Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1205/21.6T8VLG-A.P3
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
LIVRANÇA EM BRANCO
PACTO DE PREENCHIMENTO
LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
Nº do Documento: RP202403071205/21.6T8VLG-A.P3
Data do Acordão: 03/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Litiga de má fé o executado que tendo condições para saber a que relação subjacente correspondem os títulos de crédito dados à execução e no âmbito da qual o exequente estava autorizado ao preenchimento destes, deduz embargos alegando que esses títulos respeitam a outra relação subjacente que não identifica suficientemente e que o exequente não estava autorizado a preencher os títulos de crédito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2023:1205.21.6T8VLG.A.P3


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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:


I. Relatório:
Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que lhe move o Banco 1..., S.A., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ...21, com sede em Lisboa, e a que sucedeu por cessão de créditos a habilitada A..., S.A., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ...80, com sede em Lisboa, veio o executado AA, contribuinte fiscal n.º ...22, residente em Gondomar, deduzir embargos de executado.
A terminar a petição inicial pediu que os embargos sejam julgados procedentes por via das excepções dilatórias (1) da falta de título executivo válido por via da dívida não ser líquida nem exigível por a exequente não ter invocado e explicado os cálculos aritméticos que realizou para liquidar o valor aposto na livrança apresentada e não ter notificado o embargante na data do incumprimento e dos valores dívida e ainda sobre a intenção do preenchimento da livrança em branco que tinha sido subscrita, (2) da falta de título executivo válido por inexistência de pacto de preenchimento; ou, caso assim não se entenda, pelo menos não serão devidos os juros de mora que se venceram desde a data do preenchimento da livrança.
Para o efeito alegou que as livranças dadas à execução não são títulos executivos porque não são exigíveis já que foram emitidas em branco para garantia de cumprimento de um contrato de abertura de crédito em conta corrente e o executado desconhece, por a credora nunca o ter informado ou interpelado para o pagamento, quais os valores devidos para o preenchimento da livrança.
Alegou também que não existe pacto ou acordo de preenchimento dos títulos apresentados. Alega, por fim, que do teor do requerimento executivo não resulta clara a forma como foi efectuada a liquidação da quantia com que foram preenchidas as livranças e não é feita a discriminação dos itens e quantias inseridos no capital em dívida à data do incumprimento, pelo que o embargante desconhece a que se deve este valor.
Aberta conclusão, foi proferido despacho de indeferimento liminar dos embargos.
Dessa decisão recorreu o embargante, tendo esta Relação, por Acórdão proferido por este Colectivo, julgado o recurso procedente e revogado a decisão de indeferimento liminar recorrida, ordenando o prosseguimento dos embargos de executado.
Recebidos os embargos, veio a exequente apresentar contestação, na qual defende a improcedência dos embargos e pede a condenação do embargante como litigante de má fé, em multa e indemnização não inferior a 2.000,00€.
Para o efeito alegou que a livrança nº ...86 no valor de € 15.245,62 lhe foi entregue para garantia da obrigação de reembolso de um empréstimo contratado pelo executado no montante de € 17.500,00 que o embargante recebeu, sendo que do contrato consta a autorização de preenchimento da livrança e que o executado não cumpriu a obrigação de reembolso do empréstimo, razão pela qual o exequente resolveu o contrato e informou o executado da resolução e do preenchimento da livrança pelos valores que especificou nessa comunicação. Já a livrança nº ...34 no valor de € 7.000,00 foi entregue ao exequente pelo executado para efeitos de desconto, tendo o exequente descontado a livrança e entregue ao executado o respectivo montante, sendo que como este não pagou a livrança na data de vencimento aquele lhe enviou uma carta interpelando-o para o pagamento e informando-o dos valores em dívida. Estes factos são do conhecimento pessoal do embargante que por isso litiga de má fé.
O embargante apresentou resposta, dizendo impugnar os documentos juntos pela embargada e defendendo não litigar de má fé.
