Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:01283/16.0BEAVR
Data do Acordão:04/29/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:MADEIRA DOS SANTOS
Descritores:CONDENAÇÃO
PRÁTICA DO ACTO
ACTO DEVIDO
REQUERIMENTO PRÉVIO
INTERESSE EM AGIR
Sumário:I – Caso se funde em diversas razões de facto e de direito, a acção de condenação de um ministério a emitir um acto que mande encerrar um estabelecimento agropecuário contém um pedido somente uno «in verbis», mas verdadeiramente múltiplo – por se dispersar pelos vários tipos legais de actos, correspondentes àquelas distintas razões.
II – É de activar o art. 67º, n.º 4, al. a), do CPTA quanto a um pedido de condenação na prática de um acto apresentado na petição como já exigível em face dos trâmites acontecidos num certo procedimento administrativo.
III – A relevância das razões ambientais porventura impositivas do encerramento dito em I não afasta a exigência feita no art. 67º, n.º 1, do CPTA, isto é, que a acção condenatória seja precedida de requerimento prévio.
IV – O interesse em agir afere-se pelo «status quaestionis» no momento da propositura da acção.
Nº Convencional:JSTA00071135
Nº do Documento:SA12021042901283/16
Data de Entrada:02/25/2021
Recorrente:MUNICÍPIO DA MEALHADA
Recorrido 1:MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, FLORESTAS E DESENVOLVIMENTO RURAL, LEGAL REPRESENTANTE
Votação:MAIORIA COM 1 VOT VENC
Legislação Nacional:DL 165/2014 DE 2014/11/05
L 19/2014 DE 2014/04/14
CPTA ART67 N1 N4 AL.A)
Aditamento:
Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo:

