Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0266/20.0BEFUN
Data do Acordão:04/28/2021
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:CASO JULGADO
LIMITES
REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA
Sumário:I - A sentença de mérito proferida por um tribunal tributário (estadual ou arbitral) e transitada em julgado só vincula as partes que intervieram no processo (cf. art. 619.º, n.º 1 do CPC, onde se refere que, após o trânsito, «a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º», sendo um desses limites o subjectivo, nos termos do qual o caso julgado apenas se impõe aos sujeitos que puderam exercer o contraditório sobre o objecto da decisão).
II - A autoridade do caso julgado de uma decisão proferida pelo CAAD em matéria tributária, não vincula a AT-RAM, que não teve (nem podia ter, por não se ter vinculado à jurisdição do CAAD em matéria tributária) intervenção no processo arbitral e onde, ademais, se decidiu expressamente que a legitimidade passiva era da AT.
III - Assim, estando em causa a cobrança coerciva de dívidas originadas por imposto que é da competência da AT-RAM lançar, liquidar e cobrar (o IRC de uma sociedade sediada na RAM), a AT-RAM, através de uma sua unidade orgânica desconcentrada de âmbito local, não está impedida de considerar que tais actos tributários se mantêm na ordem jurídica, apesar de a decisão referida em II ter determinado a sua anulação.
Nº Convencional:JSTA00071121
Nº do Documento:SA2202104280266/20
Data de Entrada:04/05/2021
Recorrente:A.................., SGPS, S.A. (ZONA FRANCA DA MADEIRA)
Recorrido 1:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ASSUNTOS FISCAIS DA REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA (AT-RAM)
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO JURISDICIONAL
Objecto:SENTENÇA DO TAF DO FUNCHAL
Decisão:NEGA PROVIMENTO
Área Temática 1:DIREITO PROCESSUAL
Área Temática 2:CASO JULGADO
Legislação Nacional:ARTIGO 619º DO CÓDIGO CIVIL
Aditamento:
Texto Integral: 1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade acima identificada recorre para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença por que o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal julgou improcedente a reclamação por ela deduzida ao abrigo do art. 276.º e segs. do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) da decisão por que a da Chefe do Serviço de Finanças do Funchal - 1 indeferiu o pedido de redução de garantia efectuado no âmbito de três processos de execução fiscal.

1.2 Com o requerimento de interposição do recurso apresentou a respectiva motivação, que resumiu em conclusões do seguinte teor:

«I- A questão da vinculação da AT-RAM à jurisdição do CAAD foi suscitada no processo arbitral pela AT, tendo o Tribunal Arbitral decidido no sentido da competência para apreciar o pedido arbitral e declarado improcedentes as alegadas excepções dilatórias de incompetência do tribunal arbitral e de ilegitimidade processual passiva, não tendo essa decisão sido objecto de recurso, pelo que transitou em julgado, formando caso julgado dentro e fora do processo.

II- Inexiste fundamento para que se estejam a discutir, em sede de execução de sentença, nomeadamente, na sequência do pedido de redução de garantia dirigido ao Serviço de Finanças do Funchal - 1, questões de competência e de legitimidade passiva que já foram amplamente discutidas no âmbito do processo arbitral e aí decididas.

III- A decisão de mérito goza de força de caso julgado, gozando de força obrigatória dentro e fora do processo, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material objecto do litígio.

IV- O Tribunal «a quo», ao decidir nos termos em que decidiu, fez uma errada aplicação e interpretação do direito, designadamente do disposto no artigo 619.º, n.º 1 do CPC.

V- As decisões judiciais “são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades” e os tribunais arbitrais estão constitucionalmente previstos, pelo que a decisão judicial proferida no âmbito do processo n.º 65/2018-T é obrigatória para a Autoridade Tributária e, consequentemente, para o Serviço de Finanças do Funchal - 1 competente para a execução da mesma.

VI- A AT encontra-se obrigada a dar cumprimento às decisões judiciais, em obediência ao disposto no artigo 205.º, n.º 2 e 266.º da CRP.

VII- Tendo a pretensão da Recorrente sido julgada procedente pelo Tribunal Arbitral, caberia à AT a imediata e plena reconstituição da situação que existiria se não tivessem sido emitidas as liquidações ilegais, pelo que não o tendo feito, a AT incorreu na violação do artigo 100.º da LGT, 24.º do RJAT e 205.º, n.º 2 e 266.º da Constituição da República Portuguesa.

VIII- Tendo sido notificada da decisão arbitral procedente à sua pretensão e, tendo esta transitado em julgado, a aqui Recorrente, de acordo com as regras jurídicas que regulam o ordenamento jurídico em que se insere, tem a legítima expectativa de que a Administração – no caso, a Autoridade Tributária – proceda à execução da mesma.

IX- A sentença recorrida não fez uma correta aplicação do direito ao concluir pela legalidade do despacho do Chefe do Serviço de Finanças do Funchal - 1 que indeferiu o pedido de redução de garantia no âmbito dos processos de execução fiscal n.ºs 281020171114794, 2810201701114808 e 2810201701114816, designadamente, do disposto no artigo 619.º, n.º 1 do CPC.

X- A AT está vinculada ao princípio da legalidade, ínsito no artigo 266.º da CRP, de onde decorre que se deve abster de praticar actos ilegais. Com efeito, tendo as liquidações sido anuladas por serem consideradas ilegais, sempre deveria a AT obstar à execução de liquidações ilegais.

XI- A interpretação do Tribunal «a quo» segundo a qual a decisão arbitral não tem força de caso julgado é manifestamente inconstitucional por violação do princípio do acesso ao direito, previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, na sua vertente de princípio da proibição da indefesa.

XII- A decisão da AT de recusa do cumprimento da decisão arbitral é manifestamente inconstitucional, violadora dos princípios do Estado de Direito, na sua vertente de protecção da segurança jurídica e da protecção da confiança (artigo 2.º da CRP).