Findos os articulados e dispensada a audiência prévia com concordância das partes, foi proferida decisão de mérito, julgando os embargos improcedentes e condenando o embargante como litigante de má-fé na multa de 4 Ucs e em indemnização a determinar.
Dessa decisão recorreu o embargante, tendo esta Relação, por Acórdão proferido por este Colectivo, julgado o recurso procedente e revogado a decisão recorrida, ordenando o prosseguimento dos embargos de executado com prolação de despacho saneador, instrução do processo e ulterior nova sentença, na qual haverá que apreciar a eventual litigância de má fé.
Realizado julgamento foi proferida sentença a julgar os embargos de executado totalmente improcedentes e a condenar o embargante como litigante de má fé na multa de 4 UC´s e em indemnização à embargada em montante a fixar oportunamente.
Do assim decidido no tocante à litigância de má fé, o embargante interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
A. Destina-se o presente recurso a impugnar a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância em 07/11/2023, na parte em que condenou o apelante como litigante de má-fé.
B. O douto tribunal a quo repete a argumentação já expendida na sentença proferida nos autos em 04/10/2022.
C. Tendo a mesma sido então objecto de recurso e revertida a condenação do apelante como litigante de má-fé.
D. O tribunal recorrido condenou o apelante por este ter alegado que as livranças foram subscritas em branco, para garantir um contrato de abertura de crédito em conta corrente para cheques pré-datados e tal facto, após a realização do julgamento ter sido dado como não provado.
F. O apelante é um cliente bancário comum e carreou para os autos as suas convicções enquanto cliente bancário e mutuário, não tendo actuando com dolo na sua conduta processual.
G. A condenação do apelante como litigante de má-fé deve-se unicamente à improcedência dos embargos.
H. Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; ou tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
I. O apelante demonstrou absoluto respeito pelos procedimentos jurisdicionais, tendo agido de acordo com a juridicidade e a lei.
J. Do facto dado como não provado pela douta sentença recorrida não se pode retirar uma actuação do apelante desconforme à juridicidade e à lei, procurando assim obter uma decisão injusta e assim prejudicar o apelado. Pelo contrário.
K. O apelante apenas usou a prerrogativa que a lei processual lhe confere pelos embargos de executado.
L. A perturbação para o apelante resultante de se ver executado por uma quantia que não é despicienda não pode nunca ser confundida com uma vontade deste de distorcer a realidade.
M. Não se verifica nos autos lide temerária da parte do apelante, baseada em dedução de pretensão infundada cuja falta de fundamento que aquele não devesse ignorar.
Nestes termos e nos melhores de direito que vossas excelências mui doutamente suprirão, deve a presente apelação ser julgada totalmente procedente, revogando-se a sentença ora recorrida na parte em que condenou o apelante como litigante de má-fé. Em consequência, alterando a douta sentença apelada, farão vossas excelências, inteira e sã justiça.
O recorrido não respondeu.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se estavam reunidas as condições para se conhecer do mérito dos embargos sem se proceder à instrução da causa e se era já possível concluir que o embargante litiga de má fé.

III. Os factos:
Foram julgados provados os seguintes factos:
1. Em 24 de Abril de 2021, a exequente requereu contra o aqui executado a acção executiva de que estes são apenso, reclamando o pagamento da quantia de € 23.048,91, alegando ser legítima portadora de duas livranças, uma no valor de €7.000,00, emitida em 04-09-2018 e vencida em 04-10-2018 e outra no valor de € 15.245,62, emitida em 22-01-2018, e vencida em 25-03- 2021, subscritas pelo executado, o qual apôs a sua assinatura no rosto de tais livranças.
2. O requerimento executivo veio acompanhado:
- da cópia da livrança com o n.º ...34, com data de emissão 2018-09-04, data de vencimento 2018-10-04, o valor de €7.000,00 e como beneficiário, o Banco 1..., S.A.;
- da cópia da livrança com o n.º ...86, com data de emissão 2018-01-22, data de vencimento 2021-03-25, o valor de €15.245,62, e como beneficiário, o Banco 1..., S.A.
