Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0184/10.0BESNT
Data do Acordão:05/06/2020
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:FRANCISCO ROTHES
Descritores:IRC
SUBCAPITALIZAÇÃO
ÓNUS DE PROVA
Sumário:I – Tendo sido afastada a aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, não pode o erro de julgamento respetivo ser demonstrado apelando às regras do ónus de prova que dimanam da norma infraconstitucional correspondente;

II - Tendo sido invocada, pela administração tributária, a insuficiência da documentação de um custo com o facto de um determinado documento não evidenciar os termos da operação, o juízo sobre o erro material na desconsideração do custo correspondente não dispensa a análise desse documento.

Nº Convencional:JSTA000P25832
Nº do Documento:SA2202005060184/10
Data de Entrada:02/04/2019
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A................., LDA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
1. Relatório

1.1. A Representante da Fazenda Pública interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que julgou procedente a impugnação judicial da decisão de 18 de janeiro de 2010, proferida pelo Senhor Diretor de Finanças Adjunto da Direção de Finanças de Lisboa na reclamação graciosa n.º 1554-4000587/08, na parte em que indeferiu o pedido de anulação da liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas do exercício de 2003 (liquidação n. 2007 8610019112) e do pagamento dos juros indemnizatórios correspondentes.

Impugnação que tinha sido interposta por A………….., Lda., sociedade com sede na Rua Dr…………., n.º 2 – 3.º B, 2780-… Oeiras, com o número de identificação fiscal ………….

O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

Notificada da sua admissão, apresentou alegações e formulou as seguintes conclusões (que renumeramos): «(…)

I. Pelo elenco das razões supra arroladas, ressalve-se melhor entendimento, infere-se que a sentença proferida pelo Tribunal “a quo” enferma de erro de julgamento, e, com o qual não concordamos, senão vejamos:

II. A AT constatou no âmbito de uma acção inspetiva levada a cabo à ora Recorrida que existia endividamento excessivo para com uma entidade não residente em território português – B……….. Inc. (empresa americana) com a qual a ora Recorrida tinha relações especiais.

III. Para aferir da derrogação do n.° 1 do artigo 61.º do CIRC, solicitou-lhe prova para analisar se as condições de financiamento que aquela empresa americana lhe financiava, era análoga, ou mais favorável à financiada por empresas financeiras independentes.

IV. A Recorrida limitou-se a enviar três faxes do ……… com datas posteriores às datas dos financiamentos pela empresa americana, apenas, continham taxas meramente indicativas, e, o primeiro fax nem sequer fazia referência ao montante dos empréstimos.

V. No que se refere aos financiamentos óbitos pela Recorrida junto das instituições financeiras independentes, mencionados no relatório da ……. que apresentam, quer os montantes quer a periodicidade do pagamento dos juros, não têm qualquer nexo causal com os financiamentos obtidos junto da empresa americana, não podendo por esse facto ser comparado.

VI. Ora, tendo presente o artigo 74°, n.º 1, da LGT, o ónus da prova compete a quem invoca o direito, o que no caso em apreço competia à ora Recorrida, para afastar as regras da subcapitalização, o que até ao presente momento não logrou provar.

VII. Refira-se que a subcapitalização correspondente a um recurso excessivo a capitais de terceiros face aos capitais próprios como forma de financiamento das sociedades, porém, tem sido crescentemente encarada como possível forma de evasão fiscal que a lei pretende limitar, dadas as suas consequências em termos de redução das receitas fiscais.

VIII. Por último não podemos deixar de referir que é o próprio artigo 11°, n.° 8 do ADT que proíbe as práticas abusivas de endividamento excessivo das empresas em relação a entidades não residentes com quem tenham relações especiais, de modo a que obtenham vantagem fiscal, derivada do tratamento que a lei concede aos juros e aos lucros distribuídos.

IX. No que concerne à não aceitação como custo fiscal do encargo com a aquisição de bilhetes de Ingresso no Estádio de ……….., cumpre referir que, a cedência (venda) de bilhetes foi obtida por mero encontro de contas relativo a um aditamento efectuado com outro objectivo, não se encontrando o custo suportado com qualquer documento de suporte contabilístico, uma vez que se refere a um acordo entre a Recorrida e o …….., motivo pelo qual, não pode ser aceite com custo nos termos do disposto no art. 23.º, n.º 1 do CIRC.

