Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1199/23.3T8MAI-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
CHEQUE COMO MERO QUIRÓGRAFO
RELAÇÃO CAUSAL
Nº do Documento: RP202402191199/23.3T8MAI-A.P1
Data do Acordão: 02/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O cheque, como mero quirógrafo da obrigação exequenda, constitui título executivo, os termos do art.703º/1/c) CPC, quando no requerimento executivo são alegados os factos que configuram a relação subjacente, apesar de prescrito o direito de ação cambiária (art.40.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque), o cheque ter sido emitido depois de expirada a data de validade aposta no módulo de cheque e emitido com data distinta da data que consta como data de emissão da fatura e ter sido apresentado a pagamento decorrido mais de oito dias a contar da data de emissão.
II - A subscrição do título faz presumir a existência de uma relação causal subjacente.
III - A compensação pressupõe a reciprocidade dos créditos e não opera a extinção da obrigação exequenda, quando o devedor/embargante indica um contra crédito titulado por terceiro (art.851.º/1, 1ª parte CC).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: EmbExec-Liminar-Cheque-1199/23.3T8MAI-A.P1

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SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):

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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório

No processo de execução, que segue a forma de processo comum para pagamento de quantia certa, em que figuram como:

- EXEQUENTE: A..., Lda, rua ..., ..., ..., ... MAIA; e

- EXECUTADO: B..., Lda, rua ..., Espinho, ... ESPINHO

requereu a exequente a promoção da execução para pagamento da quantia de € 115.548,00, acrescida de juros legais, vencidos e vincendos, à taxa de 7%, contados desde o seu vencimento (15/Outubro/2020) e que à data de hoje ascendem a 18.858,00 € (dezoito mil euros oitocentos e cinquenta e oito cêntimos), ascendendo o valor atual da divida ao montante de 134.406,00 € (capital + juros à taxa de 7%).

Alegou para o efeito que dedica-se à atividade comercial, entre outras, de distribuição de produtos de armazenagem e construção de todos os tipos de edifícios.

No exercício do seu comércio executou as obras melhor discriminadas na fatura n.º ... no valor de € 130.098,00 (cento e trinta mil euros e noventa e oito cêntimos) dos quais a executada apenas liquidou a quantia de € 14.550,00 (catorze mil quinhentos e cinquenta euros).

Para pagamento do remanescente em dívida a executada entregou o cheque nº ... sacado sobre o Banco 1..., S.A., sendo a exequente legítima portadora de um cheque, emitido pela executada.

Em 07 de Dezembro de 2022 o exequente apresentou o cheque a pagamento à instituição de crédito. Aquando da sua apresentação, o cheque foi devolvido por falta de provisão, conforme menções apostas no verso.

Mais alegou que caducou o direito de instaurar a competente ação cambiária, já que decorreram 6 meses, passando agora os referidos cheques a terem o valor de documentos particulares como quirógrafos.

A executada, até à presente data, não pagou ao exequente a quantia titulada pelo referido cheque, apesar das interpelações que nesse sentido lhe foram feitas.


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Citada a executada para os termos da execução, veio opor-se à execução.

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Por apenso aos autos de execução a executada veio deduzir embargos à execução, pedindo a final que os mesmos fossem julgados procedentes por provados, com a consequente extinção da execução.

A executada invocou a inexistência de título executivo e a inexistência da dívida exequenda face à verificação dos pressupostos da compensação. Requereu a suspensão dos termos da execução, sem prestação de caução, por considerar inexigível a obrigação exequenda.

Para sustentar a inexistência de título executivo, a executada alegou que o cheque dos autos, tendo sido emitido para 15 de Outubro de 2021, apenas foi apresentado a pagamento junto da entidade bancária sacada no dia 6 de Dezembro de 2022, para além dos prazos previstos nos arts.29º e 52º, da Lei Uniforme Relativa aos Cheques.

Alegou depois que apesar de a exequente ter dado o cheque à execução como simples quirógrafo ou documento particular, fê-lo mal, em virtude de não ter cumprido a obrigação de alegação dos factos constitutivos da relação subjacente no requerimento executivo.

Alegou de seguida que a exequente, para procurar demonstrar a dívida, juntou uma fatura emitida em 16 de Outubro de 2020, mas não apresenta qualquer justificação que o cheque dado à execução seja pós-datado para 15 de Outubro de 2021, ou seja, para um ano após a emissão da aludida fatura, nem justifica por que razão o cheque vem pós-datado para uma data posterior à da validade do mesmo, uma vez que este é válido apenas até 24 de Setembro de 2021, e ainda que a exequente não procedeu à interpelação da executada.

Para sustentar a inexistência da dívida exequenda face à verificação dos pressupostos da compensação, a executada alegou que o representante legal e sócio da embargante, AA, é também sócio gerente de uma outra sociedade comercial denominada C... – Unipessoal, Lda., que é uma empresa associada de grupo, da ora embargante.

Alegou depois que a exequente é devedora desta sociedade C... – Unipessoal, Lda., pelo montante de € 81.180,00 (oitenta e um mil e cento e oitenta euros), titulado por fatura, e que, atenta esta relação, foi pedido que a exequente liquidasse a sobredita fatura e a embargante liquidaria o valor remanescente em dívida, fazendo-se assim um acerto de contas.

Continuou alegando que a embargante pagaria à exequente o montante de € 34.368,00 (trinta e quatro mil e trezentos e sessenta e oito euros) (€ 115.548,00 - € 81.180,00) e que a falta de entendimento resultou na recusa, por parte da exequente, neste encontro de contas.

Concluiu que a compensação é uma causa extintiva das obrigações e atenta a invocada relação de grupo entre as identificadas sociedades, a embargante ficaria apenas obrigada a pagar o montante de € 34.368,00 (trinta e quatro mil e trezentos e sessenta e oito euros) e não o valor que vem peticionado no requerimento executivo.

Considera, por fim, que está perfeitamente em causa, com a presente oposição e seus fundamentos, a inexistência de título executivo e, mesmo que tal não venha a ser o douto entendimento, que apenas se coloca por mera hipótese académica, a quantia exequenda não se mostra certa, liquida e exigível.

A Embargante não é devedora da quantia indicada como estando em débito.

O prosseguimento de atos de penhora acarretaria a sua total paralisação, já que estamos a falar de uma pequena PME por contraponto a uma execução com valor indicado em débito perto dos 150.000,00€. Nem de longe nem de perto a embargante é devedora de tal quantia e os factos alegados são prova do mesmo, para além da prova documental que os corroboram. Considera, ainda, que invocou factos que apontam no sentido da invocada inexigibilidade da obrigação exequenda, juntando prova documental para comprovação do alegado, entendendo que estão reunidos os pressupostos legais para a suspensão da execução, sem prestação de caução, nos termos do artigo 733º nº 1 al. c) do CPC.


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Proferiu-se despacho liminar com a decisão que se transcreve:

“Pelo exposto:

- Indefiro liminarmente os presentes embargos de executado, por manifesta improcedência.

Custas pela embargante, nos termos do disposto no art.º 527, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Fixo à causa o valor de € 134.406,00 (cento e trinta e quatro mil e quatrocentos e seis euros), nos termos do disposto nos arts. 297º, nº 1 e 306º, nº 2, do Código de Processo Civil”.


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A embargante veio interpor recurso do despacho.

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Nas alegações que apresentou a apelante formulou as seguintes conclusões:

1. O indeferimento liminar dos embargos de executado apresentados pela Recorrente por manifesta improcedência – juízo este que de todo não se aceita -, constitui uma decisão precipitada (em termos que adiante melhor se expenderão) e, particularmente, uma decisão que decapita e cerceia in limine os direitos da Embargante.

2. A sentença ora posta em crise, decidindo como decidiu, impede tout court o prosseguimento dos autos e, com isso, que em sede de julgamento a Recorrente produza a prova relativamente à matéria que alegou na sua petição de embargos, cabendo-lhe, como se sabe, o respetivo ónus da prova.

3. A Recorrente, no artigo 10º dos seus embargos, impugnou a fatura apresentada pela Recorrida para justificar a relação subjacente à relação cartular e cambiária, tornando assim a dívida exequenda materialmente controvertida.

4. A sentença em apreço vem liquidar a apreciação dessa matéria e vem extorquir à Recorrente o direito de fazer prova da inexistência, ainda que parcelar, da dívida em causa.

5. Ora, o próprio tribunal a quo invoca jurisprudência e doutrina, a páginas 4 e 5, que consideram, e bem, que os embargos de executado constituem uma “verdadeira ação declarativa” de simples apreciação negativa, cabendo ao embargante alegar e provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado pelo exequente.