O Município da Mealhada interpôs a presente revista do acórdão do TCA Norte que, confirmando parcialmente a sentença do TAF de Aveiro – proferida num meio cautelar onde se antecipou o juízo sobre a acção popular instaurada pelo aqui recorrente contra o Ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Regional e A………….., Ld.ª, acção essa tendente a condenar à prática de acto devido – absolveu os demandados da instância, por falta de interesse em agir.
O município recorrente terminou a sua alegação de recurso oferecendo as conclusões seguintes:
1 – O «leitmotiv» das acções cautelar e principal era e é a defesa do ambiente e qualidade de vida dos munícipes da Mealhada face a uma fonte poluidora, origem de insuportáveis cheiros que os têm atormentado e causado constrangimentos ao turismo da cidade e do concelho, sendo francamente chocante que o Tribunal recorrido, reduzindo a questão «sub judice» a uma abstracção jurídica de discussão de normas e do seu conteúdo, faça tábua rasa do intuito ambiental da acção e do tratamento legal que o nosso ordenamento jurídico concede à defesa do ambiente – tudo bem vincado na pi. e razão ou causa de pedir autónoma e independente da questão da regularização da exploração.
2 – Numa palavra, temos milhares de munícipes da Mealhada que andam, há anos, a ser verdadeiramente transtornados pelos cheiros nauseabundos que a exploração da Contra-interessada exala e vêem as suas queixas, o impacto imenso que os mesmos têm nas suas vidas e a legítima e fundamental pretensão prosseguida pelo Município, em sua representação nesta acção popular, verdadeiramente ignorados.
3 – A questão da aplicação da al. a) do n.º 4 do art. 67º do CPTA, concatenada com as normas do controvertido e omnipresente diploma da regularização extraordinária dos estabelecimentos industriais e outros, decorrente do DL n.º 165/2014, de 5/11, e, ainda e por outro lado, com a pretensão ambiental e as garantias processuais consagradas na Lei de Bases do Ambiente (Lei n.º 19/2014), é matéria que, pela sua novidade, importância e complexidade merece a atenção e apreciação do Colendo STA e, assim, a admissão da revista por força da importância fundamental, derivada da relevância jurídica e social, das questões suscitadas.
4 – Ademais, a admissão do recurso é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, pois, no que releva, o julgamento do Tribunal recorrido limita-se a negar o interesse em agir por omissão do pressuposto processual prévio à entrada da acção, ancorando esse entendimento em facto superveniente à entrada da mesma acção e, por outro lado, ignora ou toma como inexistente a questão ambiental, ostensivamente central na economia dos autos e autónoma e independente da questão da regularização.
5 – A lei é expressa e clara ao determinar que, passado o prazo para suprimento das deficiências instrutórias (30 dias), há indeferimento liminar do pedido (n.º 6 do art. 8º do DL n.º 165/2014) e, nesse caso de indeferimento liminar, a entidade coordenadora determina o imediato encerramento do estabelecimento ou exploração (n.º 8 do mesmo artigo).
6 – Logo, se o prazo de suprimento é de 30 dias e se entre o despacho de convite ao aperfeiçoamento (em 16/5/2016) e a entrada da acção principal (20/2/2017) haviam decorrido cerca de nove meses, estava o mesmo prazo ostensiva e notoriamente ultrapassado e estava a Administração inelutavelmente vinculada ao encerramento da exploração.
7 – Ou seja, o pressuposto expresso de não suprimento de deficiências instrutórias no prazo de 30 dias estava notoriamente verificado e, face à consagração clara e expressa de indeferimento liminar do pedido e determinação de imediato encerramento da exploração, ultrapassado aquele prazo, é inequívoca a subsunção da pretensão na al. a) do n.º 4 do art. 67º do CPTA.
8 – E, subsidiariamente o alegamos, se a redacção legal merecesse dúvidas quanto ao momento do acto, que não merece, face ao facto de terem decorrido nove meses desde o despacho de convite ao aperfeiçoamento, quando a norma dá 30 dias para o efeito, sempre estaria a discricionariedade reduzida a zero (atrofia do poder discricionário) por o prazo estar de tal forma ultrapassado que a Administração estaria já vinculada à sua prática, tudo ditado pelos princípios da proporcionalidade em sentido estrito, razoabilidade e justiça, igualdade, boa-fé e protecção da confiança e mesmo imparcialidade e isenção administrativas, princípios que também são lei e sempre teriam que o ser, no caso, para efeitos de aplicação da norma que equacionamos (al. a) do n.º 4 do art. 67º do CPTA).
9 – O tribunal não pode julgar a (in)existência de pressupostos processuais prévios à entrada da acção com fundamento em factos ocorridos supervenientemente e no âmbito de um outro procedimento administrativo (processo de regularização n.º 23689/C) que não é o objecto (original) da acção (processo de regularização n.º 16401/02/C).
10 – Aliás, o Autor e Recorrente apresentou um articulado superveniente (cfr. fls. 274 do sitaf do processo principal) a propósito deste novo pedido de regularização, o qual foi ignorado!
11 – Portanto, bem sabendo nós que, face ao novo processo de regularização, equaciona-se a inutilidade superveniente quanto ao anterior processo, temos que, por um lado, a mesma sempre só poderia ser parcial face à causa de pedir ambiental, que é autónoma e independente; mas a verdade é que o novo procedimento foi até equacionado por nós nos autos e, ignorado que foi o nosso articulado, o processo terá de descer à 1.ª instância para o respectivo conhecimento e julgamento.
12 – O que não se pode é, numa espécie de tentativa de regulação ou resolução integral da relação material controvertida, considerar-se assim sem qualquer enquadramento o procedimento superveniente à entrada da acção e tudo misturar-se, o velho e o novo, tudo a confluir no surpreendentemente erróneo juízo de que recorremos.
13 – Em suma, impõe-se a admissão da revista e a revogação do acórdão recorrido, que incorre em erro de julgamento por violação de lei, concretamente por violação do art. 67º, n.º1 e n,º 4, al. a) do CPTA e do art. 8º, nºs.º 5, 6 e 8 do DL n.º 165/2014.
14 – Quanto à violação do ambiente e qualidade de vida dos munícipes da Mealhada, alegaram-se os factos e o direito tendentes à mesma, na pi., sendo tal causa de pedir primordial, autónoma e independente das demais, e tendo como pedido, legitimamente, o encerramento da exploração pelo Réu.
15 – Pedido esse, aliás, também ancorado directamente nas normas processuais especiais que tutelam o direito ambiental, decorrentes dos princípios da prevenção e precaução, «in casu», a al. c) do n.º 2 do art. 7º da Lei n.º 19/2014, e que consagram o direito, reconhecido a todos e inerente ao direito geral de tutela plena dos direitos e interesses ambientais, a pedir a cessação imediata da actividade causadora de ameaça ou dano ao ambiente – ou seja, a lei, em conformidade com a sobredita principiologia, basta-se com a mera ameaça de dano para que possa pedir-se a cessação imediata da actividade (potencialmente) danosa!
16 – Se o direito tutela a cessação imediata, tal imediatismo também não se compadece com requerimentos prévios e, portanto, fosse como fosse, a norma geral do CPTA sempre teria aqui que ceder perante a norma especial de índole ambiental – estamos no âmbito da tutela de direitos fundamentais e tudo enformado ademais pelos princípios da prevenção e da precaução.
17 – Em suma, o acórdão recorrido incorre em erro de julgamento, quanto aos factos, face ao erróneo entendimento do teor e conteúdo da pretensão esgrimida na pi., e viola os arts. 1º, 3º, al. c), e 7º, mormente o seu n.º 2, al. c), da Lei n.º 19/2014, e os princípios da precaução e da prevenção inerentes a tais disposições, bem como, sempre e materialmente, o art. 66º, n.º 1, da CRP e o art. 67º, n.º 4, al. a) do CPTA, exigindo-se a admissão da presente revista e a revogação do aresto recorrido.

