Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02840/09.6BEPRT
Data do Acordão:03/06/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:IVA
CÁLCULO PRO RATA
ÓNUS DE PROVA
Sumário:Quando o ato de liquidação adicional do IVA se fundamente no não reconhecimento das deduções declaradas pelo sujeito passivo, cabe a este a prova dos factos constitutivos do direito à dedução, ou seja, cabe a este alegar e demonstrar que, no caso concreto, a utilização os bens ou serviços mistos não era sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos.
Nº Convencional:JSTA000P32002
Nº do Documento:SA22024030602840/09
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A..., SA
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral:
ACÓRDÃO

1. RELATÓRIO

1.1. A Fazenda Pública, inconformada com a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto na parte em que julgou procedente a Impugnação Judicial «quanto à correcção respeitante à desconsideração da amortização financeira no cálculo do pro rata» interpôs recurso para este Supremo Tribunal Administrativo.

1.2. Nas alegações de recurso apresentadas formulou as seguintes conclusões:

«A) Vem o presente recurso interposto contra o segmento da sentença proferida nos presentes autos que julgou a impugnação parcialmente procedente e, em consequência determinou «quanto à correcção respeitante à desconsideração da amortização financeira no cálculo do pro rata, (…) Atendendo ao ónus da prova que recaia sobre a AT, que aqui já demos conta, a situação de non liquet quanto à utilização pela Impugnante dos serviços de utilização mista no ano de 2005 tem de ser valorada processualmente contra a AT. Ademais, na decorrência de não ter sido comprovado que a utilização dos bens e serviços de utilização mista foi sobretudo determinado pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira, também não resultou comprovado da instrução dos autos que a utilização do método de determinação do pro rata de baseado no volume de negócios provoque ou possa provocar distorções significativas da tributação, nomeadamente que possa provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas provocar vantagens ou prejuízos injustificados. Nesta senda, impõe-se concluir pela existência de erro sobre os pressupostos de facto, que justifica a anulação da liquidação impugnada no que contende com esta questão.».

B) A Fazenda Pública não se conforma com o decidido pois entende que a douta sentença incorreu em erro de julgamento de direito do disposto no artigo 74º da LGT, relativamente à repartição do ónus da prova.

Vejamos,

C) A presente impugnação foi deduzida pela ora impugnante contra o acto tributário de liquidação adicional de IVA, do período de 0512 (mês de Maio de 2012), e respectivos juros compensatórios,

D) Na sentença deu-se como provada a factualidade transcrita nas alegações supra.

E) Sobre aquela alegação, extrai-se da sentença:

“Considerou a AT que no cálculo da percentagem de dedução do pro rata, nos termos do artigo 23.º do CIVA, só poderão ser considerados os montantes correspondentes aos juros e outros encargos relativos à actividade de leasing, também baseada em interpretações internas, nomeadamente a Informação n.º ...63 de 8.09.2008 e o Oficio-Circulado n.º ...18 de 30.01.2009.

A Impugnante, no entanto, vem sustentar que as informações administrativas, para além de traduzirem uma mera opinião da AT, também não podem ser aplicadas retroactivamente.

Ao contrário do pro rata apurado pela Impugnante na ordem dos 42%, em sede do procedimento inspectivo, a AT apurou que ao invés dos montantes referidos, a Impugnante deveria ter incluído no numerador o montante de €43.367.392,99 e no denominador €79.892.096,59, traduzindo o apuramento do pro rata definitivo de 55%, ao contrário dos 42% apurados anteriormente, não obstante, não tendo apresentado qualquer declaração nesse sentido, a AT veio a entender que a percentagem do pro rata apurado na ordem dos 42% se cifra apenas em 11%.

(…)

Para tal, mostra-se necessário demonstrar que a utilização dos bens e serviços de utilização mista foi sobretudo influenciada pelo financiamento e pela gestão dos contratos.

Ora, como é consabido, é sobre a AT que recai o ónus da prova dos pressupostos dos direitos de tributação que invoca, como resulta do disposto no n.º 1 do artigo 74.º da LGT.