X. Mais, a ora Recorrida ao não exigir a emissão de factura, foi co-responsável pela não liquidação do IVA e, eventualmente, pela não contabilização do proveito na contabilidade do ……...

XI. Quanto a esta matéria foi, também, assumida a mesma posição pelo Digno Magistrado do Ministério Publico, como se pode constatar no parecer que proferiu no sentido de improcedência da Impugnação, sufragando, entendimento jurídico dissidente do manifestado na douta sentença recorrida.

Pediu fosse concedido provimento ao recurso, fosse revogada a decisão recorrida e a mesma substituída por acórdão que julgasse a impugnação judicial totalmente improcedente.

Os Recorridos apresentaram contra-alegações, que remataram com as seguintes conclusões: «(…)

A. O recurso interposto pela Fazenda Pública não merece qualquer provimento.

B. Na verdade, o thema decidendum no presente recurso foi já decidido por este Supremo Tribunal em recurso de revista, proferido em 08.11.2017, no processo n.º 770/14, num caso exatamente igual ao dos presentes autos mas referente ao exercício de 2006.

C. Já na pendência da presente ação, o TAF de Sintra decidiu também favoravelmente à ora Recorrida por sentenças de 22.12.2011 (no processo n.º 1331/09.0BESNT, relativo ao exercício de 2004), de 18.01.2012 (no processo n.º 671/10.0BESNT, relativo ao exercício de 2005) e de 28.09.2012 (no processo n.º 992/10.1BESNT, relativo ao exercício de 2006).

D. Está em causa a anulação da liquidação de IRC que tem subjacente uma situação de subcapitalização e as correções à matéria tributável da ora Recorrida em virtude da cedência de ingressos no Estádio de …………

E. Andou bem o Tribunal a quo ao julgar que o artigo 61.º do Código do IRC viola o princípio da livre circulação de capitais que o artigo 63.º do TSFUE garante, bem como o artigo 8.º, n.º 4 da CRP, pois impede a dedutibilidade dos juros pagos a entidades não residentes e, nessa medida, “estabelece uma distinção arbitrária entre entidades residentes e entidades não residentes em território português para efeitos de dedução de juros de empréstimos celebrados pela sociedade” (cf. p. 66 da sentença recorrida).

F. Isto porque não pode o Estado Português limitar a dedutibilidade dos juros pagos por uma entidade residente em Portugal a uma entidade residente nos EUA de forma diferente da que faria caso esse pagamento fosse efetuado a uma entidade residente em Portugal.

G. O n.º 1 do artigo 61.º do Código do IRC in casu viola também o ADT entre Portugal e os EUA.

H. Note-se que o estabelecido no artigo 11.º, n.º 8 desse CDT não “autoriza” a aplicação do artigo 61.º, n.º 1 do Código do IRC ao caso sub judice, na medida em que tal norma só se aplica quando o montante dos juros pagos por uma entidade a outra com a qual tenha relações especiais exceda o montante que seria contratado entre duas entidades independentes.

I. De acordo com a norma do ADT, a AT teria de analisar qual o montante de juros que não seria pago entre entidades independentes (e desconsiderar esse excesso), sublinhando-se que este “excesso de juros” nada tem que ver com o “endividamento excessivo” referido no regime da subcapitalização da nossa lei interna: um diz respeito aos juros pagos em excesso face às condições de mercado, e o outro tem a ver com o limite de endividamento a partir do qual se aplica o regime.

J. Pelo contrário, a AT apenas calculou quais os juros relativos a empréstimos que excedem o dobro da participação no capital, e desconsiderou todos esses juros, violando-se assim explicitamente o estabelecido no ADT, até porque a AT nunca chegou a referir qual seria o juro de mercado, ou seja, o juro que seria praticado entre entidades independentes.

K. Os SIT nunca se dignaram a apresentar, eles próprios, valores ou factos que de algum modo contradissessem os elementos constantes da contabilidade da Impugnante e apresentados por esta ao abrigo do n.º 6 do artigo 61.º do Código do IRC.

