendo dos rendimentos da ofendida e, a 25 de Maio de 2020, foi declarado insolvente.

Em concreto:

Na tarde de 18 de Julho de 2015, contava a ofendida com 86 anos de idade, o denunciado desferiu-lhe um número indeterminado de bofetadas na face e empurrou-a, fazendo com que a mesma caísse desamparada no chão.

Aí, o denunciado desferiu-lhe de pontapés, atingindo-a na face, cotovelo e joelho direitos.

Como consequência direta e necessária desta conduta, a BB sofreu as lesões descritas nos registos clínicos constantes de fls. 376 a 377.

À data, a ofendida manifestava um evidente receio que o denunciado ficasse a saber que tinha solicitado o apoio policial. E assim, no dia 11 de Novembro de 2015, a ofendida negou que o denunciado a agredisse e declarou não desejar procedimento criminal contra o mesmo.

Também nessa época, já o denunciado alegou que a mesma sofria de «alguma demência» e apresentava um «discurso incoerente e incompreensível».

Também nessa data o denunciado apresentou um documento manuscrito por si em que a ofendida, desta vez invocando «perfeito estado de consciência», o autorizava a utilizar o cartão multibanco e caderneta reportada à sua conta nº ...600 da Banco 1..., que datou de 1 de Janeiro de 2015 e logrou com que a ofendida, por medo de represálias físicas, apusesse a respetiva assinatura.

Interrompido, assim, o referido ciclo de violência – até porque o AA foi interrogado como arguido no Inquérito sobre aqueles factos (NUIPC 430/15.3SLPRT, reaberto e junto), o arguido acabou por formular nova resolução criminosa, no sentido de destratar a ofendida física, psíquica e emocionalmente, de a isolar e de fazer seus todos os montantes pecuniários que a mesma recebia, gastando-os como lhe aprouvesse.

E assim:

Cerca das 15:00 horas do dia 27 de Março de 2019, no interior da referida residência, o denunciado insurgiu-se contra a ofendida por ter lavado os recipientes onde eram entregues as refeições (de apoio domiciliário) e menorizou-a, afirmando «não és mãe, não és nada».

À época eram constantes as discussões que o denunciado travava com a ofendida, sem motivo aparente, mas que a perturbavam no seu bem-estar físico, psíquico e emocional.

A partir de Dezembro de 2018, a ofendida passou a beneficiar, de forma contínua, de apoio domiciliário, para alimentação da ofendida.

Em data indeterminada do mês de Maio de 2019, e quando a Diretora Técnica da referida entidade pegou numa das mãos da ofendida, num gesto de aproximação emocional, a mesma – com medo do denunciado – sussurrou-lhe para que não o fizesse porque o seu filho não gostava.

E, de facto, o denunciado advertiu, de imediato, a referida Diretora Técnica que estava a dar «mimo demais» àquela e que «depois quem a atura sou eu», menorizando-a e infantilizando-a.

A partir daí os funcionários da referida Instituição passaram a estar proibidos de entrar na referida residência, entregando as refeições à porta e diretamente ao próprio denunciado.

Só que, porque uma anterior cuidadora – cuja identidade (ainda) não se logrou apurar – foi despedida pelo denunciado e chegou a afirmar «não aguentar ver tanto mau trato na idosa por parte do filho», em Dezembro de 2019 o mesmo exigiu que a «Associação ...» passasse a assegurar o apoio à higiene pessoal da ofendida.

Nesses momentos, com frequência bissemanal, o denunciado não deixava de estar por perto, no sentido de controlar o que a ofendida pudesse dizer e assumia uma posição de dominância declarando para esta «deixa as meninas fazer o trabalho delas», «eu é que lhes pago e eu é que sei o que é preciso», «tu, está calada», «eu é que sei» e «vê lá se tens cuidado com a água que tu gastas a água toda», mais uma vez a humilhando, rebaixando e infantilizando.

Por outro lado, o denunciado enviava mensagens às referidas técnicas, ou pedindo desculpa por algum mal-entendido, ou invocando possível denúncia contra elas no Ministério Público.

Ora, quando as Sras. Técnicas da Associação se apercebiam dos hematomas no corpo da ofendida, a mesma justificava com quedas ou que tinha batido com a cabeça da mesa-de-cabeceira da cama.

No entanto, por uma ocasião a BB chegou a confidenciar que o denunciado lhe batia muito e que tinha medo dele, pelo que não queria apresentar queixa.

