Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
881/16.6TAPRT-BA.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: PERDÃO DE PENAS
LEI DA AMNISTIA
Nº do Documento: RP20240320881/16.6TAPRT-BA.P2
Data do Acordão: 03/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL / CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Não beneficia do perdão decorrente do artigo 3.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, o condenado em pena única resultante de cúmulo jurídico superior a oito anos de prisão, ainda que alguma das penas parcelares que integram esse cúmulo não sejam superiores a oito anos de prisão.

(Sumário da responsabilidade do Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr 881/16.6TAPRT-BA.P2

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – AA veio interpor recurso do douto despacho do Juiz 6 do Juízo Central Criminal do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que determinou que não beneficiasse do perdão de pena decorrente da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:

«1.Vem o presente recurso interposto do Despacho com a referência 453726326, proferido no processo comum (Tribunal Coletivo) n.º 881/16.6JAPRT, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 6, que decidiu pela não aplicabilidade do perdão ao arguido, ora recorrente, concluindo “que o caso em apreço se coloca fora do âmbito de aplicabilidade da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto”.

Decidindo que “de acordo com a Lei do Perdão, apenas são perdoáveis as penas de prisão até 8 anos” e que, tendo o arguido sido condenado numa pena única de 25 anos de prisão “o disposto no art. 3º, n.º 1, da citada Lei, excluiu o perdão de um ano de prisão à pena em que o arguido foi condenado”.

2. Entende o recorrente, que no seu caso, estão verificados todos os pressupostos para aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto, devendo, de acordo com o postulado no artigo 3° n. 4, ser-lhe descontado um ano de prisão ao cúmulo de penas efetuado, encontrando-se violados os artigos 3.º e artigo 7º n.º 3 da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto.

3. O despacho de que ora se recorre não aplicou devidamente o Direito fazendo uma errada aplicação das normas jurídicas.

4. A decisão do Tribunal a quo teve como fundamento para a não concessão do perdão o facto de o arguido ter sido condenado, em cúmulo jurídico, a uma pena única superior a 8 anos, desconsiderando as penas parcelares em que este foi condenado e os tipos de crime pelos quais foi condenado.

5. O Tribunal a quo fez uma errada interpretação do artigo 3.º, n.º 1 da lei 38-A/23 de 2 de Agosto, já que da letra da lei não decorre que é à pena única que se deve atender para aferir da aplicabilidade ou não do perdão de penas, antes dizendo de forma expressa que “é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos”.

6. O Tribunal a quo considerou que em relação ao recorrente “este condenado, nascido em ../../1988, à data da prática dos factos, ocorridos em 2016, tinha idade inferior a 30 anos, sendo que, de facto, alguns crimes pelos quais foi condenado são perdoáveis. No entanto, de acordo com a Lei do Perdão, apenas são perdoáveis as penas de prisão até 8 anos, tendo este condenado sido condenado numa pena única de 25 anos de prisão. Assim, o disposto no art. 3º, n.º 1, da citada Lei, excluiu o perdão de um ano de prisão à pena em que o arguido foi condenado”.

7. Tendo decidido que “o caso em apreço se coloca fora do âmbito de aplicabilidade da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto.”

8. O recorrente foi condenado por vários crimes, que, por sua vez determinaram a condenação em diversas penas parcelares e em cúmulo jurídico foi o arguido condenado a uma pena de 25 (vinte e cinco) anos de prisão.

9. Do leque dos crimes pelos quais o arguido foi condenado e se encontra a cumprir pena, existem alguns suscetíveis de aplicação do perdão de penas conferido pelo artigo 3.º da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto, mormente os constantes das alíneas b), c) e h) (crime de furto qualificado, crime de falsificação ou contrafacção de documento e crime de detenção de arma proibida).

10. No artigo 7º da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto prevê-se um regime de exceção à aplicação do perdão e da amnistia constando aí a exclusão de alguns crimes ao acesso a estes benefícios sendo que o crime de furto qualificado, o crime de falsificação ou contrafacção de documento e o crime de detenção de arma proibida não constam do elenco das exclusões ali previstas, e como tal, de acordo com o artigo 7° a contrario da citada Lei, não se encontram excluídos, sendo, por isso, suscetíveis de ser perdoados.