6. Se assim é, e considerando a sentença de fls. que a Recorrente/Embargante apresentou a sua “ação declarativa” de forma incompleta ou insuficiente ou, no limite, não invocou fundamentos de facto ou de Direito que sirvam ao seu propósito, poderia e deveria o Mmo. Juiz a quo ter convidado aquela ao aperfeiçoamento dos seus embargos, nos termos do disposto no artigo 590º do Código de Processo Civil.

7. Designadamente, a Recorrente invocou como causa extintiva da dívida exequenda o instituto da compensação assente numa relação de grupo entre aquela e uma outra sociedade, credora da Exequente, nos termos dos artigos 30º a 37º da sua petição de embargos.

8. Matéria esta sujeita, naturalmente, a prova a produzir pela Recorrente no momento processual adequado.

9. Limitou-se a sentença a “concluir que a factualidade alegada pela embargante carece de fundamento para a extinção da execução”, quando deveria ter convidado a Recorrente à “concretização da matéria de facto alegada” – cfr. artigo 590º, nº 4 do CPC -, eventualmente juntando documento comprovativo da relação de grupo alegada por aquela.

10. Antes, o tribunal a quo “matou” os embargos! Assim impedindo a Recorrente de fazer prova, cujo ónus lhe compete, no momento próprio.

11. Pelo que, mal andou a sentença ora posta em crise em indeferir liminarmente os embargos de executado quando deveria, quando menos, convidar a Embargante/Recorrente ao aperfeiçoamento do seu articulado.

12. Depois, nos artigos 38º a 44º da sua petição de embargos, a Recorrente alegou que “estão reunidos os pressupostos legais para a suspensão da execução, sem prestação de caução, sem prestação de caução, nos termos do artigo 733º, nº 1, al. c) do CPC”.

13. O tribunal a quo sobre esta invocação e requerimento submetido à sua apreciação… nada disse!

14. A sentença nada expressa sobre o referido petitório ínsito nos embargos de executado, quando manifestamente deveria ter-se pronunciado sobre o mesmo, com especificação dos fundamentos de facto e de Direito que justificassem a sua decisão.

15. Não basta concluir que “face ao teor da alegação da executada e ao título junto aos autos, os presentes embargos de executado afiguram-se-nos manifestamente improcedentes, pelo que, ao abrigo do disposto no art.º 732, nº 1, c), do Código de Processo Civil, deverão ser liminarmente indeferidos”.

16. Haveria também de concluir com a pronúncia sobra a (in)admissibilidade da requerida suspensão da execução, fundamentando-a de facto e de Direito!

17. Não o fazendo, incorre a sentença em apreço em nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alíneas b) e d), do Código de Processo Civil.

18. Nulidade que ora se argui nos termos do disposto no nº 4 do mesmo preceito legal.

19. Dir-se-á ainda que a Recorrente/Executada, para além de ter impugnado em 10º dos seus embargos a fatura junta com a execução e bem assim a relação subjacente à obrigação cambiária, impugnou em 11º e seguintes do mesmo articulado a validade do cheque dado à execução como mero quirógrafo por ter-se expirado a sua data de validade.

20. Com efeito, a Exequente/Recorrida não diz, nem para tanto apresenta qualquer justificação ou motivação no seu requerimento executivo, que o cheque dado à execução é pós-datado para 15.10.2021, ou seja, para um ano após a emissão da aludida fatura.

21. Nem tão pouco a Embargada justifica ou explica por que razão o cheque vem pós-datado para uma data posterior à da validade do mesmo.

22. Com efeito, conforme melhor resulta do cheque dos autos, este é válido até 2021.09.24.

23. Ora, ainda que mero quirógrafo ou documento particular, o cheque a que se pretende atribuir exequibilidade não é válido ou, dito de outra forma, tem a sua validade expirada!

24. E não é válido nem na data do seu vencimento, nem na data da sua apresentação a pagamento junto do banco sacado, nem na data da apresentação do requerimento executivo.

25. Logo, não sendo válido, é título inexistente, não podendo ser também por isso dado o cheque à execução nos termos do disposto no artigo 703.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Civil.

26. O tribunal a quo entende que esta alegação é “inócua”, porquanto a aposição da data limite de validade impressa nos cheques resulta da carta-circular nº 6/2006/DPG do Banco de Portugal, que não tem carácter vinculativo e “não constitui requisito essencial que o cheque deva conter”.

27. Salvo o devido respeito, alguma consequência há-de advir para um cheque, como é o caso dos autos, que se mostra emitido para data (15/10/2021) posterior ao da sua validade (24/09/2021), isto é, quando a sua validade já havia expirado.

28. Cheque esse que, além do mais, é apresentado a pagamento para lá dos prazos estabelecidos nos artigos 29º e 52º da Lei Uniforme Relativa aos Cheques.

29. A validade de um cheque como título executivo, mesmo enquanto mero quirógrafo, não deve manter-se se a sua apresentação a pagamento ocorreu fora dos prazos estabelecidos nos artigos 29º e 52º da Lei Uniforme Relativa aos Cheques e tiver tido lugar depois de expirada a data limite de validade nele impressa pelo banco sacado.

30. Sendo que ademais a Exequente/Recorrida, tendo dado o cheque à execução como mero quirógrafo, não justificou nem invocou qualquer argumento ou razão para a apresentação tardia (leia-se, para além dos prazos da LU) do mesmo cheque a pagamento.

31. Tendo a Recorrente/Embargada suscitado esta questão, a mesma é controvertida e a sentença proferida impede-a de a discutir e apreciar em sede e no momento próprios, quando lhe cabe o ónus da prova!

32. A rejeição liminar dos embargos, decretada pela sentença em crise, coarta esse legítimo direito à aqui Recorrente.

33. Com a referida alteração introduzida pela carta-circular nº 6/2006/DPG do Banco de Portugal, introduzindo a data de validade dos cheques, visou-se diminuir o risco dos bancos, associado à obrigação de pagar cheques sem provisão emitidos pelos seus clientes, diminuindo assim a proliferação e o excessivo prolongamento no tempo dos cheques pós-datados.

34. O objetivo desta medida é o “combate” à “utilização do cheque como garantia de pagamento e ao uso do cheque pré-datado” – in Jornal Público de 6/05/2006.

35. Ora, se de facto compete à Executada/Embargante, presumida devedora, alegar e provar que a relação subjacente à cartular, não existe, se modificou ou se extinguiu, ainda que parcialmente, cumpre discutir se o cheque dado à execução como mero quirógrafo foi uma garantia, tendo em conta as datas nele apostas e a validade do mesmo.

36. Sendo ainda certo, reitera-se, que a Recorrente/Embargante impugnou a relação subjacente no artigo 10º dos seus embargos, bem como impugnou a validade do cheque nos artigos 11º e seguintes do mesmo articulado, sendo tais matérias controvertidas!

37. Não existindo correspondência entre a relação subjacente configurada no requerimento executivo e a matéria a apurar (porque controvertida), não fica demonstrada a relação causal invocada pela Exequente/Recorrida.

38. Com a prova a cargo Recorrente/Embargante, certo, mas a produzir em sede de audiência de julgamento dos embargos de executado!

39. Não poderia, pois, o Mmo. Juiz a quo decidir pelo indeferimento liminar dos mesmos.

40. Esta decisão, ora posta em crise, é claramente precipitada!

41. Além do mais, invocou a Recorrente o instituto da compensação.

42. Alegou, para tanto, que o representante legal e sócio da Embargante, AA, é também sócio gerente de uma outra sociedade comercial denominada C... –UNIPESSOAL, LDA., com o NIPC ..., com sede na Rua ..., ... Matosinhos, tendo juntado certidão permanente.

43. A supra identificada sociedade é uma empresa associada, de grupo, da aqui Recorrente.

44. Sucede que a Exequente/Recorrida é devedora desta sociedade C... – Unipessoal, Lda. pelo montante de 81.180,00€ - conforme fatura emitida em 28.02.2022, a pronto pagamento, que se juntou aos autos.

45. Atenta esta relação, foi pedido que a Recorrida liquidasse a sobredita fatura e a Recorrente liquidaria o valor remanescente em dívida, fazendo-se assim um acerto de contas.

46. Ou seja, a Recorrente pagaria à Recorrida o montante de 34.368€ (115.548€-81.180€).

47. A falta de entendimento resultou na recusa, por parte da Recorrida, neste encontro de contas.

48. A compensação é uma causa extintiva das obrigações e atenta a invocada relação de grupo entre as identificadas sociedades, a Recorrente ficaria apenas obrigada a pagar o montante de 34.368,00€ (trinta e quatro mil, trezentos e sessenta e oito euros) e não o valor que vem peticionado no requerimento executivo.