3. O executado/embargante apôs nas livranças referidas em 2 a sua assinatura no rosto de tais livranças, imediatamente após a identificação do beneficiário da livrança e no local destinado à assinatura dos subscritores.
4. A primeira das referidas livranças foi entregue à exequente pelo executado em 4 de Setembro de 2018, acompanhada do documento denominado “Proposta de desconto de livranças”, constando da mesma o valor, a data de emissão e a data de vencimento.
5. Em 25 de Março de 2021, a exequente enviou ao embargante e para a morada deste indicada no contrato, a carta junta à contestação como documento n.º 5, cujo conteúdo se dá por reproduzido, solicitando o pagamento da livrança no valor de € 7.000,00 vencida em 4 de Outubro de 2018, bem como dos juros moratórios vencidos.
6. A segunda das referidas livranças foi entregue à exequente em garantia de um contrato de empréstimo outorgado em 22-01-2018, e em cumprimento do qual o exequente concedeu ao embargante um empréstimo no montante de € 17.500,00 (dezassete mil e quinhentos euros), valor que este recebeu e do qual se confessou devedor e se obrigou a reembolsar nos termos constantes do documento n.º 1 junto à contestação, e cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.
7. Em 25 de Março de 2021, a exequente enviou ao embargante e para a morada deste indicada no contrato, a carta junta à contestação como documento n.º 2, cujo conteúdo se dá por reproduzido e da qual consta que a embargada considerava resolvido o contrato em questão, interpelando o embargante para o pagamento dos montantes em divida no prazo de 10 dias, mais o interpelando para o pagamento da livrança dada em garantia.

IV. O mérito do recurso:
O recurso tem por objecto exclusivamente a condenação do embargante como litigante de má fé.
Na decisão recorrida qualificou-se a lide do embargante como litigância de má fé na base do seguinte raciocínio:
«[…]. Analisados os articulados e requerimentos das partes, constata-se que não está em causa a sustentação de posições jurídicas desconformes com a melhor interpretação da lei, mas sim a alegação de factos contrários à verdade por parte do embargante.
Com efeito, na petição de embargos, o embargante alegou de que as livranças foram subscritas em branco e para garantir um contrato de abertura de crédito em conta corrente para cheques pré datados, e reafirmou tal factualidade nas alegações de recurso, enfatizando-se a complexidade daquele contrato para tornar mais patente a necessidade de interpelação prévia ao preenchimento das livranças que sustentou estar em falta quando, na verdade, se apurou que apenas uma das livranças fora subscrita em branco e para garantia de um contrato de mútuo, a acrescer que o embargante foi interpelado para o cumprimento previamente ao preenchimento das referidas livranças.
Do que se conclui que o embargante distorceu a realidade de si conhecida, e que tinha obrigação de conhecer, violando conscientemente o dever de verdade (veja-se que atenta a data da celebração dos contratos subjacentes às livranças - de mútuo e de desconto – e as interpelações recebidas escassos meses antes da interposição da presente execução, nem sequer é possível conjecturar que o embargante laborava em erro quando deduziu os embargos nos termos em que o fez e que reafirmou no recurso interposto), deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, numa instrumentalização indevida do processo, o que integra a previsão do art.º 542º n.º 2 als. a), b) e d) do Código de Processo Civil e, como tal, deverá ser sancionado. […]».
O recorrente opõe a esta fundamentação essencialmente duas considerações: a condenação tem por base apenas a improcedência dos embargos, mas essa circunstância nunca basta para concluir que o vencido litigou de má fé; o embargante alegou as suas convicções, sendo certo que ao ser executado por uma quantia da grandeza dos autos suportou uma inevitável perturbação.
É fácil de demonstrar que nenhum destes argumentos merece acolhimento.
Se da improcedência de uma acção nunca se pudesse concluir, como entende o recorrente, que o vencido litigou de má fé, jamais seria possível condenar parte alguma nestes termos!
Quando se afirma que não basta a improcedência para concluir que o vencido litigou de má fé quer apenas dizer-se que da mera improcedência de uma pretensão não é possível deduzir que os fundamento dessa pretensão, só porque não se provaram, eram falsos ou foram adulterados. O que não é possível fazer é essa associação automática e irreversível entre falta de demonstração e falsidade ou viciação.