11. O facto de o recorrente ter sido condenado por outros crimes que se encontram excluídos da aplicação da Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto não o pode prejudicar nem implicar que aquela Lei e o Perdão aí previsto não se aplique aos demais crimes em que foi condenado, pois o artigo 7º n.º3 da citada Lei prevê que: “a exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no n.º 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.

12. Nos crimes de furto qualificado, crime de falsificação ou contrafacção de documento e crime de detenção de arma proibida, identificados nas alíneas b), c) e h) e pelos quais o recorrente foi condenado, a pena é inferior a 8 anos de prisão, encontrando-se, por isso, cumprido o postulado no artigo 3° n. 1 da mencionada Lei.

13. A pena única de 25 anos de prisão é fruto das várias penas parcelares em que o arguido foi condenado, em virtude da multiplicidade de crimes que praticou onde se incluem os crimes de furto qualificado, crime de falsificação ou contrafacção de documento e crime de detenção de arma proibida.

14. Nos casos em que tenha havido cúmulo jurídico, ao abrigo do art. 77º do Código Penal, e tenha o arguido sido condenado numa pena única, o Tribunal a quo para decidir pela aplicabilidade ou não do Perdão de penas conferido pela Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto e expresso no artigo 3.º n.º1 deve aferir individualmente cada um dos crimes praticados e cada uma das penas de prisão parcelares correspondente a cada um deles, o que não aconteceu.

15. Ao não o ter feito e tendo decidido como decidiu, violou o Tribunal a quo o art. 3º, n.º 1, da Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto e os artigos 127 e 128º do Código Penal.

16. “As medidas de graça, como providências de excepção, constam de normas que devem ser interpretadas e aplicadas nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas” não admitindo, aplicação analógica, interpretação extensiva ou restritiva, devendo ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas, impondo-se, assim, uma interpretação declarativa.

17. o artigo 3.º n.º1 da Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto refere expressamente que: “1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.”, e o artigo 7.º n.º 1 al. a) a l) prevê quais os crimes que “Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei”, referindo-se expressamente no n.º 3 do citado artigo que: “A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.

18. Em lado algum da presente Lei é referido que a pena a ter em conta para aplicação do perdão de penas conferido pelo artigo 3.º da citada lei é a pena única aplicada ao condenado e não as diversas penas parcelares e os diversos crimes individualmente considerados.

19. Fez o Tribunal a quo uma interpretação restritiva do artigo 3.º n.º 1 da Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto na medida em que encurta o sentido e o alcance desta norma já que daquela decorre expressamente que é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos não limitando a sua aplicação somente às penas únicas de prisão até 8 anos.

20. Tal limitação não é sustentada nem se coaduna com as restantes normas jurídicas daquela Lei.

21. A interpretação levada a cabo pelo Tribunal a quo, ao considerar que para aferição do requisito do artigo 3.º n.1 da Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto segundo o qual, “é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos” é atendível a pena única obtida em sede de cúmulo jurídico e não os diversos crimes praticados pelo arguido e as penas parcelares correspondentes a cada um, individualmente considerados, cria situações de clara desigualdade na aplicação da referida Lei e na concessão do Perdão, sendo violadora do princípio da igualdade, constitucionalmente garantido no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, e por esse motivo é inconstitucional tal interpretação.

22. Deve fazer-se uma interpretação declarativa do artigo 3.º n.1 da Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto segundo o qual “é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos” e nessa medida, em situações em que o arguido seja condenado, em cúmulo jurídico a uma pena única, deve o Tribunal a quo aferir individualmente a cada crime e a cada pena parcelar em que o arguido foi condenado e integrante do cúmulo jurídico realizado, pois só assim, de dá cabal cumprimento ao citado artigo, que refere expressamente “todas” bem como se se assegura o cabal cumprimento do princípio da igualdade.

23. A forma como o Tribunal a quo interpretou e aplicou a Lei gera graves desigualdades não comportáveis num Estado de Direito.

24. No caso de um recluso que cumpra três penas de prisão aplicadas em diferentes processos, e, portanto, sem recurso a cúmulo jurídico, pode beneficiar do perdão de penas, num desses processos não sendo tido em consideração a pena única aplicada, em cômputo de penas, ainda que se somadas as penas daria uma pena de prisão bem superior a 8 anos, contudo, como são processos distintos, não se tem em atenção a tal situação.