Apenas contra-alegou a contra-interessada A…….., concluindo da seguinte forma:
1 – É pacífico que a intervenção do venerando Supremo Tribunal Administrativo em sed3e de revista tem uma natureza excepcional, limitada às situações em que a mesma seja absolutamente indispensável por força da relevância e complexidade da questão em apreço ou para efeitos de corrigir uma solução e direito manifestamente inadmissível em termos de aplicação do direito (v., neste sentido, o art. 150º do CPTA e, entre outros, os acórdãos do STA de 3/2/2011, Proc. n.º 048/11, de 20/2/2014, Proc. n.º 0137/14, e de 8/2/2011, Proc. n.º 081/11).
2 – Não estão preenchidos no caso «sub judice» (nem o Recorrente demonstra o seu preenchimento) os pressupostos de que o art. 150º do CPTA faz depender a admissibilidade do recurso de revista, tanto mais que a questão que o recorrente pretende suscitar em sede de revista é pacífica na jurisprudência, não tem qualquer «vis» expansiva e nem se quer se pode dizer ser necessária para uma melhor aplicação do direito. Com efeito,
3 – A questão em apreço é apenas a da falta de interesse em agir por se ter intentado uma acção de condenação à prática de acto devido sem previamente se ter dirigido qualquer pretensão ao Réu – Ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural – que o constituísse na obrigação ou dever de decidir, pelo que não se verificara um dos pressupostos essenciais à propositura de acção de condenação à prática de acto devido, previsto no n.º 1 do art. 67º do CPTA.
4 – Assim sendo, está em causa uma questão que é pacífica na jurisprudência deste venerando Supremo Tribunal, o qual por diversas vezes já deixou bem claro que «a condenação à prática de acto legalmente devido exige que tenha havido um requerimento dirigido à prática do acto e que a apreciação do mesmo tenha sido recusada ou tenha conduzido à recusa do mesmo» (v., entre muitos, o Ac. Do STA de 11/5/2017, Proc. n.º 0603/15).
5 – Para além disso, a questão suscitada não possui qualquer «vis» expansiva, pois o que o recorrente jurisdicional pretende é que se diga que neste caso não havia necessidade de ter formulado tal pretensão prévia, uma vez que o Réu estaria neste caso concreto vinculado a mandar encerrar as instalações da Requerida.
6 – Por fim, não tendo sequer sido questionada a factologia dada por provada, particularmente a constante do ponto 13 do acórdão em recurso, muito naturalmente que nem sequer se pode sustentar que a revista é necessária para uma melhor aplicação do direito, uma vez que, face à matéria de facto provada, a Requerida tinha um título válido para o funcionamento da sua exploração e, como tal, jamais o encerramento da mesma poderia ser um acto estritamente vinculado e resultante da lei, ao ponto de afastar o pressuposto essencial da interposição de uma acção administrativa de condenação à prática de acto devido – a prévia formulação de um requerimento, a que alude o n.º 1 do art. 67º do CPTA. Em qualquer dos casos,
7 – Ainda que por mera hipótese se viesse a entender estarem preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso de revista, sempre seria manifesto que o aresto proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte não enfermava de qualquer erro de julgamento ao julgar procedente a excepção de falta de interesse em agir decorrente da não verificação do pressuposto processual previsto no n.º 1 do art. 67º do CPTA – a prévia formulação da pretensão perante o órgão administrativo competente – uma vez que foi dado por provado e nem sequer impugnado que a Requerida possuía um título válido para a continuidade do funcionamento das suas instalações (ver n.º 13 da factologia assente) e, como tal, jamais o encerramento de tais instalações poderia ser um acto estritamente vinculado e decorrente da lei, que tornasse desnecessária a prévia interprelação da entidade administrativa legalmente competente.

A revista foi admitida por acórdão do STA de 4/2/2021, da responsabilidade da formação a que alude o art. 150º, n.º 5, do CPTA.

A Ex.ª Magistrada do MºPº neste STA emitiu douto parecer no sentido de se conceder a revista, reconhecendo-se o interesse em agir do autor quanto à «causa petendi» relacionada com a agressão ao ambiente.

A matéria de facto pertinente é a dada como provada no aresto «sub censura», a qual aqui damos por integralmente reproduzida – como ultimamente decorre dos arts. 663º, n.º 6, e 679º do CPC.