XIII- As liquidações impugnadas em sede de pedido arbitral pela aqui Recorrente, foram emitidas pelos Serviços Centrais do IRC e identificam a AT - Autoridade Tributária, Área do Imposto sobre o Rendimento, com sede em Lisboa e foram assinadas pela Directora Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira.

XIV- Estando a administração do IRC acometida à Autoridade Tributária e Aduaneira, entidade que se encontra vinculada ao CAAD, nos termos do artigo 1.º da Portaria n.º 11-A/2011, de 22 de Março, sempre a decisão arbitral vinculará a entidade competente para a sua execução – Serviço de Finanças de Funchal - 1.

XV- O entendimento de que a administração do IRC não está cometida à DRAF está em consonância com o artigo 15.º, n.º 1 da Lei Orgânica da Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira (decreto Regulamentar Regional n.º 14/2015/M, de 19 de Agosto), que refere que “[a]té que se encontrem instalados todos os meios logísticos necessários ao exercício da plenitude das atribuições e competências previstas no artigo 2.9 do presente diploma, a AT, através dos seus departamentos e serviços, continua a assegurar a realização dos procedimentos em matéria administrativa e informática necessários ao exercício das atribuições e competências transferidas para a Região Autónoma da Madeira, incluindo os relativos à liquidação e cobrança dos impostos que constituem receita própria da Região Autónoma da Madeira”.

XVI- Existem normativos legais que demonstram que a administração do IRC é da responsabilidade da AT, designadamente o artigo 109.º do CIRC refere que “Havendo lugar a autoliquidação de imposto e não sendo efectuado o pagamento deste até ao termo do respectivo prazo, começam a correr imediatamente juros de mora e a cobrança da dívida é promovida pela Direcção-Geral dos Impostos nos termos previstos no artigo seguinte”, pelo que os actos produzidos apontam, efectivamente, para que a competência para liquidar (e administrar o imposto) pertencia à AT.

XVII- Encontra-se suficientemente demonstrado que o Tribunal Arbitral que funciona no CAAD tinha competência para apreciar as liquidações de retenção na fonte em crise, pelo que, incorreu em erro de julgamento em matéria de direito, a sentença recorrida ao decidir nos termos em que decidiu

XVIII- Assim, a sentença padece de erro de julgamento em matéria de direito.

Pelo exposto deve dar-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a douta sentença recorrida. Decidindo nesta conformidade será feita:

JUSTIÇA!».

1.3 Não foram apresentadas contra-alegações.

1.4 O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

1.5 Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo e dada vista ao Ministério Público, o Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que seja concedido provimento ao recurso, revogada a sentença e julgada procedente a reclamação, com a seguinte fundamentação: «[…]

A questão que cumpre apreciar e decidir é a de saber se a decisão arbitral proferida no processo n.º 65/2018-T não tem força de caso julgado relativamente à AT-RAM a quem a lei incumbiu a administração do imposto em causa (ainda que com a colaboração da AT) por não se mostrar vinculativa para a mesma.
Vejamos:
O RJAT foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, no uso da autorização legislativa concedida ao Governo pelo artigo 124.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril (“Lei de autorização legislativa do RJAT”), ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 198.º da CRP.
De acordo com o n.º 1 do artigo 124.º da lei de autorização legislativa do RJAT, “Fica o Governo autorizado a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária”.
Em consonância com o estipulado no artigo 165.º n.º 2, da CRP, a Lei de autorização legislativa do RJAT definiu o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização.
Ora, em momento algum a lei de autorização legislativa limitou territorialmente os efeitos do diploma a aprovar ao território continental ou outro.
Nessa medida, em linha com aquela lei de autorização legislativa, foi aprovado o RJAT, vigorando o mesmo, na qualidade de decreto-lei emanado do Governo da República, em todo o território nacional, sem reservas ou especificidades relativas às Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores.
Não obstante, o facto de a DF-RAM não se encontrar vinculada à arbitragem tributária de modo algum permite extrair a conclusão de que os órgãos jurisdicionais sedeados no território da Região Autónoma da Madeira – incluindo o Tribunal a quo – estão desobrigados da aplicação da totalidade dos diplomas legais vigentes em Portugal, incluindo o RJAT.
Posto de outro modo, a circunstância de o Governo Regional não ter convencionado a vinculação da DF-RAM à arbitragem tributária não dita que os órgãos jurisdicionais sedeados na Região Autónoma da Madeira não estejam obrigados ao cumprimento, apreciação e aplicação do RJAT, em tudo o que se revele útil aos respectivos processos judiciais.
Isto porque, tal como referido supra, o RJAT foi aprovado por Decreto-Lei, ao abrigo de lei de autorização legislativa, não circunscrevendo territorialmente o seu campo de aplicação.
Ora, não tendo o legislador nacional cerceado, em momento algum, o seu campo de aplicação, o Tribunal a quo encontra-se vinculado à sua apreciação conquanto se repute essencial ao respectivo processo.
Nesta conformidade, a decisão arbitral proferida no processo 65/2018-T conheceu do mérito da causa e não foi objecto de recurso ou de impugnação, nos termos do artigo 25.º e 27.º do RJAT.
Consequentemente transitou em julgado, formando caso julgado dentro e fora do processo, nos termos do artigo 619.º n.º 1 do CPC, aplicável ex vi da alínea e) do artigo 29.º do RJAT,
Pelo que não pode a AT recusar-se a cumprir a decisão arbitral,
Uma vez que, nos termos do artigo 205.º n.º 2 da CRP, as decisões judiciais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades.
Em conclusão, a decisão judicial proferida no âmbito do processo n.º 65/2018 – T é obrigatória para a Autoridade Tributária e, consequentemente, para o Serviço de Finanças do Funchal 1, competente para a execução da mesma.
Assim sendo, a douta sentença recorrida, ao concluir pela legalidade do despacho do Chefe do Serviço de Finanças do Funchal 1 que indeferiu o pedido de redução de garantia nos processos de execução fiscal acima identificados, incorreu em erro de julgamento com manifesta violação do artigo 619.º, n.º 1, do CPC».