25. Tal faz, com que condenados com penas de prisão maiores, porque aplicadas em processos distintos, e superiores a 8 anos, beneficiem do perdão e outros com penas menores, mas como cometeram os crimes em concurso efetivo tiveram aplicação de uma pena única, não tenham acesso ao perdão.

26. O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, é um princípio estruturante do Estado de direito democrático e postula, que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente.

27. O princípio da igualdade não tem uma dimensão única, ele desdobra-se em duas «vertentes» ou «dimensões»: “uma, a que se refere especificamente o n.º 1 do artigo 13.º, tem sido identificada pelo Tribunal como proibição do arbítrio legislativo; outra, a referida especialmente no n.º 2 do mesmo preceito constitucional, tem sido identificada como proibição da discriminação.

28. Não pode o recorrente ser prejudicado pela interpretação restritiva da Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto levada a cabo pelo Tribunal a quo, pois aquela nunca se refere a pena única outrossim uma pena não superior a 8 anos.

29. Se fosse para ter em conta pena única não havia qualquer necessidade da existência do artigo 7.º n.º3 da Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto, pois quem cometesse o crime de homicídio qualificado ficaria automaticamente excluído da aplicabilidade do perdão, na medida em que a pena sempre seria superior a 8 anos.

30. Fazer uma distinção em virtude de uma questão processual é completamente injusto, injustificado e desigual, pois, caso um arguido seja condenado em vários processos pode beneficiar do perdão independentemente da pena única vir a ser superior a 8 anos e caso tenha sido condenado num único processo, se a pena única for superior a 8 anos já não tem direito.

31. Ao ter decidido como decidiu, o Tribunal a quo violou os artigos artigo 3.º n.º1 e n.º4 , artigo 7.º n.º 1 al. a) a l) e n.º 3 todos da Lei 38-A/2023 de 02 de Agosto, o princípio da legalidade, e o princípio da igualdade postulado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, bem como os artigos 127 e 128º do Código Penal e artigos 9.º e 11.º, do Código Civil.»

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

 

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando também pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se o recorrente deverá, ou não, beneficiar do perdão de penas decorrente da Lei n.º 38-A72023, de 2 de agosto.

 

III –

O teor do douto despacho recorrido é o seguinte:

«DESPACHO AO ABRIGO DA LEI N.º 38-A/2023 de 02 de agosto

Em 01 de Setembro de 2023, entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto que estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.

A Lei é aplicável aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, desde que não excluídos pelo catálogo previsto no art. 7º do referido diploma.

Importa, pois, averiguar se os condenados nos presentes autos reúnem os requisitos necessários para beneficiar do perdão de penas previsto no citado diploma legal.

(…)

III. DA NÃO APLICABILIDADE DO PERDÃO AO ARGUIDO AA

O arguido AA foi condenado, nestes autos, pelo cometimento, em concurso efetivo, de:

a) um crime de associação criminosa, previsto e punido pelo art. 299º, n.º 2 do Código Penal, na pena de três anos de prisão;

b) um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos arts. 203º e 204º, n.º 2, alíneas a) e e), por referência às alíneas b) e d) do art. 202º, todos do Código Penal, na pena de cinco anos de prisão;

c) cinco crimes de falsificação ou contrafação de documento, previsto e punido pelo art. 256º, n.º 1, alíneas a) e e) e n.º 3 do Código Penal, na pena de um ano e dez meses por cada um deles;

d) um crime de sequestro, previsto e punido pelo art. 158º, n.ºs 1 e 2, alínea b) do Código Penal, na pena de sete anos de prisão;

e) um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos arts. 131º, 132º, n.ºs 1 e 2, alíneas e), h) e j) do Código Penal, na pena de vinte anos de prisão;

f) um crime de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, previsto e punido pelo art. 254º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de um ano e seis meses de prisão;

g) dois crimes de incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, previsto e punido pelo art. 272º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de quatro anos por cada um deles;

h) um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art. 86º, n.º 1, al. d) do Regime Jurídico de Armas e Munições, Lei n.º 5/2006 de 23.02, na pena de nove meses de prisão.