Passemos ao direito:
O município ora recorrente intentou a acção dos autos a fim de obter a condenação do Ministério da Agricultura a emitir um acto que ordene o encerramento – num caso, total, no outro, parcial – de dois «núcleos de produção» dum estabelecimento agropecuário pertencente à contra-interessada. Decerto para tornar mais credível a procedência do seu pedido, o autor multiplicou na petição inicial as razões que o justificariam, ligadas a um certo procedimento administrativo, a questões ambientais, urbanísticas e relacionadas, até, com a prevenção de incêndios; e o autor aparentemente acreditou que, desse modo, cumulava causas de pedir que, embora reciprocamente independentes, convergiriam para um único pedido condenatório – e, no fundo, para a prática do mesmo «acto devido».
Mas depara-se-nos aqui um primeiro equívoco do autor. Nas acções condenatórias do presente género, o «acto devido» há-de fatalmente inscrever-se num determinado tipo legal, identificado pelas normas que tornem exigível a «prática» daquele acto singular e concreto; e a aplicabilidade dessas normas exigirá, por sua vez, que o assunto se reconduza à factualidade típica nelas prevista.
Se a acção destes autos acaso procedesse pelos motivos procedimentais e ambientais invocados na petição – e não aludimos às outras razões porque a revista delas se desinteressou – o Ministério da Agricultura seria condenado a emitir a solicitada ordem de encerramento. Mas, sob a aparente unidade dessa ordem, encontrar-se-iam deveras dois actos administrativos distintos: um, que mandaria encerrar o estabelecimento porque, à luz de determinados factos e preceitos jurídicos, algo sucedera – no primeiro procedimento de regularização, promovido pela contra-interessada – que impunha tal desfecho; e outro, que mandaria encerrar o mesmo estabelecimento porque, à luz de outros factos e de outras normas – factos e preceitos ligados a razões ambientais – isso era exigível ao Ministério da Agricultura.
Portanto, o autor elaborou a sua petição – e, já agora, o requerimento inicial do meio cautelar respectivo, onde se antecipou o juízo sobre a causa principal – alheando-se da genuína natureza das acções de condenação à prática de acto devido. Supôs que, como acontece nas acções impugnatórias, um acrescento de ilegalidades simplesmente reforçaria a probabilidade de êxito do «petitus» – que permaneceria sempre um e o mesmo. E esqueceu que, ao assim proceder, multiplicava os pedidos – por diferentes tipos legais de actos – na exacta medida em que diversificava as razões (fácticas e jurídicas) justificativas da sua demanda.
Captada a fisionomia do pleito, tal e qual ela emerge da petição, ficamos em melhores condições para enfrentar o presente dissídio, «in nuce». Ora, e no que presentemente releva, as instâncias – naquela antecipação do juízo da causa principal – disseram uma única coisa: que o autor não podia propor a acção – inclinada ao aludido encerramento – sem antes requerer isso ao Ministério da Agricultura, constituindo-o no dever de decidir (art. 67º, n.º 1, do CPTA); e, porque esse requerimento não existira «in casu», o TAF e o TCA qualificaram essa anomalia como uma falta de interesse em agir – absolvendo da instância o Ministério da Agricultura e a contra-interessada.
Note-se que essa qualificação «de jure» não vem questionada na revista; e, não estando ela errada «primo conspectu», abster-nos-emos de a reponderar.
Por motivos que derivam da separação de poderes do Estado – tema que é ocioso aqui desenvolver – os tribunais não podem avaliar um pedido de condenação da Administração a praticar um acto administrativo se ela não estiver previamente constituída no dever legal de o emitir. Normalmente, essa constituição produz-se mediante um requerimento «ad hoc» (art. 67º, n.º 1, do CPTA); mas o requerimento é prescindível se o dever de decidir já existia «ex lege» (art. 67º, n.º 4, al. a), do CPTA).
A pronúncia das instâncias, sindicada na revista, respeita precisamente a essas normas. E convém notar o seguinte: o art. 67º, n.º 4, al. a), do CPTA funciona desde que haja o alegado dever legal de decidir. Apurar se o acto a emitir pela entidade pública demandada coincide com aquele que o autor pretende traduz já uma questão de fundo – em que se averiguará se o acto administrativo «devido» corresponde mesmo ao indicado no pedido condenatório.
Dissemos «supra» que o município autor, sob a aparência de um pedido condenatório único, verdadeiramente solicitou «in judicio» a condenação do Ministério da Agricultura a emitir ordens de encerramento diferentes; pois a variação nos motivos implicava que tais ordens, embora idênticas «in verbis», variassem e se dispersassem por tipos legais de actos diversos.
Portanto, a questão da falta de requerimento prévio tem de se pôr relativamente a cada um dos actos administrativos distintos que a fórmula única do «petitus» camuflava. Neste momento processual, o problema encontra-se simplificado, pois – como já acima assinalámos – o recorrente apenas combate e argumenta no plano dos deveres do Ministério da Agricultura em matéria procedimental e ambiental.
Assim, são apenas duas as análises essenciais a encetar: por um lado, indagaremos se o Ministério da Agricultura estava obrigado, por regras procedimentais referentes ao primeiro processo de regularização iniciado pela contra-interessada, a emitir um acto administrativo terminante desse procedimento e impositivo do fecho das instalações; por outro lado, veremos se tal ministério estava obrigado, agora por normas ligadas à defesa do ambiente, a emitir um acto onde ponderasse o encerramento do estabelecimento da contra-interessada. Em qualquer uma dessas situações, a eventualidade do Ministério da Agricultura estar realmente obrigado a emitir tais actos faria transitar o problema «sub specie» do n.º 1 do art. 67º do CPTA para o seu n.º 4, al. a) – de modo que o requerimento prévio seria então prescindível, ao invés do que o TCA afirmou.
