Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
722/09.0TBSTS-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOÃO AREIAS
Descritores: QUINHÃO HEREDITÁRIO
BEM IMÓVEL
NECESSIDADE DE CONSENTIMENTO
CÔNJUGES
ALIENAÇÃO OU ONERAÇÃO
CITAÇÃO DO CÔNJUGE
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RP20140128722/09.0TBSTS-C.P1
Data do Acordão: 01/28/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A alienação ou oneração do quinhão hereditário do qual faça parte um imóvel, embora respeite a bem próprio, carece do consentimento de ambos os cônjuges, quando entre eles não vigore o regime de separação de bens, nos termos do art. 1682º-A do CC.
II - O cônjuge do executado que é titular do direito ao quinhão hereditário do qual faz parte o imóvel penhorado, deverá ser citado ao abrigo da al. a), do nº3 do art. 864º do CPC.
III - Uma vez citado para os efeitos previstos na 1ª parte do art. 864º-A do CPC, goza o mesmo de legitimidade para deduzir oposição à execução e à penhora.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 722/09.0TBSTS-C.P1 – Apelação

Relator: Maria João Areias
1º Adjunto: Maria de Jesus Pereira
2º Adjunto: Maria Amália Santos

Acordam no Tribunal da Relação do Porto (2ª Secção):

