Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
343/18.7T8VLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO DE DANOS PRÓPRIOS
PROVA DAS CIRCUNSTÂNCIAS
Nº do Documento: RP20211028343/18.7T8VLG.P1
Data do Acordão: 10/28/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Em matéria de sinistralidade automóvel, mais relevante do que o que é declarado e como é declarado pelos diversos intervenientes é a corroboração do que é declarado pelas condições físicas do local onde se verifica o sinistro e pelas consequências materiais concretas no ou nos veículos envolvidos.
II - O sinistro é um facto constitutivo do direito do tomador do seguro ou terceiro beneficiário do seguro contra o segurador, recaindo o ónus de alegação e prova do sinistro sobre aquele que pretende acionar o segurador.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc.º 343/18.7T8VLG.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 343/18.7T8VLG.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório[1]
Em 15 de fevereiro de 2018, no Juízo Local Cível de Valongo, Comarca do Porto, “B…, Lda.” intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra “C… – , S.A.” pedindo a condenação desta a pagar-lhe:
a) a quantia de €29.238,89 (vinte e nove mil duzentos e trinta e oito euros e oitenta e nove cents), a título de indemnização como valor comercial da viatura ..-NR-.., decorrente da cobertura da apólice contratada com a ré;
b) €750,00 (setecentos e cinquenta euros), a título de danos não patrimoniais sofridos pela autora em sequência do comportamento da ré descrito na petição inicial, tudo acrescido de juros de mora contados desde a data do sinistro até efetivo e integral pagamento;
c) subsidiariamente, pediu a condenação da ré a restituir à autora o valor de €29.238,89 (vinte e nove mil duzentos e trinta e oito euros e oitenta e nove cents) ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa, bem como os danos morais e juros moratórios.
Para fundamentar as suas pretensões alegou, em síntese, que celebrou com a ré um contrato de seguro, do ramo “Automóvel”, titulado pela apólice de seguro nº …………./., no âmbito do qual contratou a cobertura de responsabilidade civil facultativa e as condições especiais para choque, colisão ou capotamento da viatura com a matrícula ..NR-.., da Marca BMW, Modelo …, com o capital de €29.238,89, incidindo sobre o mesmo uma franquia de 2% sobre o capital seguro, com o mínimo de €250,00.
No dia 27 de maio de 2017, em Valongo, quando a aludida viatura era conduzida pelo legal representante da autora, aquele, num momento de distração, embateu na traseira do veículo BMW .. com a matrícula ..-QX-... Em consequência desse embate, a viatura da autora ficou danificada na sua dianteira, pelo que a autora participou o sinistro à ré. Depois da peritagem efetuada pela ré à viatura propriedade da autora pelos seus serviços técnicos, foi a mesma viatura considerada perda total.
A ré veio a declinar qualquer responsabilidade pelo sinistro, baseando-se no facto de não terem sido apresentados quaisquer elementos de prova da ocorrência do sinistro conforme reclamado.
À data do sinistro, o valor comercial do veículo era de €29.238,89 (vinte e nove mil duzentos e trinta e oito euros e oitenta e nove cents). Após o sinistro, a autora vendeu a viatura a um terceiro pelo valor do salvado.
Alegou ainda que se a ré tivesse pago à autora o montante devido, no tempo devido, o representante legal desta não teria ainda ficado triste, angustiado, preocupado com a situação e impossibilitado de receber o que teria direito, peticionando a reparação do correspondente prejuízo moral.
A ré contestou, impugnando a ocorrência do acidente, bem como dos danos e prejuízos que dele possam ter resultado, requerendo, a final, a intervenção principal do B…, S.A. por ser titular de reserva de propriedade sobre o veículo alegadamente sinistrado. Impugnou ainda o valor comercial do veículo e os danos morais peticionados pela autora.
Referiu que o sócio da autora é reincidente em acionamento de seguro de danos próprios, decorrente de perda total ocorrido em circunstâncias muito semelhantes às dos presentes autos, bem como a sua ex-cônjuge. A segurada da viatura ..-QX-.. estava também referenciada pelas seguradoras por excessiva sinistralidade.
Subsidiariamente, invocou que, mesmo na hipótese de vir a decair na ação, jamais a ré poderia ser obrigada a pagar à autora valor superior ao do valor venal da viatura acidentada – EURO 17.137,00 -, deduzido do montante dos salvados - EURO 3.000,00 - e da franquia contratada - EURO 584,78) -, ou seja, EURO 13.552,22.
A autora opôs-se ao incidente de intervenção requerido pela ré em virtude de a reserva de propriedade já ter sido cancelada, vindo a ré a declarar que não mantinha interesse no incidente por si deduzido.
Realizou-se audiência prévia, na qual se frustrou a tentativa de conciliação das partes, se delimitou o objeto do litígio e fixou o valor da causa no montante de €29.988,89, proferindo-se despacho saneador tabelar, enunciando-se o objeto do litígio e bem assim os temas de prova provados e probandos, admitindo-se as provas requeridas pelas partes, com exceção da inspecção judicial, cuja apreciação da pertinência foi relegada para a audiência final.
Face à comprovação da declaração de insolvência da autora, declarou-se caduca a procuração outorgada pela mesma.
O Sr. Administrador da Insolvência da autora veio informar que não obstante a declaração da insolvência, a autora insolvente mantém a administração da sociedade.
Em 21 de janeiro de 2020 foi proferido o seguinte despacho:
Por despacho proferido após a declaração de insolvência da aqui A. foi a administração desta atribuída à sua gerência, tendo em vista a apresentação de um plano de recuperação. Face ao ali decidido, mantém-se a devedora (aqui A.) na disponibilidade dos seus bens, com as limitações/fiscalizações por parte do Sr. AI que lhe foram impostas. Tal significa que o devedor mantém os poderes inerentes à defesa dos interesses da massa insolvente, pelo que o mandato conferido mantém-se válido.