1.6 Cumpre apreciar e decidir a questão de saber se a sentença fez correcto julgamento quando entendeu que o Serviço de Finanças do Funchal - 1 andou bem ao indeferir o pedido de redução da garantia prestada nos processos de execução fiscal com o fundamento de que a AT-RAM não se encontra vinculada pela decisão do Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD) que anulou as liquidações que deram origem às dívidas exequendas.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO

O Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal deu como provados os seguintes factos:

«1. A sociedade Reclamante tem sede na Avenida ………., n.º …., freguesia da Sé, concelho do Funchal, Ilha da Madeira, e encontra-se licenciada para operar no Centro Internacional de Negócios da Madeira (Zona Franca da Madeira) – facto não controvertido.

2. Em 4 de Maio de 2017, foram emitidas em nome da Reclamante as liquidações de retenção na fonte de IRC n.ºs 2017 6420000486, para o exercício de 2013, 2017 6420000487, para o exercício de 2014, 2017 6420000489, para o exercício de 2015, todas com data limite de pagamento a 3 de Julho de 2017 – cfr. doc. n.º 8 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

3. No dia 8 de Julho de 2017, foram instaurados no Serviço de Finanças do Funchal - 1 os processos de execução fiscal n.ºs 2810201701114778, 2810201701114786, 2810201701114794, 2810201701114808 e 2810201701114816, contra a Reclamante, para cobrança coerciva das dívidas provenientes de retenções na fonte de IRC referidas no ponto antecedente, e respectivos juros compensatórios – cfr. informação de 30 de Agosto de 2017 constante do doc. n.º 4 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

4. Por despacho de 31 de Agosto de 2017, proferido pela Chefe do Serviço de Finanças do Funchal - 1, em concordância com anterior informação (datada de 30 de agosto de 2017), foi deferido o pedido de suspensão dos processos de execução fiscal mencionados no ponto antecedente por “apresentação de garantia idónea e suficiente antes de apresentar contencioso” – cfr. informação e despacho constantes do doc. n.º 4 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

5. A Reclamante foi notificada da decisão de suspensão referida no ponto anterior por ofício n.º 13814, datado de 1 de Setembro de 2017 – cfr. ofício constante do doc. n.º 4 junto com a petição inicial.

6. Em 19 de Fevereiro de 2018, a Reclamante, “tendo sido notificada do despacho de indeferimento proferido pela Chefe do Serviço de Finanças do Funchal 1, no procedimento de Reclamação Graciosa n.º 2810201704003853”, apresentou junto do CAAD pedido de pronúncia arbitral tendo por objecto as liquidações de retenção na fonte de IRC mencionadas no ponto 2., e das respectivas liquidações de juros compensatórios, no valor global de € 49.183,08 – cfr. doc. n.º 3 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

7. O pedido de pronúncia arbitral referido no ponto antecedente foi autuado no CAAD sob o n.º 65/2018-T – cfr. docs. n.ºs 5 e 6 juntos com a petição inicial.

8. Em sede de resposta ao pedido de pronúncia arbitral n.º 65/2018-T, a Directora da Autoridade Tributária e Aduaneira arguiu a excepção de incompetência do Tribunal Arbitral – cfr. doc. n.º 5 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

9. A 21 de Dezembro de 2018, foi proferida decisão arbitral no âmbito do processo n.º 65/2018-T, na qual se concluiu pela competência do Tribunal Arbitral que funciona sob a égide do CAAD para conhecer da legalidade das liquidações impugnadas e pela anulação daqueles actos tributários – cfr. doc. n.º 6 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

10. Em 3 de Setembro de 2020, a Reclamante apresentou requerimento dirigido ao Serviço de Finanças do Funchal - 1 a solicitar a redução da garantia prestada para suspender os processos executivos referidos no ponto 3., por ser “manifestamente superior ao valor da dívida actual”, atendendo a que “os processos de execução fiscal n.º 2810201701114794, 2810201701114808 e 2810201701114816 já foram anulados” em função da decisão arbitral proferida no processo n.º 65/2018-T – cfr. doc. n.º 7 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

11. Remetido o requerimento referenciado no ponto antecedente à AT-RAM para análise, foi emitida, no dia 30 de Setembro de 2020, informação n.º 71, com o assunto “Análise à decisão da CAAD Proc. 65/2018-T - Vinculação da AT-RAM”, na qual se concluiu que:
As decisões dos tribunais arbitrais, embora tenham força de sentença, apenas vinculam as entidades que a este regime aderiram por via de Portaria.
A AT-RAM enquanto administração tributária regional, quanto aos impostos nela cobrados e/ou gerados, tem capacidade e competências tributárias próprias, pelo que não se encontra vinculada através da Portaria 112-A/2011.
A única entidade vinculada às decisões dos tribunais arbitrais é a ATA” – cfr. fls. 106 a 116 dos autos (suporte digital) e informação constante do doc. n.º 1 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

12. Sobre a informação referida no ponto anterior recaiu despacho de concordância da Directora Regional da AT-RAM, datado de 6 de Outubro de 2020, que determinou a remessa daquele expediente ao Serviço de Finanças do Funchal - 1 – cfr. fls. 106 dos autos (suporte digital) e despacho da Directora Regional da AT-RAM constante do doc. n.º 1 junto com a petição inicial.

13. A 27 de Outubro de 2020, a Chefe do Serviço de Finanças do Funchal - 1 proferiu despacho com o seguinte teor:
Atendendo ao despacho da Exma. Senhora Directora Regional da AT-RAM de 2020-10-06, cuja cópia se anexa; ao facto de as decisões dos tribunais arbitrais, apesar de terem a força de sentença, apenas vincularem as entidades que a este regime aderiram por via de Portaria, bem como ao facto de a AT-RAM enquanto administração tributária regional, quanto aos impostos nela cobrados e/ou gerados, ter capacidade e competências tributárias próprias, e não se encontrar vinculada através da Portaria 112-A/2011, não foram os processos de execução fiscal n.ºs 2810201701114794, 2810201701114808 e 2810201701114816 anulados conforme decisão arbitral, motivo pelo qual INDEFIRO o pedido de redução de garantia enviado a este Serviço de Finanças em 2020-09-07 por A……………. SGPS, SA (Zona Franca da Madeira), NIF ……………” – cfr. fls. 104 dos autos (suporte digital) e despacho da Chefe do Serviço de Finanças do Funchal - 1 constante do doc. n.º 1 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

14. A Reclamante foi notificada da decisão de indeferimento do pedido de redução de garantia por ofício n.º 8176, recepcionado em 4 de Novembro de 2020 (data de assinatura do respectivo aviso de recepção) – cfr. fls. 102 a 119 dos autos (suporte digital) e docs. n.ºs 1 e 2 juntos com a petição inicial.