I – RELATÓRIO
Instaurada execução para pagamento de quantia certa pelo B…, S.A., contra C…, D…, E…, Lda., e outros, e comprovado o falecimento daqueles, procedeu-se nos autos à habilitação dos respetivos herdeiros,
na sequência do que, F…, G… e H…, vieram deduzir oposição à execução, requerendo a extinção da execução relativamente aos herdeiros e cônjuges de I…,
alegando, em síntese:
a hipoteca foi constituída por escritura de 15 de Maio de 2002;
o Sr. I… faleceu a 21 de Junho de 2002;
o título base da execução é uma livrança vencida em 16.11.2008;
nunca os herdeiros do Sr. I…, com exceção dos avalistas da livrança, souberam ou tiveram conhecimento da existência da hipoteca constituída para garantia das obrigações assumidas pela executada E…, Lda.;
à data da morte do Sr. I… havia tão só um contrato de abertura de crédito no à E… no valor de 74.819,68 €;
o exequente, mesmo sabendo da morte do Sr. I… manteve operações com a E…, fazendo com que a dívida passasse a ser de 109.952,93 €, ambos em conjunto visando lesar o património do referido Senhor I… e a herança aberta por óbito do mesmo;
o preenchimento é abusivo, sendo de todo falso ser E… devedora de tal quantia ao Exequente.
A exequente contestou, por exceção, invocando a ilegitimidade dos oponentes, porquanto, tendo sido citados para a execução na qualidade de cônjuges dos habilitados na sequência do óbito de I…, não são herdeiros da herança aberta pelo falecimento deste, sendo bens próprios dos herdeiros tudo o que venham a receber do falecido.
Pelo juiz a quo foi proferido despacho saneador que, julgando procedente a invocada exceção dilatória de ilegitimidade processual, absolveu da instância a exequente.
Inconformados com tal decisão, os oponentes dela interpuseram recurso de apelação, concluindo a sua motivação com as seguintes conclusões:
1. Os recorrentes são partes legítimas.
2. O art. 864º, nº3, al. a), do CPC, determina a citação do cônjuge do executado quando a penhora tenha recaído sobre bens imóveis que o executado não possa alienar livremente.
3. Mesmo no regime de comunhão de adquiridos, a alienação carece do consentimento do outro cônjuge (art. 1682º CC).
4. Os executados (cônjuges) não podem alienar livremente o bem.
5. Se tal for verdade, os ora oponentes têm toda a liberdade para intervirem nos presentes autos.
6. Para os quais foram citados, nos termos e para os efeitos previstos nos ns. 1 e 2 do art. 813º e nº3 do art. 864º, ambos do CPC.
Concluem pela revogação da sentença.
A exequente apresentou contra-alegações no sentido da manutenção do decidido.
Cumpridos os vistos legais, há que decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 684º, nº3, 2 685º-A, do Código de Processo Civil, na redação do DL 303/2007, de 24 de Agosto[1] –, a questão a decidir é uma só:
1. Legitimidade dos oponentes para deduzirem oposição à execução.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
1. Legitimidade dos oponentes para deduzirem oposição à execução.
O juiz a quo, considerando que os ora oponentes não são herdeiros da herança aberta por óbito da herança aberta por óbito de I…, uma vez que aquilo que os seus cônjuges vierem a receber na partilha constituirá bem próprio, nos termos da al. b), do art. 1722º do CC, concluiu que os mesmos não retirarão qualquer vantagem jurídica da procedência da oposição, declarando que os mesmos “não são parte legítima para a presente demanda”, julgando “procedente a invocada exceção dilatória da ilegitimidade processual”.
Para conhecimento da exceção em causa, o Juiz a quo teve em consideração os seguintes factos tidos por assentes:
a) O B…, S.A., intentou execução para pagamento de quantia certa, a correr termos neste Tribunal sob o n.º 722/09.0 TBSTS.
b) Na sequência do falecimento do executado I… foi proferida decisão de habilitação em sede de apenso B, tendo sido habilitados, entre outros, J…, K… e L….
c) J… é casado com G… desde 12.12.1981, sem convenção antenupcial; K… é casada com F… desde 2.2.1969, sem convenção antenupcial; L… é casada com H… desde 25.4.1971, sem convenção antenupcial.
d) A presente oposição à execução foi deduzida por F…, G… e H….
Atender-se-á ainda aos seguintes factos, dada a sua relevância para a decisão da questão em apreço:
e) A presente execução, tendo por título executivo uma livrança subscrita pela sociedade E…, Lda., e avalizada pelos executados M…, N…, C… e O…, foi igualmente deduzida contra I…, por este ter constituído uma hipoteca voluntária sobre um imóvel de que era proprietário, para garantia das obrigações da sociedade executada junto do B…, imóvel este indicado à penhora pelo exequente;
f) O referido I… faleceu no dia 21 de Junho de 2002.
De tal materialidade, haverá que atentar em que a presente execução foi instaurada contra I…, não na qualidade de devedor – não é subscritor nem avalista da livrança exequenda –, mas na de proprietário de um bem onerado com uma hipoteca a favor do crédito exequendo.
Ou seja, trata-se de um dos casos em que podem vir a ser penhorados bens de terceiro, desde que a execução tenha sido movida contra o mesmo (nº2 do art. 821º do CPC).
E foi na sequência do falecimento do referido executado que foram habilitados os respetivos herdeiros, cuja posição vieram ocupar nos presentes autos, tendo em tal qualidade – de executados – sido citados para a presente execução.
Os ora embargantes são cônjuges de três desses herdeiros – J…, K… e L… –, herdeiros estes que, não tendo aposto a sua assinatura se encontram nos presentes autos na qualidade de executados, enquanto herdeiros da herança por óbito de I…, proprietária do bem sobre o qual incide uma garantia real a favor do crédito exequendo.
Alegam os apelantes/oponentes terem sido citados para a execução, para se oporem à execução e à penhora ou pagarem, nos termos e para os efeitos dos ns. 1 e 2, do art. 813º, e do nº3 do art. 864º-A, ambos do CPC[2].
Segundo a alínea a) do nº3 do art. 864º, do CPC, na redação do Dec. Lei nº 38/2003, de 08 de Março[3], o cônjuge do executado é citado, nas seguintes situações:
- quando a penhora tenha recaído sobre bens imóveis ou estabelecimento comercial que o executado não possa alienar livremente;
- quando a penhora recaia sobre bens comuns do casal.
A citação do cônjuge imposta pela 1ª parte, da al. a), do art. 864º, justifica-se pela indisponibilidade dos bens pelo executado prevista no art. 1682º-A, nº1, al. c), do Código Civil – salvo se entre os cônjuges vigorar o regime de separação de bens, o cônjuge executado não pode alienar, por si só, os imóveis próprios ou comuns.
O cônjuge é citado para os efeitos previstos no art. 864º-A, exclusivamente no caso de a penhora incidir sobre bens próprios, e cumulativamente para os previstos no art. 825º, quando a penhora incida sobre os bens comuns[4].
No caso em apreço, encontra-se em causa a penhora de um bem imóvel pertencente a uma herança indivisa. Contudo, e apesar de os executados/herdeiros serem titulares, não de um imóvel, mas do direito ao quinhão hereditário por óbito do seu pai do qual faz parte o imóvel penhorado, direito este que não integra a comunhão conjugal (als. b) e c), do nº1 do art. 1722º do CC), a alienação ou oneração de tal direito carece do consentimento de ambos os cônjuges, uma vez que entre eles não vigora o regime de separação de bens (art. 1682º-A)[5].
Incidindo a penhora no caso em apreço, sobre um bem próprio dos executados[6], a sua citação efeituar-se-á unicamente para os efeitos previstos na primeira parte do art. 864º-A.
Dispõe o referido art. 864º-A, na redação do DL 199/2003, de 10 de Setembro:
“O cônjuge do executado, citado nos termos da al. a) do nº3 do artigo anterior, é admitido a deduzir, no prazo de 10 dias, ou até ao termo do prazo concedido ao executado, se terminar depois daquele, oposição à execução ou à penhora e a exercer, no apenso da verificação e graduação de créditos e na fase de pagamento, todos os direitos que a lei processual confere aos executados, sem prejuízo de poder também requerer a separação dos bens do casal, nos termos do nº5 do artigo 825º, quando a penhora recaia sobre bens comuns.”
Antes da reforma de 1995/1996, era controvertido qual o alcance da citação do cônjuge ao abrigo do art. 864º, nomeadamente se, para além de participar no ato da venda, poderia ou não impugnar os créditos reclamados com garantia real sobre os bens imóveis, bem como o crédito do exequente.
O Dec. Lei 329-A/95 veio esclarecer tal questão: o cônjuge do executado, quando citado por terem sido penhorados bens móveis próprios do cônjuge mas que este não pudesse alienar livremente podia exercer, nas fases posteriores à citação, todos os direitos que a lei conferia ao executado, podendo opor-se ainda à penhora, significando que o podia fazer em vez do executado, com os fundamentos que este tivesse e utilizando os meios ao alcance deste.
Com o DL 38/2003, passou a admitir-se igualmente a oposição à execução por parte do executado, oposição à execução e à penhora a deduzir, então, “dentro do prazo concedido ao executado”, e no prazo de 10 dias ou até ao termo do prazo concedido ao executado, após as alterações introduzidas ao art. 864º-A, pelo DL 199/2003.
Como refere Rui Pinto[7], o cônjuge do executado, quando citado em razão da 1ª parte do art. 864º-A, se é certo que não é titular da relação exequenda, não é devedor, mas estando presente em razão dos bens, um pouco como os terceiros garantes ou possuidores, o direito que lhe assiste de deduzir oposição à execução permite-lhe, sendo o caso, levar à extinção da execução – é parte principal da ação executiva.
Também Miguel Teixeira de Sousa[8] defende que o cônjuge do executado, que é citado com fundamento da indisponibilidade dos bens penhorados pelo cônjuge executado, assume a posição de parte processual na execução pendente, sendo isso que justifica que ele possa deduzir oposição à execução e à penhora, e exercer nas fases posteriores a sua citação, todos os direitos que são conferidos ao executado, embora tais poderes se restrinjam à atuação relativa ao bem que justifica a sua citação.
Concluindo, aos cônjuges dos executados, citados nos termos do art. 864º-A, assistia legitimidade para deduzirem oposição à execução.
A apelação será de proceder.
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando-se a decisão recorrida e, reconhecendo-se aos oponentes legitimidade para deduzirem oposição à execução, determina-se, em consequência, o prosseguimento dos autos para apreciação da oposição em causa.
Custas a suportar pelo apelado.