F) Com o assim decidido não pode a Fazenda Pública conformar-se, porquanto, a prova dos factos alegados compete a quem os invoca, nos termos do disposto no art. 74º da LGT, conforme citado na sentença;

G) O ónus da prova no Procedimento e Processo Tributário é repartido, tendo o legislador na LGT optado igualmente por uma partilha equitativa do encargo probatório entre a Administração Fiscal e o contribuinte, ou seja, por uma solução de equilíbrio, para que não haja injustiça e desigualdade.

H) Ónus da prova esse que, de acordo com a lei, recai sobre quem invoca os factos, ou seja, como determina o art. 74º nº 1 da LGT “o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da Administração Tributária ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque”, art. 88º do Código do Procedimento Administrativo “cabe aos interessados provar os factos que tenham alegado” e art. 342º do Código Civil “cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado aquele que invoca o direito”.

I) Acresce que sobre a questão do ónus da prova, existe ampla jurisprudência, sustentando que cabe à AT o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais vinculativos legitimadores da sua atuação e que cabe ao contribuinte provar os factos que operam como suporte das pretensões e direitos que invoca. (v.g. Decisão Arbitral nº 236/2014-T de 4 de Maio de 2015).

J) Neste sentido v.g., inter allios, os acórdãos do STA, proferidos em 15/07/2020 e 15/11/2017, in procs. 1745/10.2BELRS e 0485/17, em matéria semelhante à dos presentes autos.

K) Daí que o cerne da questão está na prova, no ónus da prova, prova essa que a impugnante não aduz, ou seja, os elementos necessários para provar os factos não foram presentes, estamos assim em face de ausência probatória que sustente o pretendido.

L) Pelo que, entende a Fazenda Pública que o acto tributário anulado, não padece de qualquer vício, reflectindo a situação jurídico-tributária do aqui impugnante, devendo permanecer na sua estabilidade e vigência no ordenamento jurídico, revogando-se, neste segmento, a douta sentença recorrida.

M) Por esta razão, se considera que o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento de direito, porquanto errou na interpretação e subsunção dos factos ao direito, designadamente o disposto nos artigos 74º e 75º da LGT, tomando, a final, uma decisão contrária à que se impunha face aos elementos tidos nos autos.

N) Deste modo se constata que a liquidação emitida foi efectuada em escrupuloso cumprimento dos normativos legais aplicáveis à situação jurídico-tributária da aqui impugnante, e não tendo a impugnante apresentado os elementos de prova, ónus que lhe impende para prova do alegado, pelo que a presente impugnação não poderia proceder.

O) Então, e por aplicação do disposto no artigo 75.º n.º 2, afasta a presunção e consequentemente caberia ao contribuinte a responsabilidade de prova.

P) Concomitantemente, entende a Fazenda Pública que o acto tributário deve permanecer na sua estabilidade e vigência no ordenamento jurídico, revogando-se a douta sentença recorrida, dada a ausência de comprovação dos elementos declarados, cujo ónus da prova lhe competia, e que a não ser produzida conduz inevitavelmente à sua desconsideração.

Q) A liquidação impugnada não padece de qualquer vício, reflectindo a situação jurídico-tributária do aqui impugnante, pelo que deverá manter-se na ordem jurídica.

R) Por esta razão, se considera que o tribunal incorreu em erro de julgamento de direito, por violação do disposto nos artigos 17º e 23º do CIVA, e, 74º e 75º da LGT.

1.3. A..., S.A. (anteriormente designada por B..., S.A.)., contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:

«A. Discute-se no presente recurso, que vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial da liquidação adicional de IVA nº ...88 relativa ao período de dezembro de 2005 e da inerente liquidação e juros compensatórios nº ...89, a ilegalidade da desconsideração da componente de amortização financeira no cálculo do pro rata utilizado pela Recorrida para deduzir o IVA suportado nos bens de utilização mista, por referência ao ano de 2005.

B. A sentença recorrida havia sido precedida de acórdão do STA, no qual se concluiu pela necessidade, para a boa resolução da questão controvertida, de ampliação da matéria de facto, tendo em vista determinar se a utilização dos bens ou serviços de utilização mista no ano de 2005 foi, sobretudo, determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados pela Recorrida com os seus clientes, ou ao invés, pela disponibilização de veículos.