15. A presente reclamação foi apresentada no dia 16 de Novembro de 2020 – cfr. fls. 01 e ss. dos autos (suporte digital).

16. Em 19 de Novembro de 2020, o Presidente do CAAD certificou que correu termos naquele Centro o processo arbitral com o n.º 65/2018-T e que:
[…]
5- Até à presente data não foi comunicado ao CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa a interposição de recurso ou impugnação judicial da decisão arbitral proferida no âmbito do processo em epígrafe;
6- O arquivamento do processo foi notificado às partes no dia 26-12-2018.
7- A conta de custas foi notificada às partes no dia 18-02-2019. Nos termos do artigo 4.º n.º 6 do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária do CAAD, a «conta final é enviada às partes após o trânsito em julgado da decisão (…)»” – cfr. certidão constante de fls. 131 dos autos (suporte digital), cujo teor se dá por integralmente reproduzido».


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2.2 DE DIREITO

2.2.1 A QUESTÃO A APRECIAR E DECIDIR

2.2.1.1 Correu termos no CAAD um processo, ao qual foi dado o n.º 65/2018-T, em que a ora Recorrente pediu a pronúncia arbitral sobre a legalidade de três liquidações de IRC e no qual foi proferida decisão arbitral (Disponível em https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?listPageSize=100&listPage=35&id=3798.), que anulou aqueles actos.
No âmbito desse processo, foram apreciadas as questões da competência do Tribunal Arbitral e da legitimidade passiva da Requerida AT, por esta suscitadas na resposta que apresentou na sequência da notificação para responder ao pedido de pronúncia arbitral. A esse propósito, alegou a AT, em síntese: i) quanto à competência do CAAD, que este não possui competência para se pronunciar sobre as questões em apreço, por estar em causa um imposto que constitui receita própria da Região Autónoma da Madeira (RAM) e, nessa medida, a sua administração e liquidação estar cometida à Direcção Regional dos Assuntos Fiscais (DRAF) – agora Autoridade Tributária da Região da Madeira (AT-RAM) – a qual não se vinculou à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD – Centro de Arbitragem Administrativa; ii) quanto à sua ilegitimidade processual passiva, que não é a AT o sujeito activo da relação jurídico-tributária, na medida em que não procedeu às liquidações do imposto sobre o qual recaiu o pedido de pronúncia arbitral e que a sua eventual intervenção no procedimento de liquidação decorrerá apenas do cumprimento dos deveres de cooperação que lhe são impostos pelo art. 3.º do Decreto-Lei n.º 18/2005, de 18 de Janeiro (ELI: https://data.dre.pt/eli/dec-lei/18/2005/01/18/p/dre/pt/html.), conjugado com o Decreto Regulamentar Regional n.º 14/2015/M, de 19 de Agosto (ELI: https://data.dre.pt/eli/decregulreg/14/2015/08/19/m/dre/pt/html.), alterado pelo Decreto Regulamentar Regional n.º 4/2017/M, de 10 de Março (ELI: https://data.dre.pt/eli/decregulreg/4/2017/03/10/m/dre/pt/html.), não sendo, assim, competente para representar a DRAF, a AT-RAM ou o Governo Regional da Madeira.
O Tribunal arbitral julgou improcedentes as invocadas excepções e anulou as liquidações. Essa decisão transitou em julgado.

2.2.1.2 A Requerente do pedido de pronúncia arbitral dirigiu-se ao Serviço de Finanças do Funchal-1 e, no âmbito das execuções fiscais que aí correm termos para cobrança, para além do mais, das dívidas que tiveram origem nas referidas liquidações, pediu a “redução da garantia” que prestou em ordem à suspensão dos processos executivos na medida da anulação daqueles actos.

2.2.1.3 A Chefe do Serviço de Finanças do Funchal-1 indeferiu esse pedido com o fundamento de que as execuções fiscais em que estavam em cobrança as dívidas provenientes das referidas liquidações não foram extintas com fundamento na decisão arbitral, porque a AT-RAM não se encontra vinculada por esta decisão. Isto, porque embora as decisões do tribunal arbitral tenham a força de sentença, a AT-RAM não foi parte no processo arbitral e no que respeita aos impostos que sejam da sua competência liquidar e cobrar não se encontra vinculada pelas decisões arbitrais, pois não se inclui entre as entidades que, nos termos do n.º 1 do art. 4.º do Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, e através da Portaria 112-A/2011, de 22 de Março (ELI: https://data.dre.pt/eli/port/112-a/2011/03/22/p/dre/pt/html.), se vincularam à jurisdição dos tribunais arbitrais que funcionam no CAAD.