L. Termos em que a liquidação aqui em análise resulta da aplicação de uma norma que viola não só o Direito Europeu mas também o ADT.

M. E ainda que este STA dê provimento ao recurso — o que apenas se equaciona, sem conceder, por cautela de patrocínio — sempre deverá ser anulada a liquidação impugnada, porque ilegal.

N. Com efeito, o ato de liquidação é ilegal por preterição de formalidades essenciais, consubstanciada na violação do procedimento previsto no artigo 63.º do CPPT.

O. A quanto acresce que, caso assim não se entendesse — o que somente se equaciona, sem conceder, por dever de patrocínio —, o requerimento apresentado pela Recorrida em janeiro de 2004 terá enquadramento no n.º 1 do artigo 64.º do CPPT, sendo o resultado o mesmo: o requerimento foi tacitamente deferido uma vez que não lhe foi dada resposta no prazo de 6 meses, pelo que é inaplicável ao caso o n.º 1 do artigo 61.º do Código do IRC, devendo a liquidação ser anulada.

P. De igual forma, resultou provado nos autos que a ora Recorrida cumpriu o disposto no n.º 6 do artigo 61.º do Código do IRC, razão pela qual pelo que é inaplicável ao caso o n.º 1 do artigo 61.º do Código do IRC, devendo a liquidação ser anulada.

Q. Finalmente, a correção relativa à não-aceitação como custo da aquisição de bilhetes no Estádio de ………, fundada única e exclusivamente na circunstância de a impugnante não ter apresentado a fatura que titula a aquisição dos bilhetes ao …….. (que não terá sido emitida pelo …….), porquanto, não só a lei não estipula, em parte alguma, que os custos, para efeitos de IRC, têm obrigatoriamente de estar suportados por fatura, como também a Impugnante fez prova cabal e suficiente de todos os elementos de que depende a dedutibilidade dos custos e que são unanimemente aceites pela jurisprudência e pela própria AT: a existência de um custo suportado pela Impugnante, o valor desse custo, a indispensabilidade do custo para a realização dos proveitos e documento comprovativo do mesmo.

R. De tudo quanto foi exposta resulta evidente que a atuação da AT in casu preenche o conceito de erro imputável aos serviços, assim sendo indubitável o direito a juros indemnizatórios que assiste à ora Recorrida.».

1.2. Recebidos os autos neste tribunal, foi ordenada a abertura de vista ao Ministério Público.

O Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer que, pelo seu interesse, aqui se transcreve parcialmente: «(…)

A sentença recorrida não padece de erro de julgamento como lhe vem assacado, tendo feito, à luz do disposto no artigo 8°, nº 4 da CRP correcta interpretação e aplicação do direito, suportando-se em ajustada jurisprudência quer comunitária quer nacional, desde logo deste STA.

Aliás, este STA já se pronunciou sobre esta questão em situação idêntica à aqui debatida no âmbito do processo n° 0770/14, de 08.11.2017 cujo sumário do acórdão passamos a citar:

“I — A subcapitalização corresponde a um recurso excessivo a capitais de terceiros como forma de financiamento das sociedades.

II — A subcapitalização ou “Thin capitalization” é sob o ponto de vista fiscal uma forma de utilização de endividamento junto de entidades não residentes com vista à redução artificial do lucro tributável das empresas para efeitos de IRC.

III — O artigo 61 do CIRC sendo uma medida antiabuso que estabelece uma distinção arbitrária entre entidades residentes e entidades não residentes em território português para efeitos de dedução de juros de empréstimos celebrados pela sociedade viola o princípio de livre circulação de capitais que o artigo 63 do TSFUE garante bem como o artigo 8° n° 4 da CRP”.

Como não se vê que tenha sido mal interpretado o disposto no artigo 74° n° 1 da LGT, para tanto basta ver o conteúdo dos pontos B e C do probatório. A decisão ancorada na prova que está assente no probatório, que não foi posta em causa, que não suscitou dúvidas, mostra ter tido em conta a repartição do ónus da prova e, “(…) é de realçar que a regra no processo judicial é a de as dúvidas probatórias serem valoradas a favor do contribuinte (n° 1)”, como se frisa em anotação à LGT, anotada e comentada, 4ª ed. 2012, de Diogo Leite Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, caso ocorram.

