Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0442647
Nº Convencional: JTRP00035910
Relator: PINTO MONTEIRO
Descritores: HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
TEORIA DA CAUSALIDADE ADEQUADA
Nº do Documento: RP200410270442647
Data do Acordão: 10/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Área Temática: .
Sumário: Em caso de acidente de viação, o agente que, violando uma norma de direito rodoviário, provoca a morte de outra pessoa não comete o crime de homicídio por negligência, se a morte não pudesse ser evitada, mesmo com cumprimento daquela norma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam em audiência no Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Judicial de St.º Tirso, pelo M.º P.º foi deduzida acusação em processo comum singular contra os arguidos B.......... e C.........., ambos devidamente identificados nos autos, a fls.873, imputando-lhes, além de outros crimes e contra-ordenações relativamente aos quais foi declarado extinto o procedimento criminal, ao primeiro, a prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravada pelo resultado, p.p. nos termos dos arts. 69.º, n.º1, al. a), 291.º, n.ºs 1, als. a) e b), e 2 e 294.º, este último por remissão para o art. 285.º, todos do Código Penal, e ao segundo, a prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos arts. 69.º, n.º1, al. a) e 137.º, n.º 1, ambos do mesmo código.
Efectuado o julgamento, foi o primeiro arguido condenado pela prática do mencionado crime na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 2 anos, e foi o segundo arguido absolvido da acusação.
Inconformado com a decisão, dela recorreu o M.º P.º, tendo concluído a motivação nos seguintes termos:
1. O Mmo. Juiz a quo deveria ter aditado aos factos provados que “se encontravam garrafões espalhados, pelo menos na via mais à direita” e que “momentos antes do 2º embate, uma viatura de matrícula francesa, circulando na faixa da esquerda, conseguiu travar, imobilizar e aguardar para retomar a circulação pela direita”, o que constitui insuficiência da matéria de facto dada como provada e erro notório na apreciação da prova;
2. Não dando o 1º facto referido como provado não poderia o mesmo servir para motivar a decisão sobre a matéria de facto, constituindo contradição insanável na fundamentação;
3. Pontos de facto incorrectamente julgados:
3.1 FACTOS DADOS COMO PROVADOS:
- Facto n.º 11 – peca por defeito: assim, além de ter ficado provado que pelo menos um dos veículos que circulava mais à direita accionou os quatro piscas (luzes avisadoras do perigo), ficou também provado que o veículo em que circulava a testemunha D.........., médico, parou o seu veículo mais à frente em relação ao local do 1º embate, deixando-o com as luzes ligadas e, sendo certo, que aquele outro veículo que supra ficou referido que circulava com as luzes avisadoras de perigo ligadas ocorreu entre o 1º e o 2º embate, logo imediatamente antes de surgir o veículo Audi, conduzido pelo arguido C..........;
- Facto n.º 13 – não ficou provado que o arguido C.......... se apercebeu da obstrução da via de trânsito mais à esquerda pelos veículos sinistrados supra referidos quando junto deles chegou, o que ficou provado foi que nem junto deles se apercebeu, mas apenas após o embate e o accionar dos “airbags” – próprias declarações do arguido C..........;
- Facto n.º 14:
I. não ficou provado que a obstrução da via de trânsito mais à esquerda pelos veículos sinistrados era visível apenas à distância das “luzes de cruzamento (médios)”, mas entre 40 a 60 metros, ou então, só poderia ter sido dado como provado que era visível pelo menos à distância dos médios;
II. a parte final deste facto n.º 14 – “de cerca de 30 metros” – é conclusiva e, como tal, tem que se considerar não escrita;
- Facto n.º 24 – em consequência do que se disse supra, terá que se dar como não provado o segmento “por força do que só se apercebeu e avistou os obstáculos (...) quando junto deles chegou”;
3.2 FACTOS DADOS COMO NÃO PROVADOS:
- Facto n.º 3 – está em contradição com os factos dados como provados sob os n.ºs 7, 8 e 11, pois se as viaturas intervenientes (3) nos dois embates ocuparam a faixa esquerda, é lógico que o tráfego só poderia passar a circular pela direita, podendo é não ter ficado suficientemente provado que o faziam a uma velocidade mais reduzida;
- Facto n.º 6 – ficou provado este facto, uma vez que a testemunha D.........., refere cerca de 40 a 60 metros, sendo certo que só avistou a esta distância porque se ia a defender dois garrafões que se encontravam espalhados pela estrada, não sabendo precisar se nas duas vias, mas pelo menos na via mais à direita em que circulava (cumpre ainda acrescentar que o próprio Mmo. Juiz refere que a testemunha disse que avistou um vulto a 40 metros na motivação da decisão de facto, entrando em contradição!), bem como das declarações dos agentes da GNR – E.......... e F.........., que referiram expressamente que a recta onde se deu o acidente, tendo inclinação, apresenta perfeita visibilidade desde o início da curva até ao pontão que fica imediatamente a seguir ao local do embate, quer de dia quer de noite;
- Facto n.º 13 – em sequência do que imediatamente antes se deixou dito, teria este facto que também ser dado como provado;
- Facto n.º 16 – também ficou provado que o arguido C.......... não avistou qualquer indício de congestionamento do tráfego ou de perigo, como consequência da sua condução desatenta e descuidada – declarações do próprio arguido, que supra já se assinalou e em consonância com a primeira parte do facto dado como provado sob o n.º 13;
4. Provas que impõem decisão diversa:
a. audiência de julgamento de 10/11/2003, declarações do co-arguido C.........., cassete 2, lado A, rotações 638 a 1672;

b. audiência de julgamento de 10/11/2003, declarações do assistente G.........., cassete 2, lado A, rotações 1672 a 2500 e cassete 3, rotações 0010 a 0626;

c. audiência de julgamento de 05/12/2003, declarações da testemunha D.........., cassete 1, lado A, rotações 0000 a 2113 e audiência de julgamento de 15/01/2004, cassete 1, lado A, rotações 1413 a 2199;

d. audiência de julgamento de 05/12/2003, declarações da testemunha E.........., cassete 1, lado A, rotações 2113 a 2507 e lado B, rotações 0000 a 0188;

e. audiência de julgamento de 05/12/2003, declarações da testemunha F.........., cassete 1, lado B, rotações 0188 a 913 e audiência de julgamento de 18/12/2003, cassete 1, lado A, rotações 0000 a 0595, analisadas criticamente com as declarações prestadas na audiência de 15/01/2004, cassete 1, lado A, rotações 0000 a 1413 e confrontando-as com as assinaladas em d) – diferentes versões apresentadas(!);

f. inspecção ao local, fotografias do local e medições efectuadas e juntas aos autos – acta de 15/01/2004.
5. Falta de credibilidade notória da testemunha H.........., havendo erro notório na apreciação deste elemento de prova, ultrapassando a livre convicção do julgador, porque contraria frontalmente o depoimento das outras testemunhas que também serviram para fundamentar a sua convicção, nomeadamente a testemunha D.......... – assim, o Mmo. juiz ou acreditava num ou noutro, não podendo acreditar em parte num e em parte noutro, originando nessa medida contradição insanável (audiência de julgamento de 10/11/2003, cassete 3, lado A, rotações 626 a 2500 e cassete 4, rotações 0010 a 1110).