2.2.1.4 Inconformada com essa decisão, a Executada dela reclamou para o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, ao abrigo do disposto no art. 276.º do CPPT.
A reclamação judicial foi julgada improcedente. Considerou o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, em síntese, e após extensa elaboração em torno das competências tributárias da RAM, que «a sociedade Reclamante tem sede no território da Região Autónoma da Madeira e actividade enquadrada no Centro Internacional de Negócios da Madeira (Zona Franca da Madeira), encontrando-se, portanto, sujeita ao regime jurídico-fiscal aplicável na Região Autónoma da Madeira, nos termos do qual o IRC constitui uma receita própria da Região que deve ser administrada pela AT-RAM (a quem compete apreciar graciosamente daquele imposto)», motivo por que «a competência para as liquidações de IRC (retenções na fonte) em cobrança nos processos de execução fiscal n.ºs 2810201701114794, 2810201701114808 e 2810201701114816 era da AT-RAM, embora a lei admita a colaboração da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) nesse procedimento»; depois, passou a «indagar se a decisão arbitral proferida no âmbito do processo n.º 65/2018-T, tendo por objecto as liquidações de retenção na fonte de IRC referidas, se mostra oponível à AT-RAM» e concluiu, após aprofundada fundamentação, que «pertencendo a administração do imposto em cobrança nos processos executivos de que a presente reclamação constitui incidente (IRC - retenções na fonte) à AT-RAM, a qual não se encontra por qualquer forma sujeita à jurisdição do CAAD, não se vislumbra como lhe pode ser oponível (ou à sua unidade orgânica desconcentrada de âmbito local – o Serviço de Finanças do Funchal - 1 –, que instaurou as execuções fiscais em causa e apreciou da reclamação graciosa prévia ao pedido de pronúncia arbitral) o julgado no processo n.º 65/2018-T, ao qual não foi, nem podia ter sido, chamada».
Por tudo isso, tendo considerado que a «decisão arbitral proferida no processo n.º 65/2018-T não tem força de caso julgado relativamente à AT-RAM – a quem a lei acometeu a administração do imposto em causa (ainda que com a colaboração da AT) – por não se mostrar vinculativa para a mesma», concluiu que «não existia qualquer dever da AT-RAM ou das suas unidades orgânicas (como seja o Serviço de Finanças do Funchal - 1) de executar a referida decisão arbitral e, nessa sequência, anular os processos de execução fiscal n.ºs 2810201701114794, 2810201701114808 e 2810201701114816 com base no julgado naquela sede, não sendo a garantia prestada susceptível de redução ao abrigo do disposto no n.º 11 do art. 199.º do CPPT».

2.2.1.5 A Executada, ora Recorrente, discordou da sentença e dela recorreu para este Supremo Tribunal.
Se bem interpretamos a motivação do recurso, a Recorrente alinha os seguintes argumentos de discordância com aquela decisão:
i) a sentença violou o caso julgado formado pela decisão arbitral, designadamente quanto às questões da competência e da legitimidade passiva aí apreciadas e decididas, por decisão que transitou em julgado (cf. conclusões I a IV);
ii) o Serviço de Finanças do Funchal - 1 violou o dever de executar a decisão arbitral, na medida em que nesta se decidiu pela anulação das liquidações (cf. conclusões V a X);
iii) a interpretação do art. 619.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) efectuada pela sentença recorrida, ao recusar a decisão arbitral a força de caso julgado, enferma de inconstitucionalidade por violação do princípio do acesso ao direito, consagrado no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) (cf. conclusões XI e XII);
iv) o Serviço de Finanças do Funchal - 1 está vinculado à jurisdição do CAAD, pois «estando a administração do IRC acometida à Autoridade Tributária e Aduaneira, entidade que se encontra vinculada ao CAAD, nos termos do artigo 1.º da Portaria n.º 11-A/2011, de 22 de Março, sempre a decisão arbitral vinculará a entidade competente para a sua execução – Serviço de Finanças de Funchal - 1» (cf. conclusões XIII a XVII);

2.2.1.6 Cumpre, pois, averiguar se a sentença fez correcto julgamento quando, considerando que a AT-RAM não estava vinculada pela decisão arbitral que anulou as liquidações de IRC, entendeu que a decisão que recusou a redução da garantia prestada, pedida com fundamento nessa anulação, não enferma de ilegalidade. Cumpre, designadamente, averiguar se a autoridade do caso julgado formado pela decisão arbitral, obsta a que a AT-RAM e o Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal considerem que aquela não está obrigada a respeitar a mencionada decisão arbitral.

2.2.2 DA VINCULAÇÃO DA AT-RAM À DECISÃO ARBITRAL

2.2.2.1 DA COMPETÊNCIA DA AT-RAM PARA A LIQUIDAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO DO IRC QUE DEU ORIGEM ÀS DÍVIDAS EXEQUENDAS