C. Com a consequente descida dos autos ao Tribunal de 1ª Instância para ampliação da matéria de facto, a Recorrida carreou para o processo elementos de prova verosímeis a demonstrar que nas operações realizadas que implicaram a utilização de recursos comuns ou mistos no ano de 2005, essa utilização de bens ou serviços mistos foi sobretudo determinada pela componente relativa à disponibilização dos veículos locados, conforme resulta do relatório e dos factos provados 11), 12) e 13) da sentença recorrida.

D. Por seu turno, a AT limitou-se a referir que não existe nenhum elemento que permita validar ou fazer prova de que a utilização dos bens ou serviços de utilização mista no ano de 2005 foi, sobretudo, determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados pela Recorrida com os seus clientes, ou ao invés, pela disponibilização de veículos, até porque reportado àquela data, não havia instruções nem legislação nem jurisprudência nesse sentido, conforme resulta do facto provado 15) da sentença recorrida.

E. O TAF Porto julgou procedente a impugnação judicial apresentada pela Recorrida quanto à correção respeitante à desconsideração da amortização financeira no cálculo do pro rata, por entender, sucintamente, que:

(i) É sobre a AT que recai o ónus da prova dos pressupostos dos direitos de tributação que invoca, como resulta do disposto no nº 1 do artigo 74º da LGT.

(ii) Não resultou comprovada da instrução dos autos que a utilização dos bens e serviços de utilização mista foi sobretudo determinado pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira.

(iii) Não está preenchido o requisito de que o STA faz depender para que se considere apenas os montantes correspondentes aos juros e outros encargos relativos à atividade de leasing, impondo-se considerar que a imposição à Impugnante da utilização do sistema específico de determinação do pro rata é incompatível com o Direito da União Europeia.

(iv) Atendendo ao ónus da prova que recaia sobre a AT, a situação de non liquet quanto à utilização pela Impugnante dos serviços de utilização mista no ano de 2005 tem de ser valorada processualmente contra a AT.

(v) Não tendo sido comprovado que a utilização dos bens e serviços de utilização mista foi sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira, também não resultou comprovado da instrução dos autos que a utilização do método de determinação do pro rata baseado no volume de negócios provoque ou possa provocar distorções significativas da tributação, nomeadamente que possa provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas provocar vantagens ou prejuízos injustificados.

F. Contrariamente ao que sustenta a AT nas suas alegações de recurso, a decisão do TAF Porto não merece reparo, uma vez que cabia, efetivamente, à AT, em obediência ao disposto no nº 1 do artigo 74º da LGT, o ónus de provar e demonstrar que a utilização dos recursos de utilização mista da Recorrida foi, sobretudo, determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira, o que não logrou, de modo algum fazer, ao contrário da Recorrida, que apresentou os competentes meios de prova suscetíveis de demonstrar que a utilização dos bens ou serviços mistos foi predominantemente determinada pela componente relativa à disponibilização dos veículos locados.

G. Dado que a percentagem de dedução que a AT propugna, que não tem em linha de conta a amortização financeira, só deverá prevalecer sobre o pro rata calculado pelo sujeito passivo nos termos do nº 4 do artigo 23º do Código do IVA quando seja possível concluir que a utilização dos bens e serviços de utilização mista é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos, nas situações em que a AT pretenda corrigir o pro rata calculado nos termos gerais pelo sujeito passivo, por entender que este conduz a distorções na tributação, o direito à liquidação adicional da AT sempre dependerá da prova de que a aplicação do pro rata calculado nos termos gerais gera distorções significativas na tributação, ou dito de outro modo, da prova de que a utilização dos bens e serviços de utilização mista é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos.

H. Acresce que, face à particularidade de as partes serem confrontadas com a necessidade de, em momento subsequente à inspeção tributária e à interposição da impugnação judicial, terem de comprovar se a utilização dos recursos comuns foi, ou não, sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos, ou, ao invés, pela disponibilização dos veículos locados, mal se compreenderia que a AT ficasse dispensada de renovar a prova, à luz da jurisprudência agora estabilizada, dos factos constitutivos do direito à liquidação adicional que pretende fazer valer.

I. Tal entendimento conduziria a que no caso sub judice a AT, após referir expressamente que “não existe nenhum elemento que permita validar ou fazer prova dessa matéria, até porque reportado àquela data, não havia instruções nem legislação nem jurisprudência nesse sentido”, se demitisse de provar o elemento essencial de que depende o seu direito à liquidação adicional do imposto, exigindo-se, por outro lado, ao sujeito passivo que faça prova do seu direito à dedução.