Mas isso não impede que a improcedência da acção tenha na sua origem uma litigância de má fé, isto é, a alegação de factos falsos ou adulterados ou a dedução de um direito que o vencido sabia ou tinha a obrigação de saber que não era titular. Por conseguinte, é perfeitamente possível usar a falta de prova dos factos (que determinou a improcedência da pretensão) para demonstrar que a parte litigou de má fé.
A artigo 20.º da Constituição de República Portuguesa e o artigo 2.º do Código de Processo Civil consagram o direito de acesso aos tribunais, dizendo que a todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente. O direito de acesso à justiça é por isso um direito constitucionalmente garantido, dotado da tutela que é própria dos direitos fundamentais.
Contudo, nos processos judiciais as partes estão vinculadas ao dever de boa-fé processual que emana do princípio da cooperação, do qual decorre um verdadeiro dever jurídico de verdade, isto é, de apresentar os factos tal como, em sua opinião, eles ocorreram. A litigância de má-fé sanciona a violação desse dever de verdade.
Daí que as partes de uma acção tenham a obrigação (cívica e) legal de não deduzir pretensões cuja falta de fundamento não deviam ignorar, de não alterarem a verdade dos factos, de não omitirem factos relevantes, de não prosseguirem objectivos ilegais, não impedirem a descoberta da verdade. Por isso, ao intervir nos autos têm a obrigação estrita de se certificar que não incorrem nesses vícios.
Naturalmente, o dever de se assegurar disso é um dever que, como os demais, se rege pelos princípios da adequação, proporcionalidade e razoabilidade. Daí que não seja exigível à parte que só alegue factos sobre os quais tem a certeza e que sabe antecipadamente que logrará demonstrar. Toda a lide importa um risco, uma aléa, a hipótese de não se lograr o reconhecimento que não se têm ou não se obter o reconhecimento de direitos legítimos.
Todavia, a parte tem a obrigação de ser cuidadoso na preparação da sua lide, de fazer uma verificação mínima do que está a alegar e da sua correspondência com a verdade, de não omitir em relação aos factos dos quais tem ou não pode deixar de ter conhecimento e condições para verificar um mínimo de diligência para se assegurar da sua correcção e veracidade, ainda que depois por qualquer circunstância a prova respectiva venha a faltar ou a soçobrar.
A litigância de má fé, com efeito, não penaliza apenas condutas cometidas com dolo, sendo suficiente para o efeito a negligência grave, ou seja, a imprudência grosseira, que é manifesta aos olhos de qualquer um, que foi resultado da não adopção daquele mínimo de diligência que era possível e que permitiria dar conta da falta de fundamento para o acto. Só a negligência comum, desculpável, não basta para qualificar a litigância.
Conforme doutamente se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 20.10.2009, processo n.º 30010-A/1995.P1, in www.dgsi.pt, que merece a nossa total adesão e sempre citamos a este respeito:
«A condenação de uma parte como litigante de má-fé consubstancia um verdadeiro juízo de censura sobre a sua atitude processual, face ao uso que possa ter feito dos mecanismos legais postos ao seu dispor, com o marcado intuito de moralizar a actividade judiciária. A litigância de má-fé tanto pode ser substancial (dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ser ignorada, alteração da verdade dos factos e/ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa) como instrumental (seja porque se pratica grave omissão do dever de cooperação, seja porque se faz do processo ou dos meios processuais uso manifestamente reprovável). Em ambas as modalidades está sempre em causa ‘um uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais’ com uma das finalidades apontadas no nº 2 do art. 456º do C.P.C., circunscrevendo-se o âmbito de aplicação do instituto ‘às situações configuradoras de meras violações de deveres e ou obrigações processuais’. (…) trata-se, como assinala Pedro Albuquerque, de uma responsabilidade com cunho próprio, que a distingue da responsabilidade civil (não interferindo uma com a outra, podendo perfeitamente coexistir), assentando em deveres de cooperação e probidade, pressupondo, por isso, violação de obrigações ou situações processuais, autónomas relativamente ao direito substantivo.
