Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
100889/08.9YIPRT.C1.P1
Nº Convencional: JTRP00043022
Relator: AMARAL FERREIRA
Descritores: CESSÃO DE CRÉDITO
PERFEIÇÃO DO CONTRATO
CONTRATO DE TRESPASSE
EXCEPTIO NON RITE ADIMPLETI CONTRACTUS
Nº do Documento: RP20091008100889/08.9YIPRT.C1.P1
Data do Acordão: 10/08/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: REVOGADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO - LIVRO 812 - FLS 23.
Área Temática: .
Sumário: I – A cessão de créditos é oponível ao devedor por via da citação para a acção.
II – As qualidades do estabelecimento trespassado, necessárias ao seu fim ou asseguradas pelo trespassante (nos termos do contrato celebrado), devem existir no momento em que se processa a entrega ao trespassário, não obstando à invocação da “exceptio non rite adimpleti contractus” pelo trespassário o não pagamento das prestações, no prazo estipulado no contrato de trespasse.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: TRPorto.
Apelação nº 100889/08.9YIPRT.C1.P1 - 2009.
Relator: Amaral Ferreira (486).
Adj.: Des. Ana Paula Lobo.
Adj.: Des. Deolinda Varão.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.

1. No Balcão Nacional de Injunções, instaurou B………., domiciliado na Rua ………., nº ., ………., Estarreja, contra C………., residente na Rua ………., nº .., ………., Murtosa, em formulário próprio, processo de injunção para haver deste o pagamento da quantia de € 12.900, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde 1/5/2007, calculando os vencidos em 535,79 €.
No requerimento de injunção fez constar, como fundamento da sua pretensão, que, por força de contrato de trespasse com ela celebrado, o requerido adquiriu à sociedade “D…………, Ldª” o estabelecimento comercial denominado “E……….”, sito na Rua ………., nº ., ………., pelo preço global de 32.500 €, do qual o remanescente de 15.000 €, devia ser pago pelo requerido em prestações mensais e sucessivas de 300 € cada, a contar do mês de Março de 2006, e que, desde o mês de Abril de 2007, o requerido deixou de proceder ao pagamento das prestações, encontrando-se por liquidar 12.900 €, sendo que, como é do conhecimento e foi aceite pelo requerido, a trespassante lhe cedeu a totalidade do crédito que detinha sobre ele, até porque o requerido lhe pagou as prestações vencidas, no montante de 2.100 €.

2. O requerido deduziu oposição em que conclui pela sua absolvição do pedido, na qual, depois de defender a nulidade do contrato de trespasse, por não ter sido outorgado por escritura pública, aduz que a cláusula 2ª, quando refere «bem como todas as licenças, alvarás e direito ao arrendamento” contém uma falsidade, já que não tinha licença de utilização, como veio a constatar no ano de 2007, e a trespassante, de que o requerente era sócio, nunca lhe entregou o alvará do estabelecimento, a fim de proceder aos legais averbamentos, como lhe solicitou desde Fevereiro de 2006 até Julho de 2007, e que na sequência de visitas periódicas das autoridades públicas, em que lhe eram solicitadas quer a licença, quer o alvará, contactou ele mesmo a senhoria no sentido esta lhos entregar, mas sem resultado, e, tendo aparecido vários interessados no trespasse do estabelecimento, os mesmos acabaram por se desinteressar pela falta dos referidos documentos, pelo que deixou de pagar a renda, tendo posteriormente acordado com a senhoria a entrega do locado, acrescentando ainda que desconhece a qualidade de cessionário do requerente, mas que inexiste o crédito da cedente.

3. Remetidos os autos à distribuição, teve lugar audiência de julgamento, a que se procedeu com gravação e observância do formalismo legal, vindo a final a ser proferida sentença que, depois de declarar os factos provados, julgou a acção procedente e condenou o R. a pagar ao A. a quantia de € 12.900, acrescida de juros de mora vencidos desde 1/5/2007, à taxa de 4% ao ano, bem como dos vincendos, até integral e efectivo pagamento.