A partir de Maio de 2020, o denunciado passou a impor a sua presença durante os atos de higiene da sua mãe, violando o pudor e privacidade da mesma e adotando uma postura autoritária sobre as Sras. Técnicas, que – para além do mais – não podiam travar qualquer tipo de conversa com aquela.

Na manhã de 5 de Maio de 2020, o denunciado não ligou o cilindro para que a ofendida pudesse tomar banho com água quente, afirmando que esta não merecia melhor e retirou-lhe o telemóvel, no sentido de impedir que pudesse contactar e comentar tal facto.

De facto, por várias vezes a ofendida pediu às referidas Sra. Técnicas para intercederem junto do filho no sentido de o mesmo ligar o cilindro e devolver-lhe o telemóvel.

Acresce que, à época, o denunciado também deitava ao lixo algumas as refeições fornecidas por aquela entidade.

Ora, ciente que as Sras. Técnicas da referida Associação já se tinham apercebido – ou, pelo menos, suspeitado – que o denunciado também agredia fisicamente a mãe, o mesmo passou a escrever uma série de missivas denegrindo e intimidando os elementos desta entidade.

Para além disso, fazendo-se passar pela própria ofendida, o denunciado escreveu e remeteu para o processo, duas cartas (fls. 149 e ss. e 190 e ss.) com a assinatura da própria ofendida na parte final, num tipo de escrita e discurso em tudo idêntico às restantes missivas assumidas pelo próprio.

Em declarações prestadas naqueles autos – na residência comum – a ofendida negou ser vítima de maus tratos, referindo que a última carta junta «foi escrita pelo  filho mas traduz fielmente a sua vontade, tendo assinado a mesma».

Só que, a BB nada tinha a apontar aos profissionais da referida Associação, pelo que ensaiou uma justificação sobre a denúncia apresentada, uma vez que «as funcionárias que lhe prestavam apoio domiciliário não gostam do seu filho». Nesse processo o AA foi interrogado, como arguido, alegando (uma vez mais) que a sua mãe padecia de perdas de lucidez e que tal Inquérito (NUIPC263/20.5SJPRT, reaberto e junto) decorria de eventual retaliação dos responsáveis da referida entidade de apoio.

A partir daí, o denunciado reformulou a sua resolução criminosa, isolando completamente a ofendida, obstando à entrada de qualquer pessoa na citada residência, nomeadamente o seu irmão e filho mais novo desta, não permitindo o apoio domiciliário de qualquer entidade e impedindo a entrada de qualquer elemento policial ou técnico de saúde.

Para além disso, o denunciado impedia a sua mãe de efetuar chamadas telefónicas, chegando a instá-la a esquecer que tinha outro filho.

E cerca das 19:35 horas do dia 17 de Setembro de 2022, no interior da citada residência, o denunciado agrediu a ofendida, sua mãe e pessoa de idade muito avançada, desferindo-lhe um número indeterminado de murros e bofetadas na cabeça e um pontapé numa perna (que já tinha uma prótese).

Deste modo, a ofendida foi-se aproximando de uma janela da referida habitação, gritando por socorro, pelo que o denunciado a puxou e empurrou (com força) para fora do campo de visão exterior e para fora do acesso da ofendida também ao exterior, gritando com a mesma. Como consequência direta e necessária da conduta do denunciado, a ofendida BB sofreu as lesões descritas e examinadas no relatório constante de fls. 290 e 374 a 375.

À data, a mesma foi assistida no local por elementos de emergência médica (INEM), os quais foram alvos de insultos e de tentativa de agressão por parte do denunciado (fls. 290) e foi conduzida ao Hospital de S. João, no Porto.

À data, a ofendida referiu que não era a primeira vez que tinha sido fisicamente maltratada pelo filho, mas que, por vergonha, não denunciava tais factos.

E também à data, a ofendida cooperou no preenchimento da Ficha de Avaliação de risco, respondendo positivamente aos itens:

- que já tinha existido uso de violência física (corroborando o que tinha dito informalmente aos Srs. Agentes), iniciada há cerca de um mês;

- que «o número de episódios violentos e/ou a sua gravidade tem vindo a aumentar no último mês»;

- que «acredita que o/a ofensor/a seja capaz de a/o matar ou mandar matar»;

- que «o/a ofensor/a revela instabilidade emocional/psicológica»;

- que «o/a ofensor/a tem problemas relacionados com o consumo de álcool, ou outras drogas»;

- que «o/a ofensor/a já foi alvo de queixas criminais anteriores»; e

- que «o/a ofensor/a tem problemas financeiros significativos ou dificuldade em manter um emprego». Estes últimos itens, em perfeita consonância com o relatado supra.