6. Integração da conduta do arguido C.......... no direito:

a. o arguido C.......... deverá ser condenado pelo crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º, n.º 1 do C. Penal;

b. o arguido C.......... tinha a possibilidade em concreto de vir atento, travar, abrandar, desviar-se para a direita, e por, qualquer desses meios, evitar o 2º embate ou pelo menos a consequência fatal – o resultado morte do condutor do I..........;

c. o resultado morte é imputável ao 2º embate;

d. deriva da violação de um dever de cuidado e/ou na potenciação de um risco resultante da condução desatenta;

e. aquele dever de cuidado era exigível ao arguido C.......... em concreto, engenheiro, jovem, não lhe sendo conhecido nenhuma doença ou problema físico que de algum modo limitasse a sua actuação;

f. o obstáculo do 1º embate era avistável desde o início da recta, logo a seguir à curva, ou pelo menos desde o meio dessa subida;

g. os garrafões que obstruíam a auto-estrada eram avistáveis desde o desfazer da curva;

h. o arguido C.......... vinha de tal forma desatento que nada avistou, nem quando junto dos veículos embatidos chegou, uma vez, que nas suas próprias palavras só deu conta com o accionar dos “airbags”;

i. o arguido C......... não abrandou a sua marcha, não travou, não manifestou sequer uma ineficiente travagem, não teve a reacção natural sequer de guinar o volante para a direita, sendo certo que o poderia fazer com segurança, porque nesse momento não circulavam carros pela faixa da direita;

j. com qualquer daquelas condutas podia e devia ter evitado o 2º embate, conduta que lhe era em concreto exigível;

k. a morte é causa adequada do 2º embate, imputável objectivamente ao arguido C..........;

l. se tivesse um comportamento lícito alternativo teria evitado o embate ou, pelo menos, minimizado as suas consequências, não se verificando essa situação in casu;

m. O Mmo Juiz a quo tem liberdade na integração dos factos no direito, tendo o dever de analisar todas as situações plausíveis de direito;

n. a ausência do triângulo a assinalar a obstrução da via não modifica o que se deixou dito, porque tal era a desatenção do arguido C.......... que também não o teria avistado, não sendo também exigível a sua colocação atento o facto de entre o 1º embate e o 2º mediarem apenas 4 a 5 minutos;

7. Integração da conduta do arguido B.......... no direito – impossibilidade de agravar a sua conduta pelo resultado morte, devendo ser condenado apenas por condução perigosa de veículo rodoviário:

a. teoria da adequação ou do risco – a acção do arguido B.......... não é eficaz para produzir a morte do condutor I.........., pois a série causal que iniciou foi ultrapassada pela acção do arguido C.......... - interrupção do nexo causal

b. imputar a morte ao 2º embate e depois agravar o 1º embate com esse resultado resulta em contradição insanável;

c. teria a conduta do 1º embate que tornar impossível ao condutor do 2º evitar essa colisão, ficando provado o contrário, uma vez que uma viatura de matrícula francesa, momentos antes, conseguiu travar e aguardar para circular pela direita;