4. Inconformado, apelou o requerido, que formulou nas respectivas alegações, com as quais juntou dois documentos - fls. 115 a 120 -, destinados a provar a ilegitimidade do apelado, as seguintes conclusões:
1ª: O contrato de trespasse envolveu um cumprimento defeituoso por parte da empresa trespassante.
2ª: A empresa trespassante não entregou, nem tão pouco o Autor, ora apelado, a licença de utilização do imóvel, nem tão pouco o alvará de licença sanitária.
3ª: O alvará de licença sanitária, emitido pela Câmara Municipal de Estarreja, nunca esteve em nome do apelado, nem sequer da empresa de que o mesmo foi sócio, a sociedade trespassante.
4ª: O Autor, ora apelado, é parte ilegítima atento o facto de haver recebido da firma “D………., Ldª” o montante de quinze mil euros, e agora vai demandar o ora apelante por crédito por si já totalmente recebido.
5ª: O Autor, ora apelado já não é detentor de qualquer crédito sobre o ora Apelante, por o já haver recebido da firma de que foi sócio “D………., Ldª”.
6ª: Verifica-se a “exceptio non rite adimpleti contractus”, mesmo contra a firma de que o apelado foi sócio.
Nestes termos e nos que muito doutamente não deixarão de ser supridos deve:
A - A douta sentença ora posta em crise ser revogada e proferido douto acórdão que declare a acção integralmente não provada e improcedente, absolvendo o ora apelante de todos os pedidos.
B - Mais deve o douto acórdão a proferir condenar o apelado, pela notória e grosseira litigância de má fé, em multa e condigna indemnização.