O instituto não tutela interesses ou posições privadas e particulares, antes acautelando um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça, destinando-se a assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça – destina-se a combater a específica virtualidade da má-fé processual, que transforma a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial (…)a tutela ‘das posições substantivas ou materiais eventualmente atingidas pela parte responsável por má-fé processual caberá, por conseguinte, a outros institutos próprios do direito substantivo como o abuso do direito e a responsabilidade civil’
A condenação como litigante de má-fé há-de afirmar a reprovação e censura dos comportamentos da parte que, de forma dolosa ou, pelo menos, gravemente negligente (situações resultantes da inobservância das mais elementares regras de prudência, diligência e sensatez, aconselhadas pelas mais elementares regras do proceder corrente e normal da vida), pretendeu convencer o tribunal de pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, alterou a versão dos factos relativos ao litígio ou que faz do processo ou meios processuais uso manifestamente reprovável. (…)
A afirmação da litigância de má-fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para por ela se concluir, exigindo-se no juízo a realizar uma particular prudência, necessária não só perante o natural conflito de interesses, contrário, normalmente, a uma ponderação objectiva, e por vezes serena, da respectiva intervenção processual, mas também face ao desvalor ético-jurídico em que se traduz a condenação por litigância de má-fé.
Atendendo aos fundamentos do instituto (princípio da cooperação e dever de boa fé processual), aos interesses que através dele se pretende afirmar (respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça) e finalidades que se visam alcançar (moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça) e, também, à própria natureza sancionatória do instituto (dele resulta a aplicação de multa), tem de considerar-se que o critério para aferir e apreciar a negligência que ele pressupõe não pode coincidir com o critério para apreciação da culpa na responsabilidade civil extracontratual (critério de apreciação objectiva, em que a culpa se afere pelo confronto com o tipo abstracto de pessoa normalmente diligente e prudente – o bom pai de família, nos termos do art. 487º, nº 2 do C.C.). (…)
As carências pessoais, seja por falta de conhecimentos, de perícia, de forças físicas ou intelectuais, ou de particulares inaptidões são tidas em conta na configuração normativa do ilícito processual, como resulta do art. 266º, nº 4 do C.P.C.. O dever de cooperação que impende sobre a parte e que lhe legalmente exigido tem de ter correspondência nas suas naturais faculdades para o cumprir. Assim, o critério para apreciação da negligência (tanto mais que estamos a reportar-nos a uma sanção por ilícito processual, diverso do ilícito civil), não pode deixar de ser referenciado ao padrão de conduta exigível ao agente (à parte), ajustado à sua idade, às suas carências pessoais e particulares inaptidões.
A prática do ilícito processual pela parte (por aquela concreta pessoa que é parte no processo) só pode ser-lhe imputada a título de negligência quando não proceder com o cuidado e diligência (o padrão de conduta) a que, segundo as circunstâncias, estava obrigada e era capaz. Trata-se de um critério subjectivo e concreto, pois que as capacidades próprias da parte são o limite aos seus deveres de boa-fé processual e de cooperação – para lá das capacidades próprias da parte não existe dever de cooperação e logo, não poderá haver negligência (aliás, para lá das possibilidades de ‘diligenciar’ e ‘cuidar’ não pode haver dever de cooperação).
Na avaliação e graduação da culpa, para apurar de litigância de má-fé, deve atender-se à diligência do bom pai de família (ao padrão de conduta exigível a uma pessoa razoável, normalmente cuidadosa e prudente) mas atender ainda às circunstâncias do caso concreto. Esta aferição da culpa em função das capacidades pessoais do agente coaduna-se coma exigência legal ‘que deflui imediatamente, como corolário, do axioma antropológico da dignidade da pessoa humana proclamado pelo art. 1º da nossa Lei Fundamental, pois ninguém porá em causa o carácter gravoso e estigmatizante de uma condenação injusta como litigante de má fé’, sendo certo que a má-fé processual ‘é, actualmente, uma má-fé ética, encontrando os seus limites ou contraponto, na boa fé ética’.»