4 — Deve, manter-se a decisão recorrida por nenhum erro ser de lhe assacar e o recuso improceder».

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.



2. Dos fundamentos de facto

Na douta sentença recorrida foram julgados provados os seguintes factos: «(...)

A. A. A Impugnante é uma sociedade subsidiária de uma entidade não residente em território português, a B………….., Inc., com sede nos Estados Unidos, tendo obtido desta financiamento para investimento na sua actividade, do qual resultou um endividamento no valor global de € 68.939.726,03 (cf. artigos 41.° e segs. da p. i., não impugnados pela Fazenda Pública, pp. 2 e 32 do Relatório final de inspecção constante do PAT apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, doc. 11, junto com a p. i. a fls. 260 e 261, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, doc. 12, junto com a p. i. a fls. 262 e segs. cujo teor se dá por integralmente reproduzido e doc. 13, junto com a p. i. a fls. 277 e segs., cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

B. B. A Impugnante apresentou, em 24 de Janeiro de 2004, requerimento dirigido ao Director-Geral dos Impostos, ao abrigo do disposto nos n.°s 6 e 7 do artigo 61.° do CIRC, para “demonstrar que o nível e as condições de endividai junto da B………, Inc., entidade considerada como não residente para efeitos de IRC, são análogos aos que poderiam ser obtidos caso tivesse optado por se financiar junto de uma instituição financeira independente”, “razão pela qual não lhe será aplicável o disposto no n.° 1 do artigo 61.º do CIRC” (cf .doc. 2, junto com a p. i., a fls. 118 e segs., cujo teor se dá por integralmente reproduzido, com tradução dos documentos a fls. 353 e segs., cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

C. C. A Impugnante foi alvo de uma acção de inspecção, em sede de IRC, no âmbito da qual foram efectuadas correcções à matéria colectável, meramente aritméticas, ao exercício de 2003, no montante de € 2.316.154,01, “por enquadramento nos artigos 61.°, n.°s 1 e 6 e 42.°, n.° 1, alínea g) do CIRC”, com a seguinte fundamentação essencial (cf. doc. 3, junto com a p. i. a fls. 130 e segs., cujo teor se dá por integralmente reproduzido e pp. 6 e segs. e 47 Relatório final de inspecção constante do PAT apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido):










































D. Dá-se por integralmente reproduzido o teor dos Anexos 1 a 15 ao Relatório final de inspecção, constantes de fls. 379 e segs. do PAT apenso;

E. Em 10 de Dezembro de 2007, foi emitido o acto de liquidação de IRC n.° 2007 8610019112, referente ao exercício de 2003, no montante de €27.183,27, que a Impugnante pagou m 17 de Janeiro de 2008 e, em 12 de Dezembro de 2007, foi emitida a respectiva compensação n.° 2007 00007221598 (cf. doc. 4, junto com a p. i., a fls. 183 e 184, cujo teor se dá por integralmente reproduzido e fls. 472 do PAT apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

F. Em 16 de Abril de 2008, a Impugnante apresentou reclamação graciosa do acto de liquidação referido na letra anterior (cf. doc. 5, junto com a p. i., a fls. 185 e segs., cujo teor se dá por integralmente reproduzido e fls. 2 e segs. dos autos de reclamação graciosa constantes do PAT apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

G. Por Oficio n.° 005089, de 19 de Janeiro de 2010, recebido em 21 de Janeiro de 2010, a então Reclamante foi notificada do despacho de 18 de Janeiro de 2010, proferido pelo Director de Finanças Adjunto (Direcção de Finanças de Lisboa), que deferiu parcialmente a reclamação graciosa que apresentara contra o mesmo acto de liquidação, com a seguinte fundamentação essencial (cf. doc. 6, junto com a p. i., a fls. 235 e segs., cujo teor se dá por integralmente reproduzido e fls. 294 e segs. e 305 dos autos de reclamação graciosa constantes do PAT apenso, cujo teor se dá por integralmente reproduzido):





H. A p. i. da presente impugnação judicial foi enviada ajuízo via correio registado em 5 de Fevereiro de 2010 (cf. fls. 322, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

I. Dá-se por integralmente reproduzido o teor do doc. 7, protestado juntar na p. i. e junto a fls. 368 e segs.;

J. Dá-se por integralmente reproduzido o teor do doc. 10, junto com a p. i. a fls. 250 e segs.;

K. Dá-se por integralmente reproduzido o teor do doc. 14, junto com a p. i. a fls. 284 e segs.;

L. Dá-se por integralmente reproduzido o teor do doc. 17, junto com a p. i. a fls. 321.

M. Dá-se por integralmente reproduzido o teor da informação prestada pela Divisão de Justiça Contenciosa da Direcção de Finanças de Lisboa, junta com a contestação e constante de fls. 483 e segs. do processo administrativo tributário.