5. Não tendo o requerente apresentado contra-alegações, colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO.

1. Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1) Em 28 de Fevereiro de 2006, o autor na qualidade de gerente da sociedade “D………., Ldª”, e o réu C………., ajustaram entre si, por escrito, que a primeira trespassa ao segundo outorgante o estabelecimento comercial denominado “E……….”, sito na Rua ………., nº ., em ………., que se encontra a funcionar no rés-do-chão do prédio inscrito na matriz urbana sob o artº 1687º da freguesia de ………., incluindo todos os móveis, utensílios, produtos e demais equipamentos que na presente data se encontram no mesmo estabelecimento, bem como «todas as licenças, alvarás e direito ao arrendamento (…)», pelo preço de € 32.500, sendo a quantia de € 7.500 a pagar na data da assinatura da promessa de trespasse, a quantia de € 10.000 a pagar na data da assinatura do presente contrato, dando a primeira outorgante quitação com a assinatura do mesmo, e o remanescente de € 15.000 a pagar em prestações iguais no valor de € 300, através de cheques pré-datados a entregar na data da assinatura do presente contrato.
2) Mais convencionaram que a primeira outorgante reserva para si a propriedade do aludido estabelecimento até integral pagamento do preço e que as referidas prestações serão pagas à primeira outorgante, sendo que não são devidos juros pelo segundo outorgante.
3) Em 11 de Agosto de 2007, a solicitadora de execução procedeu à notificação judicial avulsa do réu, conforme notificação de fls. 15 a 18, cujos dizeres se dão por integralmente reproduzidos.
4) Em 1 de Junho de 2004, F………. e B………., ajustaram entre si, na qualidade de senhoria e inquilino, o arrendamento para comércio do rés-do-chão do prédio urbano sito na Rua ………., nº ., em ………., inscrito na matriz urbana sob o artº 1687º, daquela freguesia, pela renda mensal de € 350.
5) Mais convencionaram que o arrendamento seria efectuado sem licença de utilização, que se encontra já requerida na Câmara Municipal de Estarreja, uma vez que o inquilino tem urgência na celebração do arrendamento. Mais convencionaram que as obras que forem impostas pelas autoridades administrativas, na sequência de projecto que se encontra nesta data em fase de aprovação na Câmara Municipal de Estarreja, serão da responsabilidade da senhoria, sendo que se por motivo alheio à vontade da senhoria e do inquilino, a Câmara Municipal se negar a atribuir as licenças e alvarás inerentes ao funcionamento do estabelecimento, o inquilino compromete-se a não exigir qualquer responsabilidade ou indemnização à senhoria.
6) Em 1 de Junho de 2004, F………. e B………., ajustaram entre si transferir a posição de inquilino no mesmo arrendamento para a sociedade comercial “D………., Ldª”.
7) O autor não entregou a licença de utilização do dito estabelecimento comercial ao réu, porque existia um projecto de obras para esse estabelecimento na Câmara Municipal de Estarreja, respeitante a duas casas de banho, sendo uma para deficientes, e a um armazém, e só após aprovação das mesmas por aquele município seria concedida a licença de utilização.
8) Nos anos de 2006 e 2007 não foi concedida por aquele município licença de utilização relativamente ao prédio rés-do-chão onde se encontra a funcionar o dito estabelecimento.
9) Em 5 de Novembro de 1986, a Câmara Municipal de Estarreja deliberou conceder a G………. o alvará de licença sanitária para explorar o café snack bar, sito no ………., freguesia de ………., sendo que em 17 de Março de 1997 foi deliberado pela mesma Câmara Municipal averbar aquele alvará o nome de H………. e I………. e, por despacho do vice-presidente, de 2 de Junho de 2008, foi averbado ao mesmo alvará o nome de “J………., Ldª”.
10) O autor não entregou o alvará sanitário ao réu.
11) O autor recebeu do réu a quantia de € 7.500, a título de sinal, a quantia de € 10.000 aquando da celebração do contrato de trespasse, e ainda a quantia de € 2.100, correspondente a sete prestações por conta do remanescente do preço do trespasse, encontrando-se por liquidar a quantia de € 12.900.
12) Em consequência do retardamento da entrega do alvará e da licença de utilização, o réu perdeu a oportunidade de realizar um contrato de trespasse com “K……….”, pelo mesmo valor, tendo sido confrontado com a entrega daqueles documentos pelas autoridades administrativas e fiscais.
13) O réu deixou de pagar a renda com o intuito de pressionar a senhoria, e por intermédio desta o autor e a empresa de que era sócio, para que lhe fossem entregues todos os documentos a que tinha direito.
14) Dá-se por integralmente reproduzido o teor do ofício de fls. 72 e seguintes.
15) Em 29 de Abril de 2006, em assembleia geral extraordinária da sociedade “D……….”, os sócios B………., L………. e M………., deliberaram que “em Março de 2006 houve regularização da parte do suprimento de B………. (lançamentos ….04, ….06 e ….07 da contabilidade), aquando do contrato de trespasse do estabelecimento denominado “E……….” de 28 de Fevereiro, com a entrega de € 9.100 em numerário e com a cessão de títulos de crédito ao mesmo, no montante global de € 15.000, tendo o referido B………. declarado que “confirma esta regularização de saldo”.
16) Dá-se por integralmente reproduzido o documento junto nesta sessão de julgamento em que é requerente F………., solicitando a aprovação do projecto de arquitectura e licença administrativa para efeito das obras a realizar no rés-do-chão onde se encontra instalado o dito estabelecimento comercial.
17) O réu explorou o estabelecimento comercial referido nos autos durante cerca de ano e meio.

2. Sendo pelas conclusões que se determina o objecto do recurso, e não podendo o Tribunal apreciar e conhecer de matérias que nelas se não encontrem incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso - artºs 684º, nº 3, e 690º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil - as questões suscitadas pelo apelante são a ilegitimidade do apelado, a excepção do não cumprimento do contrato e a litigância de má fé.

Ilegitimidade do apelado.

Como fundamento da sua pretensão de haver do requerido a quantia de € 12.900 e juros, o requerente invoca a cessão do crédito de € 15.000 que a sociedade “D………., Ldª” detinha sobre o requerido e relativo a parte do preço respeitante ao contrato de trespasse com ele celebrado em 28 de Fevereiro de 2006.
Não estando em causa e vindo provado - factos de II.1.11) -, que o requerido é ainda devedor da quantia de € 12.900, questiona ele, juntando os documentos de fls. 115 a 120, de que apenas agora diz ter tomado conhecimento, a legitimidade do requerente, por um lado porque, segundo alega, ele recebeu da sociedade trespassante o montante questionado e, como tal, não ser detentor de qualquer crédito sobre si, e por outro lado, porque deixou de ser sócio da firma “D………., Ldª”.
Vejamos.