8 – Ao decidir nos termos do douto acórdão recorrido violou o disposto nos arts. 410º, n.º2, als. a), b) e c) do Código Penal (sic).
XXX
Terminou pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que condene o primeiro arguido pela prática do crime de condução perigosa de veículo rodoviário, mas sem agravação pelo resultado, e o segundo arguido pela prática de um crime de homicídio por negligência.
XXX
Na 1.ª instância respondeu o arguido C.......... pronunciando-se pelo não provimento do recurso na parte que lhe diz respeito.
Neste tribunal, pelo Exm.º Procurador Geral Adjunto foi emitido parecer no sentido de que o recurso merece provimento apenas na parte em que o M.º P.º defende a não agravação pelo resultado da conduta do arguido B...........
Cumprido o disposto no art. 417.º, n.º2, do C. P. Penal, não houve resposta.
Foram colhidos os vistos legais.
Procedeu-se à audiência de julgamento de harmonia com o formalismo legal, como consta da respectiva acta.
Cumpre decidir.
XXX
Na 1.ª instância procedeu-se à gravação da prova, que se encontra transcrita, pelo que, nos termos dos arts. 364.º, n.º1, e 428.º, ambos do C. P. Penal, este tribunal conhece de facto e de direito.
XXX
Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas delimitam o seu objecto, são as seguintes as questões suscitadas no recurso a merecerem apreciação, a saber: a) verificação, na sentença recorrida, dos vícios a que alude o n.º2 do art. 410.º do C. P. Penal; b) erro de julgamento da matéria de facto provada; e c) errada subsunção jurídica da matéria de facto considerada provada relativamente a ambos os arguidos.
XXX
Na 1.ª instância foi considerada provada a seguinte matéria de facto:
1. No dia 10 de Junho de 1999, entre as 23.20 e as 23.30 horas, I.........., id. a fls. 28 e 74, circulava ao volante e na condução do veículo automóvel ligeiro de mercadorias de matrícula QQ-..-.., propriedade de seu pai, o assistente G.........., pela Auto-Estrada A3 e pela via de trânsito mais à direita relativamente ao sentido de marcha Braga/Porto em que seguia.
2. Na mesma ocasião, também por aquela via de trânsito mais à direita, no mesmo sentido de marcha Braga/Porto e imediatamente atrás do veículo QQ-..-.., circulava o primeiro arguido, B.........., ao volante e na condução do veículo ligeiro de passageiros “Opel Corsa” de matrícula RH-..-.., de sua propriedade.
3. Cerca de 20 metros antes de atingir o Km 14,300 da referida A3, em S. Romão do Coronado e na área desta comarca, onde aquela se configura como uma recta, com a largura de 7,45m e então com piso seco e em bom estado de conservação, o arguido B.........., porque seguia com o seu veículo demasiado próximo do veículo que o precedia, a uma velocidade excessiva por desadequada a tão próxima circulação e às características do seu veículo e da via - velocidade essa que lhe não permitiria com segurança executar quaisquer manobras previsivelmente necessárias e, designadamente, fazer parar aquele no espaço livre visível à sua frente -, sem o devido cuidado e atenção e com uma taxa de álcool no sangue de 1,73 gramas/litro, fez embater violentamente a frente do seu veículo na traseira do veículo QQ-..-.. conduzido pelo I...........
6. Aquele embate entre os dois veículos ocorreu dentro da referida via de trânsito mais à direita relativamente à respectiva marcha por que ambos circulavam.
7. E, em consequência do mesmo, o veículo QQ-..-.., desgovernado, “despistou-se” para a via de trânsito mais à esquerda relativamente ao indicado sentido de marcha, onde colidiu com os “rails” do separador central daquela Auto-Estrada, após o que se imobilizou na referida via de trânsito mais à esquerda, tombado lateralmente com a parte direita na faixa de rodagem, com a frente voltada para a outra via de trânsito e a retaguarda para os referidos “rails” do separador central.
8. Por sua vez, o veículo RH-..-.., na sequência da referida colisão, “despistou-se” também para a mesma via de trânsito mais à esquerda, onde ficou imobilizado, alguns metros depois do veículo QQ-..-.. relativamente ao sentido Braga/Porto, mas com a retaguarda voltada para o meio da faixa de rodagem e a frente para os “rails” do separador central da Auto-Estrada.
9. Após o embate, o proprietário do veículo QQ-..-.., o assistente G.........., que antes seguia no assento ao lado do seu filho e condutor I.........., logrou sair pelos seus próprios meios do referido veículo, através do vidro da respectiva porta do lado esquerdo, o mesmo não conseguindo fazer de imediato aquele I.........., por força da posição menos favorável em que ficara na sequência dos referidos embate, “despiste” e “capotamento” do veículo que conduzia.
10. Depois de se achar no exterior e enquanto que o arguido B.........., depois de por sua vez abandonar o seu veículo, se dirigira e permanecia na berma da Auto-Estrada, o assistente G.......... acabou por subir para cima do seu veículo QQ-..-.., para tentar ajudar a por sua vez sair do interior do mesmo o condutor I...........
11. Após o primeiro embate e por força da imobilização dos veículos QQ-..-.. e RH-..-.. na via de trânsito mais à esquerda, alguns veículos passaram no local circulando pela via mais à direita e a velocidade reduzida, sendo que pelo menos um deles accionou as “luzes avisadoras de perigo”.
12. Alguns minutos - cerca de 5 - depois do embate do veículo RH-..-.. no veículo QQ-..-.. e quando o I.........., ajudado pelo assistente G.........., que de cima da porta do seu veículo QQ-..-.. o puxava, se encontrava conseguindo por sua vez sair do mesmo e já com parte do corpo de fora, aquele veículo QQ-..-.. foi nova e violentamente embatido, agora pela frente do veículo ligeiro de passageiros “Audi A4” de matrícula ..-..-HJ que, conduzido pelo segundo arguido C.........., pela mesma Auto-Estrada e no mesmo sentido de marcha Braga/Porto circulava, pela via de trânsito mais à esquerda relativamente a tal sentido de marcha, há cerca de 400 metros, com as “luzes de cruzamento (médios)” ligadas, a uma velocidade não inferior a 100 km/h e ultrapassando veículos que pela via de trânsito mais à direita circulavam.
13. O arguido C.......... circulava sem atenção e apenas se apercebeu da obstrução da via de trânsito mais à esquerda pelos veículos sinistrados supra referidos quando junto daqueles chegou, não tendo travado.
14. A obstrução da via de trânsito mais à esquerda pelos veículos sinistrados era visível apenas à distância das “luzes de cruzamento (médios)”, de cerca de 30 metros.
15. Em resultado desta segunda colisão, o veículo QQ-..-.., que se encontrava imobilizado na referida via de trânsito mais à esquerda, tombou e foi novamente projectado, acabando por ficar imobilizado na mesma via de trânsito mas com a frente voltada para os “rails” do separador central da Auto-Estrada e a retaguarda para o meio da faixa de rodagem.
16. Por sua vez e na sequência e por força daquela colisão, o veículo RH-..-.., que também se encontrava naquela via de trânsito mais à esquerda e próximo do veículo QQ-..-.., foi também embatido por aquele ou pelo veículo ..-..-HJ, tendo ficado imobilizado ainda na mesma via de trânsito, agora uns metros antes do veículo QQ-..-.. relativamente ao indicado sentido Braga/Porto, mas com a frente voltada para o meio da faixa de rodagem e a retaguarda para os “rails” do separador central da Auto-Estrada, e o veículo ..-..-HJ, em resultado daquela(s) colisão(ões), por seu turno também se “despistou” e foi embater nos “rails” junto da berma direita da Auto-Estrada relativamente ao indicado sentido de marcha, acabando por se imobilizar a cerca de 50 cm daquela berma, paralelamente ao local onde ficara o veículo QQ-..-...
17. Em consequência deste segundo embate, o condutor I.......... foi projectado com o veículo QQ-..-.. de que procurava sair, tendo sofrido as graves lesões traumáticas, designadamente torácicas e dos membros inferiores, melhor descritas no relatório de autópsia de fls. 79 a 88, que, apesar da pronta assistência que lhe foi prestada - designadamente pelo médico D.........., directa e necessariamente determinaram a sua morte, em seguida verificada, conforme se alcança daquele relatório de autópsia e dos documentos de fls. 28 e 74 e v., que com ele aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos.
18. Com o descrito segundo embate no veículo QQ-..-.., o assistente G.........., que por ocasião do mesmo ainda se encontrava sobre aquele veículo, tentando ajudar a do seu interior sair o condutor I.........., caiu na faixa de rodagem, na sequência do que teve que receber assistência no Serviço de Urgência do Hospital de S. João, no Porto, onde foi tratado às diversas escoriações no corpo que após e por força das descritas colisões e queda apresentava, sem que de tais lesões tenham entretanto resultado consequências determináveis médico-legalmente relevantes, conforme melhor resulta dos autos de exame directo juntos a fls. 192 e 196, que igualmente aqui damos por reproduzidos para todos os efeitos.
19. Das descritas colisões do veículo ..-..-HJ resultaram ainda lesões na também ofendida destes autos J.........., que à data do acidente circulava no banco da frente ao lado do condutor daquele, lesões pelas quais a mesma teve de receber assistência no Serviço de Urgência do Hospital S. João, no Porto, onde foi tratada e esteve internada desde o dia do acidente (10 de Junho de 1999) até ao dia 21 de Junho de 1999, e que consistiram, designadamente, na fractura do esterno no terço inferior, em fracturas múltiplas dos arcos costais à esquerda (da 5ª à 10ª costelas), em vollet torácico, em traumatismo abdominal, que necessitou de intervenção cirúrgica - laparotomia e do qual resultou enterorrafia e drenagem de líquido abdominal (contusão das ansas do intestino delgado-jejuno), e em traumatismo da coluna dorsal (da 5ª vértebra), e, como consequências directas e necessárias de tais lesões, 120 dias de doença e igual período de incapacidade para o trabalho e, como sequela de carácter permanente, uma cicatriz queloidiana com 12 cm de comprimento resultante da intervenção cirúrgica abdominal, conforme se alcança dos registos clínicos juntos a fls. 294 a 302vº, do parecer junto a fls. 303 e dos autos de exame directo e de sanidade de fls. 180 e 292, que igualmente aqui se dão por reproduzidos para todos os efeitos.
20. No local, na sequência do acidente acima descrito, pela 1 hora do dia 11 de Junho de 1999, o arguido B.......... foi pela Brigada de Trânsito da Guarda Nacional Republicana-DT-Porto, que tomou conta da ocorrência, submetido a exame de pesquisa de álcool no ar expirado e, como tal exame qualitativo revelasse um teor de álcool no sangue superior aos limites estabelecidos por lei e a tal livremente se tivesse disposto, a exame em analisador quantitativo “Seres” modelo “679T”, exame este que não conseguiu efectuar, em três tentativas sucessivas em que demonstrou não lograr expelir ar em quantidades suficientes para o efeito, pelo que foi tal exame substituído por análise de sangue, tendo para o efeito o arguido B.......... sido transportado ao Serviço de Urgência do Hospital de S. João, onde lhe foi feita a colheita de sangue para a realização do exame toxicológico para quantificação do teor de álcool no sangue em seguida e no mesmo dia 11 efectuado no Serviço de Toxicologia Forense do Instituto de Medicina Legal do Porto por cromatografia em fase gasosa, tendo deste exame resultado apurada a existência de uma taxa de álcool no sangue do arguido de 1,73 gr/l, conforme tudo se alcança dos documentos de fls. 3 a 7 do apenso Inquérito nº .../99.3, que igualmente aqui damos por reproduzidos para todos os efeitos.
21. Agindo da forma descrita, o arguido B.......... tinha a vontade livre e a perfeita consciência de estar conduzindo o seu veículo automóvel na via pública depois de ter ingerido bebidas alcoólicas e sabendo que não estava em condições de conduzir tal veículo com segurança, por se encontrar com as suas capacidades diminuídas pela quantidade de álcool que ingerira, que sabia lhe determinava. uma T.A.S igual ou superior a 1,20 gr/l, o que não o levou a abster-se de conduzir a sua viatura nessas condições, tendo representado como possível que com tal condução pudesse pôr em perigo a vida, a integridade física e bens patrimoniais de valor elevado dos restantes condutores que circulavam na referida via como dos demais utentes da mesma mas persistindo em tal condução, embora sem se conformar com esses possíveis resultados.
22. Bem sabia, além do mais, que tal conduta era proibida e punida por lei.
23. Acresce que, por conduzir nos termos e nas condições supra referidas, o arguido B.......... acabou efectivamente por provocar, com a sua descrita conduta inconsiderada, imprevidente e violadora das regras de circulação rodoviária, o primeiro acidente com o veículo QQ-..-.., e por assim criar a situação de perigo que veio a facilitar a segunda colisão ocorrida com o veículo ..-..-HJ conduzido pelo arguido C.........., da qual veio a resultar a morte do condutor I...........
24. O arguido C.........., que seguia com o veículo que conduzia pela via de trânsito mais à esquerda a velocidade não inferior a 100 Km/h, agiu com falta de atenção, por força do que só se apercebeu e avistou os obstáculos existentes na via em que seguia - veículos QQ-..-.. e RH-..-.. e condutor e ocupante do primeiro - quando junto deles chegou, não os tendo evitado ou feito parar o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente, daí decorrendo o segundo acidente acima descrito e as respectivas fatais consequências referidas.
25. Nas circunstâncias de tempo e lugar em que ocorreram as colisões acima descritas não havia chuva ou nevoeiro, a via era regular.
26. À frente do veículo do arguido C.......... circulavam outros, a cerca de 85/90 Km/hora.
27. O arguido C.......... prosseguia continuamente a sua marcha e não abrandou a velocidade do seu veículo.
28. O «triângulo» sinalizador de perigo, após o primeiro acidente, não estava colocado na via de circulação.
29. No momento em que o veículo do arguido C.......... colidiu com o veículo QQ-..-.., não havia fila de trânsito na hemi-faixa direita.