3. Dos fundamentos de Direito

3.1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que julgou procedente a impugnação judicial da decisão da reclamação graciosa do ato de liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares do exercício de 2003 e, em consequência, anulou as correções cuja legalidade tinha sido sancionada pela Direção Distrital de Finanças nessa reclamação.

Do teor da sentença recorrida resulta que foram anuladas duas correções (de entre as efetuadas pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa e fundamentadas no teor do relatório de inspeção tributária de 8 de novembro de 2007, referente à atividade inspetiva desencadeada pela ordem de serviço n.º OI200508754, de 22/12/2005):

- a primeira diz respeito ao valor dos custos financeiros lançados pela ora Recorrida na conta 681 (juros suportados com a utilização de capitais obtidos sob a forma de empréstimos) e deduzidos na declaração de rendimentos desse exercício, no montante de € 3.482.096,03, dos quais não foram aceites € 2.316.154,01;

- a segunda diz respeito ao valor dos custos operacionais contabilizados na rubrica «publicidade» e justificados com um acordo firmado com o …………., no montante de € 43.644,62, que não foram aceites na sua totalidade.

A inspeção tributária tinha justificado a primeira correção com o facto de ter sido excedido o rácio de subcapitalização previsto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 61.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (doravante identificado pela abreviatura “CIRC”) em 70,35% e o sujeito passivo não ter demonstrado, de forma inequívoca, que podia ter obtido o mesmo nível de endividamento e em condições análogas junto de uma entidade independente.

E tinha justificado a segunda correção com o facto de o custo não se encontrar devidamente documentado – já que não foi emitida nenhuma fatura e um acordo quando à forma de devolução de valores adiantados não é um documento aceite fiscalmente para o justificar, por não constituir mais do que «uma declaração de intenções das partes» – e o sujeito passivo não ter demonstrado que não é responsável pela falta de emissão da fatura.

Na sentença recorrida foi decidido, quanto à primeira correção, que o regime de subcapitalização previsto no artigo 61.ºdo CIRC é incompatível com os artigos 26.º, n.ºs 4 e 6, da Convenção sobre a Dupla Tributação celebrada entre Portugal e os Estados Unidos da América e bem assim, com o princípio de livre circulação de capitais que o artigo 63.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia garante. Em consequência, concluiu a Mm.ª Juiz a quo que se verifica o vício da inconstitucionalidade assacado pela Impugnante à norma fundamentadora do ato de liquidação. E julgou prejudicada a apreciação dos demais vícios.

E foi decidido, quanto à segunda correção, que foi errada a desconsideração do custo correspondente, uma vez que a justificação do custo constitui uma formalidade probatória e, por isso, substituível por qualquer outro meio de prova.

A respeito da primeira correção, a Representante da Fazenda Pública começou por assinalar (corretamente) que está em causa saber se «tal como o Tribunala quo decidiu (,) se verifica o vício de inconstitucionalidade quanto à norma fundamentadora do ato de liquidação impugnado» [cfr. o ponto “7.” das doutas alegações do recurso].

Todavia, quando se propôs fazer a demonstração do erro de julgamento nesta parte, a Representante da Fazenda Pública limitou-se a referir que recaía sobre a Recorrida o ónus de provar que as condições de financiamento da empresa americana eram análogas ou mais favoráveis do que as oferecidas por empresas independentes.

Ora, como é evidente, a demonstração da constitucionalidade de uma norma não se faz apelando ao erro na aplicação dessa norma, designadamente das regras nela inseridas e que determinem a repartição do ónus probatório dos factos que toma como pressupostos. Porque o dever de aplicação das regras do ónus da prova inseridas nessa norma já pressupõe a sua conformidade com a Constituição e, por conseguinte, a sua aplicabilidade no direito interno.