Ocorre a cessão de um crédito quando o credor, mediante negócio jurídico, transmite a terceiro o seu direito. Verifica-se então, a substituição de credor originário por outra pessoa - modificação subjectiva da obrigação -, mantendo-se inalterados os restantes elementos da relação obrigacional (Almeida Costa, Noções Fundamentais de Direito Civil, 4ª edição, págs. 179 e segs.).
Nos termos do artigo 577º, nº 1, do Código Civil (diploma a que pertencerão os demais preceitos legais a citar sem outra indicação de origem) o “credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor…”.
Por seu turno, dispõe ainda o nº 1 do artº 582º que “na falta de convenção em contrário, a cessão do crédito importa a transmissão, para o cessionário, das garantias e outros acessórios do direito transmitido que não sejam inseparáveis da pessoa do cedente” e o artº 583º, nº 1, que “a cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite”.
Para o devedor cedido, a cessão é válida, desde que lhe haja sido notificada, mesmo extrajudicialmente, ou desde que ele a tenha aceite.
Por outro lado, e na medida em que a cessão representa uma simples transferência da relação obrigacional pelo lado activo, o devedor cedido pode valer-se, em face do cessionário (novo credor), dos meios direitos de defesa que lhe era lícito opor ao cedente (antigo credor), excepto os que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão (artº 585º).
A questão de saber se a notificação da operada cessão ao devedor constitui ou não requisito essencial à perfeição do contrato respectivo foi, e ainda é, alvo de ampla discussão doutrinal e jurisprudencial.
Para uma corrente jurisprudencial, a citação do devedor para a acção, não tem a virtualidade de suprir a falta da notificação judicial da cessão de créditos prevista no artº 583º, nº 1.
Neste sentido se pronunciou o Ac. do STJ de 9/11/2000, CJ/STJ, Tomo III, pág. 121, no qual podemos ler que “um dos elementos integrantes da causa de pedir, é, precisamente, o da notificação da cessão de créditos ou sua aceitação por parte do devedor quer isto dizer que, antes da citação, já tal elemento deverá fazer parte do elenco de factos articulados no petitório, para que, uma vez citado o devedor, tal facto esteja adquirido definitivamente para a causa, juntamente com os demais elementos que constituem a causa de pedir”.
Para outra corrente, com a citação para a acção do devedor ocorre a notificação judicial da cessão de créditos prevista no artº 583º, nº 1 - Acs deste Tribunal de 25/06/2001 e de 16/02/2006, www.dgsi.pt.
Para esta corrente jurisprudencial o que importa e o que a lei quis acautelar foi o conhecimento pelo devedor da efectivação da cessão. Ora esse conhecimento é transmitido ao devedor pela citação para a acção ou pela notificação da oposição.
Esta foi a posição adoptada no Ac. do STJ de 03/06/2004, www.dgsi.pt., no qual podemos ler:
“Com a citação para a acção, o réu tomou conhecimento da cessão que passou a ser-lhe oponível.
A inoponibilidade da cessão ao réu provocava, enquanto perdurasse, a inexigibilidade da sua dívida ao cessionário; mas com a citação e o início da eficácia da cessão, a dívida passava a ser imediatamente exigível pelo novo credor.
A citação do réu para a acção traz consigo, por conseguinte, a eficácia da cessão que o novo credor pode invocar e, por arrastamento, a exigibilidade da dívida que o réu vai ter que solver ao novo titular”.
Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, pág. 272, ponderando as diferentes posições conclui: “Parece assim bastante mais fácil de conciliar com a disciplina global do contrato de cessão a tese tradicional, que sustenta a eficácia translativa imediata do negócio (independentemente da sua notificação ao devedor), nas relações entre as partes…”.
Ponderando os argumentos de uma e outra das referidas correntes jurisprudenciais, sufraga-se o entendimento de que se verifica a cessão logo que efectuada a citação para a acção em cujo requerimento inicial é alegada a cessão de créditos.
Assim, invocando o requerente a cessão de créditos em sede de requerimento inicial da injunção, não necessita o credor-cessionário (no caso em apreço o requerente) de notificar previamente o devedor cedido (o requerido), por via judicial ou extrajudicial, de que foi efectuada a cessão de créditos.
A cessão de créditos é pois oponível ao devedor por via da citação para a acção.
Devendo, o devedor tem de pagar, independentemente de quem seja o credor, por via judicial ou extrajudicial.
A tanto obrigam os princípios de confiança do comércio jurídico e também de economia e celeridade processual, para além da crescente e razoável simplificação formal dos procedimentos.
Assim, a cessão efectuada entre o cessionário (o requerente) e a cedente (a sociedade “D………., Ldª”) do crédito que esta detinha sobre o requerido, nos termos constantes dos factos provados de II.1.15), produziu os seus efeitos em relação ao requerido a partir do momento em que este foi notificado do requerimento de injunção.