Mais se provou que:
30. O arguido B.......... é pessoa respeitada no seu meio social e tido como pessoa séria e condutor habitualmente prudente.
31. O arguido C.......... é pessoa estimada e respeitada, tido como condutor habitualmente prudente e hábil.
32. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
XXX
Foram considerados não provados os seguintes factos:
1. Alguns metros antes do local do embate entre o veículo do arguido B.......... e o QQ-..-.., a recta onde o mesmo ocorreu forma uma lomba com inclinação pouco acentuada.
2. Se tenha formado na via mais à direita da A3, sentido Braga-Porto, por força da imobilização dos veículos QQ-..-.. e RH-..-.. na via de trânsito mais à esquerda, uma fila de trânsito de que os condutores que seguiam naquele sentido se podiam aperceber desde pelo menos cerca de 300 metros antes do local do embate acima descrito, cujos veículos intervenientes obstruíam a outra via de trânsito.
3. Após o primeiro embate e por força da imobilização dos veículos QQ-..-.. e RH-..-.. na via de trânsito mais à esquerda, o trânsito na Auto-Estrada A3 no sentido Braga/Porto passara entretanto a circular apenas pela via de trânsito mais à direita e a velocidade reduzida.
4. O veículo do arguido C.......... circulasse com as “luzes de estrada (máximos)” ligadas, e que os veículos que ultrapassou circulassem integrando fila de trânsito, em velocidade moderada e alguns com as “luzes avisadoras de perigo” ligadas.
5. O arguido C.......... não atentasse nas “luzes avisadoras de perigo” de outros veículos e não tomasse face aos mesmos as devidas precauções.
6. A obstrução da via de trânsito mais à esquerda por que seguia o arguido C.......... pelos veículos sinistrados supra-referidos era visível a cerca de 50 a 80 metros.
7. O arguido C.......... tenha esboçado uma travagem.
8. A vítima I.......... tenha ficado deitado na faixa de rodagem sob a caixa de carga do veículo QQ.
9. Após o primeiro embate, todos os condutores que circulavam no mesmo sentido do arguido C.......... faziam-no pela via de trânsito mais à direita, em fila, a velocidade moderada e com as luzes intermitentes “avisadoras de perigo” ligadas.
10. O arguido C.......... não adequou a velocidade do veículo que conduzia às condições da via e do trânsito, designadamente as atinentes a fila de trânsito visível a cerca de 300 metros e aos referidos sinais de perigo.
11. Nas circunstâncias de tempo e lugar em que ocorreram as colisões descritas nos factos provados, havia escassa circulação rodoviária, que se processava praticamente na hemi-faixa direita da A3.
12. O veículo ..-..-HJ estava em bom estado de conservação.
13. No segmento da auto-estrada que abrangia o local dos acidentes havia visibilidade a, pelo menos, 100 metros de distância.
14. Ambos os veículos intervenientes na primeira colisão tinham todas as luzes desligadas.
15. Nenhum dos veículos que seguia imediatamente à frente do veículo conduzido pelo arguido C.......... na hemi-faixa direita da referida via pública accionou qualquer indicação de abrandamento de marcha/paragem, designadamente as luzes de travagem.
16. O arguido não avistou, enquanto prosseguia a sua marcha, qualquer indício de congestionamento do tráfego ou de perigo.
17. Não se formou fila de trânsito na hemi-faixa direita até ao momento em que o veículo RH colidiu com o veículo QQ-..-...
18. Antecedendo o local do embate cerca de 50 m, existe uma lomba acentuada quando observada a cerca de 300 m de distância.
19. A vítima mortal do segundo acidente ficou, após o primeiro, encarcerada no lugar do condutor e pressionada contra o volante.
20. O arguido C.......... está habilitado a conduzir há cerca de 12 anos, sem averbamento no seu cadastro de condutor da prática de contra-ordenação grave ou muito grave.
XXX
A- Matéria de facto
Fundamentou o tribunal recorrido a decisão de facto nos seguintes termos:
A convicção deste Tribunal relativamente às circunstâncias em que ocorreu o primeiro dos acidentes ocorridos formou-se - analisada a prova à luz das regras da experiência comum -, sobretudo, com base nas declarações conjugadas e criticamente analisadas do arguido B.......... e do assistente G.........., naquele intervenientes, respectivamente, como condutor do veículo de matrícula RH-..-.. e passageiro do veículo QQ-..-... Também relativamente às consequências do referido acidente e à tentativa do aludido assistente em socorrer o seu filho I.......... se consideraram as declarações daqueles, tendo sido afirmado claramente pelo G.......... que o seu filho, em consequência do primeiro embate e capotamento, não sofreu lesões, sendo que as chapas do seu veículo, apesar de o embate ter sido forte, pouco sofreram. Assim, tais declarações se consideraram também para concluir que foi o segundo embate a provocar as lesões que levaram à morte do I.........., valorando-se ainda, a este respeito, o relatório de autópsia de fls. 79 a 88 e os documentos de fls. 28 e 74.
No que diz respeito à condução sob o efeito do álcool por parte do arguido B.........., consideraram-se também as suas declarações, em que admitiu ter bebido 2 ou 3 copos de vinho no jantar anterior ao acidente, sabendo que não podia conduzir, bem como os documentos de fls. 3 a 7 do apenso Inquérito nº .../99.3.
No que diz respeito às circunstâncias em que ocorreu o segundo acidente, que veio a provocar a aludida vítima mortal, consideraram-se os depoimentos do arguido B.........., que referiu que o veículo conduzido pelo arguido C.......... seguia a alta velocidade, sendo que a testemunha D.......... (médico que seguia na A3 e que parou no local após o primeiro embate, tendo assistido ao segundo e deposto de forma isenta e objectiva) referiu que o veículo QQ foi projectado, com o embate, a cerca de 15 a 20 metros (sendo esta última distância confirmada pelo depoimento da testemunha H.........., que também presenciou o segundo acidente), veículo aquele que, dado o seu peso (e atendendo às regras da experiência), teria que ter sofrido um embate de veículo que circulasse a não menos de 100 Km/h para ser projectado a tal distância e num local em que, no sentido em que foi projectado, a estrada descreve (veja-se o auto de fls. 857, as fotografias de fls. 845 e 860) uma subida (refira-se, a este propósito, que a testemunha F.........., agente da GNR que se deslocou ao local do acidente e elaborou o croquis de fls. 8, disse mesmo que o veículo QQ não poderia ter deslizado muito, por ser pesado, pelo que ficou com a percepção que o segundo acidente teria sido em cima do marco quilométrico 14,300 que se pode ver no croquis, o que, face ao atrás exposto, não corresponde à realidade, mas ilustra bem a violência do embate do veículo ..-..-HJ, conduzido pelo arguido C.........., no QQ, e nos permite concluir, como vimos, que aquele não circularia a menos de 100 Km/h; aliás, veja-se que o HJ, apesar do embate, ainda se foi posicionar, de acordo com o croquis de fls. 8, quase paralelamente ao QQ, ou seja, ainda terá percorrido cerca de 20 metros antes de se imobilizar).
Relativamente à conduta do arguido C.........., tiveram-se ainda em consideração as suas próprias declarações, das quais resulta que seguia, com os “médios” ligados - que têm habitualmente um alcance de 30 metros, tendo o arguido referido um alcance de 32 metros (tendo a testemunha F.......... referido que a distância a que os veículos podiam ser vistos seria a do alcance dos “médios”) - na faixa esquerda da auto-estrada, ultrapassando veículos que seguiam em marcha normal (e marcha normal para uma auto-estrada terão de considerar-se velocidades de 90/95 Km/h, conclui o tribunal de acordo com as regras da experiência), tendo ultrapassado pelo menos dois veículos desde o início da recta onde ocorreram os embates, não estando certo sequer de ter travado nem sabendo em que veículo bateu, sendo certo que não havia no local rastos de travagem (conforme depoimento da testemunha F.........., que assim explicou o facto de não ter mencionado rastos de travagem no croquis que elaborou) e a testemunha D.......... também referiu não ter ideia de o veículo HJ ter travado.