No caso, estamos perante uma execução fiscal que corre termos pelo Serviço de Finanças do Funchal - 1 para cobrança de dívidas provenientes de IRC liquidado em 2017 à sociedade executada, que tem sede na RAM e actividade enquadrada no Centro Internacional de Negócios da Madeira (Zona Franca da Madeira) (cf. factos provados sob os n.ºs 1 a 3).
Como salientou o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal, de fls. 10 a 13 da sentença recorrida, com fundamentação que ora fazemos nossa, essa sociedade encontra-se sujeita ao regime jurídico-fiscal aplicável na RAM, nos termos do qual o IRC constitui uma receita própria da Região Autónoma e cuja administração está atribuída à AT-RAM. Como bem ficou dito na sentença:
«Prevê-se no art. 227.º, n.º 1 da CRP que “[as] regiões autónomas são pessoas colectivas territoriais e têm os seguintes poderes, a definir nos respectivos estatutos:
[…]
i) Exercer poder tributário próprio, nos termos da lei, bem como adaptar o sistema fiscal nacional às especificidades regionais, nos termos de lei-quadro da Assembleia da República;
j) Dispor, nos termos dos estatutos e da lei de finanças das regiões autónomas, das receitas fiscais nelas cobradas ou geradas, bem como de uma participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com um princípio que assegure a efectiva solidariedade nacional, e de outras receitas que lhes sejam atribuídas e afectá-las às suas despesas;
[…].
Por sua vez, o art. 107.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, aprovado pela Lei n.º 13/91, de 5 de Junho, e revisto pela Lei n.º 130/99, de 21 de agosto, estabelece que “[a] Região Autónoma da Madeira exerce poder tributário próprio, nos termos deste Estatuto e da lei” (n.º 1), reconhecendo-se que a mesma tem, ainda, “[o] poder de adaptar o sistema fiscal nacional às especificidades regionais nos termos da lei” (n.º 2), e que dispõe “[das] receitas fiscais nela cobradas ou geradas, bem como de uma participação nas receitas tributárias do Estado, estabelecida de acordo com um princípio que assegure a efectiva solidariedade nacional, e de outras receitas que lhe sejam atribuídas e afecta-as às suas despesas” (n.º 3).
Nos termos do art. 108.º do aduzido Estatuto Político-Administrativo constituem receitas da Região: “Todos os impostos, taxas, multas, coimas e adicionais cobrados ou gerados no seu território, incluindo o imposto do selo, os direitos aduaneiros e demais imposições cobradas pela alfândega, nomeadamente impostos e diferenciais de preços sobre a gasolina e outros derivados do petróleo” (respectiva alínea b)).
O citado art. 108.º deve ser interpretado em articulação com o art. 112.º do mesmo Estatuto, cuja alínea b) do seu n.º 1 inclui entre as receitas fiscais da Região as relativas ou que resultem de IRC. Do mesmo modo, a Lei n.º 13/98, de 24 de Fevereiro (Lei de Finanças das Regiões Autónomas), estipulava no respectivo art. 13.º, n.º 1 que constitui receita de cada Região Autónoma o IRC, “[devido] por pessoas colectivas ou equiparadas que tenham sede, direcção efectiva ou estabelecimento estável numa única Região” (respectiva alínea a)) - preceito cuja redacção se manteve inalterada com a nova Lei de Finanças das Regiões Autónomas (aprovada pela Lei Orgânica n.º 2/2013, de 2 de Setembro), no respectivo art. 26.º.
Já o art. 1.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 18/2005, de 18 de Janeiro, transferiu para o Governo Regional da Região Autónoma da Madeira a competência para “[exercer] a plenitude das competências previstas na Constituição e na lei em relação às receitas fiscais próprias, praticando todos os actos necessários à sua administração e gestão.” O Decreto-Lei n.º 18/2005, de 18 de Janeiro, veio a determinar a extinção da Direcção de Finanças da Região Autónoma da Madeira e dos serviços dela dependentes (art. 1.º, n.º 3), prevendo a criação, por decreto regulamentar regional, de “[um] organismo com vista à prossecução na Região Autónoma da Madeira das atribuições e competências cometidas à Direcção de Finanças da Região Autónoma da Madeira” (art. 2.º), o qual não obsta à cooperação do Ministério das Finanças, nos termos do art. 3.º, designadamente através da prestação de apoio técnico e administrativo.
Pelo Decreto Regulamentar Regional n.º 29-A/2005/M, de 31 de Agosto, foi aprovada a orgânica da Direcção Regional dos Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira (DRAF), posteriormente alterado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 28/2006/M, de 19 de Julho, o que, em obediência ao Decreto-Lei n.º 18/2005, de 18 de Janeiro, veio a permitir que o Governo Regional da Madeira passasse a exercer plenamente as competências previstas nas alíneas i) e j) do art. 227.º da CRP.