Perante o que se deixa exposto, é irrelevante para aferir da legitimidade do requerente o facto de, como se extrai do documento de fls. 116 a 120, junto com as alegações, e que consiste numa escritura de cessão de quotas da referida sociedade “D………., Ldª”, outorgada no Cartório Notarial de Estarreja em 30/6/2006, em que o requerente cedeu a quota que nela detinha, porquanto ele demandou a título individual, na qualidade de cessionário e não na de gerente da sociedade cedente, o requerido, sendo, consequentemente, parte legítima para demandar.
Na verdade, a legitimidade das partes é um pressuposto processual, isto é, um requisito de que depende dever o juiz proferir decisão sobre o mérito da causa, pois o processo deve correr perante os sujeitos que possam ser os efectivos destinatários daquela.
O artº 26º do Código de Processo Civil define a legitimidade através da titularidade do interesse em litígio: será parte legítima, como autor, quem tiver interesse directo em demandar, e será parte legítima, como réu, quem tiver interesse directo em contradizer (nºs 1 e 2).
Como critério supletivo, são considerados titulares do interesse relevante para efeito de legitimidade os sujeitos da relação material controvertida, tal como configurada pelo autor (artigo 26º, nº 3, do Código de Processo Civil).
“A legitimidade não é, pois, uma qualidade pessoal das partes... mas uma certa posição delas em face da relação material..., que se traduz no poder legal de dispor dessa relação, por via processual” (Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, página 83). Trata-se de saber se o demandante e o demandado, pela posição que ocupam em face da relação material debatida (partindo-se da premissa de que o direito invocado pelo Autor e o correlativo dever... imputado ao Réu existem) são as pessoas idóneas para conduzirem o processo. Não o sendo, há todo o interesse social em estimular o ingresso em juízo das pessoas para tal qualificadas: e esse é o objectivo capital da declaração de ilegitimidade.
A velha questão sobre como se afere a legitimidade mostra-se há muito ultrapassada, já que o artº 26º, nº 3, do Código de Processo Civil, na redacção que lhe foi dada pelo artº 1º do DL nº 180/96, de 25/9, ao reportar-se à relação jurídica controvertida «tal como é configurada pelo autor», que acolheu a tese já defendida por Barbosa de Magalhães de que para se aferir da legitimidade devia atender-se à relação jurídica tal como configurada pelo autor e não, como sustentava, v. g., Alberto dos Reis, à relação jurídica real, tal como veio a constituir-se entre as partes.
Mas o apelante questiona ainda a legitimidade do apelado porque, face ao documento de fls. 115, ele teria recebido da sociedade “D………., Ldª” o montante de € 15.000.
O documento em apreço, subscrito pelo requerente, consiste numa “Declaração” e contém os seguintes dizeres:
“Eu, B………., portador do Bilhete …, contribuinte fiscal …, declaro, para os devidos efeitos, que recebi da empresa D………., Ldª” …, o montante de 15.000 € (quinze mil euros), resultado da cessão de títulos de crédito relativos ao contrato de trespasse do estabelecimento da empresa denominado «E……….»”.
Ora, tal documento não tem a virtualidade de retirar legitimidade ao requerente.
Efectivamente, conjugado com os factos provados de II.1.15), o que dele se extrai (artºs 236º a 238º) é que os suprimentos que o requerente havia efectuado à sociedade foram regularizados com o recebimento de € 9.100 em numerário e € 15.000 através da cessão do crédito da sociedade no contrato de trespasse por ela celebrado com o requerido.
Daí que, não tendo o requerido pago a totalidade do crédito que sobre ele detinha a sociedade, no montante de € 15.000 e dos quais se encontram em dívida € 12.900, e por ela cedido ao requerente para pagamento dos suprimentos que lhe havia efectuado, parte dos quais era liquidado pelo crédito cedido, é o requerente parte legítima.