Notifique as partes do presente despacho.
Depois de por lapso se ter de novo agendado audiência prévia, designou-se data para realização da audiência final, a qual se realizou em duas sessões, sendo em 17 de janeiro de 2021 proferida sentença[2] que julgou a ação parcialmente procedente condenando “C… – …, S.A.” a pagar à “B…, Lda.”, a quantia de €16.714,04 (dezasseis mil setecentos e catorze euros e quatro cents), acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% (ou outra que venha a ser fixada legalmente), contados desde 13.06.2017 até efetivo e integral cumprimento, absolvendo a ré do restante peticionado.
Em 04 de março de 2021, inconformada com a decisão que precede, “C… – …, S.A.” interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
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B…, Lda.” contra-alegou pugnando pela total improcedência do recurso.
Colhidos os vistos dos restantes membros do coletivo, cumpre apreciar e decidir.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da reapreciação dos pontos 10 a 12 dos factos provados;
2.2 Da repercussão da eventual alteração da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso.
3. Fundamentos
3.1 Da reapreciação dos pontos 10 a 12 dos factos provados
A recorrente impugna as respostas dadas aos pontos 10 a 12 dos factos provados, pugnando por que sejam julgados não provados, com base no depoimento da testemunha E…, nas fotografias por este oferecidas na sessão da audiência final em que interveio e na participação policial do alegado sinistro.
As razões que sustentam esta pretensão da recorrente são em síntese as seguintes:
- os condutores descrevem a dinâmica do evento de forma diversa;
- há uma manifesta incompatibilidade de danos entre os veículos, o local e a dinâmica, pois que não há transferência de tinta, não se compreende a abertura de ambos os “airbags” do veículo seguro quando no mesmo não seguiria qualquer passageiro, não se compreende a ausência da danos na ótica esquerda do X6, quando supostamente o mesmo teria embatido com a parte frontal esquerda no sinal, não se compreende a total ausência de vestígios – líquidos – no pavimento quando ficou seriamente danificado o radiador do veículo seguro;
- há um histórico relevante de sinistralidade da autora, com anteriores furtos e perdas totais;
- o depoimento da testemunha E… que o tribunal recorrido desconsiderou pelo simples facto de prestar serviços à recorrente está corroborado pelas fotografias dos veículos envolvidos no alegado sinistro.
Os pontos de facto impugnados pelo recorrente têm o seguinte teor:
- No dia 27 de maio de 2017, pelas 18:00 horas, na Avenida … em Valongo, ocorreu um [acidente?] com a viatura identificada supra (ponto 10 dos factos provados);
- O representante legal da autora, F…, conduzia a viatura identificada supra e num momento de distração embateu na traseira do veículo BMW .., com a matrícula ..-QX-.. (ponto 11 dos factos provados);
- Em consequência do sinistro, a viatura que era propriedade da autora ficou visivelmente danificada na sua dianteira (ponto 12 dos factos provados).
O tribunal a quo motivou a sua decisão da matéria de facto no que respeita aos pontos cuja reapreciação é requerida da forma que segue:
A R., não tendo apresentado uma versão positiva alternativa dos factos, veio, contudo, impugnar a efectiva ocorrência do sinistro, aduzindo para o efeito um conjunto de circunstâncias que, em seu entender, tornariam suspeita a reclamação formulada pela A.
Tendo em conta o ónus probatório que incide, no caso concreto, sobre a A., impõe-se avaliar a tese desta em função do standard de prova.
O standard de prova equivale a uma regra de decisão que indica o nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira [Luís Filipe Pires de Sousa, O Standard de Prova no Processo Civil e no Processo Penal, www.trl.mj.ptPDFO%20standard%20de%20prova%202017.pdf]. “O que o standard preconiza é que, quando sobre um facto existam provas contraditórias, o julgador deve sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis. (...) o standard que opera no processo civil é, assim, o da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não”. Este standard consubstancia-se em duas regras fundamentais:
(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais;
(ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa”.
Michele Taruffo [La prueba: artículos y conferencias, Editorial Metropolitana, 2009, 103 (versão em língua espanhola)] explica que em muitos ordenamentos jurídicos, a regra de “mais provável do que não” não se encontra prevista em nenhuma norma escrita, mas afirma-se como um critério racional para presidir à tomada de decisões sobre os factos de uma causa. Apresenta-se, pois, como uma forma privilegiada de conferir um conteúdo positivo ao princípio da livre apreciação da prova pelo juiz, guiando e racionalizando a discricionariedade do juiz na valoração das provas e eliminando toda a possível implicação irracional desta valoração, vinculando o juiz a um conjunto de critérios intersubjectivamente controláveis.
Este último autor [Ob. cit., 106-107] afirma que este standard indica que é racional assumir como fundamento da decisão sobre um facto aquela hipótese que logra obter das provas um grau de confirmação positiva prevalecente não só sobre a hipótese simétrica contrária, mas também sobre todas as outras hipóteses que tenham recebido um grau de confirmação positiva superior a 50%. Naturalmente, a hipótese com probabilidade positiva prevalecente é preferível a todas as hipóteses em que prevalece a probabilidade negativa. Dizendo de outra forma, o juiz pode assumir como “verdadeira”, por estar confirmada pela prova, uma versão de um facto quando o grau de confirmação positiva seja superior ao grau de probabilidade da versão negativa correlativa. Se, com o tempo, surgirem outras hipóteses com um grau de confirmação positiva, então será racional optar pela versão que obtenha um grau de confirmação relativa maior.