Além disso, considerou-se o depoimento da testemunha D.........., que referiu que tudo estava escuro no local do segundo embate e que abrandou por ter visto um automóvel com os quatro “piscas” ligados já próximo do local do primeiro embate, tendo depois visto garrafões espalhados na via da direita, pela qual circulava (não resultando das suas declarações, nem se podendo extrair do facto de tais garrafões estarem na referida hemi-faixa, que também haveria algum – ou alguns – na hemi-faixa da esquerda, sobretudo se tivermos em conta que, como a seguir será dito, pelo menos um veículo percorreu a mesma até ao local do primeiro embate, podendo ter até afastado garrafões que ali se encontrassem), sendo que apenas a cerca de 40 metros do referido local viu um vulto, nem sabendo o que era (o que se valorou também no que diz respeito à distância a que se podia ver a obstrução da via da esquerda, onde estavam os veículos após a primeira colisão), e que um veículo que seguia na faixa esquerda conseguiu evitar o embate com os veículos QQ e RH, deles se apercebendo e se desviando (a testemunha referiu mesma que a colisão foi evitada por milímetros), tendo ouvido uma travagem brusca de tal veículo (resultando também das declarações de H.......... que um veículo se desviou dos referidos veículos após uma derrapagem e que viu pelo menos um veículo com os quatro “piscas” ligados, o mesmo sendo referido pelo assistente G..........), para se dar como provado apenas que alguns dos veículos que passaram no local do primeiro embate o faziam pela via mais à direita e um deles com as luzes avisadoras de perigo ligadas.
No que concerne à matéria descrita em 19. dos factos provados, valoraram-se os registos clínicos juntos a fls. 294 a 302v., o parecer junto a fls. 303 e os autos de exame directo e de sanidade de fls. 180 e 292.
Mais se consideraram, relativamente aos factos descritos em 32 e 33, os depoimentos das testemunhas K.......... e L.........., no que diz respeito ao arguido B.........., e das testemunhas M.........., N.........., O.......... e P.........., no que diz respeito ao arguido C.........., que demonstraram conhecimento dos factos, dadas as suas relações com os arguidos, e depuseram de forma a merecerem credibilidade.
Relativamente aos antecedentes criminais, tiveram-se em conta os CRCs de fls. 642 e 807.
Relativamente aos factos não provados, cumpre referir que não se produziu em julgamento qualquer prova que permitisse dar como demonstrados outros factos para lá dos que nessa qualidade se descreveram, sendo que, no que respeita à não prova da ausência de averbamento no cadastro de condutor do arguido C.......... da prática de contra-ordenação grave ou muito grave, considerou-se ainda o documento de fls. 29 e seg..
XXX
A
De acordo com o recorrente, os invocados vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova consistem na circunstância de não ter sido feito constar da matéria de facto provada que se encontravam garrafões espalhados pelo menos na via mais à direita e que momentos antes do segundo embate, uma viatura de matrícula francesa, circulando na faixa da esquerda, conseguiu travar, imobilizar-se e aguardar para retomar a circulação pela direita.
Segundo Leal-Henriques e Simas Santos, no Código de Processo Penal Anotado, vol. II, pág. 737, verifica-se o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, a que alude a al. a) do n.º2 do art. 410.º do C. P. Penal, quando da factualidade vertida na decisão em recurso se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Tal insuficiência há-de ser de tal ordem que patenteie a impossibilidade de um correcto juízo subsuntivo entre a materialidade fáctica apurada e a norma penal abstracta chamada à respectiva qualificação, mas apreciada na sua globalidade e não em meros pormenores, divorciados do contexto em que se descreve a sucessão de factos impugnados.
Como decorre do art. 410.º do C. P. Penal, os vícios nele elencados têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer elementos externos.
No caso sub judice temos que a testemunha D.........., que, segundo o seu depoimento, circulava no mesmo sentido em que seguiam os veículos sinistrados, pela faixa de rodagem situada mais à direita, referiu que antes de chegar ao local em que se encontravam os veículos sinistrados verificou que havia garrafões espalhados na faixa de rodagem mais à direita, atento o sentido em que seguia, dos quais teve de se desviar, não sabendo precisar se também havia garrafões na faixa de rodagem da esquerda. Tal facto foi referido na fundamentação da matéria de facto, não constando, porém, desta. E, quanto a nós, não tinha de o ser, sobretudo nos termos defendidos pelo recorrente. Com efeito, tal facto não só não tem interesse para a decisão, como também não poderia dela constar nos termos defendidos pelo recorrente, ou seja, que na faixa de rodagem mais à esquerda também havia garrafões espalhados, tal como foi esclarecido na fundamentação de facto da decisão recorrida. Não se trata de um facto com interesse para a decisão, por forma a que tivesse de ficar a constar da matéria de facto provada, não significando a sua omissão o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada invocado pelo M.º P.º.
Segundo os autores acima referidos, na obra citada, págs. 740 e 741, ocorre o erro notório na apreciação da prova quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida.
Tal como o vício a que anteriormente nos referimos, também este tem de resultar do texto da decisão recorrida.
Como exemplos de erro notório na apreciação da prova, temos o caso de se dar como provado que determinada pessoa está num certo local a determinada hora e, ao mesmo tempo, se dá como provado que, poucos minutos depois, está num outro lugar tão distante do primeiro que seria impossível a deslocação entre os dois em tão curto período de tempo.
Defende o recorrente que a decisão recorrida padece de tal vício por não ter sido dado como provado que “momentos antes do 2.º embate, uma viatura de matrícula francesa, circulando na faixa da esquerda, conseguiu travar, imobilizar e aguardar para retomar a circulação pela direita”.
Ainda que tal facto tivesse resultado da discussão da causa, não constituiria o mesmo o erro notório na apreciação da prova a que alude o n.º2, al. c) do art. 410.º do C. P. Penal, mas erro de julgamento da matéria de facto considerada provada, ou seja errada apreciação da prova produzida na audiência de julgamento, que é coisa bem diferente.
Ao pretender que o facto acima referido fique a constar da matéria de facto provada, o que o M.º P.º está a fazer é a pôr em causa a forma como o tribunal apreciou a prova produzida na audiência de julgamento, questão sobre a qual nos vamos pronunciar mais adiante, desde já se adiantando que, mesmo considerando-se que se trata da invocação de um erro de julgamento, o recorrente carece de razão.
De referir que, ao contrário do defendido pelo M.º P.º, a circunstância de da matéria de facto considerada provada não constar aquele facto não impedia que se fizesse referência, na sua fundamentação, à existência dos garrafões na faixa de rodagem.
A fundamentação da matéria de facto tem necessariamente de assentar em factos, narrados pelas testemunhas ou resultantes de outros meios de prova. Tal não significa que todos os factos narrados pelas testemunhas tenham de ser levados à matéria de facto. Nesta apenas têm de constar os necessários para a decisão de direito.
XXX
B
O invocado erro de julgamento da matéria de facto provada diz respeito sobretudo às circunstâncias em que ocorreu o segundo embate.
Relativamente a tais circunstâncias, resulta da prova produzida na audiência de julgamento (e da fundamentação de facto da decisão recorrida) que são essenciais para o seu esclarecimento as declarações do arguido C.......... e os depoimentos das testemunhas H.........., residente nas imediações do local em que ocorreu o acidente e que, tendo-se apercebido do primeiro embate, se dirigiu para o local, tendo presenciado o segundo, e D.........., que seguia na mesma auto-estrada, no sentido Braga Porto, a qual, ao passar no local depois do primeiro embate, parou, tendo presenciado o segundo.