Excepção do não cumprimento do contrato.

A segunda questão suscitada pelo apelante é a excepção do não cumprimento do contrato, que faz integrar no facto de nem a empresa trespassante, nem o apelado, terem entregue a licença de utilização do imóvel, nem tão pouco o alvará sanitário que nunca esteve em nome da trespassante.
Como se referiu na questão anterior, ao abordarmos a cessão de créditos, na medida em que a cessão representa uma simples transferência da relação obrigacional pelo lado activo, o devedor cedido pode valer-se, em face do cessionário (novo credor), dos meios direitos de defesa que lhe era lícito opor ao cedente (antigo credor), excepto os que provenham de facto posterior ao conhecimento da cessão (artº 585º).
A excepção de não cumprimento prevista no artigo 428º, nº 1 (“se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”), é própria dos contratos bilaterais ou sinalagmáticos, de que resultam obrigações para ambos os contraentes ligadas por um vínculo de correspectividade, em que a obrigação ou obrigações de um dos contraentes tem como razão de ser a obrigação ou obrigações a cargo da outra parte. Por isso se diz que as obrigações são correspectivas ou interdependentes umas das outras e só a estas aproveita a excepção de não cumprimento do contrato.
Por regra, se as prestações tiverem prazos diferentes para serem realizadas, a exceptio não poderá ser invocada por quem deva cumprir em primeiro lugar, como dela não se poderá aproveitar a parte que estiver em mora.
A exceptio assegura o equilíbrio dos contraentes na execução do contrato ao permitir que um não cumpra sem que o outro cumpra também ou ofereça simultaneamente a sua prestação. Além de assegurar o equilíbrio das partes no contrato, funciona também como meio de as compelir ao cumprimento na medida em que cada uma delas pode recusar a sua prestação enquanto a outra não efectuar a que lhe compete, e seja por não querer cumprir seja por não poder fazê-lo.
Por outro lado, o recurso à excepção de não cumprimento não se limita ao caso de incumprimento integral; pode ser invocada quando há cumprimento parcial ou este é defeituoso, contanto que a falta não seja leve, insignificante ou irrelevante na economia do contrato, sob pena da pretensão do excipiens ser abusiva, por desproporcionada ao incumprimento da outra parte.
No caso dos autos, o apelante invoca a excepção de não cumprimento por lhe não terem sido entregues pela trespassante, nem pelo apelado, o alvará sanitário e a licença de utilização (funcionamento) do estabelecimento trespassado, o que, efectivamente, acontece, a que acresce, como também resulta dos factos provados, que nos anos de 2006 e 2007, não foi concedida pelo Município de Estarreja licença de utilização do rés-do-chão onde se encontra a funcionar o estabelecimento comercial “D……….”.
Constando do contrato escrito de trespasse que a trespassante trespassa o estabelecimento incluindo todas as licenças, alvarás e direito ao arrendamento, o cumprimento da trespassante (cedente do crédito) é defeituoso, o que, como se referiu, não obsta à recusa da prestação pela parte contrária, já que a exceptio funciona também em caso de cumprimento meramente parcial ou defeituoso.
Portanto, o estabelecimento comercial “D……….” vendido ao apelante não tinha condições legais de funcionamento, até porque, apesar de a senhoria F………., conforme documento junto em audiência - cfr. factos provados de II.1.16) -, ter requerido à Câmara Municipal de Estarreja a aprovação do projecto de arquitectura e licença administrativa para efeitos de obras a realizar no local onde se encontra instalado o estabelecimento, conforme informação daquele Município, junto a fls. 72 e seguintes e datado de 17/9/2008, tendo sido aberto o processo de obras nº 140/02, referente ao pedido de licenciamento para legalização de alterações levadas a efeito e remodelação/ampliação a levar a efeito no prédio com estabelecimento de bebidas designado por “Café Snack-Bar”, tal pedido foi alvo de pareceres técnicos de teor desfavorável, não tendo vindo a ocorrer qualquer decisão de deferimento ou emissão de alvará de algum tipo.
Mais informa, como consta dos factos provados, que nos anos de 2006 e 2007, não foi concedida pelo Município de Estarreja licença de utilização do rés-do-chão onde se encontra a funcionar o estabelecimento comercial “E……….”.