Embora não se desconheça a existência de um número significativo de situações de fraudes a seguradoras no âmbito da sinistralidade rodoviária, não se poderá afirmar ser esse o padrão de normalidade, não sendo, assim, a circunstância de um acidente ocorrer sem que haja outras testemunhas para além dos condutores motivo suficiente para indiciar uma fraude.
Ora, no caso vertente, verifica-se, desde logo, a existência de elementos objectivos demonstrativos de danos decorrentes de colisão em ambos os veículos e em dois sinais de trânsito existentes no local do embate; verifica-se ainda que, apesar de não existirem outras testemunhas para além dos condutores, o acidente ocorreu numa zona urbana de Valongo, tendo sido chamadas as autoridades policiais ao local, tudo como decorre do teor das fotografias juntas pela testemunha em sede de audiência de julgamento, da participação de acidente da PSP junta com a p.i. como doc. n.º 9, corroborada pelo depoimento sério e isento da testemunha G.., que passou no local poucos minutos após o evento, de H…, que foi chamado pelo legal representante da A. após o embate para o transportar a casa, bem como pelas declarações de parte deste último, F….
Pelo contrário, como refere o Ac. RC de 05.11.2019 [Proc.º n.º 213/13.5TBVZL.C1, relator Alberto Ruço, em www.dgsi.pt], para que se pudesse admitir ter existido simulação “teria de ter existido uma situação prévia em que ambos os veículos tivessem sofrido acidentes em data recente, pelo menos um deles, o mais danificado; acidente em que, à partida, não tivesse havido intervenção de terceiros (sem terem causado danos a terceiros), pois, neste caso, teria existido provavelmente intervenção das autoridades policiais que teriam registado esse acidente e seus intervenientes; que não fosse possível responsabilizar a seguradora, (...); que ambos os proprietários e condutores se colocassem de acordo para simular o acidente, o que pressupõe conhecerem-se, serem amigos ou familiares, etc.; tivessem escolhido o local e tivessem transportado os veículos” para o local. Todavia, excluindo as situações de intervenção do legal representante da A. em múltiplos acidentes – não estando alegado que algum deles tenha sido simulado -, não se reconhecem no presente caso aqueles indícios objectivos típicos de simulação: o acidente ocorreu em zona urbana do núcleo central da cidade de Valongo, bastante próxima de prédios de habitação multifamiliar (cfr. as fotografias juntas em audiência de julgamento pela testemunha E…) e do pavilhão municipal de … (onde finalizava um jogo do campeonato nacional de hóquei em patins envolvendo o clube local, conforme declarado pela testemunha G…., dirigente do mesmo, que se deparou com o cenário dos dois veículos embatidos à saída do encontro), e existem vestígios do impacto dos veículos no solo (plásticos partidos e danos no ilhéu de trânsito) e em dois sinais de trânsito, que foram derrubados – o que tornaria difícil “montar” o cenário encontrado pela PSP sem levantar suspeitas de terceiros que ali habitassem ou que por ali passassem; não se demonstrou existir qualquer relação entre os condutores das viaturas ou entre o legal representante da A. e o proprietário do outro veículo envolvido; não se verificou o envolvimento de nenhuma destas viaturas em acidentes nos dias ou semanas anteriores ao sinistro dos autos; e a A. poderia sempre responsabilizar a seguradora do seu veículo, fosse ou não responsável pela eclosão do sinistro, ressalvados os casos de dolo, atenta a cobertura de “danos próprios”.
Restam apenas as dúvidas suscitadas pela testemunha E…, que fez a averiguação do sinistro por conta da R.
Quanto a estas, para além de não estar em causa uma averiguação pericial independente e imparcial, o que, à partida, limita o seu valor probatório, elas assentam na discrepância de versões apresentadas àquela testemunha pelos dois condutores envolvidos no acidente, sendo que um terá referido que o veículo QX estaria parado quando foi embatido e o outro que estariam ainda em movimento.
Impõe-se, no entanto, colocar na perspectiva correcta esta circunstância.
Em primeiro lugar, não é possível aceitar pelo seu valor facial as declarações da testemunha referida quanto ao que lhe foi transmitido por terceiros, sobretudo quando estes não foram também ouvidos em audiência de julgamento. Trata-se de depoimento indirecto, carecido, por si só, de valor.
Em segundo lugar, como esclarece o já citado Ac. RC de 05.11.2019, “a divergência acerca do modo como um acidente ocorre é comum entre os condutores dos veículos acidentados.
Entre as razões para a existência desta contraditoriedade pode apontar-se a circunstância de ambos os condutores terem experiências de vida diferentes; capacidades de apreensão da realidade diferentes; seguirem no interior de veículos e, por isso, terem uma visão limitada do facto global, bem diversa da que teriam se estivessem a observar à distância ambos os veículos em simultâneo; diferente apreensão da mesma realidade porque seguem em posições de observação diversas e, por fim, devido à circunstância do acidente ser, em regra, uma surpresa para o condutor do veículo, caso contrário teria tomado providências para o evitar, e, nestas condições, a rapidez com que os factos ocorrem impede que a perceção e interpretação das perceções pela mente dos intervenientes corresponda, com exatidão, ao que historicamente de facto aconteceu”.
Assim, nenhum dado objectivo existindo que possa corroborar e conferir credibilidade à apontada discrepância, não poderão senão ser desvalorizadas as referências às aludidas declarações dos condutores. Consequentemente, as questões suscitadas pela testemunha E… relativamente aos vestígios do impacto num e noutro dos veículos, na medida em que se ancoravam naquela circunstância, perdem igualmente a sua sustentação (até pelo facto de o veículo QX ter sido embatido por trás pelo NR e ter embatido pela frente com os dois sinais de trânsito sitos no ilhéu.
Assim, com estas correcções, verifica-se que a única tese com suficiente sustentação probatória é a da A. As suspeitas suscitadas pela R. não assentam em factos concretos e objectivos capazes de as validar.