E, em cúmulo jurídico, ao abrigo do art. 77º do Código Penal, foi o arguido condenado na pena única de 25 (vinte e cinco) anos de prisão.

Vejamos:

Este condenado, nascido em ../../1988, à data da prática dos factos, ocorridos em 2016, tinha idade inferior a 30 anos, sendo que, de facto, alguns crimes pelos quais foi condenado são perdoáveis.

No entanto, de acordo com a Lei do Perdão, apenas são perdoáveis as penas de prisão até 8 anos, tendo este condenado sido condenado numa pena única de 25 anos de prisão.

Assim, o disposto no art. 3º, n.º 1, da citada Lei, excluiu o perdão de um ano de prisão à pena em que o arguido foi condenado.

Por outro lado, igualmente não existem infrações penais amnistiáveis à luz do disposto no art. 4º do mesmo diploma legal.

Pelo que, impõe-se concluir que o caso em apreço se coloca fora do âmbito de aplicabilidade da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de agosto.

Notifique.»

IV – Cumpre decidir.

Vem o recorrente alegar que deverá beneficiar do perdão de penas decorrente da Lei n.º 38-A72023, de 2 de agosto, sendo a pena de vinte e cinco anos de prisão (resultante de cúmulo jurídico) em que foi condenado e que cumpre atualmente reduzida em um ano. Invoca a circunstância de as penas em que foi condenado e que integram tal cúmulo jurídico relativas aos crimes de furto qualificado, falsificação ou contrafação de documento e detenção de arma proibida serem inferiores a oito anos e, por isso e porque não cabem em nenhuma das exceções elencadas no artigo 7.º da mesma Lei, não estarem excluídas de tal perdão. Alega que da letra do artigo 3.º, n.º 1 dessa Lei não decorre que é à pena única que se deve atender para aferir da aplicabilidade desse perdão, e não as diversas penas parcelares. Alega que o facto de ter sido condenado pela prática de crimes a que não se aplica esse perdão não impede que beneficie do perdão quanto a outros crimes, como decorre do n.º 3 desse artigo 7.º. Alega que o despacho recorrido se baseia numa interpretação restritiva desse artigo 3.º n.º 1, na medida em que encurta o sentido e o alcance desta norma, sendo que é inadmissível a interpretação restritiva de medidas de graça. Alega que essa interpretação viola o princípio da igualdade, garantido no artigo 13.º da Constituição, pois dela resulta uma diferença de tratamento entre situações em que uma pessoa é condenada pela prática de vários crimes em diferentes processos (e, portanto, sem recurso a cúmulo jurídico), podendo beneficiar do perdão de penas inferiores a oito anos, e situações em que uma pessoa é condenada num único processo em pena resultante de cúmulo jurídico que seja superior a oito anos sendo as penas parcelares inferiores.

Vejamos.

Parece-nos claro que não assiste razão ao recorrente.

O despacho recorrido não se baseia numa interpretação restritiva do artigo 3.º, n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, nem contraria a letra ou o espírito desta norma.

Alega o recorrente que essa norma não faz distinção entre penas de prisão não superiores a oito anos e abrangidas pelo perdão e não as restringe, pois, em caso de cúmulo jurídico, às penas únicas resultantes desse cúmulo. No entanto, a seguir este entendimento, qualquer pena parcelar que integrasse o cúmulo beneficiaria do perdão, contrariando o disposto no número 4 desse mesmo artigo (o qual estatui que em caso de cúmulo jurídico o perdão incide sobre a pena única); o condenado beneficiaria de tantos perdões quantas essas penas parcelares. O número 1 desse artigo 3.º deve ser interpretado em conjugação com esse número 4. Desse modo, a pena a que se refere esse número 1 há de ser, em caso de cúmulo jurídico, a pena única a que se refere esse número 4. Tal não contraria a letra da Lei, nem representa uma sua interpretação restritiva, tal resulta, tão só, da conjugação desses dois preceitos.