49. Ora, o tribunal a quo julgou não verificados os pressupostos da compensação porquanto: 1) o alegado crédito que a Recorrente/Embargante invoca é titulado por um terceiro; 2) esta não é assim credora da Exequente/Recorrida.

50. Não lhe assiste manifestamente razão, porquanto:

51. Primeiro: a Recorrente invocou e alegou que o crédito da Exequente estava parcialmente extinto por compensação, nos termos sobreditos, dispondo o artigo 847º, nº 1 do Código Civil que “quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor”.

Carece de prova!

52. Segundo: a Recorrente invocou e alegou que declarou essa vontade negocial à Exequente (embora tivesse falhado o entendimento), sendo que, nos termos do artigo 848º, nº 1 do Código Civil, “a compensação torna-se efetiva mediante declaração de uma das partes à outra”. Carece de prova!

53. Terceiro: a Recorrente invocou e alegou uma relação de grupo entre duas sociedades comerciais. Carece de prova!

54. Quarto: a Recorrente invocou e alegou negócios jurídicos entre três entidades, a Recorrente, a Recorrida e uma outra sociedade, com relevo para a compensação. Carece de prova!

55. Como não se cansou de referir a sentença ora posta em crise, o ónus da prova impende sobre a Embargante, aqui Recorrida.

56. Prova esta a produzir em audiência de julgamento dos embargos de executado!

57. Não poderia, repete-se, o Mmo. Juiz a quo decidir pelo indeferimento liminar dos mesmos, sem discutir a matéria controvertida, invocada e alegada pela Recorrente e cuja prova lhe compete, no tempo processual adequado, produzir.

58. Pelo que mal andou o Tribunal a quo ao indeferir “liminarmente os presentes embargos de executado, por manifesta improcedência”.

Termina por pedir a revogação da sentença, dando-se provimento ao recurso, com admissão dos embargos de executado, ordenando-se o prosseguimento dos autos.


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Não foi apresentada resposta ao recurso.

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O recurso foi admitido como recurso de apelação e no mesmo despacho pronunciou-se o juiz do tribunal “a quo” sobre a nulidade do despacho recorrido, suscitada pelo apelante no recurso, com os seguintes fundamentos:

“Compulsada a decisão recorrida, entendemos que não se verificam as nulidades apontadas pela recorrente, o que aqui se declara, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 615º, nº 4, 617º, nº 1 e 641º, nº 1, do Código de Processo Civil.

Mais se acrescenta que nos embargos, a executada pediu que se decretasse a suspensão do processo de execução sem prestação de caução, ao abrigo do disposto no art. 733º, nº 1, c) do Código de Processo Civil.

Para tal, alegou que inexiste título executivo e que o valor da quantia exequenda não é certo nem líquido nem exigível.

Vejamos.

Sob a epígrafe “Efeito do recebimento da oposição”, preceitua o art.º 733º, nº 1, do Código de Processo Civil, que “O recebimento dos embargos só suspende o prosseguimento da execução se: (…) c) Tiver sido impugnada, no âmbito da oposição deduzida, a exigibilidade ou a liquidação da obrigação exequenda e o juiz considerar, ouvido o embargado, que se justifica a suspensão sem prestação de caução.”

Ora, a invocação da falta de título, da incerteza, da inexigibilidade e da iliquidez da obrigação exequenda, nos termos que constam da petição inicial, bem como o demais aí invocado, não justificam a suspensão do processo de execução sem prestação de caução, conforme resulta da própria decisão de indeferimento liminar dos embargos de executado.

Deverá por isso, sempre deveria ser indeferido o pedido de suspensão do processo de execução formulado pela embargante.

Extraia certidão integral dos autos principais e junte-a a este apenso.

Notifique.

Após, remeta este apenso ao Venerando Tribunal da Relação do Porto, nos termos do disposto no art.º 641º, nº 1, do Código de Processo Civil”.


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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art.º 639º do CPC.

As questões a decidir:

- da omissão do despacho de aperfeiçoamento;

- nulidade do despacho, nos termos do art.º 615º/1/b) e d) CPC;

- se os embargos à execução não devem ser admitidos, por se revelarem manifestamente improcedentes.


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2. Os factos

Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:

a) A ação executiva de que os presentes embargos de executado são apenso deu entrada no dia 16 de Fevereiro de 2023 (cf. certificação eletrónica do requerimento executivo);

b) E tem por base o cheque nº ..., no valor de € 115.548,00 (cento e quinze mil e quinhentos e quarenta e oito euros), emitido pela executada, com data de emissão de 15 de Outubro de 2021, à ordem da exequente, que se apresenta como sua portadora, sacado sobre a conta nº ..., do Banco 1..., S.A., titulada pela executada, constando do cheque que o mesmo é válido até 24 de Setembro de 2021 (cf. cheque);

c) Apresentado a pagamento, o cheque foi devolvido sem pagamento na compensação do Banco de Portugal, no dia 7 de Dezembro de 2022, com a menção “Por falta de provisão por mandato do Banco sacado”;

d) No requerimento executivo, a exequente verteu o seguinte alegação:

“1.º A Exequente dedica-se à atividade comercial, entre outras, de distribuição de produtos de armazenagem e construção de todos os tipos de edifícios.

2.º No exercício do seu comércio executou as obras melhor discriminadas na fatura n.º ... no valor de € 130.098,00 (cento e trinta mil euros e noventa e oito cêntimos)dos quais apenas liquidou a quantia de € 14.550,00 (catorze mil quinhentos e cinquenta euros) conforme conta corrente _ cfr. doc. n.º 1 ,2 e 3 que adiante se juntam.

3.º Para pagamento do remanescente em dívida a Executada entregou o cheque nº ... sacado sobre o Banco 1..., S.A. -_cfr. doc. nº 4 que adiante se junta.

4.º A Exequente é, assim, legítima portadora de um cheque, emitido pela Executada.

Sucede que,

5.º Em 07 de Dezembro de 2022, o Exequente apresentou o cheque a pagamento à instituição de crédito.

Todavia,

6.º Aquando da sua apresentação, o cheque foi devolvido por falta de provisão, conforme menções apostas no verso.

Refira-se que,

7.º Sucede porém, que caducou o direito de instaurar a competente Acão cambiária, já que decorreram 6 meses.

8.º Passando agora os referidos cheques a terem o valor de documentos particulares como quirógrafos.

9.º O Executado, até à presente data, não pagou ao Exequente a quantia titulada pelo referido cheque, malgrado as várias interpelações que nesse sentido lhe foram feitas.

10.º Logo, deve o Executado ao Exequente a quantia de 115.548,00 € (cento e quinze mil euros quinhentos e quarenta e oito cêntimos), acrescido de juros legais, vencidos e vincendos, à taxa de 7%, contados desde o seu vencimento (15/Outubro/2020) e que à data de hoje ascendem a 18.858,00 € (dezoito mil euros oitocentos e cinquenta e oito cêntimos).

11.º Pelo que, o valor atual da dívida ascende ao montante de 134.406,00 € (capital +juros à taxa de 7%).” (cfr. requerimento executivo);


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3. O direito

- Da omissão de convite ao aperfeiçoamento -

Nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 11, considera a apelante que o despacho proferido devia ter sido precedido do despacho de aperfeiçoamento do articulado, nos termos do art.º 590º/4 CPC.

Nesse sentido defende que “considerando a sentença de fls. que a Recorrente/Embargante apresentou a sua “ação declarativa” de forma incompleta ou insuficiente ou, no limite, não invocou fundamentos de facto ou de Direito que sirvam ao seu propósito, poderia e deveria o Mmo. Juiz a quo ter convidado aquela ao aperfeiçoamento dos seus embargos, nos termos do disposto no artigo 590º do Código de Processo Civil.

Designadamente, a Recorrente invocou como causa extintiva da dívida exequenda o instituto da compensação assente numa relação de grupo entre aquela e uma outra sociedade, credora da Exequente, nos termos dos artigos 30º a 37º da sua petição de embargos.

Matéria esta sujeita, naturalmente, a prova a produzir pela Recorrente no momento processual adequado.

Limitou-se a sentença a “concluir que a factualidade alegada pela embargante carece de fundamento para a extinção da execução”, quando deveria ter convidado a Recorrente à “concretização da matéria de facto alegada” – cf. artigo 590º, nº 4 do CPC -, eventualmente juntando documento comprovativo da relação de grupo alegada por aquela”.

A questão a apreciar consiste em apurar se no caso concreto se impunha proferir despacho convite ao aperfeiçoamento da petição de embargos à execução, nos termos do art.º 590º/4 CPC.

Determina o art.º 590º nº4 do CPC que “Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido”.