Cumpre apreciar e decidir.
Procedeu-se ao exame crítico da prova documental pertinente para o conhecimento do objeto do recurso, nomeadamente, a declaração amigável do sinistro oferecida com a petição inicial como documento nº 4[3], a participação do acidente à ré oferecida com a petição inicial como documento nº 5[4], cópia de certidão da participação policial do alegado sinistro, emitida em 28 de junho de 2017 e oferecida com a petição inicial como documento nº 9[5], documento nº 2 oferecido pela ré com a sua contestação[6], primeira fotografia oferecida com a contestação[7], terceira fotografia oferecida com a contestação[8], quinta fotografia oferecida com a contestação[9], penúltima fotografia oferecida com a contestação[10], documento nº 4 oferecido pela ré com a sua contestação[11], informação da Autoridade de Supervisão de Seguros e Pensões, entrada em juízo em 27 de março de 2019[12] , mensagem de correio eletrónico datada de 27 de março de 2019, remetida por J… para estes autos[13], informação remetida em 19 de junho de 2019 por correio eletrónico pela Associação Portuguesa de Seguradores para estes autos[14], primeira fotografia remetida a estes autos em 18 de dezembro de 2020, pela testemunha E…, a solicitação do tribunal a quo[15], terceira fotografia oferecida pela testemunha E…, a solicitação do tribunal a quo[16] e ouviu-se toda a prova pessoal produzida na audiência final.
Da prova pessoal produzida em audiência e atendendo à matéria cuja reapreciação é pretendida pela recorrente, apenas são relevantes as declarações do legal representante da autora e o depoimento do perito averiguador, Sr. E…, pois que a testemunha H…, amigo do legal representante da autora foi por este chamado ao local para o transportar em virtude do veículo em que circulava estar acidentado, L… apenas procedeu à avaliação dos danos resultantes do sinistro participado pela autora, a testemunha M… revelou nada saber do sinistro dos autos e a testemunha G…, amigo do legal representante da autora não presenciou o sinistro, apenas tendo verificado o estado em que os veículos se achavam.
F…, legal representante da autora, prestou depoimento de parte numa postura nitidamente defensiva e referiu que o acidente ocorreu quando se aproximava do entroncamento e olhou para a esquerda, tendo o veículo da frente parado, ocorrendo então o embate.
Não foi perguntado ao declarante qual o sentido que pretendia tomar e qual era o seu destino, inferindo-se, dadas as caraterísticas do entroncamento e o cuidado que afirma ter tido em olhar para a sua esquerda, que pretendia seguir para a direita, pois que, nessa eventualidade, não pretendendo virar à esquerda, não era tão premente olhar para a direita, pois só se poderia deparar na via da direita para onde tudo indica pretendia seguir com algum veículo que viesse a realizar uma manobra de ultrapassagem.
Também não foi perguntado a que velocidade circulava o veículo conduzido pelo legal representante da autora.
O legal representante da autora declarou ter-se logo dado como culpado em virtude de ter embatido por trás, preenchendo declaração amigável de acidente e que ainda assim achou preferível chamar a polícia para que ficasse registado o acidente, referindo posteriormente desconhecer de quem foi a iniciativa de chamar a polícia.
E…, perito averiguador e titular de uma empresa que presta serviços a diversas seguradoras na averiguação de sinistros, afirmou que a averiguação a que procedeu foi motivada pelo valor elevado dos danos em causa e também pelo histórico de sinistros do veículo acidentado; declarou ter verificado diversas incongruências que o levaram a colocar em causa a realidade do sinistro participado. Assim, enquanto o legal representante da autora afirmou que o veículo que o precedia estava parado, o condutor deste veículo terá afirmado que ia em movimento quando foi embatido pelo veículo da autora; os danos na traseira do BMW .. não se coadunam com os danos verificados na parte frontal do veículo da autora; indo o legal representante da autora sozinho no veículo desta, não se entende por que razão os dois “airbags” da viatura estavam abertos após o alegado sinistro; apesar da destruição do radiador, não há vestígios de fluidos no pavimento; estranhou a posição e o estado da ótica, alegadamente do veículo .., imediatamente atrás da roda traseira do lado esquerdo deste e sem grandes danos; não se verifica a transferência de tintas entre os veículos alegadamente envolvidos no embate; as fotografias do veículo da autora tiradas na oficina reparadora, antes de desmontagem, não correspondem ao estado em que o mesmo veículo alegadamente terá ficado após o embate e retratado por fotografias que lhe foram cedidas por um dos intervenientes no alegado sinistro.
Que dizer?
A nosso ver, como temos repetidamente referido noutras decisões, em matéria de sinistralidade automóvel, mais relevante do que é e como é declarado pelos diversos intervenientes é a corroboração do que é declarado pelas condições físicas do local onde se verifica o sinistro e pelas consequências materiais concretas no ou nos veículos envolvidos.
De facto, as declarações podem alterar-se e afeiçoar-se em função de variados interesses e, ao invés, os elementos físicos, corretamente recolhidos, não são manipuláveis ou falsificáveis e, interpretados de acordo com as regras da física e da lógica, podem trazer elementos essenciais para a aferição da credibilidade da prova pessoal que venha a ser produzida.
Sublinhe-se que o objeto do processo consiste na demonstração da ocorrência de um certo sinistro, com certas consequências materiais e não na existência de uma simulação de um acidente.
Por outro lado, ao contrário do que se afirma na motivação da decisão de facto do tribunal recorrido, as dúvidas do Sr. Perito Averiguador não assentam exclusivamente nas versões contraditórias das declarações dos condutores dos veículos envolvidos no alegado sinistro[17], antes cada uma das dúvidas, que não a da apontada divergência de declarações, vale por si e resulta de factos objetivos incontestáveis.