Aliás, devido ao retardamento da entrega do alvará e da licença de utilização, o réu perdeu a oportunidade de realizar um contrato de trespasse, pelo mesmo valor, tendo sido confrontado com a entrega daqueles documentos pelas autoridades administrativas e fiscais.
Verifica-se, assim, a desconformidade do estabelecimento com as normas legais (cfr. artº 11º e seguintes do DL nº 370/99, de 18 de Setembro, que estabelece o regime a que está sujeita a instalação dos estabelecimentos de comércio de produtos alimentares e outros), nomeadamente em questões de higiene e segurança, e consequentemente, não devia sequer estar em funcionamento, correndo o risco de, pela autoridade administrativa, para além da aplicação de coimas, vir a ser determinado o seu encerramento ou a interdição do exercício de actividade.
Não existindo tais licenças, que foram incluídas no trespasse, a cedente do crédito não realizou integralmente, ou na perfeição a sua prestação, pois que o estabelecimento não foi vendido como por ela declarado no contrato escrito de trespasse, pelo que ocorre cumprimento defeituoso da sua parte.
Sem as licenças em causa, o estabelecimento, cujo aproveitamento económico depende da sua abertura ao público, isto é, só serve ou só realiza a sua finalidade nessa circunstância, não pode funcionar, torna-se imprestável (não afastando esta conclusão a sua abertura ilegal e, portanto, com sujeição ao encerramento compulsivo).
É que o negócio celebrado foi o trespasse de um estabelecimento comercial, como um todo organizado, composto de elementos corpóreos e incorpóreos, destinado ao exercício de um comércio.
O trespasse é a transferência, definitiva e, por regra, onerosa, para outrem, juntamente com o gozo do prédio, da exploração de um estabelecimento comercial; sendo o trespasse oneroso, é a venda do estabelecimento comercial.
Pelo trespasse, é transferida a titularidade do estabelecimento, sendo esta a obrigação que contrai o trespassante, que só realiza a prestação a que se obriga mediante a entrega da coisa (o estabelecimento) nas condições, com as características ou qualidades que assegurou ao trespassário, de modo que a coisa realize o fim a que se destina.
Não afasta essa obrigação o facto da “venda” ter sido feita com reserva de propriedade, apenas se deferindo a transferência da propriedade do estabelecimento para momento posterior ao da data da celebração (artº 409º, nº 1), tendo lugar, nesta situação, a entrega imediata do estabelecimento ao trespassário para que este o possa usar e disfrutar (licitamente) regular e normalmente, e só a transferência da propriedade é deferida para o momento em que estiver integralmente pago o preço.
As qualidades do estabelecimento trespassado, necessárias ao seu fim ou asseguradas pela trespassante (nos termos do contrato celebrado), devem existir no momento em que se processa a entrega ao trespassário.
O estabelecimento foi vendido ao apelante por um preço, cujo pagamento constitui a obrigação contraída por este, parte do qual devia ser efectuado em prestações.
O contrato foi celebrado em Fevereiro de 2006 e o trespassário explorou o estabelecimento durante cerca de ano e meio, do que decorre que, naquela data, e não existindo convenção em sentido diverso, deveria ter as qualidades necessárias á realização do fim a que o estabelecimento se destinava, o que não sucedia.
A excepção de não cumprimento pode ser invocada eficazmente por qualquer dos contraentes quando a prestação e a contraprestação correspondente devam ser realizadas simultaneamente ou a prestação do “excipiens” deva ser feita depois, podendo este suspender a sua prestação até que a contraparte realize a prestação correspondente anteriormente vencida.
Conclui-se que, antes do apelante deixar de pagar as prestações em que foi fraccionado parte do preço do trespasse, já a trespassante estava em falta, pois o seu cumprimento é defeituoso, continuando a sua prestação defeituosa, impedindo o apelado de, regularmente, explorar o estabelecimento trespassado - neste sentido se pronunciou o Ac. deste Tribunal de 11/12/2008, www.dgsi.pt., subscrito pelos aqui relator e 1ª adjunta.
Portanto, o não pagamento das prestações no prazo estipulado no contrato não obsta à invocação da excepção de não cumprimento pelo trespassário, procedendo a questão.