A ofendida foi acolhida, por vontade própria, numa Instituição.

Não obstante, no dia seguinte e quando abordado por elementos policiais para o efeito, o denunciado – indiferente ao bem-estar e à saúde da sua mãe – não procedeu à entrega de qualquer bem pessoal da mesma, nem sequer à medicação que lhe havia sido medicamente prescrita.

A partir daí, o denunciado não se cansou de:

- apresentar requerimentos para o processo, alegando que a sua mãe era muito doente e era ele o cuidador, no sentido de aquela regressar a casa;

- de alegar que a sua mãe sofria (à data dos requerimentos) de demência, tentando descredibilizar um eventual depoimento desta, onde fosse relatada a violência que lhe era infligida por aquele;

- de fazer crer, nas várias entidades para quem enviou requerimentos, que o Ministério Público tinha abusado das suas funções e havia sequestrado a ofendida;

- de solicitar, por diversas vezes, a consulta deste processo, no sentido de perceber onde a sua mãe estaria acolhida;

E isto não obstante a Polícia de Segurança Pública o ter informado que a mesma se encontrava bem de saúde, mas em local que não podia ser revelado.

Também nessa época, o denunciado apresentou no Centro Distrital do Porto da Segurança Social requerimento para ser reconhecido como Cuidador Informal da ofendida.

A 16 de Dezembro de 2022, a Polícia de Segurança Pública, deu conta que o denunciado tinha telefonado a referir que já tinha escrito cartas, já tinha contactado com a «SIC» e que pretendia saber a identidade dos polícias que tinham ido a sua casa «buscar a mãe a mãe com o INEM, quem era a procuradora e onde a mãe estava» e, quando lhe foi respondido que não lhe prestariam tais informações, o mesmo propalou que «esteve na guerra do ultramar e nunca matou nenhum homem, mas que pela sua mãe mataria um agente, um chefe, um procurador sem problemas».

Para além disso, o denunciado apresentou queixa contra a signatária destes autos, contra a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta, Diretora do DIAP do Porto e contra a Sra. Juiz de Instrução que tomou declarações para memória futura à ofendida (fls. 819) e conseguiu fazer pressão – referindo nunca ter agredido a mãe e querer saber onde ela se encontra – através da comunicação social (fls. 898).

Por seu turno, a 12 de Julho de 2023 a ofendida apresentou «um discurso coerente e congruente», com «descrição dos factos, e dos detalhes periféricos, com ressonância afetiva e mantendo um relato congruente» e com «sofrimento psicológico associado às alegadas vivências disruptivas» (fls. 893 v.).

Nesse mesmo mês, a ofendida apresentava «as funções cognitivas que a capacita(va)m a fazer uma narrativa dos factos vivenciados de forma rigorosa e objetiva» (fls. 909).  

(…)

O arguido referiu que esteve na Guerra do Ultramar, sofre de stress pós-traumático e foi-lhe diagnosticada doença borderline que lhe conferiu determinado grau de incapacidade.”

C – A fundamentação jurídica do despacho recorrido:

“Acha-se assim fortemente indiciada a prática pelo arguido de três crimes de violência doméstica agravados, p. e p. pelo artº 152º, nº 1, al. d) e nº 2 al. a), do C. Penal.

Como é sabido as medidas de coacção são meios processuais de limitação da liberdade processual que têm por finalidade acautelar os fins do processo, seja para garantir a execução da decisão final condenatória, seja para assegurar o regular desenvolvimento do procedimento.

Daí que, a aplicação de qualquer medida de coacção deve partir da avaliação da sua necessidade face às exigências cautelares que o caso concreto requer (principio da necessidade), da ponderação da gravidade da conduta indiciariamente imputada ao arguido, fazendo-se depois, a partir da medida abstracta da pena, um juízo de previsibilidade da pena concreta em que este venha a ser condenado (princípios da adequação e da proporcionalidade) - artigo 193.º do Código de Processo Penal.