Dizendo de outro modo, não faz sentido dizer que foi bem aplicado o n.º 1 do artigo 61.º do CIRC por não ter sido feita a demonstração a que alude o seu n.º 6 se a aplicação daquele n.º 1 estiver vedada pela sua desconformidade com norma supra legal.

Por outro lado, a Recorrente nada contrapõe à argumentação desenvolvida no acórdão deste Supremo Tribunal de 8 de novembro de 2017, no processo n.º 0770/14, que a Mm.ª Juiz “a quo” cita abundantemente. Processo que, como a Recorrente sabe muito bem, correu entre as mesmas partes para apreciação de questão em todo idêntica, embora relativa a um exercício ulterior. E onde foi decidida a incompatibilidade do regime de subcapitalização previsto no artigo 61.º do CIRC com os artigos 26 n.ºs 4 e 5 e 11 n.º 8 da Convenção Sobre Dupla Tributação celebrada entre Portugal e os Estados Unidos da América e com o princípio de direito comunitário da liberdade de circulação de capitais.

Designadamente, a Recorrente não contraria a conclusão fundamental nele inserida, segundo a qual o preceito em causa, «traduz um tratamento fiscal menos favorável de uma sociedade residente que contrai um endividamento que excede um certo nível para com uma sociedade com sede num país terceiro do que o tratamento reservado a uma sociedade residente que contrai o mesmo endividamento para com uma sociedade residente no território nacional ou noutro Estado-Membro». E que, por isso, «“consagra uma medida discriminatória limitadora da livre circulação de capitais pois que apenas as entidades não residentes ficam sujeitas ao regime do artigo 61 do CIRC quando o direito tributário em sede de IRC não distingue para efeitos de determinação de rendimento tributável em sede de IRC entre sociedades com sócios residentes e sociedades com sócios não residentes não se justificando por isso esse tratamento diferenciado”.».

Entendimento que, por isso, se não justifica rever agora, havendo que julgar – desde já e sem necessidade de qualquer outra fundamentação – improcedente o recurso nesta parte.

Resta-nos, por isso, a apreciação do erro de julgamento quanto à segunda correção.

3.2. A questão que importa decidir é, então, a de saber se custos operacionais contabilizados na rubrica «publicidade» e justificados com um acordo firmado com o …………… estão ou não devidamente documentados.

Importa começar por lembrar que estamos perante custos relativos ao exercício de 2003. A redação do CIRC a considerar e, por isso, a anterior à que lhe foi introduzida pela Lei n.º 82-C/2014, de 31 de dezembro. Não existia então uma norma equivalente à do n.º 6 do seu artigo 23.º (na redação atual), segundo o qual, «quando o fornecedor dos bens ou prestador dos serviços esteja obrigado à emissão de fatura ou documento legalmente equiparado nos termos do Código do IVA, o documento comprovativo dos bens ou serviços (…) deve obrigatoriamente assumir essa forma».

Como se sabe, havia ao tempo duas correntes jurisprudenciais: uma que defendia que os gastos com operações sujeitas a faturação deviam ser obrigatoriamente comprovados por fatura emitida pelo fornecedor dos bens ou prestador dos serviços que observasse os requisitos estabelecidos no Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado; outra que defendia que a comprovação desses gastos podia fazer-se com recurso a outros documentos que, não contendo embora as específicas solenidades da fatura, indicassem explicitamente as principais características da operação (sujeitos, objeto, data e preço).

Era a segunda a corrente maioritária e aquela que foi adotada, designadamente, nos acórdãos deste Supremo Tribunal de 8 de julho de 1999, no processo n.º 23535, e de 5 de julho de 2012, no processo n.º 658/11. Neste último se decidiu, além do mais, que «em sede de IRC, o documento comprovativo e justificativo dos custos para efeitos do disposto nos arts. 23.º, n.º 1, e 42.º, n.º 1, alínea g), do CIRC não tem de assumir as formalidades essenciais exigidas para as faturas em sede de IVA».