Tal comando, integrando uma incumbência do juiz, traduz um seu dever funcional, estando assim afastada quanto a ele qualquer discricionariedade do tribunal, ou seja, qualquer ponderação do seu exercício ou não exercício segundo critérios de oportunidade ou de conveniência, pois “o tribunal não tem de se preocupar com a circunstância de essas deficiências se ficarem a dever a uma eventual negligência da parte, dado que, mesmo que esta exista, o tribunal tem o dever de exercer a sua função assistencial[2].

Referem LEBRE DE FREITAS E ISABEL ALEXANDRE[3], que o aperfeiçoamento é “o remédio para casos em que os factos alegados por autor ou réu (os que integram a causa de pedir e os que fundam as exceções) são insuficientes ou não se apresentam suficientemente concretizados”, sendo que “no primeiro caso, está em causa a falta de elementos de facto necessários à completude da causa de pedir ou duma exceção, por não terem sido alegados todos os que permitem a subsunção na previsão da norma jurídica expressa ou implicitamente invocada” e “no segundo caso, estão em causa afirmações feitas, relativamente a alguns desses elementos de facto, de modo conclusivo (abstrato ou jurídico) ou equívoco”.

No mesmo sentido, dizem também ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA[4]: “[o] convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) e é percetível (inteligível); apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-no em termos pouco precisos. Daí o convite ao aperfeiçoamento, destinado a completar ou a corrigir um quadro fáctico já traçado nos autos. Coisa diversa, e afastada do âmbito do art.º 590º, n.º 4, seria permitir à parte, na sequência desse despacho, apresentar, ex novo, um quadro fáctico até então inexistente ou de todo impercetível (o que, aqui, equivale ao mesmo), restrição que, aliás, também decorre do art.º 590º, n.º 6”.

A omissão de despacho de aperfeiçoamento, ao abrigo do art.º 590º/4 CPC, configura uma nulidade processual[5].

Com efeito, quaisquer desvios do formalismo processual prescrito na lei, e a que esta faça corresponder – embora não de modo expresso – uma invalidade mais ou menos extensa de aspetos processuais[6] configuram uma nulidade processual.

Atento o disposto nos art.º 195º e seg. CPC, as nulidades processuais podem consistir na prática de um ato proibido, omissão de um ato prescrito na lei ou realização de um ato imposto ou permitido por lei, mas sem o formalismo requerido.

Porém, como referia ALBERTO DOS REIS há nulidades principais e nulidades secundárias, que presentemente a lei qualifica como “irregularidades”, sendo o seu regime diverso quanto à invocação e quanto aos efeitos[7].

As nulidades principais estão previstas, taxativamente, nos art.º 186º a 194º e 196º a 198º do CPC e por sua vez as irregularidades estão incluídas na previsão geral do art.º 195º CPC e cujo regime de arguição está sujeito ao disposto no art.º 199º CPC.

Não constitui uma nulidade principal, pois não consta do elenco das nulidades previstas nos art.º 186º a 194º e 196º a 198º do CPC.

Representa, pois, a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreve, que cai na previsão do art.º 195º CPC e por isso, configura uma irregularidade que só determina a nulidade do processado subsequente àquela omissão se influir no exame e decisão da causa, estando o seu conhecimento dependente da arguição, nos termos previsto no art.º 199º CPC.

A lei não fornece uma definição do que se deve entender por “irregularidade que possa influir no exame e decisão da causa”.

No sentido de interpretar o conceito ALBERTO DOS REIS tecia as seguintes considerações:“[o]s actos de processo têem uma finalidade inegável: assegurar a justa decisão da causa; e como a decisão não pode ser conscienciosa e justa se a causa não estiver convenientemente instruída e discutida, segue-se que o fim geral que se tem em vista com a regulação e organização dos actos de processo está satisfeito se as diligências, actos e formalidades que se praticaram garantem a instrução, a discussão e o julgamento regular do pleito; pelo contrário, o referido fim mostrar-se-á prejudicado se se praticaram ou omitiram actos ou deixaram de observar-se formalidades que comprometem o conhecimento regular da causa e portanto a instrução, a discussão ou o julgamento dela“[8].

Daqui decorre que uma irregularidade pode influir no exame e decisão da causa, se comprometer o conhecimento da causa, a instrução, discussão e julgamento.

Tal omissão tinha de ser arguida logo que conhecida, e no prazo previsto no art.º 149º/1 CPC, ou seja, a partir da data em que foi notificado o despacho ao embargante.

Por regra, o recurso de apelação não constitui o meio processual próprio para conhecer das infrações às regras do processo quando a parte interessada não arguiu a nulidade perante o tribunal onde aquela alegadamente ocorreu, conforme resulta do regime previsto nos art.º 196º a 199º CPC.

Contudo, seguindo os ensinamentos de MANUEL DE ANDRADE[9], ALBERTO DOS REIS[10] e ANTUNES VARELA[11], porque existe a decisão recorrida que sancionou a omissão, na medida em que decidiu sem proferir o aludido despacho, o conhecimento da nulidade pode-se fazer através deste meio de recurso. É que a nulidade está coberta por uma decisão judicial que alegadamente a sancionou ou confirmou, pelo que o meio próprio de a arguir, será precisamente o recurso.

Considera-se, assim, que a irregularidade foi suscitada em tempo, pelo meio próprio, mas a omissão do ato não interferiu na apreciação do mérito, porque não se justificava a prolação de tal despacho.

Em sede de embargos invocou a apelante a compensação, como causa de extinção da obrigação exequenda.

Na apreciação da exceção e depois do devido enquadramento jurídico, considerou-se no despacho recorrido: “[s]ucede que o alegado crédito que a embargante invoca sobre a exequente não é titulado pela própria embargante, mas sim por terceiro, ou seja, pela referida C... – Unipessoal, Lda., a qual apenas terá em comum com a embargante o facto de terem o mesmo sócio gerente.

Na verdade, conforme resulta da própria alegação da embargante, esta não é credora da exequente.

Deste modo, não se verificam os pressupostos da compensação, não podendo em consequência a embargante opor tal alegado crédito (pertencente a terceiro) à exequente.

Face ao exposto, é de concluir que a factualidade alegada pela embargante carece de fundamento para a extinção a execução.

Com efeito, o cheque dado à execução constitui título executivo válido, na qualidade de mero quirógrafo da respetiva obrigação subjacente à sua emissão, a executada embargante não alegou que tivesse procedido ao pagamento da quantia titulada pelo mesmo, impendendo sobre a executada, na qualidade de sacadora do cheque, a obrigação de pagar à exequente a quantia titulada pelo mesmo.

Na verdade, conforme resulta da própria alegação da embargante a propósito da invocação da compensação, o crédito exequendo existe e não se encontra pago.

Assim sendo, face ao teor da alegação da executada e ao título junto aos autos, os presentes embargos de executado afiguram-se-nos manifestamente improcedentes, pelo que, ao abrigo do disposto no art.º 732, nº 1, c), do Código de Processo Civil, deverão ser liminarmente indeferidos”.

Extrai-se da decisão que o indeferimento liminar não resulta da omissão de factos relevantes ou da deficiente alegação dos mesmos. Na decisão recorrida considera-se que os factos não são suscetíveis de configurar a exceção.

Por outro lado, a apelante alegou os factos para demonstrar a exceção e não é pelo facto de não ter procedido à junção de documentos que comprovem a relação de grupo entre as duas sociedades que resulta demonstrada a exceção. Aliás, a decisão recorrida não faz qualquer juízo nesse sentido, nem tinha de fazer por ser irrelevante, quando é o próprio embargante que afirma que o crédito que pretende compensar é titulado por terceiro.

Conclui-se que no contexto dos factos alegados na petição de embargos não seria de exigir ao juiz um prévio juízo sobre a necessidade de aperfeiçoamento do articulado e por isso, a omissão do convite ao aperfeiçoamento não configura uma irregularidade, na medida em que não se verificava qualquer deficiência no articulado que carecesse de ser suprida.

Improcedem nesta parte as conclusões de recurso sob os pontos 1 a 11.


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- Nulidade do despacho -

Nas conclusões de recurso, sob os pontos 12 a 18, suscita o apelante a nulidade do despacho, com fundamento no art.º615º/1/b) e d) CPC, porque omitiu na sua apreciação o pedido de suspensão da execução, com fundamento no art.º615º/1 /b) e d) CPC.

Conforme resulta do relatório, o juiz do tribunal “a quo” no despacho que admitiu o recurso, supriu a omissão de pronúncia a respeito da concreta questão, proferindo decisão sobre a matéria, a abrigo do art.º617º/2 CPC.

Desta forma, nos termos do art.º617º/2 CPC, considera-se o despacho proferido como complemento e parte integrante da sentença.