Assim, há que considerar que nenhuma medida de coacção (à excepção do Termo de Identidade e Residência) pode ser aplicada se, em concreto, não se verificar fuga ou perigo de fuga, perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, ou perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e tranquilidades públicas.

Donde, para além de, em concreto, deverem ser necessárias e adequadas para acautelar aqueles fins, nenhuma medida de coacção, com excepção do TIR, possa ser aplicada se, em concreto, não se verificar qualquer das circunstâncias referidas no artigo 204.º do Código de Processo Penal.

Por outro lado, enquanto que para ser aplicada uma das medidas de coacção previstas nos artigos 197.º a 199.º se mostra suficiente a existência de indícios, já para a aplicação das medidas de coacção previstas nos artigos 200.º a 202.º mostra-se necessário a existência de fortes indícios da prática do crime pelo arguido.

O arguido referiu que esteve na Guerra do Ultramar, sofre de stress pós-traumático e foi-lhe diagnosticada doença borderline que lhe conferiu determinado grau de incapacidade.

O Tribunal não pode alhear-se dos elementos de prova arrolados pelo Ministério Público e dos quais se extrai a autoria pelo arguido dos factos que lhe vêm imputados.

Desses factos, conjugado com a circunstância de o arguido continuar insistentemente em querer saber do paradeiro da mãe e forçar o contacto com a mesma, sabendo que a tal está impedido, pois que a mesma foi integrada em instituição justamente para protecção contra o comportamento violento do próprio filho (e que é do seu conhecimento por lhe ter sido transmitido pelas autoridades competentes- esquadra da PSP do Bom Pastor e GAV), subsiste o perigo de continuação da actividade criminosa, agravado pela falta de reconhecimento dos factos que lhe são assacados associado à personalidade agressiva que revela ter e que foi visível no estado de exaltação manifestado em sede de primeiro interrogatório (fazendo antever que o arguido passa rapidamente das palavras à acção), perigo esse que importa desde já acautelar e impedir que o mesmo venha a cometer factos mais gravosos na pessoa da sua mãe, ofendida nestes autos.

Relativamente a este perigo de continuação da actividade criminosa considerando a natureza do crime em causa, os factos indiciados, a gravidade dos mesmos, o facto de o arguido não reconhecer o desvalor da sua conduta, a gravidade do comportamento, há que acautelar este perigo, perigo esse real e que importa desde já precaver.

Diga-se, ainda, que não obstante a condenação do arguido com trânsito em julgado pela prática de vários crimes inclusive contra as pessoas, com o cumprimento de penas de prisão efectivas, aquelas não foram suficientes e adequadas no sentido de o afastar da prática de novos crimes, continuando o mesmo na actualidade a tentar insistentemente contactar com a mãe e a importunar a paz e tranquilidade desta, pessoa particularmente vulnerável em razão da idade e das frágeis condições de saúde.

Deste modo, tudo ponderado e chamando à colação o princípio da proporcionalidade, previsto no art.º 193.º, do Código de Processo Penal, o qual exprime a exigência de que, em cada estado ou grau do procedimento, exista uma relação de proporcionalidade entre a medida aplicada ou a aplicar e a importância do facto imputado e a sanção que se julga que pode vir a ser imposta.

Este princípio tem aqui o sentido de proibição de excesso, impedindo a desproporcionalidade entre, por um lado, o sacrifício que a medida de coacção implica e, por outro lado, a gravidade do crime e a natureza e medida da pena que previsivelmente, com base nele, virá a ser aplicada.

Nesta medida, o art.º 193.º, n.º 2, do Código de Processo Penal consagra o carácter excepcional e subsidiário das medidas privativas da liberdade (designadamente, da obrigação de permanência na habitação e da prisão preventiva), criando um alargado naipe de medidas de coacção alternativas, ordenadas sequencialmente em função da respectiva gravidade.

Entendemos, no caso, que o perigo de continuação da actividade criminosa fundamenta a imposição de medida de coacção ao arguido que já não é compatível com a aplicação de uma medida não privativa da liberdade face ao elevado grau de ilicitude dos factos imputados ao arguido, a intensa censurabilidade da sua conduta, ao grau de culpa do arguido, à sanção que previsivelmente lhe venha a ser aplicada em sede de audiência de julgamento, bem como a forte probabilidade de que mantido em liberdade continuará a importunar, maltratar e desrespeitar a sua mãe.