No caso em apreço há que ter em conta que o veículo que alegadamente precedia o veículo da autora é um veículo mais alto, mais pesado e mais largo, pelo que a sua projeção para cima de um ilhéu direcional, com derrube de dois sinais verticais de trânsito exige uma grande energia e ainda maior se acaso esse veículo que alegadamente precedia o da autora estava imobilizado, como afirmou o legal representante da autora.
Anote-se que, fazendo fé no que consta na participação policial do sinistro, ambos os condutores envolvidos no alegado sinistro terão declarado que o veículo que precedia o veículo da autora se imobilizou, ocorrendo depois disso o embate[18]. Na mesma participação, afirma-se que o condutor do veículo que precedia o veículo da autora se imobilizou no “cruzamento”.
Mas se o veículo que precedia o da autora se imobilizou junto ao entroncamento, como é possível que tenha sido projetado para o ilhéu direcional que necessariamente antecede o entroncamento e do mesmo passo derrubar a sinalização vertical que se achava implantada no mesmo ilhéu?
Também o legal representante da autora se refere à imobilização do veículo que o precedia, sem cuidar de situar o local onde essa imobilização ocorreu e sem que sejam apresentadas justificações para que tal imobilização ocorresse antes do ilhéu direcional.
Por outro lado, achando-se o ilhéu direcional no eixo da via, para que o veículo que precedia o da autora pudesse ser projetado para cima dele e para que o próprio veículo da autora também se imobilizasse nesse mesmo ilhéu, alinhado com o veículo que o precedia, ambos os veículos teriam que ter trajetórias perpendiculares à do referido ilhéu, o que não é conforme à normalidade da condução automóvel e muito menos quando essa anormalidade se verifica logo em dois veículos seguidos.
A extensão, a simetria e a profundidade dos danos verificados no veículo da autora não se coadunam com os ínfimos danos percetíveis na traseira do veículo .., sobre o seu lado direito, como resulta da terceira fotografia oferecida pelo Sr. Perito averiguador em 18 de dezembro de 2020.
Numa alegada colisão como a que alegadamente ocorreu e com as consequências materiais resultantes dela, é inexplicável a inexistência de extensas transferências de tinta num e noutro veículo.
Não se entende por que razão o “airbag” do passageiro do veículo da autora estava acionado quando apenas se fazia transportar nesse veículo o seu legal representante.
No orçamento de reparação do veículo que alegadamente precedia o veículo da autora, não obstante a alegada colisão e derrube de dois sinais verticais de trânsito, não constam quaisquer danos na sua dianteira (documento nº 4 oferecido pela ré com a sua contestação).
Porém, a ré facultou à autora um veículo de substituição em agosto de 2017 (ponto 16 dos factos provados), não obstante tenha em carta datada de 13 de junho de 2017 declinado a sua responsabilidade pelo sinistro (ponto 18 dos factos provados).
Poderá esta conduta da ré ser valorada como uma assunção da responsabilidade pelo sinistro participado e o reconhecimento da ocorrência do mesmo?
Sublinhe-se que nenhuma das partes foi confrontada com esta questão e que nem a autora ao alegar essa matéria na petição inicial a configurou como uma assunção de responsabilidade pelo sinistro por parte da ré (veja-se o artigo 14º da petição inicial[19]). Daí que, em tal circunstancialismo, não se deva relevar a aludida conduta da ré como um reconhecimento da sua responsabilidade pela cobertura do sinistro participado.
Além disso, a anuência da ré ao pedido de veículo de substituição tanto pode ser a título condicional como pode ser uma assunção da obrigação de reparação do dano da privação do uso do veículo sinistrado, não havendo matéria alegada e provada que aponte no sentido dessa anuência ter este último significado.
Assim, tudo sopesado, não obstante as declarações do legal representante da autora que apontam no sentido da verificação do sinistro participado à ré, todos os elementos objetivos e infalsificáveis que se acabam de recensear colocam fundadamente em causa a sua credibilidade, inexistindo qualquer meio de prova pessoal ou real que permita a formação de uma convicção positiva deste tribunal quanto à realidade da factualidade impugnada pela recorrente.
Assim sendo, deve julgar-se não provada a matéria contida nos pontos 10 a 12 dos factos provados da sentença recorrida, procedendo integralmente a reapreciação da decisão da matéria de facto requerida pela recorrente.
Além disso, a fim de evitar contradições na matéria de facto, por identidade de razão com o que dispõe o artigo 662º, nº 3, alínea c), do Código de Processo Civil, no ponto 14 dos factos provados onde consta “O sinistro”, deverá passar a constar “Um sinistro” e no ponto 19 dos factos provados onde se alude a “ do acidente” deverá passar a constar “participação de sinistro”.
3.2 Fundamentos de facto exarados na sentença recorrida, expurgados das meras remissões probatórias e com as alterações decorrentes da reapreciação da decisão da matéria de facto que precede e com transcrição dos artigos da petição inicial para que remeteu
3.2.1 Factos provados
3.2.1.1
A autora é uma sociedade comercial por quotas que exerce, com fim lucrativo, a atividade de comercialização e assistência técnica de equipamentos e componentes na área das telecomunicações.
3.2.1.2
A autora foi legítima proprietária (com reserva de propriedade a favor do D…, S.A.) da viatura com a matrícula ..-NR-.., da Marca BMW, Modelo ….
3.2.1.3
A viatura identificada no artigo anterior foi vendida pela autora na data de 23.10.2017 a N….
3.2.1.4
Com início em 28.10.2014, a sociedade autora celebrou com a ré um contrato de seguro, do ramo “Automóvel”, com a apólice de seguro nº …………./., com validade no período temporal de 28.04.2017 até 28.10.2017.