Com interesse para a decisão de facto, declarou o arguido C.......... o seguinte: seguia pela faixa da esquerda, a ultrapassar carros que seguiam pela direita, a mais de 90 km/hora; apercebeu-se de um obstáculo a muito poucos metros, mas não viu qualquer sinal indicador de perigo; depois do embate abriram-se os “airbags” e não viu mais nada; não pode afirmar em que veículo bateu, pois apenas se apercebeu de uma mancha branca.
No que diz respeito a tais circunstâncias, referiu a primeira testemunha, no essencial, o seguinte: após o primeiro embate e uma conversa rápida entre o arguido B.......... e o assistente G.........., este dirigiu-se para a carrinha em que se fazia transportar a fim de ajudar o filho a sair; o movimento de automóveis não era intenso; apesar disso, a determinada altura formou-se uma fila de trânsito sem que, no entanto, os automóveis parassem, com excepção de um; entretanto, surgiu um automóvel pela faixa da esquerda que fez uma derrapagem brusca, mas conseguiu passar, o mesmo tendo acontecido com um outro, pouco depois, tendo-lhe parecido que este ainda terá tocado na carrinha; entretanto, surgiu o veículo conduzido pelo arguido C.........., que embateu na traseira da carrinha; não pode precisar se algum automóvel ligou os quatro piscas, mas se isso aconteceu foi depois do segundo embate; a carrinha em que seguia o assistente, após o acidente, ficou com os faróis ligados, projectando a luz no solo, o que lhe permitiu ver um líquido a correr, pensando que era sangue; o veículo conduzido pelo arguido C.......... trazia as luzes ligadas, pensando que era nos médios.
Ao contrário do que refere o M.º P.º na motivação do recurso, o depoimento desta testemunha mostra-se coerente, isento e convincente, apenas divergindo do depoimento da testemunha D.......... em pequenos pormenores que de forma alguma o inquinam.
A testemunha D.........., cujo depoimento também se mostra coerente, isento e convincente, referiu o seguinte: circulava na auto-estrada no sentido Braga-Porto, pela hemi-faixa de rodagem da direita; a determinada altura, depois de passar uma curva, apercebeu-se de que um veículo que seguia à sua frente ligou os piscas, tendo, por isso, reduzido a velocidade; entretanto, verificou a existência de garrafões na hemi-faixa de rodagem por onde circulava, tendo tido necessidade de se desviar de pelo menos dois deles, não podendo dizer se também havia garrafões na hemi-faixa de rodagem da esquerda; só se apercebeu da presença dos veículos intervenientes no primeiro embate quando já estava muito perto e por ter visto um vulto na berma da estrada; estava muito escuro, tendo ideia de que os veículos acidentados não tinham as luzes ligadas; ao aperceber-se de um vulto na berma do lado direito e de que teria havido um acidente, parou o seu veículo junto à berma do mesmo lado, com os piscas ligados, a pelo menos cerca de 100 metros do local do acidente, por uma questão de segurança, tendo voltado para trás pela berma; quando se encontrava a conversar com o condutor de um dos veículos do primeiro embate e com outra pessoa, ouviu um estrondo, só depois se dando conta que tinha havido um outro embate; desde que chegou ao local do primeiro embate e até que ocorreu o segundo decorreram cerca de 5 minutos, período de tempo durante o qual passaram alguns veículos pela faixa de rodagem mais à direita, veículos esses que abrandaram sem, no entanto, se ter formado uma fila, um dos quais ligou os piscas; houve um veículo que passou pela faixa de rodagem da esquerda, mas com dificuldades.
Face a tal prova, carece de razão o M.º P.º quanto pretende a alteração da matéria de facto nos segmentos referidos nas conclusões da motivação do recurso e bem assim quando pretende que determinados factos constantes da matéria de facto não provada fiquem a constar da matéria de facto provada.
A título de exemplo da sem razão do M.º P.º pode referir-se a alegada contradição entre o facto n.º3 da matéria de facto não provada e os factos n.ºs 7, 8 e 11 da matéria de facto não provada.
Com efeito, da prova produzida na audiência não resulta que o trânsito não pudesse circular pela faixa da esquerda, mas antes o contrário, embora com dificuldades, pelo que não se verifica a apontada contradição.
Aliás, tal questão encontra-se bem fundamentada na decisão de facto da sentença recorrida, como se pode verificar da mesma, acima transcrita.
Defende o recorrente que do facto n.º11 da matéria de facto provada deve constar também que a testemunha D.......... parou o seu veículo mais à frente em relação ao local do 1.º embate, deixando-o com as luzes ligadas e que a passagem do veículo que circulava com as luzes avisadoras de perigo ligadas ocorreu entre o 1.º e o 2.º embate, logo imediatamente antes de surgir o veículo conduzido pelo arguido C...........
Embora o M.º P.º não o refira expressamente, depreende-se que o interesse no acrescento deste facto seria demonstrar que o arguido C......... tinha possibilidades de se aperceber da presença dos veículos sinistrados.
É verdade que a testemunha D.......... referiu no seu depoimento que, tendo-se apercebido dos veículos sinistrados, parou o seu veículo mais à frente, deixando-o com as luzes ligadas, mas também é verdade que, por uma questão de segurança, o deixou a uma distância considerável, de pelo menos 100 metros, com receio de que acontecesse mais alguma coisa, como de facto veio a acontecer, voltando para trás pela berma da estrada. Tal circunstância não é determinante para se poder concluir que o arguido C.......... tinha possibilidade de se aperceber de tais veículos, por um lado, porque estes se encontravam junto da faixa separadora da auto-estrada, e por outro lado, porque o veículo da testemunha D.......... ficou estacionado junto da berma do lado direito e a uma distância bastante grande, por uma questão de segurança, como ela própria declarou.
Refira-se, por último, que a parte final do facto n.º 14 da matéria de facto provada não comporta qualquer conclusão, mas antes um facto.
C
Fundamentou o tribunal recorrido a decisão de direito nos seguintes termos:
III - ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS
1. Ao arguido C.......... é imputada a prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 69.º, nº1, al. a), e 137.º nº1 do Código Penal.
Em conformidade com a previsão incriminadora do nº1 do art. 137.º do C. Penal, “quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
A estrutura do tipo em presença é aparentemente simples e pode linearmente sintetizar-se pela forma seguinte: o respectivo sujeito activo pode ser qualquer pessoa, tratando-se, pois, de um crime comum; a conduta típica consiste em, através do emprego de qualquer meio ou mecanismo, suprimir a vida de outrem; ainda em sede de tipo objectivo, é necessário que a morte (desvalor de resultado) seja objectivamente imputável (num critério teleologico-normativo) à conduta violadora do cuidado devido.
Para que determinada conduta possa ser subsumida à materialidade objectiva do referido tipo incriminador é necessário que o agente tenha, por acção ou por omissão, realizado o resultado proibido por lei: a supressão da vida de outrem.
Neste sentido e uma vez que o evento ocasionado se distingue, em termos fenomenológicos, da conduta que lhe dá causa, pode dizer-se que o crime de homicídio negligente é, do ponto de vista da actuação do agente sobre o bem jurídico protegido, um crime material ou de resultado.
Tratando-se de responsabilidade negligente, o comportamento do agente haverá de configurar a violação de um dever objectivo de cuidado (cfr. art. 15.º do Cód. Penal), sendo este o elemento normativo nuclear em torno do qual se estrutura o ilícito típico em presença.
O dever de cuidado é, “em termos dogmáticos, o ideal de um cânone de comportamento que a sociedade julga como o mais adequado à protecção de bens jurídico-penais” [Faria Costa, O Perigo em Direito Penal, Coimbra Editora, p. 478] e os crimes negligentes inscrevem-se, justamente em razão da imprecisão do conceito, na categoria dos chamados tipos abertos.
O dever objectivo de cuidado não tem uma origem necessariamente formal, bastando a sua idoneidade, em abstracto, para, em face das concretas circunstâncias do caso, evitar o resultado proibido.