A apelante notificada no despacho, não fez uso da faculdade concedida pelo art.º617º/3 CPC, no sentido de alargar o objeto do recurso, em conformidade com a alteração sofrida pela sentença.

Conclui-se que suprida a nulidade e não se insurgindo a apelante contra o segmento da decisão, nada cumpre reapreciar.

Improcedem nesta parte as conclusões de recurso sob os pontos 12 a 18.


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- Da manifesta improcedência dos embargos -

Nas conclusões de recurso, sob os pontos 19 a 58, insurge-se a apelante contra o segmento do despacho que apreciando da inexistência de título executivo e da inexistência da divida exequenda, não admitiu liminarmente os embargos por considerar manifestamente improcedentes.

A questão que se coloca prende-se com a validade do cheque como mero quirógrafo e se os factos alegados são suscetíveis de configurar a extinção da obrigação exequenda, por compensação.

Nos termos do art.º732º/1/c) NCPC os embargos são liminarmente indeferidos quando “forem manifestamente improcedentes”.

A petição “manifestamente improcedente” está associada a razões de fundo, por falta de condições necessárias para a procedência da ação.

Mostram-se atuais os ensinamentos do Professor ALBERTO DOS REIS, quando considerava que se justificava o indeferimento liminar da petição inicial quando “[…] a improcedência da pretensão do autor for tão evidente que se torne inútil qualquer instrução e discussão posterior, isto é, quando o seguimento do processo não tenha razão de ser, seja desperdício manifesto de atividade judicial”[12].

O vício em causa determina que a simples inspeção da petição de embargos leva o juiz a concluir que a oposição do executado não é suscetível de extinguir o crédito exequendo.

O processo de execução, contrariamente ao que ocorre em sede de processo de declaração, não visa o reconhecimento ou apreciação de direitos. A ação executiva tem como finalidade a “reparação efetiva de um direito violado”[13].

Como observa LEBRE DE FREITAS em sede de processo executivo “trata-se de providenciar pela realização coativa de uma prestação devida. Com ela passa-se da declaração concreta da norma jurídica para a sua atuação prática, mediante o desencadear do mecanismo da garantia”[14].

Os embargos à execução visam a extinção da execução mediante o reconhecimento da atual inexistência do direito exequendo ou da falta de um pressuposto específico ou geral da ação executiva.

Fundando-se a execução em título distinto da sentença, como ocorre no caso concreto, os embargos à execução podem fundar-se em qualquer causa que fosse lícita deduzir como defesa no processo de declaração, podendo o embargante alegar matéria de impugnação ou de exceção (art.º 731ºCPC).

Nos pontos 19 a 40 das conclusões de recurso considera a apelante que alegou factos suscetíveis de demonstrar a inexistência de título executivo.

Considera que pelo facto de ter expirado o prazo de validade do cheque, tal circunstância condiciona a validade do cheque como mero quirógrafo e por outro lado, a embargada não apresentou uma justificação para o cheque se apresentar pós-datado e ter sido apresentado a pagamento para além dos prazos previstos na Lei Uniforme Relativa ao Cheque.

Defende que cumpre discutir se o cheque dado à execução como mero quirógrafo foi uma garantia, tendo em conta as datas nele apostas e a validade do mesmo.

Cumpre pois apreciar se tais vícios impedem que ao cheque se atribua a natureza de título executivo, como mero quirógrafo da obrigação exequenda.

No despacho recorrido entendeu-se que não.

A ação executiva, em tese geral, pressupõe o dever de realização de uma prestação.

Constituem pressupostos específicos da execução: 

- que o dever de prestar conste de um título – o título executivo;

- a prestação deve mostrar-se certa, exigível e líquida[15].

O título executivo constitui um pressuposto de ordem formal, que extrinsecamente condiciona a exequibilidade do direito, na medida em que lhe confere o grau de certeza que o sistema reputa suficiente para a admissibilidade da ação executiva[16].  

O título executivo determina os fins e limites da execução, ou seja, o tipo de ação, o seu objeto, bem como, a legitimidade ativa e passiva e por isso, constitui um pressuposto específico do processo de execução – art. 10º/5º CPC.

Como refere CASTRO MENDES o título executivo é o “meio dotado de força legalmente bastante para convencer o tribunal da existência do mesmo direito”[17].  

O título executivo sendo condição necessária e suficiente da ação executiva não faz prova plena da obrigação que comporta.

O título é condição necessária da execução, porque não há execução sem título[18]e constitui condição suficiente porque dispensa qualquer indagação prévia sobre a real existência ou subsistência do direito a que se refere[19].

A falta de título executivo determina o indeferimento liminar da execução ou a sua rejeição (art. 726º/2 a) e 729º a) CPC).

A enumeração dos títulos executivos é taxativa, conforme resulta da previsão do art. 703º CPC.

Estando em causa a apreciação da exequibilidade dos títulos de crédito e porque estamos na presença de uma execução instaurada em data posterior à entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, dispõe o art. 703º/1 c) CPC, que podem servir de base à execução os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.

A opção do legislador foi ao encontro da interpretação que se desenvolveu na doutrina e jurisprudência desde a alteração introduzida pelo DL 329-A/95 de 12/12.

Perante o atual regime, qualquer título de crédito, pode manter a natureza de título executivo enquanto documento particular no qual se reconhece uma obrigação pecuniária, perdendo-a apenas enquanto título de crédito.  

Considera a apelante que no caso concreto, face ao alegado na petição de embargos, inexiste cheque, porque na data que consta como data de emissão (15 de outubro de 2021) o prazo de validade do cheque já tinha expirado (24 de setembro de 2021).

O cheque, na aceção da Lei Uniforme Relativa ao Cheque, constitui o mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada (art. 1º, n.º 2).

Constitui um título de crédito, no sentido em que é um documento apto ao exercício do direito literal e autónomo nele inscrito e, para produzir efeitos como tal.

Como se prevê no art. 1º Lei Uniforme Relativa ao Cheque o suporte físico de papel em que se materializa deve conter:

- a palavra «cheque» inserta no próprio texto do título e expressa na língua empregada para a redação desse título;

- o mandato puro e simples de pagar uma quantia determinada;

- o nome de quem deve pagar (sacado);

- a indicação da data em o pagamento se deve efetuar;

- a indicação da data em que o cheque é passado;

- a assinatura de quem passa o cheque (artigos 1º e 2º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque).

A falta destes requisitos obsta a que o título possa produzir efeito como cheque, salvo nas situações enunciadas no art. 2º LUC, quanto ao lugar do pagamento.

Tal como se observa no despacho recorrido, “a aposição da data de validade impressa nos módulos de cheques, resulta da carta-circular nº 6/2006/DPG do Banco de Portugal, através da qual o Banco de Portugal, recomendou a todas as instituições de créditos (sem carácter vinculativo) que passassem a inserir uma data limite de validade nos impressos que forneçam aos seus clientes, com vista reduzir o risco associado à emissão de cheques por parte dos seus clientes, nomeadamente no que concerne à utilização pelos mesmos dos cheques com garantia de pagamento e os cheques pré-datados”.

Sobre esta matéria refere-se no Ac. Rel. Porto 21 de abril de 2022, Proc. 1492/18.7T8PRD.P1 (acessível em www.dgsi.pt): “A data de validade é somente um elemento que no exercício dos seus poderes de supervisão da atividade bancária o Banco de Portugal aconselhou os bancos a acrescentarem aos respetivos impressos de cheques para aumentar o controlo sobre a utilização dos cheques e ajudar a combater as más-práticas no uso destes.

A aposição dessa data nos impressos dos cheques não apenas não é obrigatória para os bancos, como não os dispensa, em momento algum, de acatarem e respeitarem os direitos dos intervenientes cartulares, tal como eles se encontram definidos na legislação aplicável, sabendo-se que o Banco de Portugal não é um órgão legislativo e sobretudo as suas instruções de supervisão não podem modificar ou revogar normas de direito internacional como é a Convenção Relativa ao Cheque.

Acresce que a utilização de cheques depois de decorrida essa data de validade não é interdita sequer por indicação do Banco de Portugal que apenas se limita a afirmar que não a recomenda. Por conseguinte, independentemente do que possa suceder na relação entre o banco sacado e o sacador, em sede de convenção do cheque, o direito cartular do legítimo portador do cheque não é afetado, restringido ou extinto pela data de validade aposta no impresso do cheque”.