3.2.1.5
No contrato de seguro celebrado com a ré, a autora subscreveu várias coberturas nas condições particulares.
3.2.1.6
Desta forma, nas Condições Particulares do contrato de seguro celebrado entre autora e ré, foi contratada, designadamente e entre outras, a cobertura de responsabilidade civil facultativa e as condições especiais para choque colisão ou capotamento, com o capital de €29.238,89, incidindo sobre o mesmo uma franquia de 2% sobre o capital seguro com o mínimo de €250,00.
3.2.1.7
O artigo 38.º das condições gerais do contrato de seguro facultativo aludido em 4 a 6 [3.2.1.4 a 3.2.1.6], sob a epígrafe “Definições”, para além do mais, dispõe: (...)
“Capital seguro: Valor estabelecido na apólice para cada cobertura e garantia perfazendo assim o valor máximo a indemnizar ou a pagar pelo segurador em cada sinistro ou no conjunto de sinistros de cada anuidade.
Cobertura(s) de danos próprios: Cobertura ou conjunto de Coberturas Facultativas que garantem os danos sofridos pelo veículo seguro em caso de sinistro. Para efeitos do presente contrato são consideradas Coberturas de Danos Próprios as Choque, Colisão ou Capotamento (...).
Valor venal: valor do veículo seguro no momento imediatamente anterior ao sinistro e que está consignado na apólice, determinado na primeira anuidade pelo Guia Eurotax ou outro análogo e nas seguintes pelo valor resultante da aplicação legal das Tabelas de Desvalorização Mensal de veículos anexa. (...)
Perda Total: A C… considera que o veículo seguro se encontra em situação de perda total quando se verifique uma das seguintes hipóteses:
(...)
3. b) Para efeito das coberturas de Choque, Colisão ou Capotamento (...), quando se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos é superior a 70% (setenta por cento) do valor venal do veículo consignado na apólice à data do sinistro.
(...)
Salvado: Veículo afetado por um sinistro de Perda Total, cujo valor residual é acordado entre o proprietário e uma pessoa singular, colectiva ou equiparada interessada na sua aquisição, devendo esse valor, após apuramento e posterior aprovação pela C…, ser deduzido ao valor da indemnização ”.
3.2.1.8
O artigo 46.º das condições gerais do contrato de seguro facultativo aludido em 4 a 6 [3.2.1.4 a 3.2.1.6], sob a epígrafe “Danos no veículo seguro”, para além do mais, dispõe:
“2. Considera-se que, num sinistro garantido pelas coberturas de Danos Próprios, podem existir duas situações: Perda Parcial ou Perda Total, conforme definições constantes no artigo 38.º. (...)
4. Em caso de Perda Total:
a) A C… poderá optar pela substituição do veículo seguro por outro igual ou pela atribuição de uma indemnização em dinheiro até ao seu valor venal, conforme definido no artigo 38.º (...)”.
3.2.1.9
De acordo com a Tabela 3 de Desvalorização Mensal de veículos ligeiros de passageiros a diesel anexa ao contrato de seguro, a percentagem de desvalorização ao 7.º mês do 3.º ano corresponde a 31,2%.
3.2.1.10
Foi lavrada a declaração amigável de acidente automóvel.
3.2.1.11
Um sinistro foi participado à ré.
3.2.1.12
A ré abriu o processo de sinistro para averiguação.
3.2.1.13
No mês de agosto de 2017, a autora solicitou um veículo de substituição, solicitação atendida pela ré.
3.2.1.14
Depois da peritagem efetuada pela ré à viatura da autora pelos seus serviços técnicos, foi a mesma viatura considerada perda total.
3.2.1.15
Por carta datada de 13.06.2017, a ré comunicou que havia terminado a instrução do processo de sinistro, e que declinava qualquer responsabilidade pelo mesmo, por aplicação dos artigos 342º nºs. 1 e 2 e 487º nº 1 do Código Civil.
3.2.1.16
O valor de mercado do veículo, na data da participação de sinistro, e antes da respetiva ocorrência, cifrava-se em €20.150,00.
3.2.1.17
O valor de venda (corrigido), segundo as tabelas EUROTAX ascendia a €17.137,00.
3.2.1.18
E os salvados ascendiam a €3.000,00.
3.2.1.19
O custo da reparação do veículo de matrícula ..-NR-.. ascendia a €24.791,69.
3.2.1.20
A primeira matrícula do veículo da autora remonta a 30.12.2010 e, à data da peritagem, este veículo já contava com 286.348 kms. percorridos.
3.2.1.21
O veículo de matrícula ..-NR-.. já havia sido objeto de duas outras participações de sinistro, em 07.04.2016 e 11.03.2016.
3.2.2 Factos não provados
3.2.2.1
Que a autora comercializa telemóveis e “tablets”.
3.2.2.2
Que no dia 27 de maio de 2017, pelas 18:00 horas, na Avenida … em Valongo, ocorreu um [acidente?] com a viatura de matrícula ..-NR- ...
3.2.2.3
Que o representante legal da autora, F…, conduzia a viatura identificada supra e num momento de distração embateu na traseira do veículo BMW .., com a matrícula ..-QX-...
3.2.2.4
Que em consequência do sinistro, a viatura que era propriedade da autora ficou visivelmente danificada na sua dianteira.
3.2.2.5
Que à data do sinistro o valor comercial da viatura da autora era de €29.238,89.
3.2.2.6
Que se a ré tivesse pago à autora o montante devido, no tempo devido, o representante legal desta não teria ainda ficado triste, angustiado, preocupado com a situação e impossibilitado de receber o que teria direito.
4. Fundamentos de direito
A recorrente pugna pela revogação da decisão recorrida em função da alteração da decisão da matéria de facto que requereu e pela consequente improcedência total da ação e sua integral absolvição do pedido.