A orgânica da DRAF foi alterada pelo Decreto Regulamentar Regional n.º 2/2013/M, de 1 de Fevereiro, tendo vindo, posteriormente, a ser restruturada pelo Decreto Regulamentar Regional n.º 14/2015, de 19 de Agosto, agora com a designação de Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira (AT-RAM) – a qual foi definida pelo Decreto Regulamentar Regional n.º 3/2015/M, de 28 de Maio. A orgânica da AT-RAM prevista no Decreto Regulamentar Regional n.º 14/2015, de 19 de Agosto, viria ainda a ser alterada pelo Decreto Regulamentar Regional n.º 4/2017/M, de 10 de Março, bem como pelo Decreto Regulamentar Regional n.º 3/2019, de 19 de Março. Do Decreto Regulamentar Regional n.º 14/2015, de 19 de Agosto, na redacção actualmente em vigor, resulta que “[a] Autoridade Tributária e Assuntos Fiscais da Região Autónoma da Madeira, abreviadamente designada por AT-RAM, é o serviço da administração directa da Região Autónoma da Madeira, integrado na Vice-Presidência do Governo, referida no presente diploma por VP, a que se refere a alínea d) do n.º 1 do artigo 5.º do Decreto Regulamentar Regional n.º 7/2018/M, de 14 de maio” (cfr. art. 1.º). Nos termos do n.º 1 do art. 2.º do mesmo diploma “[a] AT-RAM é um serviço executivo da VP que tem por missão assegurar e administrar os impostos sobre o rendimento, sobre a despesa, sobre o consumo, sobre o património e de outros tributos legalmente previstos, bem como executar as políticas e as orientações fiscais definidas pelo Governo Regional da Madeira, em matéria tributária a exercer no âmbito da Região Autónoma da Madeira, de acordo com os artigos 140.º e 141.º da Lei n.º 130/99, de 1 de Agosto, nomeadamente a liquidação e a cobrança dos impostos que constituem receita da Região”, sendo que “[a] AT-RAM dispõe, para além de uma unidade orgânica central, de unidades orgânicas desconcentradas de âmbito local, designadas por serviços de finanças” (n.º 2 no mesmo preceito). Já no art. 3.º, n.º 3 daquele Decreto Regulamentar Regional n.º 14/2015, de 19 de Agosto, prevê-se na respectiva alínea a), relativamente às receitas fiscais próprias, que incumbe à AT-RAM: “Assegurar a liquidação e cobrança dos impostos sobre o rendimento, sobre o património e sobre o consumo e demais tributos que lhe incumbe administrar, bem como arrecadar e cobrar outras receitas da Região ou de pessoas colectivas de direito público.” Mais tendo ficado previsto no art. 15.º, n.º 1 do mesmo diploma que: “Até que se encontrem instalados todos os meios logísticos necessários ao exercício da plenitude das atribuições e competências previstas no artigo 2.º do presente diploma, a AT, através dos seus departamentos e serviços, continua a assegurar a realização dos procedimentos em matéria administrativa e informática necessários ao exercício das atribuições e competências transferidas para a Região Autónoma da Madeira, incluindo os relativos à liquidação e cobrança dos impostos que constituem receita própria da Região Autónoma da Madeira.” Volvendo ao caso em apreço, temos que a sociedade Reclamante tem sede no território da Região Autónoma da Madeira e actividade enquadrada no Centro Internacional de Negócios da Madeira (Zona Franca da Madeira), encontrando-se, portanto, sujeita ao regime jurídico-fiscal aplicável na Região Autónoma da Madeira, nos termos do qual o IRC constitui uma receita própria da Região que deve ser administrada pela AT-RAM (a quem compete apreciar graciosamente daquele imposto). Logo, a competência para as liquidações de IRC (retenções na fonte) em cobrança nos processos de execução fiscal n.ºs 2810201701114794, 2810201701114808 e 2810201701114816 era da AT-RAM, embora a lei admita a colaboração da Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) nesse procedimento».
É certo, pois, que a competência para lançar, liquidar e cobrar o IRC devido por sociedade com sede na Região pertence à AT-RAM (No mesmo sentido, CARLA CASTELO TRINDADE, Regime Jurídico da Arbitragem Tributária Anotado, Almedina, 2015, págs. 81 a 83.
Vide também, entre muitas outras, as seguintes decisões do CAAD:
- de 18 de Fevereiro de 2013, proferido no processo com n.º 89/2012-T, disponível em
https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?listPage=11&id=25;
- de 2 de Novembro de 2015, proferido no processo com o n.º 247/2015-T, disponível em
https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?listPageSize=100&listPage=15&id=1512;
- de 19 de Julho de 2018, proferido no processo com n.º 63/2018-T, disponível em
https://caad.org.pt/tributario/decisoes/decisao.php?listPageSize=100&listPage=35&id=3568.). Assim também relativamente às liquidações que deram origem às dívidas exequendas.
Por outro lado, nada nos permite concluir que a AT represente a AT-RAM relativamente às liquidações que deram origem às dívidas exequendas.
Este entendimento subscrito pela AT-RAM na decisão reclamada, pela sentença e pelo presente acórdão não afronta a autoridade do caso julgado da decisão arbitral invocada pela ora Recorrente, entendido como o conjunto dos efeitos jurídicos decorrentes do trânsito em julgado dessa decisão, como procuraremos demonstrar de seguida.