Deste modo, considerando os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade consideramos plenamente justificada a aplicação ao arguido da medida de coação de prisão preventiva substituída pelo internamento preventivo do arguido no Anexo Psiquiátrico do EP ... ou estabelecimento análogo adequado ao abrigo do artº 202 º, nº 2 do CPP.

Por todo o exposto e decidindo, ao abrigo do disposto nos artºs 191º a 194º, 204º, n.º 1, alínea c) e 202º, nº 1, al. b) do CPP determino que o aguarde os ulteriores termos do processo em Prisão Preventiva, que nos termos do artº 202º, nº 2 do CPP, e indiciando-se fortemente que o arguido sofre de anomalia psíquica, se substitui pelo o internamento preventivo do arguido no Anexo Psiquiátrico do EP competente.”

DO DIREITO

O despacho de aplicação de uma medida de coação – à exceção de termo de identidade e residência -, sendo um despacho judicial decisório, tem de ser sempre fundamentado, em cumprimento do disposto no artigo 97.º nº 5 do Código de Processo Penal, com o conteúdo específico exigido nas várias alíneas do nº 6 do artigo 194º do mesmo texto legal[3].

De harmonia com o disposto na alínea a) do citado artigo 194º, nº 6, do Código de Processo Penal, a fundamentação de tal despacho deverá conter, nomeadamente:

a) a descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo [alínea a) do mesmo artigo e número];

b) a referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º [alínea d)];

O despacho recorrida respeitou tais exigências e, por isso, poderá ser sindicado o mérito do recurso.

Como é pacífico na doutrina e jurisprudência, a aplicação da medida de coação de prisão preventiva encontra-se sujeita às condições gerais contidas nos artigos 191.º a 195.º, do Código de Processo Penal, em que se destacam os princípios da adequação e da proporcionalidade, às quais se somam os requisitos gerais previstos no artigo 204.º e os requisitos específicos dessa medida de coação, previstos no artigo 202º, ambos, ainda, do mesmo texto legal.

O princípio da legalidade das medidas de coação assegura que a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei, em função de exigências processuais de natureza cautelar (artigo 191º, nº1 do Código de Processo Penal).

Como densificação desse princípio, as medidas de coação estão ainda subordinadas aos princípios da adequação e da proporcionalidade (artigo 193º, nº 1, do mesmo Código).

A medida de coação contestada no recurso em apreço – a prisão preventiva - tem natureza residual só podendo ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as demais medidas de coação previstas na lei (artigo 193º, nº 2, do Código de Processo Penal). Assim, compreender-se-á, por exemplo, que quando couber ao caso uma medida de coação privativa da liberdade, deverá ser dada preferência à obrigação de permanência na habitação sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares (artigo 193º, nº 3, do Código de Processo Penal).

DO CASO CONCRETO

A prisão preventiva do arguido foi fundamentada com referência a factos concretos, objetivamente graves e particularmente censuráveis,  que tiveram lugar ao longo de mais de sete anos – e com um historial anterior, também de violência física e psicológica contra a mesma vítima, mãe do arguido, desde o início deste século, altura em que o arguido beneficiou de liberdade condicional e foi viver com a sua mãe, já então uma pessoa idosa -.

O arguido, para impugnar a aplicação da prisão preventiva, limita-se a:

a) alegar que durante mais de um ano (desde 17/09/2022 até 16/10/2023), o recorrente não foi constituído arguido, nem lhe foram aplicadas quaisquer proibições ou imposições de condutas;

b) durante esse período temporal, o arguido interrogou os autos sobre o estado de saúde da sua mãe, demonstrou saudade e preocupação com o afastamento aplicado pelo Tribunal, não tendo recebido resposta;

c) tendo o arguido contactado telefonicamente uma instituição de solidariedade social àcerca do possível acolhimento da sua mãe e não lhe ter sido dada essa informação, tal foi reportado aos autos e decidiu-se promover a detenção do recorrente para o interrogatório, para (finalmente) ser constituído como arguido e foi peticionada a medida de coação de prisão preventiva, no pressuposto de que este telefonema do Arguido era uma tentativa de chegar ao contacto com a sua progenitora e que consubstanciaria uma possibilidade de continuação da atividade criminosa (de praticar novos factos de violência doméstica).