E importa frisar uma outra coisa: o interesse em agir afere-se pelo alegado na petição e fixa-se no momento em que ela seja apresentada. «In casu», houve acontecimentos «extra judicium» posteriores – que até instaram o autor a apresentar um articulado superveniente. Mas é impossível que um interesse em agir, existente «in initio litis», despareça depois – pelo que uma eventual relevância de vicissitudes posteriores só é projectável na possibilidade ou inutilidade da lide ou na decisão de fundo; e, simetricamente, é impossível que um interesse em agir ausente no começo da acção surja miraculosamente e releve «in cursu litis».
Posto isto, comecemos por atentar no acto que o autor considera «devido» face ao modo como, nos serviços locais do Ministério da Agricultura, se tramitou o primeiro pedido de regularização do estabelecimento da contra-interessada. O TCA olhou este assunto como o único que verdadeiramente se colocava e relevava – já que as razões ambientais (e as de outra ordem) aludidas na petição figurariam aí como meros acrescentos retóricos. Já vimos que não é bem assim – e a revista assinala-o, sublinhando a importância da «defesa do ambiente» e da «qualidade de vida dos munícipes». Mas esse lapso do TCA não é absolutamente gritante, pois – como adiante veremos – limitou-se a tomar como exclusivo o que, embora não o sendo, era todavia principal.
Onde o TCA claramente se equivocou foi na abordagem do interesse em agir com base num título jurídico obtido pela contra-interessada – no segundo procedimento de regularização – durante a pendência da lide. Conforme dissemos, o interesse em agir há-de transparecer da petição e existir no início da causa; e não surge nem desaparece por circunstâncias posteriores.
Quando o aqui recorrente deduziu a providência cautelar dos autos, tinha sido iniciado pela contra-interessada – e permanecia sem decisão – um procedimento de regularização do estabelecimento, sujeito ao regime do DL n.º 165/2014, de 5/11. Quando ela propôs a acção principal, tal procedimento de regularização já findara – e abortara («vide» o art. 3º da petição inicial).
No meio cautelar, o município afirmou que os prazos previstos no art. 8º do DL n.º 165/2014 – que seriam constringentes, e não ordenadores – haviam constituído o Ministério da Agricultura no dever, inserto no n.º 8 daquele artigo, de impor o encerramento imediato da exploração. Aliás, a revista volta a este assunto nas suas conclusões 5.ª a 8.ª. Entretanto, foi administrativamente declarada a extinção desse procedimento. A petição inicial alegou esse facto e sugeriu – mais do que disse – uma coisa diversa (relativamente ao meio cautelar): que o acto declarativo dessa extinção só parcialmente cumprira o disposto no art. 8º, n.º 8, do DL n.º 165/2014, visto que o Ministério da Agricultura não impusera o imediato encerramento da exploração, como essa norma determinava.
Perante isto, não há dúvida que o autor pediu em juízo a condenação do Ministério da Agricultura a praticar um acto – relativo ao primeiro procedimento de regularização – que a petição apresentou como «devido» «ex vi legis». Assim, e no tocante ao acto procedimental em falta, o caso, tal como transparecia da petição, subsumia-se ao disposto no art. 67º, n.º 4, al. a), do CPTA: o Ministério da Agricultura, perante o modo como fora processado e terminado o primeiro procedimento de regularização, já estaria constituído no dever legal de ordenar o encerramento da exploração – e o autor podia accionar em juízo sem a prévia apresentação de um requerimento para o efeito.
Assim, e a propósito do «acto devido» de que atrás tratámos, conclui-se que – atento o conteúdo das conclusões 5.ª a 8.ª e a clara procedência da conclusão 9.ª (aliás, repercutida na 12.ª) – não pode manter-se a pronúncia do TCA, negatória do respectivo interesse em agir.
Consideremos agora o acto – também pedido, mas tipicamente distinto – suportado em razões ambientais. Neste particular, o autor discorreu longamente «de jure», espraiando-se por princípios, direitos, deveres e violações de várias espécies. Mas não foi rigoroso nem preciso. Não lhe ocorreu demonstrar que o assunto efectivamente se incluía no leque de competências do Ministério da Agricultura ou, sequer, nas suas atribuições. E, sobretudo, o autor foi incapaz de apontar uma qualquer norma que directamente constituísse tal ministério no dever de emitir um acto de encerramento se as condições ou o modo da exploração agredissem o ambiente. Neste campo, o autor limitou-se a citar a Lei n.º 19/2014, de 14/4, que definiu as bases da política do ambiente. Mas nenhum preceito desse diploma impõe ao Ministério da Agricultura o dever de encerrar estabelecimentos de qualquer género.
Portanto, o acto que o autor considerou «devido» por razões ambientais não resulta de uma lei que a petição identificasse e que já o impusesse «ante causam». Daí que o pedido de condenação à prática desse acto não se enquadrasse no art. 67º, n.º 4, al. a), do CPTA, e antes coubesse no n.º 1 do mesmo artigo – por não haver outra alternativa.
Ou seja: à luz do art. 67º do CPTA – afinal, o único dispositivo que o acórdão recorrido decisivamente aplicou – a acção, no seu segmento ambiental, não podia ser proposta sem um prévio requerimento que constituísse o Ministério da Agricultura no dever de decidir sobre o fecho do estabelecimento por razões ligadas ao ambiente.
Apercebendo-se deste obstáculo, o recorrente – nas conclusões 15.ª e 16.ª da minuta – preconiza a desaplicação do art. 67º porque este, enquanto «lex generalis», deve ceder perante as «normas processuais especiais que tutelam o direito ambiental»; as quais possibilitariam, aliás, uma ampla defesa de «direitos fundamentais», norteada «pelos princípios da prevenção e da precaução».
Mas essa argumentação, para além de vaga e inconcludente, é fantasiosa.
«Primo», a Lei n.º 19/2014 não previu quaisquer «normas processuais especiais» neste domínio. Aludiu a «direitos processuais em matéria de ambiente» (art. 7º) – aos direitos de accionar, promover ou pedir a cessação de danos ambientais – sem todavia estabelecer uma ritologia processual para o efeito. E, não contendo nem indicando a Lei n.º 19/2014 quaisquer regras adjectivas, é absurdo tomá-la como uma «lex specialis» de cariz processual, susceptível de afastar a aplicabilidade do art. 67º do CPTA.