Porto, 28 de Janeiro de 2014
Maria João Areias
Maria de Jesus Pereira
Maria Amália Santos
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[1] Tratando-se de decisão proferida antes da entrada em vigor do novo código, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em ação instaurada depois de 1 de Janeiro de 2008, aplicar-se-á o regime de recursos vigente à data da sua prolação – cfr., neste sentido, António Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina 2013, pág. 15, e João Correia, Paulo Pimenta e Sérgio Castanheira, “Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013”, Almedina, pág. 118.
[2] Desconhecemos os exatos termos em que os mesmos terão sido citados, porquanto, apesar de termos solicitado tais elementos, entre outros, à primeira instância, a resposta dada é omissa quanto aos mesmos.
[3] O requerimento executivo foi enviado eletronicamente a 17 de Fevereiro de 2009, e o DL 226/2008, de 20 de Novembro só é aplicável às execuções instauradas a partir de 31 de março de 2009.
[4] Cfr., neste sentido, José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 3, Coimbra Editora, pág. 496.
[5] Cfr., no sentido de que a partilha de bens imóveis da herança, pelo risco de perda patrimonial que acarreta, carece de autorização de ambos os cônjuges, Parecer nº 89/93 R.P.4, in Boletim dos Registos e do Notariado, Janeiro de 2002, Pareceres do Conselho Técnico, http://www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/legislacao/publicacao-de-brn/docs-brn/2002/brn-1-de-2002/downloadFile/attachedFile_1_f0/brn_pareceres_jan02.pdf.Note-se, ainda, que, é precisamente por tal razão que os cônjuges dos herdeiros são sempre citados para o inventário quando do património da herança façam parte bens imóveis ou estabelecimento comercial, salvo se entre os cônjuges vigorar o regime da separação de bens – cfr., no sentido de que vigorando entre os cônjuges o regime de comunhão de adquiridos e fazendo parte da herança a partilhar, imóveis ou estabelecimento comercial, a concretização da partilha carece de consentimento conjugal nos termos do nº1 do art. 1692-A do CC, cfr., Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, Vol. II, 2ª ed., Almedina 2004, pág. 246.
[6] São considerados bens próprios dos cônjuges os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação – art. 1722º, nº1, al. a), do Código Civil.
[7] Cfr., “Manual da Execução e Despejo”, Coimbra Editora, pág. 843.
[8] “Acção Executiva Singular”, LEX, pág. 322.
__________
V – Sumário elaborado nos termos do art. 713º, nº7, do CPC.
1. A alienação ou oneração do quinhão hereditário do qual faça parte um imóvel, embora respeite a bem próprio, carece do consentimento de ambos os cônjuges, quando entre eles não vigore o regime de separação de bens, nos termos do art. 1682º-A do CC.
2. O cônjuge do executado que é titular do direito ao quinhão hereditário do qual faz parte o imóvel penhorado, deverá ser citado ao abrigo da al. a), do nº3 do art. 864º do CPC.
3. Uma vez citado para os efeitos previstos na 1ª parte do art. 864º-A do CPC, goza o mesmo de legitimidade para deduzir oposição à execução e à penhora.

Maria João Areias