Pese embora o que ficou dito, um esforço de sistematização é, todavia, possível, podendo reconduzir-se o dever objectivo de cuidado ou diligência aos usos e normas jurídicas associadas ao exercício de um certo ofício ou actividade, às normas ou regulamentos que visam prevenir perigos - como justamente sucede com as disposições do Código da Estrada - e, finalmente, aos usos e à experiência comum com vista à adopção de determinadas cautelas e cuidados a fim de evitar a produção do resultado (cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal I, 1971, pg.425 e ss.).
Seja, qual for, pois, a fonte de que emane, são dois os planos em que, conforme vem sendo consensualmente entendido, se estrutura o dever objectivo de cuidado: postula por um lado, um cuidado interno, um dever de representar ou prever o perigo para o bem jurídico tutelado e de valorar correctamente esse perigo, o seu processo causal e as suas consequências, sendo certo que esse perigo só surge quando se ultrapassam os limites do risco permitido; manifesta-se, por outro lado, num cuidado externo, ou seja, num dever de adoptar uma conduta adequada a evitar esse perigo, quer omitindo acções perigosas, quer actuando prudentemente em situações que, pese embora perigosas, são toleradas pela ordem jurídica (risco permitido), quer munindo-se, aquando da adopção de uma conduta de risco, dos conhecimentos que permitam empreender essa conduta com segurança [vide, por todos Jescheck, Tratado de Derecho Penal, p. 525].
E, uma vez que o conceito de cuidado a que se refere o dever em causa é ele próprio objectivo, o padrão aferidor da diligência exigível deve procurar-se, através de um juízo ex ante, no cuidado que é requerido na vida de relação social relativamente ao comportamento em causa. O que supõe a formulação de um juízo normativo, resultante da comparação entre a conduta que devia ter adoptado um homem razoável e prudente, inserido no âmbito de actividade, munido dos conhecimentos específicos do agente e colocado na sua posição, e a conduta que este efectivamente observou (vide neste sentido e por todos, Ac. RE de 4/2/92, CJ, T I, p. 291).
Este juízo normativo é integrado por dois elementos: um elemento intelectual, segundo o qual é necessária a consideração de todas as consequências da acção que, num juízo razoável (objectivo), eram de verificação previsível (previsibilidade objectiva), e um outro, valorativo, segundo o qual só será contrária ao direito a conduta que vai além da medida socialmente adequada (risco permitido) (cfr. Muñoz Conde, Teoria General del Delito, 1984, pág. 68, 71s.)
De acordo com a perspectiva seguida pela acusação, a premissa maior, a norma de cuidado que fundamentará a criminal responsabilização do arguido, deverá encontrar-se na previsão dos arts. 24.º, nº1, e 25.º nº1, al. i), do C. Estrada.
Atenta a apurada factualidade, torna-se claro que na conduta do arguido não se surpreende a violação de qualquer das referidas disposições, pois que se não provou que se tenha formado, na via à direita daquela em que aquele circulava, e no sentido da sua marcha, uma fila de trânsito de que os condutores que seguiam naquele sentido se podiam aperceber desde pelo menos cerca de 300 metros antes do local do primeiro embate, ou que o trânsito na Auto-Estrada A3 no sentido Braga/Porto passara após o primeiro embate a circular apenas pela via de trânsito mais à direita e a velocidade reduzida, ou que os veículos que o veículo do arguido ultrapassou circulassem integrando fila de trânsito, em velocidade moderada e alguns com as “luzes avisadoras de perigo” ligadas, ou, por fim, que o arguido não atentasse nas “luzes avisadoras de perigo” de outros veículos e não tomasse face aos mesmos as devidas precauções.
Pelo contrário, provou-se que o «triângulo» sinalizador de perigo, após o primeiro acidente, não estava colocado na via de circulação, e que, no momento em que o veículo do arguido C.......... colidiu com o veículo QQ-..-.., não havia fila de trânsito na hemi-faixa direita.
Assim sendo, relativamente à conduta de tal arguido provou-se apenas que o mesmo seguia com o veículo que conduzia pela via de trânsito mais à esquerda a velocidade não inferior a 100 Km/h, agindo com falta de atenção, por força do que só se apercebeu e avistou os obstáculos existentes na via em que seguia - veículos QQ-..-.. e RH-..-.. e condutor e ocupante do primeiro - quando junto deles chegou, não os tendo evitado ou feito parar o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente, não tendo travado e daí decorrendo o segundo acidente acima descrito e as respectivas fatais consequências referidas.
Mais se provou que a obstrução da via de trânsito mais à esquerda pelos veículos sinistrados era visível apenas à distância das “luzes de cruzamento (médios)”, de cerca de 30 metros.
Sendo estes os dados, verifica-se que o arguido apenas violou o dever geral de cuidado que se pode retirar do nº2 do art. 3.º do C. Estrada, ao não agir com a atenção que lhe permitiria ver os obstáculos na via a 30 metros de distância e a eles reagir.
No entanto, tendo em conta as tabelas expostas por A. A. Tolda Pinto (“Código da Estrada Anotado”, págs. 68 e 69), verifica-se que a distância percorrida (para quem siga, como no caso dos autos o arguido C.........., à velocidade de 100 Km/h) apenas no decurso do tempo reflexo de ¾ de segundo (tempo necessário até ser accionado o travão, depois de avistado o obstáculo) é já de 20,82 metros, variando as distâncias de paragem (conforme os travões que equipem o veículo) ao obstáculo entre 42,50 metros e 50 metros, ou seja, variando as distâncias totais de paragem entre 63,32 metros e 70,82 metros.
Consequentemente, terá de concluir-se que, ainda que o arguido tivesse avistado os veículos acidentados à distância de 30 metros, nunca poderia ter conseguido parar o seu veículo no espaço livre e visível à sua frente, não havendo dados que nos permitam por qualquer forma concluir que lhe era exigível lograr desviar-se dos referidos veículos (tendo havido alusão a veículos que o conseguiram, desconhece-se totalmente quais as razões de tal sucesso: podiam ser conduzidos por condutores com especiais habilitações e perícia, podiam seguir a velocidade inferior ou bastante inferior à do arguido, podiam ter-se apercebido a maior distância do obstáculo, por seguirem, eventualmente, com as luzes de estrada - “máximos” - ligadas), sendo o embate, portanto, inevitável.
Assim sendo, entendemos que para esclarecer a questão da imputabilidade do resultado à conduta do arguido tem, neste momento, de trazer-se à colação a doutrina da imputação objectiva do resultado a uma conduta.
Esta doutrina veio, como se sabe, estabelecer restrições à teoria da causalidade adequada (e aos resultados excessivamente amplos, de ligação de um resultado a uma conduta, a que conduz), prescrevendo (a primeira) que o resultado só é objectivamente imputável à conduta quando ela produz um risco proibido de ocorrência do resultado e o processo que vem a causar este resultado representa o desenvolvimento daquele risco proibido.
Ora, um dos princípios de exclusão da imputação que aquela doutrina introduziu como limitação à teoria da causalidade adequada é o princípio do comportamento lícito alternativo.
Assim, de acordo com este princípio (e aplicando-o ao caso dos autos), a imputação do resultado (no caso, a morte) à conduta exclui-se se, quando o agente viola determinada norma de cuidado, se constata que mesmo obedecendo a essa norma (que estabelece um dever geral de usar de atenção na condução estradal) o resultado se viria a produzir - no caso dos autos, o embate era, como vimos, inevitável, ainda que o arguido seguisse com a atenção que lhe permitisse ver o obstáculo a 30 metros de distância, não havendo qualquer razão para concluir que o magro espaço de travagem (pouco mais de 9 metros) que o arguido teria até àquele evitaria o resultado morte.
Face ao exposto, terá de concluir-se que o resultado morte não é imputável à conduta do arguido C.........., que terá de ser absolvido da prática do crime de homicídio por negligência que lhe é imputado.