Cumpre apreciar e decidir.
“Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente” (artigo 1º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro aprovado pelo decreto-lei nº 72/2008, de 16 de abril).
De acordo com o previsto no artigo 99º do Regime Jurídico que se acaba de citar, o sinistro corresponde à verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o acionamento da cobertura do risco prevista no contrato.
O sinistro é deste modo um facto constitutivo do direito do tomador do seguro ou terceiro beneficiário do seguro contra o segurador, recaindo o ónus de alegação e prova do sinistro sobre aquele que pretende acionar o segurador (artigo 342º, nº 1, do Código Civil).
Por isso, compete ao tomador do seguro alegar e provar um conjunto de factos que integrem o risco coberto pelo segurador, a fim de que este realize a prestação a que contratualmente se obrigou.
No caso em apreço, competia à autora provar que em consequência de um choque, colisão ou capotamento, o veículo de que foi dona sofreu os danos cujo ressarcimento peticionou nestes autos.
Por força da alteração da decisão da matéria de facto proferida por esta instância, não resultou demonstrado um sinistro que constitua a ré seguradora na obrigação de indemnizar a autora, nos termos contratualmente ajustados, pois apenas resultou provado que o veículo que foi da autora se apresentou com diversos danos.
Não se tendo provado por que razão o veículo que foi da autora veio a ostentar esses danos e que essa causa se achava coberta pelo contrato de seguro por danos próprios, procede o recurso e improcede a ação.
As custas da ação e do recurso são da responsabilidade da autora, já que decaiu integralmente (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
A factualidade provada em confronto com a alegada na petição inicial indicia a prática de um crime de burla relativa a seguros, na forma tentada e qualificada (artigos 22º, nº 1 e nº 2, alínea a), 202º, alínea a) e 219º, nº 1, alínea a), nº 2 e nº 4, alínea a), todos do Código Penal), já que o benefício almejado era de valor elevado. Assim sendo, visto o disposto no artigo 242º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal, determina-se que seja aberta vista ao Digno Magistrado do Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes.
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes subscritores deste acórdão, da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar procedente o recurso de apelação interposto por “C…– , S.A.” e, em consequência, revogando-se a sentença recorrida proferida em 17 de janeiro de 2021, julgam-se não provados os factos provados nos pontos 10 a 12 da sentença recorrida, alterando-se os pontos 14 e 19 dos mesmos factos provados nos termos antes enunciados, julgando-se a ação totalmente improcedente e absolvendo-se a recorrente do pedido.
Custas da ação e do recurso a cargo da autora e recorrida, por ter decaído, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
Abra vista ao Digno Magistrado do Ministério Público para os fins indicados no último parágrafo da fundamentação de direito deste acórdão.
***
O presente acórdão compõe-se de vinte e uma páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.
Porto, 28 de outubro de 2021

Carlos Gil
António M. Mendes Coelho
Joaquim Moura
__________________________________________________
[1] Segue-se, com alterações, o relatório da decisão recorrida.
[2] Notificada às partes mediante expediente eletrónico elaborado em 18 de janeiro de 2021.
[3] Declaração subscrita com data de 27 de maio de 2017 pelo legal representante da autora, assinalando no rosto da participação, no campo 12 relativo às circunstâncias do sinistro que “Embateu na traseira de outro veículo que circulava no mesmo sentido e na mesma fila”, assinalando-se danos na frente do veículo A, com a matrícula ..-NR-.. e danos na frente esquerda e em toda a traseira do veículo de matrícula ..-QX-...
[4] Participação do sinistro à ré datada de 27 de maio de 2017, subscrita pelo legal representante da autora, assinalando-se no campo reservado à “Descrição Pormenorizada do Acidente” o seguinte: “Embate na trazeira [?] do veículo .. QX .. e sinal Stop por [palavra ilegível].”
[5] Referencia-se que o alegado sinistro ocorreu no dia 27 de maio de 2017, pelas 19 horas e que a participação é da mesma data, pelas 22h43m. Afirma-se no campo da “Natureza do acidente” que se trata de “Colisão – Traseira com outro veículo em movimento”. Mais adiante, no campo relativo à “Descrição do acidente” escreveu-se que “Ambas as viaturas não se encontravam no local do acidente, onde resultaram danos em ambas as viaturas e em dois sinais de trânsito”. No mesmo campo, mais adiante escreveu-se: “A versão do acidente, vai narrada e assinada pelos condutores intervenientes, consta de impressos próprios que se juntam e transcreve: Condutor do veículo nº 1[ veículo de matrícula ..-NR-..]: « - Vinha de Av. 5 Outubro não me apercebi que o carro da frente parou e embati na traseira.» Condutor do veículo nº 2 [veículo de matrícula ..-QX-..]: « - Descia a Avenida … parei no cruzamento que vinha um carro quando sou abalroado na traseira.» No campo relativo aos vestígios no local escreveu-se “Nada a registar.” No campo identificado como “Outros Danos exarou-se “Um sinal de STOP e um sinal de sentido proibido danificados.”.
[6] Trata-se de um orçamento de reparação do veículo de matrícula ..-NR-.., por causa do sinistro participado e alegadamente ocorrido em 27 de maio de 2017, onde, além do mais, se orçamenta a substituição do “airbag” do passageiro, do cinto de segurança da frente, lado direito e bem assim “tranc” do mesmo cinto, do radiador e respetivos suportes, da blindagem inferior do radiador e do radiador de refrigeração do ar.
[7] Trata-se de uma fotografia na qual está aposta a data de 01 de junho de 2017, pelas 15h53m07s, que respeita à frente de um veículo automóvel com a matrícula ..-NR-.., sendo visíveis danos na zona do radiador, estando a parte de vidro das óticas aparentemente intacta.