«Secundo», a circunstância dos «themata» do ambiente se relacionarem com direitos de personalidade e direitos fundamentais não acarreta, «ea ipsa», uma desaplicação do mesmo art. 67º. Só assim sucederia se as imposições do artigo afrontassem tais direitos ao ponto de torná-lo inconstitucional. Mas salta à vista que a mera exigência de um requerimento prévio, aliás explicável pela separação de poderes que a própria Constituição desenha, não comprime – ou, pelo menos, não o faz excessivamente – o exercício dos direitos relacionados com a tutela do ambiente; pelo que seria uma temeridade – e um inadmissível desrespeito pela lei – seguirmos a sugestão do recorrente e abstermo-nos de observar o art. 67º do CPTA no tocante ao pedido condenatório fundado em razões ambientais.
A notória improcedência das conclusões 15.ª e 16.ª da revista encerra praticamente a nossa indagação. Mas não deixaremos de nos pronunciar sobre as conclusões 10.ª e 11.ª, não só porque o recorrente as formulou, mas também porque elas favorecem uma compreensão mais nítida do caso em presença.
Abortado, já na pendência da causa, o primeiro processo de regularização promovido pela contra-interessada, esta iniciou logo um outro, que foi administrativamente recebido – e cuja admissão constituiu um «título legítimo para a exploração provisória do estabelecimento» (como resultava do art. 7º, n.º 1, do DL n.º 165/2014). Sabedor disso, o autor apresentou nos autos um «articulado superveniente». Não o «articulado» referido nos ns.º 3 e 4 do art. 70º do CPTA – em que substituísse o inicial pedido condenatório por uma pretensão anulatória; mas um articulado conforme ao art. 86º do CPTA (e ao art. 588º do CPC), ou seja, apenas tendente a alegar factos novos – constitutivos, modificativos ou extintivos. Assim, o autor disse aí que o acto recebedor do segundo procedimento de regularização – que, relembre-se, titulava um exercício provisório da actividade – era ilegal porque, para além do mais, fora praticado sem que a contra-interessada exibisse a indispensável declaração «de interesse público municipal» (art. 5º, n.º 4, do DL n.º 165/2014), negável pelo município por motivos diversos, «maxime» os relacionados com o ambiente.
Sobre isto, o recorrente diz, nessas conclusões, três essenciais coisas: que talvez a lide seja inútil «quanto» ao primeiro procedimento de regularização; que, todavia, ela mantém utilidade no que respeita à «causa petendi» ambiental; e que as instâncias ignoraram por completo o articulado superveniente, pelo que terão de conhecê-lo.
Ao falar na «inutilidade superveniente» da lide, o recorrente parece possuir um obscuro vislumbre do que poderá suceder-lhe – não apenas no que concerne ao primeiro procedimento de regularização, mas também ao segundo. Afinal, e não tendo ele activado o disposto no art. 70º do CPTA, o título provisório que a contra-interessada obteve no segundo procedimento do género permaneceu indemne – pois o sobredito «articulado superveniente» não incluiu um qualquer pedido que o atacasse.
O TCA já disse que esse título constituía um obstáculo à pretensão do autor. Mas tratou o problema – aliás mal, conforme dissemos – no estrito plano do interesse em agir. Note-se que os poderes cognitivos deste Supremo se restringem a esse plano, pois não podemos julgar em substituição (arts. 665º e 679º do CPC). Definido agora que o autor tinha um tal interesse relativamente ao pedido de condenação do Ministério da Agricultura a praticar um acto por motivos ligados aos trâmites do primeiro processo de regularização, cumprirá ao TCA ver em que medida o surgimento de um novo procedimento de regularização e, ademais, de um título por ele conferido afecta, em termos de possibilidade ou de viabilidade, a pretensão de que se condene o Ministério a praticar esse «acto devido».
Por outro lado, e face ao acima dito, é claríssimo que o «articulado superveniente» não conferia ao autor – relativamente ao pedido de condenação na prática de um acto impositivo do encerramento da exploração por razões ambientais – o interesse em agir que ele, por falta do requerimento prévio, originariamente não tinha.
Donde se vê que o recorrente também claudica ao censurar as instâncias por ignorarem o seu «articulado superveniente». Tendo-se elas exclusivamente pronunciado sobre o interesse em agir, cuja existência devia revelar-se «in initio litis», essa peça processual posterior era absolutamente irrelevante para se indagar da presença desse pressuposto processual.
Em suma, e recapitulando:
No tocante ao pedido de condenação do Ministério da Agricultura a praticar um acto que mande encerrar o estabelecimento da contra-interessada por razões relacionadas com o primeiro processo de regularização, conclui-se que a causa podia ser proposta sem um prévio requerimento «ad hoc», como dispõe o art. 67º, n.º 4, al. a), do CPTA; pelo que o TCA errou ao exigir tal requerimento e ao consequentemente decidir que o autor accionara sem interesse em agir. Nesta parte, o aresto recorrido tem de ser revogado (por procedência da conclusão 9.ª da minuta de recurso, conjugada com as conclusões 5.º a 8.º e 12.ª), devendo os autos voltar ao TCA para se prosseguir na apreciação do assunto.
No tocante ao pedido de condenação do Ministério da Agricultura a praticar um acto que mande encerrar o estabelecimento da contra-interessada por razões ambientais, conclui-se que a causa não podia ser proposta sem requerimento prévio (art. 67º, n.º 1, do CPTA). Como tal requerimento foi omitido, o autor carece de interesse em agir relativamente a este outro pedido; e, ao afirmar isso – embora partindo de motivos diversos e acertando «per accidens» – o TCA emitiu a pronúncia correcta, merecendo o acórdão «sub specie» ser confirmado nesta parte. O que corresponde à improcedência ou à irrelevância das demais conclusões da revista.
Por último, é de referir que, no segmento ambiental, a pretensão do recorrente soçobra de maneira «manifesta»; pelo que se esvai a isenção de custas de que o recorrente beneficiava à partida, enquanto actor popular («vide» o art. 4º, ns.º 1, al. b), e 5, do RCP).