Por conseguinte, o arguido nega ter tentado insistentemente saber o paradeiro da sua mãe e contactá-la, não ter forçado o contacto com a sua mãe, o qual não chegou a ter lugar e não existir qualquer probabilidade do arguido continuar a importunar a sua mãe.

Nega, assim, a existência de perigo de continuação da atividade criminosa.

A serem aplicadas medidas de coação ao arguido, o recorrente entende que poderia ser meramente proibido de contactar a ofendida.

O despacho recorrido exprime, quanto ao perigo de continuação da atividade criminosa e o respeito pela subsidiariedade da aplicação da prisão preventiva, o seguinte:

“(…) diagnosticada doença borderline que lhe conferiu determinado grau de incapacidade.

O Tribunal não pode alhear-se dos elementos de prova arrolados pelo Ministério Público e dos quais se extrai a autoria pelo arguido dos factos que lhe vêm imputados.

Desses factos, conjugado com a circunstância de o arguido continuar insistentemente em querer saber do paradeiro da mãe e forçar o contacto com a mesma, sabendo que a tal está impedido, pois que a mesma foi integrada em instituição justamente para protecção contra o comportamento violento do próprio filho (e que é do seu conhecimento por lhe ter sido transmitido pelas autoridades competentes- esquadra da PSP do Bom Pastor e GAV), subsiste o perigo de continuação da actividade criminosa, agravado pela falta de reconhecimento dos factos que lhe são assacados associado à personalidade agressiva que revela ter e que foi visível no estado de exaltação manifestado em sede de primeiro interrogatório (fazendo antever que o arguido passa rapidamente das palavras à acção), perigo esse que importa desde já acautelar e impedir que o mesmo venha a cometer factos mais gravosos na pessoa da sua mãe, ofendida nestes autos.

Relativamente a este perigo de continuação da actividade criminosa considerando a natureza do crime em causa, os factos indiciados, a gravidade dos mesmos, o facto de o arguido não reconhecer o desvalor da sua conduta, a gravidade do comportamento, há que acautelar este perigo, perigo esse real e que importa desde já precaver.

Diga-se, ainda, que não obstante a condenação do arguido com trânsito em julgado pela prática de vários crimes inclusive contra as pessoas, com o cumprimento de penas de prisão efectivas, aquelas não foram suficientes e adequadas no sentido de o afastar da prática de novos crimes, continuando o mesmo na actualidade a tentar insistentemente contactar com a mãe e a importunar a paz e tranquilidade desta, pessoa particularmente vulnerável em razão da idade e das frágeis condições de saúde.

Deste modo, tudo ponderado e chamando à colação o princípio da proporcionalidade, previsto no art.º 193.º, do Código de Processo Penal, o qual exprime a exigência de que, em cada estado ou grau do procedimento, exista uma relação de proporcionalidade entre a medida aplicada ou a aplicar e a importância do facto imputado e a sanção que se julga que pode vir a ser imposta.

Este princípio tem aqui o sentido de proibição de excesso, impedindo a desproporcionalidade entre, por um lado, o sacrifício que a medida de coacção implica e, por outro lado, a gravidade do crime e a natureza e medida da pena que previsivelmente, com base nele, virá a ser aplicada.

Nesta medida, o art.º 193.º, n.º 2, do Código de Processo Penal consagra o carácter excepcional e subsidiário das medidas privativas da liberdade (designadamente, da obrigação de permanência na habitação e da prisão preventiva), criando um alargado naipe de medidas de coacção alternativas, ordenadas sequencialmente em função da respectiva gravidade.

Entendemos, no caso, que o perigo de continuação da actividade criminosa fundamenta a imposição de medida de coacção ao arguido que já não é compatível com a aplicação de uma medida não privativa da liberdade face ao elevado grau de ilicitude dos factos imputados ao arguido, a intensa censurabilidade da sua conduta, ao grau de culpa do arguido, à sanção que previsivelmente lhe venha a ser aplicada em sede de audiência de julgamento, bem como a forte probabilidade de que mantido em liberdade continuará a importunar, maltratar e desrespeitar a sua mãe.

Deste modo, considerando os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade consideramos plenamente justificada a aplicação ao arguido da medida de coação de prisão preventiva substituída pelo internamento preventivo do arguido no Anexo Psiquiátrico do EP ... ou estabelecimento análogo adequado ao abrigo do artº 202 º, nº 2 do CPP..”