Como se observa no Acórdão da Relação de Coimbra de 01 de fevereiro 2011, Proc. 815/08.1TBAND-A.C1: “A aposição de tais datas limites impressas nos cheques consubstancia, assim, uma prática bancária, na sequência da aludida carta-circular recomendativa do Banco de Portugal, que nem sequer é vinculativa para as instituições bancárias, não sendo, pois fonte imediata de direito, e como tal não pode colidir com aquilo que se encontra positivado em diplomas legais, e mais concretamente na LUC. Por outro lado, a data limite de validade que passou a ser impressa nos cheques não se integra nos requisitos essenciais (…) que o cheque deve conter, nos termos da definição feita pelo artº 1º da LUC. Pois só esses ali enunciados são essenciais ao cheque, de tal modo que só a falta de algum deles pode colocar em causa a sua validade, levando a que o título não produza efeitos como cheque (cfr. artº 2º da LUC). Por fim, …, a referida questão da validade (limite) prende-se ou tem a mais a ver com o contrato ou convenção do cheque (de que acima demos nota) e com a sua validade e não com a validade intrínseca do próprio cheque. Ao não estar o cheque dentro da referida data de validade (impressa no mesmo pela própria instituição bancária sacada), o banco pode ou não vir a pagá-lo (independentemente da responsabilidade que tal lhe possa trazer), sendo certo, todavia, que, nos termos o disposto na parte final do acima citado artigo 3º da LUC, a inobservância das prescrições referentes à relação de provisão e à convenção de cheque, não podem prejudicar a sua validade enquanto título de crédito cambiário”.

Acolhemos tais argumentos e concluímos que tal data limite de validade, que passou a ser impressa nos cheques, não constitui requisito essencial que o cheque deva conter, para além dos previstos no art. 1º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque e por isso, o documento não deixa de revestir a natureza de “cheque” pelo facto de ser emitido depois de expirada a data de validade impressa no módulo.

Argumenta, ainda, a apelante que a embargada não apresentou uma justificação para o cheque se apresentar “pós-datado”, por ter sido aposta uma data para um ano após a emissão da fatura.

Nos termos do art.1º§5º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque do cheque tem que constar a data de emissão.

Contudo, nem sempre a data de emissão corresponde à data da entrega real do cheque ao tomador, mas tal circunstância não retira ao cheque a sua validade como título de crédito.

Como observa JOSÉ MARIA PIRES: “[…]o cheque é um título formal, que vale de acordo com os termos em que, segundo a lei,  está redigido (literalidade) e, sendo assim, será a data que nele for inserida que valerá para fins cambiários, ou seja, a data literal da emissão prevalece sobre a real”. Porém o art. 28, 2ª alínea, Lei Uniforme Relativa ao Cheque consagra uma exceção a esta regra, “impondo a natureza do cheque pós-datado como meio de pagamento à vista, nos seguintes termos: “o cheque apresentado a pagamento antes do dia indicado como data de emissão é pagável no dia da apresentação”[20].

O cheque é pagável à vista, considerando-se não escrita qualquer menção em contrário (1º parágrafo do artigo 28º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque). O cheque apresentado a pagamento antes do dia indicado como data da emissão é pagável no dia da apresentação (2º parágrafo do artigo 28º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque).

Na situação concreta a apelante/embargante limitou-se a alegar que do cheque consta uma data distinta da data da fatura, concluindo que se trata de cheque pós-datado. Acresce que não alegou, contrariamente ao afirmado sob o ponto 35 das conclusões de recurso, que se tratava de um cheque de garantia. Constituía ónus da embargante/apelante alegar os factos suscetíveis de configurar o alegado acordo extra-cartular suscetível de configurar a emissão de “cheque de garantia” ou “cheque de favor” enquanto facto extintivo do direito da exequente (art.º 342º/2 CC).

Se de forma genérica, no art.º 10º da petição de embargos, impugna a obrigação exequenda, vem depois nos art.º 30º a 37º da petição, tomar posição efetiva, sobre os factos alegados no requerimento executivo, invocando a compensação como causa de extinção da obrigação, o que pressupõe o reconhecimento da divida e a assunção da obrigação.

É a própria embargante que assume que o cheque foi emitido para pagamento da obra executada, tal como alegado pela exequente.

Por fim, refere que o cheque foi apresentado a pagamento para além dos prazos previstos na Lei Uniforme Relativa ao Cheque.

Também tal circunstância não retira ao cheque a natureza de título executivo, como mero quirógrafo da obrigação exequenda, o que aliás é afirmado pela própria apelante na petição de embargos (art.º 25º), citando o Ac. STJ 09 de março de 2004, Proc. 03B4109 (acessível em www.dgsi.pt).

Nos termos do art. 29º Lei Uniforme Relativa ao Cheque

“o cheque pagável no país onde foi passado deve ser apresentado a pagamento no prazo de oito dias”

Tal significa que sendo o cheque um meio de pagamento à vista, o prazo legal de oito dias para apresentação a pagamento apenas se conta da data da sua emissão nele aposta se o mesmo não for apresentado a pagamento antes do dia nele indicado como data de emissão (art.º 28º Lei Uniforme Relativa ao Cheque).

O portador do cheque tem o prazo de oito dias a contar da data de emissão para o apresentar a pagamento, sob pena de perder os direitos de ação conferidos pelo art.º 40º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque[21].

O cheque enquanto título de crédito contém uma ordem incondicionada de pagar uma soma, “dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis”.

Donde, se o cheque, apresentado a pagamento no prazo de 8 dias a contar da emissão, não for pago e se a respetiva recusa de pagamento for verificada por um ato formal de protesto ou outro equivalente, o portador pode exercer contra os diversos obrigados o seu direito de ação (arts. 29º, 30º e 40º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque).

Já não assim quando essa apresentação não teve lugar no prazo referido ou a recusa de pagamento não foi formalizada por ato suficiente.

Nesse caso, tem-se entendido que o cheque deixará de constituir título executivo, justamente porque, com base nele, o portador não pode acionar os subscritores (obrigados cambiários).

Tal situação traduz falta de verdadeira condição da ação porque o título não possui um dos requisitos necessários à exequibilidade.

Contudo, se o exequente perdeu o direito de usar da ação cambiária contra o executado, poderá ainda o cheque valer como título executivo, à luz do art.º 703º/1 c) CPC, agora como simples quirógrafo, ou seja, enquanto documento particular, assinado pelo devedor, desprovido das características que são específicas e próprias dos títulos de crédito.

Neste caso, porém, a obrigação exigida não é a obrigação cambiária, caracterizada pela literalidade e abstração, mas antes a obrigação causal ou subjacente.

Neste sentido se pronunciaram, entre outros, o Ac. STJ 09 de março de 2004, Proc. 03B4109 e Ac. Rel. Porto 21 de outubro de 2014, Proc. 910/08.7TBMCN-A.P1 (ambos acessíveis em www.dgsi.pt).

No caso presente resulta dos factos assentes que o cheque foi emitido com data de 15 de outubro de 2021 e foi apresentado a pagamento em 06 de dezembro de 2022. A apresentação a pagamento ocorreu depois de decorrido o prazo de oito dias a contar da data de emissão. Na Câmara de Compensação o cheque foi devolvido com fundamento em falta de provisão, conforme declaração aposta no verso do cheque.

Ao abrigo do disposto no art.º 40º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque a exequente perdeu o direito de ação cambiária contra a executada, mas o cheque pode ainda, servir como título executivo, como mero quirógrafo.

A exequente não veio exercer o seu direito com base na relação cambiária - art.º 40º Lei Uniforme Relativa ao Cheque -, pois assume que o direito de ação prescreveu e por outro lado, assenta os fundamentos da execução na relação subjacente – contrato de empreitada e falta de pagamento de parte do preço devido – apresentando o cheque como título executivo, mas como mero quirógrafo da obrigação exequenda.

Esta particular qualidade do título executivo, à luz do art.º 703º/1 c) CPC, analisada no despacho recorrido, com fundamentos jurídicos e jurisprudenciais atuais, não foi posta em causa no recurso.

Com efeito, como já decidimos no Ac. Rel. Porto 17 de junho de 2019, Proc. 24873/17.9T8PRT-A.P1 ( acessível em www.dgsi.pt):

“Estando em causa a apreciação da exequibilidade dos títulos de crédito e porque estamos na presença de uma execução instaurada em data posterior à entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, dispõe o art.º 703º/1 c) CPC, que podem servir de base à execução os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo.

A opção do legislador foi ao encontro da interpretação que se desenvolveu na doutrina e jurisprudência desde a alteração introduzida pelo DL 329-A/95 de 12/12.

Perante o atual regime, qualquer título de crédito, pode manter a natureza de título executivo enquanto documento particular no qual se reconhece uma obrigação pecuniária, perdendo-a apenas enquanto título de crédito. Com a prescrição da obrigação cartular, a obrigação que passa a ser exigida é a obrigação causal, que conste do próprio documento ou dos factos alegados no requerimento executivo.