Nestes termos, acordam em conceder parcialmente a presente revista e em negá-la na parte restante, pelo que:
a) Revogam o acórdão recorrido no segmento em que recusou ao autor interesse em agir para formular o pedido de condenação do Ministério da Agricultura a praticar um acto que, pelos ditos motivos procedimentais, ordene o encerramento do estabelecimento pecuário da contra-interessada.
b) Confirmam o acórdão recorrido na parte restante.
c) Determinam a baixa do processo ao TCA Norte, para conhecimento das questões subsequentes.
Custas da revista pelo recorrente e pela contra-alegante, na proporção de metade para cada um.
Lisboa, 29 de Abril de 2021. - Jorge Artur Madeira dos Santos (relator por vencimento) – José Francisco Fonseca da Paz – Suzana Maria Calvo Loureiro Tavares da Silva (vencida conforme voto que junta)


Processo n.º 1283/16.0BEAVR

Declaração de voto

Vencida na parte em que a decisão judicial considera que o Autor, o Município da Mealhada, não preenche o pressuposto processual do interesse em agir quanto ao pedido de condenação do Ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Regional (MAPDR), na “pessoa” da Direcção Regional da Agricultura e Pescas do Centro (DRAP-Centro), a decidir o encerramento e, consequentemente, a encerrar a exploração agropecuária da A………. na parte em que aquela exploração não dispunha de título válido para estar em funcionamento, por violação do direito ao ambiente e qualidade de vida dos munícipes em razão das emissões poluentes que emanavam da referida exploração.

A posição que fez vencimento considera que este pedido falha o pressuposto processual da necessidade de prévia constituição do órgão administrativo competente no dever de decidir (artigo 67.º, n.º 1 do CPTA), não sendo possível reconduzir o pedido, com esta causa de pedir, ao disposto na alínea a) do n.º 4 do artigo 68.º do CPTA.

Discordamos do decidido por duas razões: i) primeiro, porque, in casu, a referida causa de pedir (violação do direito ao ambiente e à qualidade vida dos cidadãos) ainda se integra, a nosso ver, no âmbito do pedido de encerramento daquela exploração agropecuária com fundamento no disposto no artigo n.º 8 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 165/2014 (falta de título para a exploração); ii) segundo, porque o princípio antiformalista pro actione assim igualmente o imporia. Vejamos.

Resulta da matéria de facto assente que, à data em que foi proposta a acção principal, a contra-interessada não dispunha de título válido para a exploração agropecuária (num caso apenas dispunha de título para a exploração de bovinos e explorava suínos e no outro a exploração excedia o número de animais previstos no título) e que foi, posteriormente à sua citação no âmbito deste processo, requerer novamente à DRAP Centro a regularização da exploração agro-pecuária ao abrigo do regime excepcional previsto Decreto-Lei n.º 165/2014 prorrogado pela Lei n.º 21/2016, de 19 de Julho. Uma renovação do pedido de regularização que, segundo o que vem alegado pelo Autor em articulado superveniente, deveria ter sido liminarmente indeferida por não poder ser instruída com um dos documentos exigidos na lei para o efeito: a deliberação fundamentada de reconhecimento do interesse público municipal na regularização do estabelecimento ou instalação. O pedido de emissão desta declaração, pela assembleia municipal, sob proposta da câmara municipal (artigo 5.º, n.º 4, al. a) do Decreto-Lei n.º 165/2014), foi negado por decisão da assembleia municipal, por, segundo o que vem alegado, as explorações em causa estarem em violação do PDM, bem como por causarem impactos ambientais negativos, incluindo para a qualidade de vida dos munícipes; interesses que o Autor representa nesta acção, por via da sua forma de acção popular.

Assim, pode concluir-se do alegado pelo Autor que da conjugação do disposto nos artigos 5.º n.º 4, al. a), 6.º e 8.º do Decreto-Lei n.º 165/2014 sempre resultaria a obrigação legal de a entidade demandada indeferir liminarmente o pedido de regularização e, ordenar o encerramento da actividade do estabelecimento em tudo o que “excede” a habilitação administrativa para o exercício daquela actividade agro-pecuária, precisamente por saber que esta actividade não poderia ser regularizada ao abrigo daquele regime legal e que a “protelação” da decisão de encerramento acarreta prejuízos graves para o ambiente e para a qualidade vida dos cidadãos.