Jurisprudência que agora se reafirma. À data dos factos, o documento justificativo de um lançamento contabilístico e, em particular, um documento comprovativo de um custo não tinha que ser constituído por uma fatura ou documento equivalente. O que importava era que o documento fosse adequado a comprovar a realização da operação e a relaciona-la com a fonte produtora.

Quer dizer, não relevava o conteúdo formal do documento, mas um certo conteúdo funcional, a sua adequação para cumprir uma certa função, que podemos agora designar de função de justificação ou de credibilização.

Trata-se de uma função dos documentos que não tem paralelo no direito civil, porque não está aqui em causa comprovar as declarações negociais e assegurar a sua eficácia externa (com a consequente estabilidade e segurança nos negócios jurídicos) mas indiciar a transferência de riqueza, isto é, constituir um indício fundado da ocorrência de uma operação com relevo fiscal.

Assim, os documentos de suporte aos lançamentos contabilísticos deviam ser adequados a relacionar um certo fluxo financeiro com uma operação subjacente com relevo económico (a jusante) e com a fonte produtora (a montante). Se permitissem o estabelecimento desse elo ou nexo na cadeia dos acontecimentos da empresa seriam documentos credíveis, no sentido de que conferiam uma certa aparência de verdade à operação e concorriam, assim, para suportar a credibilidade da própria escrita, tão necessária ao funcionamento da presunção a que alude o artigo 75.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária.

Mas, se o enfoque estava no conteúdo funcional desses documentos (na função específica que cumpriam no plano contabilístico e do direito fiscal), isto também significa que, na falta de disposição legal que o impusesse, os documentos não tinham que ter uma forma específica, isto é, não tinham que observar específicos requisitos formais para cumprirem a sua função.

De salientar que as faturas têm – ainda hoje – uma função em sede de IVA que não tem paralelo no em sede de IRC e que podemos designar de função de acertamento ou até de substanciação. Porque servem para acertar (titular) um direito (o direito a deduzir o imposto nele mencionado) e consubstanciar (incorporar) o ato cuja estrutura e comando torna esse direito possível (o ato de faturar). Porque, como refere José Guilherme Xavier de BastoA Tributação do Consumo e a sua Coordenação Internacional», in Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal (164), Lisboa 1991, pág. 140], em sede de IVA «cada fatura mencionando imposto constitui um cheque sobre o tesouro».

Nas palavras de Tomás Maria Cantista de Castro TavaresDa relação de dependência parcial entre a contabilidade e o direito fiscal na determinação do rendimento tributável das pessoas coletivas: algumas reflexões ao nível dos custos», in Ciência e Técnica Fiscal n.º 396, pág. 124], «as exigências formais em sede de IVA resultam das características e dos fins acautelados por este imposto, quais sejam de uma intervenção poligonal, por incidência financeira do imposto sobre as diversas fases de transação do bem (…). Ao nível do imposto sobre o rendimento, as exigências formais não são tão severas», porque «[a]o documento justificativo apenas se pede que identifique as operações societárias e que condense um eficaz mecanismo de controlo».

Assumindo, então, que o documento justificativo do lançamento contabilístico relativo aos custos operacionais que a Recorrida contabilizou na rubrica «publicidade», no montante de € 43.644,62 não tinha que ser uma fatura, importa ainda responder a outra questão: a de saber se esse lançamento poderia ser justificado com um «acordo» firmado com o prestador do serviço.

A resposta a esta questão é a seguinte: depende.

Em abstrato, um acordo entre os contraentes, vertido num documento escrito e que contenha a identificação completa dos contraentes (incluindo os números de identificação fiscal respetivos), a denominação dos serviços prestados, os elementos que evidenciem os seus aspetos quantitativos, a data e o preço, pode ser um documento justificativo da operação contabilística correspondente. Em primeiro lugar, porque alberga as características fundamentais da operação, permitindo a sua individualização e a verificação da sua conexão com a fonte produtora. Em segundo lugar, por se tratar, em princípio, de um documento bilateral (e, por isso, um suporte externo) que pode ser oposto ao prestador do próprio serviço.

Em concreto, não é possível dizer. Porque esse dito «acordo» nunca foi junto aos autos, nem ao processo administrativo em apenso.