Litigância de má fé.

Suscita o R., ora apelante, a questão da litigância de má fé do apelado, que faz integrar com a alegação de que ele, face à declaração que juntou com as alegações de recurso, ele tinha recebido da cedente “D………., Ldª” os remanescentes € 15.000 e, não obstante, continuou a receber, dele apelante, prestações várias por conta dos mesmos € 15.000.
A litigância de má fé processual tem uma noção específica que se aproxima da considerada má fé civil, apesar de manter um cunho próprio, pois assenta no que Alberto dos Reis chamava de deveres de colaboração e de probidade, Comentário ao CPC, III Vol., pág. 4 e ss..
A violação desses deveres releva apenas ao nível doloso ou da negligência grave (lides temerárias e comportamentos processuais gravemente negligentes), tal como consagrado no novo processo civil (artºs 455º e ss. do Código de Processo Civil).
Antes da reforma de 1995/96 propendia-se, inequivocamente, para a aproximação da má fé ao dolo, invocando-se a índole característica do processo.
Passou-se, na nova sistemática processual civil, na conjugação com o novo modelo processual de responsabilização e cooperação inter-subjectiva, a tipificar aqueles comportamentos processuais passíveis de obter um juízo de reprovação, abrangendo-se não só condutas dolosas como também as gravemente negligentes, determinantes de lesões na esfera jurídica das demais partes processuais, bem como da simultânea violação de interesse públicos, base da multa a que dão também lugar.
Prevê-se, dessa forma, a dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento se não devia ignorar, a alteração da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes para a decisão, de modo doloso ou gravemente negligente, a omissão grave do dever de cooperação e o uso reprovável dos instrumentos processuais.
A uma previsão da utilização maliciosa e abusiva do processo juntou-se agora um juízo de reprovação de atitudes processuais gravemente imprudentes, numa procura de elevação dos padrões éticos judiciários.
O dever da boa fé processual está, assim, instituído como um princípio geral do processo civil, segundo o qual os litigantes devem agir como pessoas de bem, isto é, usando, um para com o outro, de correcção, honestidade e lealdade.
A violação destes deveres, se dolosa ou gravemente negligente, é susceptível de consubstanciar uma conduta de má fé na litigância, nos termos do artº 456º, nº 2, do Código de Processo Civil quando a parte assuma qualquer dos comportamentos aí previstos, ou seja: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave no dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Deriva do preceito em apreço que, para que se esteja em face de litigância de má fé, é forçoso que o litigante, com dolo ou culpa grave, tenha assumido um, ou vários, dos comportamentos valorizados no mesmo normativo. Em qualquer das situações previstas na lei, a litigância de má fé se baseia, portanto, ou num comportamento processual deliberadamente abusivo do recurso à lide ou, pelo menos, num comportamento patentemente temerário ou desleixado em relação aos elementares deveres de boa conduta processual.
Assim caracterizada a litigância de má fé, mais não resta que concluir pela inexistência de tal tipo de litigância na conduta do apelado, assim improcedendo a questão.
Efectivamente, como se referiu ao apreciarmos a questão da ilegitimidade do apelado suscitada pelo apelante, do documento em causa junto com as alegações - documento de fls. 115 -, não resulta que o primeiro tenha recebido da trespassante € 15.000, montante do crédito que alegou ter-lhe sido cedido, e dos quais peticiona € 12.900, correspondentes às prestações em dívida no contrato de trespasse, mas sim que, com o recebimento desse montante declarava regularizado o montante dos suprimentos que havia efectuado à sociedade trespassante, de que era sócio.

III. DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogando a sentença recorrida, em julgar improcedente a acção e absolver o R. do pedido.
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Custas da apelação, e na 1ª Instância, pelo apelado.
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Porto, 8 de Outubro de 2009
António do Amaral Ferreira
Ana Paula Fonseca Lobo
Deolinda Maria Fazendas Borges Varão