[8] Trata-se de uma fotografia na qual está aposta a data de 01 de junho de 2017, pelas 15h53m11s, que respeita à frente de um veículo automóvel cuja matrícula termina em “..” e que apresenta na frente do radiador uma parte metálica vincada sensivelmente a meio, sendo visível que a parte de vidro da ótica do lado esquerdo está em parte partida.
[9] Trata-se de uma fotografia na qual está aposta a data de 01 de junho de 2017, pelas 15h55m11s, que respeita à frente de um veículo automóvel com a matrícula ..-NR-.., sendo a maior parte dos danos na parte superior ao pára-choques, não havendo sinais de colisão neste, mas apenas uma pequena fratura que não vai de alto a baixo do mesmo e apenas do lado direito deste elemento.
[10] Trata-se de uma fotografia na qual está aposta a data de 01 de junho de 2017, pelas 15h56m08s, que respeita ao interior da frente de um veículo automóvel, no qual foram accionados os “airbags” do condutor e do passageiro.
[11] Orçamento de reparação do veículo de matrícula ..-QX-.., com referência a sinistro ocorrido em 27 de maio de 2017, mencionando-se que não foi dada ordem de reparação, datado de 05 de fevereiro de 2018 e no qual apenas vêm orçamentados danos na traseira no veículo, inexistindo qualquer menção a danos na dianteira do veículo.
[12] Refere-se nesta informação que a viatura com a matrícula ..-QX-.. foi interveniente num sinistro ocorrido em 26/06/2016, no âmbito do qual foi igualmente registada a intervenção do veículo com a matrícula ..-IP-.. e que tal processo foi gerido pelo Fundo de Garantia Automóvel, havendo registo de intervenção de I… num processo de sinistro ocorrido em 02 de novembro de 2005, processo também gerido pelo Fundo de Garantia Automóvel, não havendo registo de processo de sinistros quanto ao veículo com a matrícula ..-NR-...
[13] Na qual se refere que o Fundo de Garantia Automóvel chegou a abrir o processo nº ……, no seguimento de um acidente de viação ocorrido a 26 de junho de 2016 em que, alegadamente, foi interveniente o veículo matrícula ..-QX-.. e que após análise de todos os elementos carreados para o processo o Fundo de Garantia Automóvel decidiu declinar a regularização do sinistro pela via extrajudicial, uma vez que não foi apresentada prova da intervenção do veículo ..-QX-...
[14] Consta de tal informação, em síntese, o seguinte: relativamente aos veículos de matrícula ..-NR-.. e ..-QX-.., averiguou a existência de quatro sinistros para cada um dos veículos (em 11 de março de 2016, 07 de abril de 2016, 27 de maio de 2017 e 17 de setembro de 2018, quanto ao veículo de matrícula ..-NR-.. e em 28 de maio de 2016, 27 de maio de 2017, 22 de maio de 2018 e 21 de março de 2019 quanto ao veículo de matrícula ..-QX-..). Quanto à sinistralidade da K… [dona do veículo ..-QX-..] e da autora averiguou a existência de seis sinistros para cada uma e de quinze sinistros para I… [condutor do veículo de matrícula ..-QX-..].
[15] Fotografia de dois veículos, um branco, de matrícula ..-NR-.., com a roda da frente do lado esquerdo no começo de um ilhéu direcional, com a grelha e o capot amolgados e o pára-choques dianteiro deformado, achando-se imediatamente à sua frente um tubo na horizontal e um pouco mais à frente e logo atrás da roda traseira do lado esquerdo do outro veículo, de cor cinzenta, uma ótica e sob o aludido veículo cinzento um outro tubo, também na horizontal e junto à sua roda traseira do lado esquerdo. São visíveis pedaços de plástico e bem assim fragmentos de cimento. No veículo branco não são visíveis sinais de transferência de tinta do veículo que o precede. Não existem sinais de colisão do veículo branco contra o tubo que se acha na horizontal imediatamente à sua frente, do lado esquerdo (facto que é ainda mais percetível na segunda fotografia oferecida pela testemunha). A porta da mala traseira do veículo cinzento está aberta, circunstância que não permite a visualização da matrícula. Os dois veículos estão alinhados um com o outro e não se vêem sinais de travagem (o que em princípio nada significa já que ambos os veículos, dada a sua gama, estarão equipados com ABS que em condições normais de funcionamento impede a formação de rastos de travagem) ou de derrapagem na via.
[16] Fotografia da traseira de um veículo cinzento com a porta traseira da mala aberta e na qual se vêem os dois refletores colocados na parte superior do pára-choques traseiro, de um e outro lado, partidos, alguns vestígios, descontínuos, de um material branco na parte superior do mesmo pára-choques e uma deformação na parte inferior do lado direito do mesmo pára-choques, sendo ainda visível uma ótica solta, pouco atrás da roda do lado esquerdo do mesmo veículo, alguns fragmentos de plástico da lado esquerdo do mesmo veículo e dois tubos, um sob o veículo cinzento e o outro imediatamente atrás do mesmos, ambos na horizontal.
[17] A desqualificação do depoimento do Sr. Perito averiguador por parte do tribunal recorrido é nitidamente parcial pois que se se pode afirmar que este está a “soldo” da ré por ter sido contratado por esta para fazer a averiguação do sinistro, da banda do legal representante da autora também existe um interesse direto no sucesso da ação, tanto mais que é o único sócio da autora.
[18] Ao contrário, o Sr. Perito averiguador afirmou que enquanto o legal representante da autora declarou que o veículo que precedia o segurado estava imobilizado enquanto o condutor deste último veículo afirmou que se achava em movimento.
[19] Neste artigo a autora alegou que “Como o processo de sinistro se encontrava demorado no mês de Agosto de 2017 a A. solicitou um veículo de substituição, solicitação atendida pela R.”