Em segundo lugar, o Autor alega, ainda, a respeito desta causa de pedir, que a violação da qualidade de vida dos munícipes, no âmbito do seu direito a viver num ambiente sadio e com qualidade de vida, se configura neste caso como um direito análogo a direitos, liberdades e garantias (artigos 66.º, n.º 1 e artigo 17.º da CRP), razão pela qual goza de aplicabilidade directa (artigo 18.º, n.º 1 da CRP), o que não pode, aqui, deixar de ter uma implicação processual, no sentido de o pedido dever ser apreciado directamente pelo tribunal.

E tem razão o Recorrente, pelo menos na parte em que se impunha (por expressamente tal constar da p.i. e de todas as alegações de recurso) às instâncias judiciais que, quanto mais não fosse, analisassem a conformidade jurídico-constitucional do pressuposto processual do artigo 67.º, n.º 1 do CPTA com as disposições conjugadas dos artigos 66.º, n.º 1, 17.º, 18.º, n.º 1 e 20.º da CRP (garantia da tutela jurisdicional efectiva), para determinar se se exigia ou não, face ao circunstancialismos do caso, a prevalência de um princípio antiformalista "pro actione", neste caso, conjugado com o princípio "pro ambiente" na sua formulação in dubio pro ambiente ou precaucionariedade ambiental. Algo que as mesmas não cumpriram, limitando-se a repetir em todas as instâncias uma decisão de cunho puramente formalista e legalista. E a questão era bastante desafiante no plano dogmático e principiológico, precisamente porque o circunstancialismo do caso reunia, em nosso entender, todos os requisitos para justificar uma decisão anti-formalista de desaplicação in casu do pressuposto processual do n.º 1 do artigo 67.º do CPTA, sendo essa a forma de assegurar a tutela jurisdicional efectiva dos direitos dos munícipes da Mealhada à qualidade de vida e a gozar de um ambiente sadio, suprimindo uma exigência processual que, face ao circunstancialismo concreto, se revela desproporcionada.

Subjacente ao pressuposto processual de prévia constituição da Administração no dever de decidir está a necessidade de interpelação administrativa prévia como pressuposto de uma decisão condenatória (mesmo em casos como este em que a condenação se reporta à emissão de uma decisão por parte da DRAP Centro a respeito da conformidade jurídica da exploração agrícola em causa e não à emissão de uma ordem de encerramento da exploração) no modelo de justiça administrativa vigente entre nós.

Uma necessidade ou exigência que se explica pela “defesa de interesses administrativos” — como a salvaguarda dos limites funcionais dos poderes administrativo e judicial, que se traduz, maioritariamente, no respeito devido pelo espaço de valorações próprias do poder administrativo, onde se incluem, também, as ponderações no âmbito dos conflitos de direitos no contexto das relações jurídicas poligonais — assim como pela “neutralização de intervenções judiciais desnecessárias ou precoces”. No essencial, resulta desta exigência que a intervenção do tribunal só deve ocorrer quando a intervenção administrativa se tenha revelado infrutífera (seja por omissão, seja por acção) e quando o lastro procedimental permita que a intervenção do tribunal assuma “vestes de fiscalização” e não de “decisão” do litígio.

Pressupostos cujos fundamentos justificam e explicam que, também quando esteja em causa uma alegada necessidade de protecção de direitos, liberdades e garantias, imediatamente operativos a partir de normas constitucionais, a obrigação de interpelação administrativa prévia seja, em regra, de manter, ressalvados os casos em que o circunstancialismo do caso determine ou recomende, com base na garantia da tutela jurisdicional efectiva, que a exigência deste pressuposto apresente carácter meramente dilatório e, consequentemente, desproporcionado. É o caso aqui.

A Administração já estava “constituída” ex vi legis (artigo 8.º, n.º 8 do Decreto-Lei n.º 165/2014) no dever legal de ordenar o encerramento de uma exploração que não dispusesse (e na medida em que não dispusesse) de título administrativo válido para continuar a laborar e, por isso, a causa de pedir respeitante à violação do direito a um ambiente sadio e à qualidade de vida dos cidadãos, consubstancia apenas, neste contexto, um fundamento acrescido daquele dever legal de decidir.

Acresce, em segundo lugar, que, no caso, o afastamento do requisito da demanda prévia da entidade administrativa não conduziria a qualquer violação de interesses administrativos: i) porque o autor alega a violação de um direito fundamental análogo a direitos, liberdades e garantias e, se assim for, e se a alegada violação existir (o que só se pode apreciar no âmbito da decisão de fundo), a salvaguarda e protecção daquele direito prima sobre eventuais regras administrativas que pudessem justificar a permanência em laboração da exploração agrícola; e ii) porque essa primazia, sempre que imponha o afastamento de regras legais e regulamentares expressas, só pode ser determinada pela decisão judicial e não pela decisão administrativa, que está vinculada pelo princípio da legalidade.

Por último, a intervenção judicial na apreciação da alegada violação ou não daquele direito análogo a direitos, liberdades e garantias também não constituiria, dadas as circunstâncias do caso, uma intervenção judicial precoce, porquanto foram já realizados (e estão adquiridos para o processo) diversos elementos respeitantes à “vertente ambiental” do litígio, designadamente no que respeita a estudos técnicos sobre a “Incomodidade de Odores” na envolvente da exploração, existindo diversas pronúncias dos interessados a respeito da questão.

Suzana Tavares da Silva.