Como deriva do processo administrativo em apenso, esse «acordo» constará do anexo X do relatório de inspeção tributária, mas ao processo administrativo só foram juntas cópias dos sete primeiros anexos. Debalde se procurou alguma cópia do dito «acordo» junto à petição inicial, porque a ali impugnante também não se dignou juntá-lo aos autos. À cautela, atenta a dimensão do processo físico, confirmamos também que não é nenhum dos documentos que a Mm.ª Juiz a quo dá como reproduzidos nas alíneas “H” e seguintes dos factos provados.

Poderia então dizer-se que o conteúdo do acordo é indiferente, porque a Administração Tributária se terá limitado a dizer que, um acordo (em abstrato) não constitui documento justificativo. Mas é raciocínio que não podemos fazer porque, embora a inspeção tributária tivesse assumido que só considerava documento justificativo a «competente fatura», a fundamentação do ato que vingou na decisão da reclamação graciosa não é tão perentória, tendo-se assumido ali que, no caso da inexistência da fatura (o único documento a que atribuiu origem externa), a prova dos custos poderia ser efetuada por outros documentos (substitutivos) desde que confirmasse a autenticidade dos movimentos refletidos na contabilidade. Coisa que, no caso concreto, entendeu não suceder.

Ou seja, se a decisão administrativa começou por ser a de repudiar (em abstrato) o acordo como documento justificativo, a decisão graciosa foi no sentido de (em concreto) considerar esse documento insuficiente para demonstrar a efetividade da operação e o montante gasto. Remetendo, assim, implicitamente, para o conteúdo concreto do documento anexado ao relatório de inspeção tributária.

A análise do documento também serviria para, no caso de não conter todos os elementos necessários e de se mostrarem apenas parcialmente incumpridos os critérios de documentação do custo, avaliar a gravidade das lacunas e ponderar as suas consequências. É que da falta de indicação de alguma característica da operação no documento de suporte também não tem que derivar a rejeição liminar da dedução do custo correspondente. Não sem que o juízo sobre a falta de colaboração extraprocedimental evidenciada na deficiente documentação da operação seja complementado com um juízo sobre o cumprimento dos deveres de colaboração endoprocedimental, isto é, sobre o empenho manifestado pelo sujeito passivo ao longo do próprio procedimento inspetivo em esclarecer as razões da deficiência documental e os meios para a superar. Porque o comportamento do contribuinte no procedimento também pode indicar se a deficiência derivou da intenção de ocultar (algum d)os verdadeiros contornos da operação ou de alguma outra circunstância justificável.

De todo o exposto deriva que o tribunal de primeira instância deveria ter, no quadro dos seus poderes de instrução oficiosa consagrados no artigo 114.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, avocado o documento em causa ou cópia do mesmo. E formulado com base nele um juízo concreto sobre a sua idoneidade para justificar o custo correspondente.

Não o tendo feito, incorreu em erro de julgamento. Devendo com este fundamento ser anulada a decisão recorrida, no segmento respetivo, e ordenada a devolução dos autos à primeira instância para realização da diligência omitida e prolação e nova decisão, na parte correspondente.



4. Conclusões

4.1. Tendo sido afastada a aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, não pode o erro de julgamento respetivo ser demonstrado apelando às regras do ónus de prova que dimanam da norma infraconstitucional correspondente;

4.2. Tendo sido invocada, pela administração tributária, a insuficiência da documentação de um custo com o facto de um determinado documento não evidenciar os termos da operação, o juízo sobre o erro material na desconsideração do custo correspondente não dispensa a análise desse documento.



5. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária deste Tribunal em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, anular a decisão recorrida na parte em que conheceu do vício imputado à não aceitação como custo fiscal do «encargo com a aquisição de bilhetes de ingresso no Estádio ……. » e ordenar a baixa dos autos para aquisição de melhor prova nos termos acima descritos (ponto 4.2. supra) e subsequente decisão, se nada mais a tal obstar.

No mais, negar provimento ao recurso.

A Fazenda Pública suportará custas em ambas as instâncias na parte em que decaiu, fixando-se a medida do seu decaimento, para este efeito, em 98%.

D.n.

Lisboa, 6 de Maio de 2020. – Nuno Bastos (relator) – Gustavo Lopes Courinha – José Gomes Correia.