A decisão concluiu, assim, que apenas a medida de coação privativa da liberdade será capaz de satisfazer as exigências cautelares no tocante ao ora recorrente, optando por isso pela prisão preventiva, não se mostrando suficientes quaisquer outras medidas.

Apreciando.

Em termos gerais – e de acordo com entendimento pacificamente partilhado entre o tribunal “a quo”, o Ministério Público e a defesa do arguido -, as medidas de coação que limitam a liberdade das pessoas por causa de exigências processuais de natureza cautelar, a aplicar em concreto, devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas (artigo 193º, números 1 a 3, do Código de Processo Penal) – “in casu”, uma pena de 2 a 5 anos de prisão por cada um dos três crimes de violência doméstica fortemente indiciados -.

O tipo legal de crime em causa integra a noção de “criminalidade violenta”, previsto na alínea j) do artigo 1º do Código de Processo Penal, legitimando a aplicação da prisão preventiva nos termos do disposto no artigo 202º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal, caso se verifiquem os demais pressupostos.

As exigências cautelares relativas ao perigo de continuação da atividade criminosa foram aferidas a partir de elementos factuais que revelam um elevado grau de ilicitude dos factos imputados ao arguido, que foram cometidos ao longos de vários anos, consubstanciando um elevado grau de censurabilidade da sua conduta e da sua culpa, tendo ainda presente à sanção que previsivelmente lhe será aplicada em sede de julgamento, bem como a forte probabilidade de que mantido em liberdade continuará a importunar, maltratar e desrespeitar a sua mãe, tendo em conta, também, as suas declarações prestadas no decurso do primeiro interrogatório judicial.

Para contestar a aplicação da medida de coação, o recorrente alega que durante mais de um ano (desde 17/09/2022 até 16/10/2023), o recorrente não foi constituído arguido, nem lhe foram aplicadas quaisquer proibições ou imposições de condutas e que durante esse hiato temporal, interrogou os autos sobre o estado de saúde da sua mãe, demonstrou saudade e preocupação com o afastamento aplicado pelo Tribunal, não tendo recebido resposta.

Apenas quando contactou telefonicamente uma instituição de solidariedade social àcerca do possível acolhimento da sua mãe e não lhe ter sido dada essa informação, tal foi reportado aos autos e foi promovida a detenção do recorrente para o interrogatório, para (finalmente) ser constituído como arguido, tendo sido peticionada a medida de coação de prisão preventiva, no pressuposto de que este telefonema do arguido era uma tentativa de chegar ao contacto com a sua progenitora e que consubstanciaria uma possibilidade de continuação da atividade criminosa (de praticar novos factos de violência doméstica).

Porém, tais argumentos soçobram perante a gravidade dos factos fortemente indiciados, que integram três crimes de violência doméstica contra pessoa especialmente indefesa (a mãe muito idosa do arguido), cometidos ao longo de vários anos – iniciando   comportamentos violentos dirigidos à mesma vítima no início deste século, após o arguido ter beneficiado de liberdade condicional -, bem como os comportamentos que se seguiram, tendo encobrir os seus crimes – coagindo a sua mãe e tentando condicionar diversas autoridades a revelar o paradeiro da sua mãe, não obstante bem saber que esta foi integrada em instituição, justamente para proteção contra o comportamento violento do ora recorrente - e que é do seu conhecimento por lhe ter sido transmitido pelas autoridades competentes - esquadra da PSP do Bom Pastor e GAV -.

O arguido pretende justificar agora as tentativas de descoberta do paradeiro da sua mãe por ter saudade e preocupação, mas isso são sentimentos que o mesmo nunca revelou, verdadeiramente, sendo incompatíveis com os seus comportamentos fortemente indiciados e não impugnados em sede de recurso, em que revelou total indiferença pelo bem-estar e a saúde da sua mãe.

Por outro lado, o ora recorrente já havia sido constituído arguido por diversas vezes, em diversos inquéritos, tendo por objeto factos relacionados com aqueles que constituem o objeto dos autos principais e, não obstante não ter sido sujeito a uma medida de coação de proibição de contactos, o arguido bem sabia que a sua mãe foi integrada em instituição, justamente para a sua proteção contra o comportamento violento ao arguido ora recorrente.