Ora, se, em caso de cúmulo jurídico o perdão incide sobre a pena única, é lógico que a pena superior a oito anos de prisão que, de acordo com o número 1 do artigo 3.º está excluída do perdão não pode deixar de ser a pena única resultante do cúmulo. O que releva, para o legislador, não é a maior ou menor gravidade dos crimes e das penas parcelares que integram o cúmulo jurídico vistos isoladamente, mas a maior ou menor gravidade do conjunto de crimes praticados que se reflete na maior ou menor gravidade da pena única. É esta visão de conjunto que releva. Assim, podem penas parcelares (uma, várias ou todas) que integram o cúmulo não ser superiores a oito anos, mas elas não beneficiarão de perdão se do cúmulo dessas penas resultar uma pena única superior a oito anos. É assim porque relevante é essa visão de conjunto: é sobre o que dessa visão global resulta que incide, ou não incide, o perdão.

Podem ver-se, neste sentido os recentes acórdãos desta Relação de 10 de janeiro de 2024, proc. n.º 441/07.2JAPRT-A.P1, relatado por Maria dos Prazeres Silva, e proc. n.º 996/04.3JAPRT.P2, relatado por José António Rodrigues da Cunha; e o acórdão da Relação de Lisboa de 23 de janeiro de 2024, proc. n.º 1161/20.8PBSNT-D.L1-5, relatado por Manuel José Ramos da Fonseca, todos acessíveis in www.dgsi.pt.

Há que salientar que a situação em apreço não é equiparável a outra que, de acordo com a jurisprudência, tem conduzido (a propósito da Lei em apreço e de outras anteriores) a uma solução semelhante à pretendida pelo recorrente. Essa situação é a da aplicação do perdão a penas resultantes de um cúmulo de penas abrangidas, ou não, por tal perdão consoante o tipo de crime a que são relativas. Não é essa a situação aqui em causa. Na situação aqui em causa, estamos perante uma pena superior a oito anos resultante do cúmulo de penas que, individualmente consideradas, possam não ser superiores a oito anos, independentemente dos tipos de crime em causa. O legislador quis excluir do perdão as penas superiores a oito anos de prisão, sejam elas relativas a um único crime ou resultando de um cúmulo jurídico, independentemente do tipo de crime em causa.

Esta interpretação não contraria o princípio da igualdade. Alega o recorrente que dela resulta uma diferença de tratamento entre situações em que uma pessoa é condenada pela prática de vários crimes em diferentes processos (e, portanto, sem recurso a cúmulo jurídico), podendo beneficiar do perdão de penas inferiores a oito anos, e situações em que uma pessoa é condenada num único processo em pena resultante de cúmulo jurídico que seja superior a oito anos sendo as penas parcelares inferiores. Salvo o devido respeito, esta alegação parece partir de um pressuposto errado: não é pelo facto de vários crimes serem objeto de processos diferentes que, se estiverem verificados os pressupostos do cúmulo de crimes e de penas, este deixa de operar (nos termos dos artigos 77.º e 78.º do Código Penal), como opera se tais crimes forem objeto de um único processo[1].

Poderemos até dizer que a interpretação sustentada pelo recorrente é que contrariaria o princípio da igualdade: não beneficiaria do perdão quem é condenado numa pena superior a oito anos resultante da prática de um único crime; poderia beneficiar do perdão quem é condenado numa pena única também superior a oito anos (o que também representa a prática de crimes de maior gravidade numa visão global) que integrasse penas parcelares inferiores.

Assim, o despacho recorrido não merece reparo.

Deverá ser negado provimento ao recurso.

O recorrente deverá ser condenado em taxa de justiça (artigo 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, n.º 1, j), do Regulamento das Custas Processuais.

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo o douto despacho recorrido.

Condenam o arguido e recorrente em três (3) U.C.s de taxa de justiça, sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, n.º 1, j), do Regulamento das Custas Processuais.

Notifique

Porto, 20 de março de 2024
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Maria Joana Grácio
Lígia Figueiredo
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[1] Só assim não será se estivermos perante uma situação de sucessão de crimes, não de cúmulo (nos termos dos artigos 77.º e 78.º do Código Penal). caso em que não se aplicará o referido n.º 4. Nesse caso, o condenado poderá beneficiar de tantos perdões quantas as penas, mas estamos perante uma situação que é diferente, pois não se verifica o benefício que também representa o cúmulo de penas,