Ora no caso, a justificação de que o embargante é um mero cliente bancário e ficou perturbado quando foi confrontado com a execução não colhe minimamente.
O relacionamento com um banco caracteriza-se por estar apoiado sempre em documentos que titulam os actos dessa relação. Em regra, as pessoas que recorrem aos bancos para obter financiamento para o desenvolvimento das suas actividades profissionais e/ou comerciais estão igualmente vinculadas a obrigações de natureza contabilística e fiscal que obrigam à conservação desses documentos. Daí que as pessoas que têm relações com os bancos têm, em regra, condições para conhecer minimamente o teor dessa relação.
No caso não foi alegado que o embargante seja pessoa inábil, impreparada ou sem instrução, sendo certo que a dimensão do relacionamento com o banco indicia o oposto. Aliás, quando, como no caso, o patrocínio judiciário é obrigatório, a função deste é precisamente a de ajudar no estudo e análise dos documentos em causa de modo a evitar lides alicerçadas em falsidades ou numa estratégia de … atirar em todas as direcções para ver se alguma pega!
Recorde-se que o embargante alegou que as livranças dadas à execução foram emitidas em branco para garantia de cumprimento de um contrato de abertura de crédito em conta corrente, não havendo pacto ou acordo para o seu preenchimento.
Dado que as livranças possuem datas de emissão (que o embargante não impugnou), ao receber as cartas do exequente a informar o seu preenchimento e a exigir o respectivo pagamento, o embargante estava em condições de compreender que as livranças cujo preenchimento lhe era anunciado e que depois vieram a servir de título executivo para instauração da execução embargada respeitavam aos contratos celebrados nessas datas, isto é, o de mútuo celebrado em 22-1-2018 e o de desconto de título de crédito celebrado em 4-9-2018, e não a uma outro qualquer contrato, como por exemplo, o contrato de abertura de crédito em conta corrente mencionado pelo embargante mas em relação ao qual ele não fornece mais qualquer dado de identificação, como a data da respectiva celebração, sendo certo que não pode deixar de ter em seu poder documentos que permitiriam essa identificação.
Acresce que no contrato de desconto a livrança (nº ...34) aparece identificada pelo respectivo número, pelo que em relação a este título executivo não havia a mais pequena possibilidade de o embargante desconhecer a que contrato ela se referia e/ou a confundir com outro contrato que eventualmente tivesse celebrado com o banco exequente.
É certo que quanto ao contrato de mútuo, o número de identificação do contrato (...3) que consta do respectivo documento não corresponde ao número aposto na livrança (...86) aquando do seu preenchimento para identificar o contrato que constitui a relação subjacente (...96), divergência que nem o exequente teve o cuidado de esclarecer nem o tribunal a quo cuidou de superar.
Só que nem esse pormenor serve para atenuar o dever de cuidado que recaía sobre o embargante e que ele não observou, na medida em que o fundamento dos embargos não é o executado desconhecer qual a relação subjacente a esta livrança, foi sim que a livrança respeitava a um contrato de abertura de crédito em conta corrente que, como já referido, não foi identificado minimamente, nem o embargante produziu qualquer prova da sua existência.
Nessa medida, somos de opinião que bem andou o tribunal a quo ao condenar o embargante como litigante de má fé, pelo menos quanto a parte dos seus fundamentos de embargos. E como a multa fixada está próxima do limite mínimo, por não haver um grau de culpa tão grave que justifique o seu agravamento, acompanhamos o decidido.
Improcede assim o recurso.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Custas do recurso pelo recorrente que seriam limitadas à taxa de justiça pela apresentação do recurso que não é paga atento o benefício do apoio judiciário de que beneficia.
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Porto, 7 de Março de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 807)
1.º Adjunto: Francisca Mota Vieira
2.º Adjunto: Paulo Dias da Silva




[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]