Não obstante, o arguido não reconheceu no primeiro interrogatório judicial a veracidade dos factos fortemente indiciados, que integram a prática de três crimes que a lei processual penal classifica de criminalidade violenta, tendo inúmeros antecedentes criminais por crimes graves e já cumprido pena de prisão efetiva, não se cansando, ainda, de tentar conhecer o paradeiro da sua mãe:

a) fazendo ainda crer, nas várias entidades para quem enviou requerimentos, que o Ministério Público tinha abusado das suas funções e havia sequestrado a ofendida;

b) tentando consultar o processo, no sentido de perceber onde a sua mãe estaria acolhida, não obstante a Polícia de Segurança Pública o ter informado que a mesma se encontrava bem de saúde, mas em local que não podia ser revelado;

c) telefonando à P.S.P., referindo que já tinha contactado a «SIC» e que pretendia saber a identidade dos polícias que tinham ido a sua casa «buscar a mãe a mãe com o INEM, quem era a procuradora e onde a mãe estava» e, quando lhe foi respondido que não lhe prestariam tais informações, o mesmo propalou que «esteve na guerra do ultramar e nunca matou nenhum homem, mas que pela sua mãe mataria um agente, um chefe, um procurador sem problemas».

Quando os elementos do INEM foram à casa da sua mãe, para socorrê-la, o arguido procurou condicioná-los e impedir a sua atuação.

Tendo tudo isso em perspetiva, bem como o transtorno de personalidade (borderline) que, segundo o próprio arguido, lhe foi diagnosticado, qualquer outra medida de coação – incluindo a proibição de contactos -  que não seja efetivamente privativa da liberdade, seria insuficiente e inadequada para acautelar o perigo de continuação da atividade criminosa, pois o mesmo tem vindo a aumentar a pressão no sentido de conseguir localizar e contactar a sua mãe, estando fortemente indicado que o mesmo apenas o faz para reiterar a sua conduta criminosa (violência doméstica), resultando do seu transtorno de personalidade uma perigosidade acrescida, revelando uma insistência crescente preocupante que, no limite, poderá gerar perigo de confronto físico com a sua mãe, colocando em risco a própria vida desta.

Importa ter ainda presente, a suportar essa ilação, a gravidade dos crimes que se encontram fortemente indiciados, não se tendo o arguido inibido de infligir agressões físicas à sua mãe muito idosa e tentar impedir o seu socorro.

Como é consabido, a medida de coação de prisão preventiva não é aplicada na perspetiva – e muito menos numa antecipação dos efeitos - de uma previsível futura condenação, mas é decretada como resposta - perante a gravidade dos factos e da personalidade do arguido - à necessidade de o impedir de continuar a delinquir e, assim, de manter a paz social. Não há margem para dúvida que a fattispecie evidenciada nos autos permite concluir, como referido no despacho recorrido, pela existência de um notório perigo de continuação da atividade criminosa, emergente da gravidade dos factos e da personalidade do arguido.

Dito isto, recorda-se, novamente, que a aplicação da prisão preventiva está condicionada à inadequação e insuficiência de qualquer outra medida – é o que resulta do apontado princípio da proporcionalidade, na vertente de proibição de excesso -.

Nestes termos, é manifesto que proibir o arguido de contactar a ofendida não desagravaria de forma suficiente o elevado perigo de continuação da atividade criminosa, atento o transtorno de personalidade admitido pelo próprio arguido, bem como os seus comportamentos mais recentes, insistindo em descobrir o paradeiro da sua mãe.

Por conseguinte, improcedem os argumentos da motivação de recurso, à luz das razões concretas que as especificidades do caso concreto evidenciaram.


*

Das custas processuais:

Sendo negado provimento ao recurso, impõe-se a condenação do recorrente no pagamento das custas, nos termos previstos nos artigos 513°, 1, do Código de Processo Penal e 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais.

A taxa de justiça é fixada em 4 (quatro) unidades de conta, nos termos da Tabela III anexa àquele Regulamento, tendo em conta a reduzida extensão do objeto do recurso.


*

III – DECISÃO


Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência e por unanimidade os juízes signatários da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso do arguido AA.

Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta.

Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.



Porto, em 21 de Fevereiro de 2024.
O desembargador relator,
Jorge M. Langweg
A desembargadora 1ª adjunta,
Cláudia Rodrigues
O desembargador 2º adjunto,
Raúl Cordeiro

_________________________
[1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[2] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme em todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[3] Esta obrigatoriedade de fundamentação dos atos decisórios constitui, aliás, uma garantia judiciária de relevância constitucional (artigo 205º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).