Contudo, a lei não se basta com a alegação de factos, mas exige, a alegação de “factos constitutivos da relação subjacente”.

Como observa LEBRE DE FREITAS, nestas circunstâncias: “o exequente deve alegar a causa da obrigação”[22].

RUI PINTO afirma que: “o exequente de título de crédito prescrito tem o ónus de alegação no requerimento executivo da relação de valuta” e “deve estar-se no domínio das relações imediatas, já que o putativo reconhecimento foi-o entre o sacador e o beneficiário”[23].  

Com a prescrição da obrigação cartular, a obrigação que passa a ser exigida é a obrigação causal.

Quando o título de crédito menciona a causa da relação jurídica subjacente não se justifica qualquer distinção entre o título prescrito e outro documento particular, enquanto ambos se reportem à relação jurídica subjacente.

Relativamente aos títulos de crédito prescritos dos quais não conste a causa da obrigação, tal como acontece com qualquer outro documento particular nas mesmas circunstâncias, distingue-se conforme a obrigação a que referem seja ou não emergente de um negócio jurídico formal.

Não sendo a relação causal emergente de um negócio formal, a autonomia do título executivo, em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento de dívida, decorrente da norma constante do artigo 458 º, n º 1 do citado Código, conduz à sua admissibilidade como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial da execução e poder ser impugnada pelo executado. E se o exequente não a invocar, mesmo que subsidiariamente, no requerimento inicial, já não é possível fazê-lo na pendência do processo, depois da prescrição da obrigação cartular, sem o consentimento do executado, nos termos do artigo 264º do C.P.C., por tal configurar alteração da causa de pedir[24].

Determina o art.º 458º CC:

“1. Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma divida, sem indicação da respetiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.

2. A promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental.”

A respeito da natureza jurídica do reconhecimento de divida, a doutrina de forma unânime tem entendido que tal ato não constitui fonte autónoma de obrigações.

GALVÃO TELES escreve a este respeito que: “[e]stamos na presença de simples declarações unilaterais que não criam obrigações mas apenas fazem presumir a existência de obrigações, derivadas de outros atos ou factos, que esses sim, são a sua fonte.[…]

Presume-se no entanto que a dívida realmente existe; que há uma causa que a justifica, ou seja, uma relação fundamental em que se integra, um ato ou facto que a gerou. Inverte-se pois o ónus da prova. Aquele que se arroga a posição de credor não precisa provar a causa da divida, visto beneficiar da presunção decorrente da declaração feita. Á outra parte é que competirá provar, se para isso dispuser dos elementos necessários, que afinal não é devedor porque a divida nunca teve causa ou essa causa já cessara”[25].

ALMEIDA e COSTA refere: “[…] o reconhecimento de divida, admitido pelo art.º458º, não constitui atos abstratos propriamente ditos, mas puras presunções de causa. Dizendo de outro modo: são negócios causais, em que apenas se verifica a inversão do ónus da prova. E daí que o devedor possa provar que a relação fundamental não existe ou é nula, o que já não aconteceria se o Cód. Civil tivesse sancionado a promessa e o reconhecimento como atos abstratos”[26].

MENEZES CORDEIRO anota, por sua vez, que: “[o] art.º 458º/1 não origina, se bem se atentar, nenhuma obrigação nova. Ele limita-se a permitir que se prometa uma “prestação”, comum ou pecuniária (“reconhecer uma divida”), devidas anteriormente, por força de qualquer outra fonte. O único papel desse preceito é:

- dispensar o beneficiário de indicar a verdadeira fonte da obrigação em jogo;

- fonte essa cuja existência se presume, até prova em contrário”[27].

No âmbito específico do processo de execução LEBRE DE FREITAS refere que o documento do qual conste o reconhecimento duma divida pode desempenhar a função de título executivo, quer nele seja quer não mencionado o facto constitutivo da obrigação.

O mesmo AUTOR refere, ainda, que: “esta função executiva do documento liga-se intimamente à sua função probatória e à da declaração dele constante, visto que o título executivo serve de base à execução duma obrigação enquanto documento probatório do facto constitutivo duma obrigação ou do ato judicial que acerte este facto constitutivo, ou ainda dum outro facto probatório do mesmo facto constitutivo e a sua autonomia em face da obrigação tem como limites, não só a possibilidade de, em embargos de executado, se vir provar a inexistência da relação exequenda ( a “ prova em contrário “ a que se refere o art. 458º/1 do CC ), como também a da oficiosamente  se concluir dessa inexistência com base em factos de que o tribunal possa tomar conhecimento“[28].

Em termos práticos, o regime previsto no art.º 458º CC, determina que: “ o credor que, tendo embora em seu poder um documento em que o devedor reconhece uma dívida ou promete cumpri-la sem indicar o facto que a constituiu, contra ele propuser uma ação, deverá alegar o facto constitutivo do direito de crédito – o que é confirmado pela exigência do art.º 458º/2 do CC, que pressupõe o conhecimento da relação fundamental.

Este facto ficará provado por apresentação do documento, isto é, por ilação tirada, nos termos do art.º 458º/1 da declaração representada nesse documento conjugada com a alegação do credor, a qual, ao mesmo tempo que satisfaz uma exigência processual, é um ato integrador da fatispécie da norma probatória do art.º 458º do CC, isto é, um ato processual com mera relevância substantiva. Não se verifica, pois, o perigo de a prova se fazer relativamente a qualquer possível causa constitutiva do direito, pois se faz apenas relativamente àquela que for invocada pelo credor e configura-se assim uma prova por presunção“[29].

Seguindo esta interpretação e reportando-se em concreto ao cheque, como mero quirógrafo, podem ler-se na jurisprudência, entre outros, Ac. Rel. Guimarães 04 de abril de 2019, Proc. 140/11.0TBMTR-A.G2; Ac. Rel. Porto 19 de junho de 2006, Proc. 0653378 (ambos em www.dgsi.pt)”.

Retomando o caso dos autos, verificamos que o cheque se situa no domínio das relações imediatas, contém a identificação do exequente e do executado e o valor que o exequente reclama no requerimento executivo.

No requerimento executivo mostram-se alegados os factos que configuram a relação causal ou subjacente, que no caso consiste na celebração de um contrato de empreitada, que não é um negócio formal, reclamando a exequente o pagamento de parte do preço devido, porque a executada já pagou a parte restante. Mostram-se alegados os factos suscetíveis de configurar a relação causal ou subjacente.

Os argumentos apresentados pela apelante não são suscetíveis de levar à extinção da execução, por falta de título executivo, sendo pois manifestamente improcedentes os embargos.


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Numa segunda ordem de argumentos, sob os pontos 41 a 58 das conclusões de recurso, insurge-se a apelante contra o segmento da decisão que julgou não estarem reunidos os pressupostos para operar a compensação e a consequente extinção parcial da obrigação exequenda, como pretendido pela embargante/apelante.

Considera a apelante que alegou factos suscetíveis de configurar a exceção e que constituem matéria de facto controvertida e carecem de prova.

Cumpre pois verificar se os factos alegados são suscetíveis de configurar a alegada exceção de compensação e sendo assim, se deve o processo prosseguir os seus termos para a sua apreciação.

A compensação é uma forma de extinção das obrigações em que, no lugar do cumprimento, como sub-rogado dele, o devedor opõe o crédito que tem sobre o credor. Ao mesmo tempo que se exonera da sua dívida, cobrando-se do seu crédito, o compensante realiza o seu crédito liberando-se do seu débito, por uma espécie de ação direta[30].

A extinção da dívida por compensação está dependente da verificação de um conjunto de pressupostos enunciados nos artigos 847.°e ss. do C. Civil e seguindo os ensinamentos do Professor ANTUNES VARELA[31] são: a reciprocidade dos créditos, a validade, exigibilidade e exequibilidade do contra crédito, fungibilidade do objeto das obrigações existência da validade do crédito principal e não verificação de qualquer das causas de exclusão previstas no art.º 853º CC.

Nos termos do n.º 1 do art.º 848.° do Código Civil, a compensação torna-se efetiva, mediante declaração de uma das partes à outra.

A compensação reveste a configuração de um direito potestativo que se exercita por meio de um negócio unilateral; e a importância desta declaração é decisiva, porquanto prescreve o art.º 854.º do C. Civil que "feita a declaração de compensação, os créditos consideram-se extintos desde o momento em que se tornaram compensáveis".

Quer isto dizer que, verificando-se os demais requisitos da compensação, é a partir do momento da ocorrência da declaração de compensação que se opera a mútua extinção dos créditos.

A iliquidez de qualquer das obrigações não impede a compensação (art.847.º, n.º 3, do Código Civil).