2.2.2.2 a vinculação à decisão arbitral – limites subjectivos do caso julgado

No art. 205.º, n.º 2, da CRP, ficou consagrado o princípio de que «[a]s decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades». Tendo como postulado esse princípio constitucional:
Nos termos do n.º 1 do art. 619.º do CPC, «[t]ransitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º»; de igual modo, de acordo com o n.º 1 do art. 100.º da Lei Geral Tributária (LGT), «[a] administração tributária está obrigada, em caso de procedência total ou parcial de reclamações ou recursos administrativos, ou de processo judicial a favor do sujeito passivo, à plena reconstituição da situação que existiria se não tivesse sido cometida a ilegalidade, compreendendo o pagamento de juros indemnizatórios, nos termos e condições previstos na lei»; também no n.º 1 do art. 24.º do RJAT se estabelece que a decisão arbitral sobre o mérito do recurso «vincula a administração tributária a partir do termo do prazo previsto para o recurso ou impugnação».
No caso estamos perante uma decisão arbitral proferida pelo CAAD, que anulou liquidações de IRC efectuadas em 2017 à ora Recorrente, que é uma sociedade com sede na RAM.
Antes do mais, cumpre notar que na sentença recorrida nunca se põe em causa que uma decisão do CAAD é uma decisão jurisdicional ou que a AT ou mesmo os tribunais tributários estaduais estão vinculados pelos efeitos do caso julgado arbitral.
Note-se também que a sentença recorrida também não questiona que uma decisão arbitral transitada em julgado tem o mesmo carácter obrigatório que a sentença de um tribunal estadual transitada em julgado, bem assim como que a decisão arbitral tem a mesma força executiva que a sentença de um tribunal estadual.
O que a sentença recorrida questiona é que o carácter obrigatório da decisão arbitral transitada em julgado se imponha a terceiros que não tenham sido partes no processo. Vejamos:
No caso, como resulta do que ficou já exposto, a AT-RAM não teve intervenção no processo arbitral (Nem poderia ter, na medida em que a AT-RAM nunca se vinculou à jurisdição arbitral em matéria tributária (cf. art. 4.º, n.º 1, do RJAT e a Portaria n.º 112-A/2011, de 22 de Março).). Quem esteve no processo arbitral foi a AT e, apesar de esta ter invocado quer a incompetência do tribunal arbitral quer a sua ilegitimidade, o CAAD não atendeu nenhuma dessas excepções e apreciou o mérito da causa. Não há dúvida de que a decisão arbitral assume força de caso julgado, mas assume-a apenas relativamente às partes no processo arbitral.
Na verdade, essa decisão, quer quanto ao mérito quer no que se refere às excepções, não vincula senão quem interveio no processo. O que, realce-se em nada contende com a autoridade do caso julgado daquela decisão. Vejamos:
É certo que, logo que a decisão judicial transite em julgado (não mais sendo susceptível de recurso ordinário, cf. art. 628.º do CPC), ela assume “força obrigatória” dentro do processo (cf. art. 620.º, n.º 1, do CPC) e, quando julgue do mérito da causa, também fora dele, com os limites fixados pelos arts. 580.º e 581.º (cf. art. 619.º, n.º 1, do CPC). No primeiro caso, falamos de caso julgado formal, no segundo de caso julgado material.
Quanto aos efeitos do caso julgado, cumpre assinalar que a referida “força obrigatória” se desdobra numa dupla eficácia, designada por efeito negativo do caso julgado e efeito positivo do caso julgado: o primeiro consiste na inadmissibilidade duma segunda acção [proibição da repetição – excepção de caso julgado, regulada nos arts. 577.º, alínea i), segunda parte, 580.º e 581.º do CPC], e segundo consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior, dele resultando que a decisão proferida se constitui em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição – autoridade do caso julgado).
Quanto a este efeito positivo, que é o que ora nos interessa, ele tem por sujeitos os destinatários da decisão. Assim, no caso de decisão sobre o mérito da causa proferida em processo tributário (seja ela da autoria de um tribunal estadual ou arbitral), esta “força obrigatória” do caso julgado tem por sujeitos os destinatários da decisão, as partes na relação processual: a autoridade do caso julgado apenas se impõe aos sujeitos que puderam exercer o contraditório sobre o objecto da decisão. Dito de outro modo, «os limites subjectivos do caso julgado coincidem com os limites subjectivos do próprio objecto da decisão». No caso da sentença de mérito, estes são os limites do objecto processual, como decorre do n.º 1 do art. 619.º, que dispõe: «a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º».
Salienta RUI PINTO: «Esta solução técnica tem correlação com os critérios de legitimidade processual, maxime do artigo 30.º: a decisão judicial apenas vincula os sujeitos que têm legitimidade processual.
O devido processo legal, do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, impõe esta solução: em regra, apenas pode ser sujeito aos efeitos – beneficiado ou prejudicado – de um acto do Estado quem participou da sua produção de modo contraditório» (Excepção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, na Revista Julgar Online, disponível em
http://julgar.pt/excecao-e-autoridade-de-caso-julgado-algumas-notas-provisorias/, que temos vindo a acompanhar de perto.).
Se assim é para a sentença proferida por um tribunal estadual, também o será para a proferida por um tribunal arbitral.
Na verdade, mal se compreenderia que, em sede obrigacional, pudessem ficar vinculadas pela decisão proferida num processo as partes que neste não intervieram ou não tiveram oportunidade de intervir. Ao contrário do que sustenta a Recorrente, uma solução legal em sentido diverso é que conflituaria manifestamente com os princípios constitucionais do acesso ao direito, designadamente na sua vertente de direito a um processo equitativo, de que o contraditório é uma trave mestra. Por outro lado, não pode olvidar-se que o Estado Português e a Região Autónoma da Madeira são pessoas colectivas de direito público distintas e que, dado o carácter voluntário da jurisdição arbitral, podem, ou não, pelos meios próprios e adequados, sujeitar-se a meios alternativos de resolução de litígios, sem que tal constitua restrição alguma do direito de acesso ao direito, pois existem na ordem jurídica nacional e estavam ao dispor da ora Recorrente meios próprios para obter a tutela efectiva dos seus direitos.
Relativamente à ineficácia do caso julgado relativamente a terceiros, salienta ALBERTO DOS REIS:
«É perfeitamente compreensível este princípio da ineficácia do caso julgado em relação a terceiros. A sentença contém a formulação da vontade concreta da lei com referência a um caso particular.
Como se alcança esta formulação? A sentença é um acto do juiz; mas para a produção desse acto contribui, na mais larga medida, a actividade do autor e do réu. São as partes que põem a questão; são as partes que articulam os factos; são as partes que alegam e discutem; são as partes, em suma, que preparam, mobilizam e fornecem ao juiz os materiais de conhecimento, os vários elementos de que há-de sair a sua convicção, expressa na sentença.
Para bem ou para mal, a sentença, se é um acto do juiz, é ao mesmo tempo o produto de intensa e activa colaboração das partes. Por isso a sentença tem, como destinatários naturais, as partes e só as partes.
Estender a eficácia da sentença a terceiros, estranhos ao processo, que não intervieram nele, que não foram ouvidos nem convencidos, que não foram colocados em condições de dizer da justiça, de alegar as suas razões, de exercer qualquer espécie de influência na formação da convicção do juiz – é uma violência que pode redundar numa iniquidade» (Eficácia do Caso Julgado em Relação a Terceiros, in Boletim da Faculdade de Direito, volume XVII,1940-1941, pág. 208.).
Se é certo que existem casos em que se admite que o caso julgado possa atingir terceiros, a verdade é que a situação sub judice não se integra em nenhum deles (Vide, entre outros,
ANTUNES VARELA et alia, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 706 a 711.
TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, págs. 590 a 594.).
Em suma, a decisão arbitral invocada pela Recorrente, que anulou as liquidações que deram origem às dívidas exequendas, não vincula a AT-RAM, que não foi parte no processo arbitral, motivo por que o Serviço de Finanças do Funchal - 1 (unidade orgânica desconcentrada de âmbito local da AT-RAM) não estava obrigado a deferir o pedido de diminuição da garantia com fundamento naquela decisão.
A sentença, que decidiu em conformidade com o exposto, não merece censura.

2.2.3 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulamos as seguintes conclusões:
I - A sentença de mérito proferida por um tribunal tributário (estadual ou arbitral) e transitada em julgado só vincula as partes que intervieram no processo (cf. art. 619.º, n.º 1 do CPC, onde se refere que, após o trânsito, «a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º», sendo um desses limites o subjectivo, nos termos do qual o caso julgado apenas se impõe aos sujeitos que puderam exercer o contraditório sobre o objecto da decisão).
II - A autoridade do caso julgado de uma decisão proferida pelo CAAD em matéria tributária, não vincula a AT-RAM, que não teve (nem podia ter, por não se ter vinculado à jurisdição do CAAD em matéria tributária) intervenção no processo arbitral e onde, ademais, se decidiu expressamente que a legitimidade passiva era da AT.
III - Assim, estando em causa a cobrança coerciva de dívidas originadas por imposto que é da competência da AT-RAM lançar, liquidar e cobrar o IRC, a AT-RAM, através de uma sua unidade orgânica desconcentrada de âmbito local, não está impedida de considerar que tais actos tributários se mantêm na ordem jurídica, apesar de a decisão referida em II ter determinado a sua anulação.


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3. DECISÃO

Em face do exposto, os juízes do Supremo Tribunal Administrativo, em conferência, acordam em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente [cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi da alínea do art. 281.º do CPPT].

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Lisboa, 28 de Abril de 2021. – Francisco António Pedrosa de Areal Rothes (relator) – Joaquim Manuel Charneca Condesso – Paulo José Rodrigues Antunes.