2. Ao arguido B.......... é imputada a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 69.º, nº1, a) e 292º do Código Penal, e, em concurso real com o anterior, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado pelo resultado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 69º nº 1 a), 291º nº 1 a) e b) e nº 2 e art. 294º, este último por remissão para o antecedente art. 285º do Código Penal.
Em primeiro lugar, há que dizer que, em nosso entender, haver relação de consunção entre o crime de condução perigosa de veículo rodoviário agravado pelo resultado imputado ao arguido e o crime de condução de veículo em estado de embriaguez que lhe é também imputado, pois que o preenchimento do primeiro tipo legal (art. 291.º, nº1, al. a), do C. Penal), concretamente mais grave, inclui o preenchimento do segundo tipo legal (art. 292.º do C. Penal), concretamente menos grave (ver, quanto a esta matéria, a título de exemplo, Faria Costa, “Formas do Crime”, in “Jornadas de Direito Criminal” do Centro de Estudos Judiciários, págs. 177 e segs.).
Assim, terá desde logo de excluir-se a punição do arguido B.......... pelo crime p. e p. pelo art. 292.º do C. Penal, caso se verifiquem os pressupostos da prática do crime p. e p. pelo art. 291.º, nº1, als. a) e b), do C. Penal.
E, efectivamente, entendemos que a apurada conduta do arguido preenche, sem necessidade de quaisquer especiais considerações a este propósito, os elementos típicos do art. 291.º, nº1, als. a) e b) do C. Penal, sendo-lhe imputável, a título de negligência, o resultado morte (de I..........) a que se refere o art. 285.º do C. Penal, aplicável por remissão do art. 294.º, nº3.
Com efeito, especificamente no que diz respeito a esta imputação, provou-se que foi a sua conduta inconsiderada, imprevidente e violadora das regras de circulação rodoviária que provocou o primeiro acidente com o veículo QQ-..-.., e assim criou a situação de perigo que veio a facilitar a segunda colisão ocorrida com o veículo ..-..-HJ conduzido pelo arguido C.........., da qual veio a resultar a morte do condutor I...........
Ora, tal equivale a dizer que o aludido resultado lhe é imputável (à sua conduta negligente) não só em termos de causalidade adequada, mas mesmo em termos de imputação objectiva.
Assim, revertendo ao caso dos autos o que acima se expôs, verifica-se que a conduta do arguido B.......... provocou uma situação (o primeiro embate e suas consequências) que produziu um risco proibido (por aumento insuportável do risco permitido inerente à circulação rodoviária) de produção do resultado fatal, sendo o segundo embate e as suas funestas consequências (ou seja, o referido resultado fatal) um desfecho previsível (e não uma ocorrência fortuita), uma concretização, do aludido risco proibido criado pelo primeiro embate.
Face ao exposto, terá o arguido de ser condenado pela prática do crime que lhe é imputado.
Assim sendo, tendo em conta o disposto pelo art. 69.º, nº1, al. a) do C. Penal (na redacção anterior à Lei nº 77/2001, pois que esta agravou a moldura abstracta da sanção acessória, sendo aquela aplicável como lei vigente à data da prática dos factos), e surpreendendo-se na apurada condução do arguido a violação grosseira das regras do trânsito rodoviário, tem aquele também de sofrer a proibição de conduzir ali prevista.”
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Dispõe o n.º5 do art. 425.º do C. P. Penal que os acórdãos absolutórios enunciados no artigo 400.º, n.º1, alínea d), que confirmem decisão de 1.ª instância sem qualquer declaração de voto podem limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada.
Relativamente ao arguido C.........., estamos inteiramente de acordo com a decisão da 1.ª instância de o absolver da prática de um crime de homicídio por negligência por que havia sido acusado.
Deste modo, com os fundamentos constantes da decisão recorrida quanto a tal questão, acima transcritos e para os quais remetemos, deve ser negado provimento ao recurso.
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A outra questão de direito suscitada pelo M.º P.º diz respeito à sua discordância quanto à agravação pelo resultado do crime de condução perigosa de veículo rodoviário por que o arguido B.......... foi condenado.
Estatui o art. 285.º do Código Penal, aplicável ao caso ex vi art. 294.º, n.º3, do mesmo código, que se dos crimes previstos nos artigos 272.º, 273.º, 277.º, 280.º, ou 282.º a 284.º, resultar morte ou ofensa à integridade física grave de outra pessoa, o agente é punido com a pena que ao caso caberia agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
Da decisão recorrida resulta que a agravação pelo resultado do crime por que o arguido B.......... foi condenado foi fundamentada no facto de lhe ter sido imputado, a título de negligência, o resultado morte da vítima I...........
Para que o arguido B.......... pudesse ser condenado pelo crime agravado pelo resultado, no caso, a morte da vítima I.........., era necessário que tal resultado – morte - pudesse ser imputado ao perigo por si criado com a sua conduta.
Não é o caso.
Na verdade, a morte da vítima I.......... ficou a dever-se ao facto de o veículo por si conduzido ter sido embatido pelo veículo conduzido pelo arguido B...........
A morte da vítima só indirectamente é que lhe pode ser imputada.
A causa directa da morte foi o embate provocado pelo veículo conduzido pelo arguido B...........
Assim, a pena aplicável ao arguido B.......... é a de prisão até dois anos ou de multa até 240 dias, ou seja, a moldura penal abstracta deixa de ser agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
A determinação da medida concreta da pena foi fundamentada nos seguintes termos:
“Ao crime cometido pelo arguido B.......... corresponde, tendo em conta as disposições conjugadas dos arts. 69.º, nº1, al. a), 291.º, nº1, als. a) e b), e nº2,. 294.º, este último por remissão para o art. 285.º, 41,º, nº1 e 47.º, nº1, todos do Código Penal, uma moldura penal abstracta de 1 mês e 10 dias a 3 anos de prisão ou 13 a 360 dias de multa.
Estando prevista uma pena de multa em alternativa à pena de prisão, haverá que escolher, desde logo, a espécie de pena a aplicar. O critério fornecido pelo art. 70.º aponta para a preferência pela pena não privativa da liberdade, sempre que ela realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Estas, por sua vez, de acordo com o que parece ser o melhor entendimento (hoje expressamente consagrado no art. 40.º), são exclusivamente preventivas, de prevenção geral e especial. A prevalência tem de ser dada à prevenção especial de socialização, por ser ela que justifica, político-criminalmente, o movimento de luta contra a pena de prisão. Assim, o tribunal só deve recusar a aplicação da pena de multa se, do ponto de vista desta prevenção, se mostrar necessária ou mais conveniente a pena de prisão. O papel que aqui joga a prevenção geral é o de conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, estabelecendo um limite às exigências de prevenção especial de socialização.
No caso dos autos, conduzindo o arguido alcoolizado em plena auto-estrada (onde, por se atingirem maiores velocidades, é enormemente potenciada a gravidade das consequências da condução menos hábil que a embriaguez acarreta), e considerando o verdadeiro flagelo constituído pelo número de acidentes (muitos deles com vítimas mortais) que ao longo dos anos ocorrem nas estradas portuguesas, tem de entender-se que as exigências de tutela mínima do ordenamento jurídico são de molde a obstaculizar a opção pela pena de multa, a qual, atenta a gravidade dos factos praticados, é insuficiente para a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma violada, pelo que o tribunal opta pela aplicação de pena de prisão.
Passando a determinar a medida concreta da pena de multa, prescreve o art. 71.º, nº1 que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. Desta norma se retira o critério norteador da tarefa de que nos ocupamos, e que se pode sintetizar da seguinte forma: a medida concreta da pena deverá ser encontrada, entre o ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos da comunidade e o limiar mínimo em que essa tutela ainda é eficaz (“moldura de prevenção”), através do recurso a considerações de prevenção especial de socialização, não podendo a pena, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa do arguido. Aquela “moldura de prevenção” é fornecida pela prevenção geral positiva ou de integração, que, tal como já foi aflorado, se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade e vigência da norma infringida.
O nº2 do referido art. 71.º indica, exemplificativamente, as circunstâncias à luz das quais se analisará a factualidade relevante, tendo sempre em mente o enunciado critério geral, de forma a chegar à pena concreta a aplicar, sendo certo que elas podem ser relevantes, simultaneamente, quer à luz de considerações de prevenção, geral ou especial, quer à luz de considerações de culpa, podendo resultar, da mesma circunstância, consequências antinómicas em sede de medida da pena, se for vista à luz de considerações de uma ou de outra índole.
Analisando a conduta do arguido, e tendo em conta sobretudo, a taxa de alcoolémia com que o arguido conduzia e que o fazia de noite (altura em que, por haver menor visibilidade, devem ser acrescidos os cuidados na estrada), encontra-se indiciada uma ilicitude média, sendo de idêntico grau a culpa do arguido.
A isto se alia a intensidade do dolo, na modalidade de dolo directo (relativamente à condução em estado de embriaguez), elevando-se, por esta via, a culpa do agente, sendo que, no que respeita à negligência com que actuou, deve ter-se em conta a forte possibilidade de criação de perigo, quer de colisão imediata, quer de ulteriores colisões (e suas graves, ou mesmo fatais, consequências) que a condução em estado de embriaguez acarreta.
O arguido não tem antecedentes criminais, podendo o crime praticado ser considerado um facto isolado numa vida em geral conforme ao dever-ser jurídico-penal, o que diminui consideravelmente as exigências de prevenção especial.
O arguido está socialmente inserido, o que faz também diminuir as exigências de prevenção especial.
Tudo ponderado, considera-se adequado e justo aplicar ao arguido uma pena de 9 meses de prisão.
No entanto, a execução da pena de prisão que entendemos aplicável ao arguido é, em nosso entender, susceptível de ser suspensa, por se verificarem no caso concreto os pressupostos previstos pelo art. 50.º do C. Penal para tal suspensão, sendo, portanto, um dever deste tribunal a ela proceder.
Por um lado, verifica-se o pressuposto formal estabelecido por aquela disposição, dado que a pena de prisão aplicada ao arguido é inferior a três anos.
Por outro lado, entendemos verificar-se também o pressuposto material da suspensão, atentas, sobretudo, a inserção social do arguido e a ausência de criminais, que fazem concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (exclusivamente preventivas, de prevenção geral e especial, tal como dispõe o art. 40.º do C. Penal), bastando para afastar o agente da criminalidade (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal Português”, pág. 342 e seg.).
Assim sendo, determina-se a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, fixando-se o período de suspensão em 2 (dois) anos, nos termos do aludido art. 50.º.
Quanto à sanção acessória de proibição de conduzir, fixa-se a mesma, atentas as considerações feitas a propósito da fixação da pena concreta e aqui aplicáveis, em 6 meses.”
Tal fundamentação não foi posta em causa no recurso.
O arguido B.......... foi condenado numa pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução por um período de 2 anos.
Assim, tendo em conta que os limites mínimo e máximo aplicáveis são inferiores aos que foram tidos em conta na decisão recorrida, impõe-se a redução da pena aplicada ao arguido B.........., reputando-se como justa e adequada uma pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos.
Relativamente à inibição de conduzir, entendemos que se devem manter os 6 meses fixados na 1.ª instância.
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Nesta conformidade, concede-se parcial provimento ao recurso e, em consequência: a) altera-se a qualificação jurídica da matéria de facto no que diz respeito ao arguido B.........., que se condena na pena de 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução, pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. p. nos termos do art. 291.º, n.º1, al. a) do Código Penal; b), mantém-se no mais a decisão recorrida; c) ordena-se a remessa de boletins ao registo criminal.
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Porto, 27 de Outubro de 2004
David Pinto Monteiro
Agostinho Tavares de Freitas
José João Teixeira Coelho Vieira
Arlindo Manuel Teixeira Pinto