Como se começou por referir um dos pressupostos da compensação e que merece particular atenção no caso concreto, consiste na reciprocidade dos créditos.

Dispõe o art.º 847º/1 CC, sob a epígrafe “Requisitos”, que a compensação opera “quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor”.

O art. 851º CC, com a epígrafe “Reciprocidade dos créditos”, dispõe que “a compensação apenas pode abranger a dívida do declarante, e não a de terceiro, ainda que aquele possa efetuar a prestação deste, salvo se o declarante estiver em risco de perder o que é seu em consequência de execução por divida de terceiro”.

No nº 2 do preceito, prevê-se: “o declarante só pode utilizar para a compensação créditos que sejam seus, e não créditos alheios, ainda que o titular respetivo dê o seu consentimento; e só procedem para o efeito créditos seus contra o seu credor”.

O devedor só pode livrar-se da sua divida por compensação se for credor do seu credor.

Decorre do art. 851.º CC que a compensação apenas pode abranger a dívida do declarante, e como observa o Professor ANTUNES VARELA:”[…]não a de terceiro, afastando-se assim do âmbito da compensação as dívidas de terceiro ao declaratário”[32]. E como refere, ainda, o ilustre Professor: “[d]e contrário, facultar-se-ia aos credores uma injustificada e abusiva possibilidade de intromissão na gestão do património do devedor, com grave prejuízo da livre iniciativa deste”[33].

A exceção contemplada na parte final do art. 851º/1 CC visa tutelar as situações de perda de bens onerados com garantia real em sede de processo de execução.

Como refere o Professor ANTUNES VARELA: “[…]sabendo-se que a penhora começará, em princípio, pelos bens constitutivos da garantia[…], já se compreende que o dono dos bens ameaçados pela execução possa invocar o seu crédito contra o notificado para extinguir a dívida dum terceiro, […]por compensação”[34].

No caso presente a embargante/apelante alegou existir uma relação de grupo entre esta sociedade e a sociedade C... – Unipessoal, Lda.. A exequente será devedora da sociedade C... – Unipessoal, Lda., ascendendo o montante em divida à quantia de 81.180,00€.

Mais alegou que pretendeu celebrar um acordo, com acerto de contas, englobando aquela divida da exequente à sociedade C... – Unipessoal, Lda. e dessa forma liquidar, em parte, a obrigação exequenda, o que não foi aceite pela exequente.

Alegou, ainda, que mostrando-se inviável o acordo, pretende proceder à compensação dos créditos, indicando como contra crédito o crédito da sociedade C... – Unipessoal, Lda..

Como decorre dos factos alegados não lograram as partes, por acordo, extinguir a obrigação e o contra crédito que a embargante indicou não é um crédito seu, mas de terceiro, sendo certo que não decorre dos factos alegados a situação de exceção prevista no art. 851.º/1 parte final CC e que justificaria a compensação.

Não resultando demonstrada, face aos factos alegados, a reciprocidade dos créditos não estão reunidos os pressupostos para operar a compensação e desta forma, não se justifica promover o processo de embargos à execução. Acresce que invocando a compensação aceita a embargante/apelante a existência da obrigação exequenda.

Os factos alegados não relevam como causa de extinção parcial ou total da execução, sendo pois manifestamente improcedentes os embargos.

Improcedem, também nesta parte, as conclusões de recurso sob os pontos 40 a 58.


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Conclui-se assim, perante a mera inspeção da petição de embargos, que os fundamentos alegados não determinam a extinção do processo de execução, nem da obrigação exequenda, sendo manifestamente improcedente, motivo pelo qual não merece censura o despacho recorrido.

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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pela apelante.

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III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar o despacho recorrido.


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Custas a cargo da apelante.

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Porto, 19 de fevereiro de 2024
(processei, revi e inseri no processo eletrónico – art. 131º, 132º/2 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Fernanda Almeida
Mendes Coelho
_________________
[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] Neste sentido, Acórdão da Relação do Porto de 8 janeiro de 2018, Proc. nº1676/16.2T8OAZ.P1 e disponível em www.dgsi.pt, citando Teixeira de Sousa, in “Omissão do dever de cooperação do Tribunal: que consequências”, Blog do IPPC, disponível em http://blogippc.blogspot.pt].
[3] JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 4ª edição, Almedina, pág. 634.
[4] ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 679.
[5] Cf. JOSÉ LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, julho 2017, pág. 632 e ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, pág.683.
MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pág.156.
[7] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, pág. 357.
[8] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Comentário ao Código de Processo Civil, vol. II, ob. cit., pág. 486.
[9] MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, ob. cit., pág. 183.
[10] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. V, ob. cit., pág.424.
[11] ANTUNES VARELA et al Manual de Processo Civil, Manual de Processo Civil, 2ª edição, revista e atualizada, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1985, pág. 393.
[12] ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 3ª edição, Reimpressão, Coimbra Editora, Lim., Coimbra 1982, pág. 385.
[13] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Ação Executiva – À luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2014, pág. 12.
[14] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Ação Executiva – À luz do Código de Processo Civil de 2013, ob. cit., pág. 12.
[15] JOSÉ LEBRE DE FREITAS A ação executiva – Á Luz do Código Revisto, ob. cit., pág. 25.
[16] JOSÉ LEBRE DE FREITAS A ação executiva – Á Luz do Código Revisto, ob. cit., pág. 25.
[17] CASTRO MENDES Direito Processual Civil, vol I, pág. 332.
[18] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Acção Executiva - Depois da Reforma da Reforma, 5ª edição, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pág. 71;
[19] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Acção Executiva - Depois da Reforma da Reforma, ob. cit., pág. 71.
[20] JOSÉ MARIA PIRES, O Cheque, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, pág.60.
[21] Cf. Ac. STJ de 12 setembro 2006, no processo 06A2100, em www.dgsi.pt.
[22] JOSÉ LEBRE DE FREITAS A Ação Executiva – À luz do Código de Processo Civil de 2013, 6ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, Fevereiro 2014, pág. 182.
[23] RUI PINTO Manual da Execução e Despejo, Coimbra, Coimbra Editora, Agosto 2013, pág. 205.
[24] Esta interpretação tem sido também sustentada pela maioria da jurisprudência, entre muitos, os Acs. do S.T.J. 4/5/99, publicado na CJSTJ, no VII, T II, p.82; de 29.01.02 na COL/STJ -1º/64; de 18.1.2001, CJ/STJ, 2002, I, 64 e 2001, I, 71STJ; de 30.1.2001 -CJ STJ, IX, 1, 86; de 29.2.2002-CJ STJ X, 1, 64; de 17.6.2003, processo nº 03A1404; de 30.10.2003, processo nº 03P2600; de 19.1.2004 e 09.03.04, disponíveis em www.dgsi.pt; os Acs. do Tribunal da R.P. de 06-10-2004, processo 0453923; de 20-02-2003, processo 0330757 disponíveis em www.dgsi.pt; de 16.12.99 e 13.1.2000, BMJ, 492º-489 e 493º-417; os Acs. do Tribunal da RL, de 11.10.2001 e de 02.06.20 “in” CJ 2002 III 121 e de 97.12.18 “in” CJ 1997 V 129 de 21-11-2002, processo 0072098; de 17-02-2004, processo 299/2004-7; de 30-09-2003 processo 5438/2003-7 disponíveis em www.dgsi.pt; os Acs. do Tribunal da RC de 98.12.03 “in” CJ 1998 V 33 e de 16.4.2002, CJ, 2001, IV, 120 e 2002, III, 11, de 02-03-2010, 419/07.6TBCVL-A.C1, disponíveis em www.dgsi.pt.; os Acs. do Tribunal da R.G. de 09-11-2005, processo 1502/05-2; de 07-07-2004, processo 1216/04-2, disponíveis em www.dgsi.pt. [25] INOCÊNCIO GALVÃO TELES Direito das Obrigações, 4ª edição, Coimbra Editora, Lda., Coimbra, 1982, pág. 120.
[26] MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA Direito das Obrigações, 9ª edição, Revista e Aumentada, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 426.
[27] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Tratado de Direito Civil Português, vol. II, pág. 692.
[28] LEBRE DE FREITAS A Confissão no Direito Português, pág. 397.
[29] LEBRE DE FREITAS A Confissão no Direito Português, ob. cit., pág. 391.
[30] PIRES DE LIMA e A. VARELA, Código Civil Anotado, II Volume, 4.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, Coimbra, pág.130.
[31] JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, 3ª edição, Almedina, Coimbra, 1980, pág.163 a 172.
[32] JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, ob. cit., pág.164.
[33] JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, ob. cit., pág.164.
[34] JOÃO DE MATOS ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, ob. cit., pág. 165.