J. Impendia, portanto, sobre a AT o ónus de provar e demonstrar que a utilização dos recursos de utilização mista da Recorrida foi, sobretudo, determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira, o que não logrou de forma alguma fazer.

K. Pelo que, a sentença recorrida, ao valorar processualmente a falta de prova contra a AT não merece qualquer censura.

L. Por outro lado, ainda que, por mera hipótese académica, se entendesse que cabia à Recorrida o ónus de provar que a utilização dos recursos de utilização mista da Recorrida foi, sobretudo, determinada pela componente relativa à disponibilização dos veículos locados, foi precisamente isso que sucedeu, conforme resulta do relatório e dos factos provados 11), 12) e 13) da sentença recorrida.

M. De facto, a Recorrida carreou para os autos os elementos de prova aptos a demonstrar que nas operações realizadas que implicaram a utilização de recursos comuns ou mistos no ano de 2005, essa utilização de bens ou serviços mistos foi sobretudo determinada pela componente relativa à disponibilização dos veículos locados.

N. Sendo certo que, nas suas alegações de recurso, a AT aparenta desconhecer a prova apresentada pela Recorrida, cingindo-se à referência simplista de que a Recorrida não apresentou elementos de prova, sem sequer se pronunciar criticamente sobre os elementos de prova apresentados pela Recorrida nem apontar os motivos pelos quais, no seu entender, os meios de prova apresentados pela Recorrida não são suscetíveis de comprovar que a utilização de bens ou serviços mistos foi sobretudo determinada pela componente relativa à disponibilização dos veículos locados.

O. Tendo a Recorrida apresentado os competentes elementos de prova que não foram, em termos minimamente plausíveis, colocados em causa pela AT nas suas alegações de recurso, ainda que se venha a entender que caberia à Recorrida e não à AT o ónus da prova, sempre se deverá concluir que a Recorrida cumpriu com esse ónus da prova, devendo o presente recurso ser julgado improcedente.

P. Na eventualidade de se vir a entender que da prova produzida resulta fundada dúvida sobre a existência e quantificação do facto tributário, o ato impugnado deverá ser anulado, nos termos do nº 1 do artigo 100º do CPPT, o que se requer.

1.4. A Exma. Procuradora-Geral-Adjunta neste Supremo Tribunal Administrativo, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, julgando-se improcedente a Impugnação Judicial deduzida.

1.5. Colhidos os vistos dos Excelentíssimos Juízes Conselheiros Adjuntos, submetem-se agora os autos à Conferência para julgamento.

2. OBJECTO DO RECURSO

2.1 Como é sabido, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva oficiosamente conhecer, o âmbito de intervenção do tribunal de recurso é determinado pelo teor das conclusões com que a Recorrente finaliza as suas alegações [artigo 635.º do Código de Processo Civil (CPC)].

Essa delimitação do objecto do recurso jurisdicional, numa vertente negativa, permite concluir se o recurso abrange tudo o que na sentença foi desfavorável ao Recorrente ou se este, expressa ou tacitamente, se conformou com parte da decisão de mérito proferida quanto a questões por si suscitadas, desta forma impedindo que essas questões voltem a ser reapreciadas pelo Tribunal de recurso (artigos 635.º, n.º 3 e 4 do CPC). Numa vertente positiva, a delimitação do objecto do recurso, especialmente nas situações de recurso directo para o Supremo Tribunal Administrativo, como é o caso, constitui ainda o suporte necessário à fixação da sua própria competência, nos termos em que esta surge definida nos artigos 26.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF) e 280.º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT).

2.2. No caso concreto, tendo por referência o que ficou dito, é no essencial uma a questão a decidir, qual seja a de saber a quem compete, para efeitos de aplicação do regime consagrado no artigo 23.º do CIVA, o ónus da prova de que a utilização dos bens e serviços de utilização mista foi sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira e de ALD.

2.3. Efectivamente, não obstante as várias referências realizadas pelas partes no que respeita ao probatório, nenhuma coloca em questão os factos apurados nem a valoração que deles foi extraída pelo julgador, mas, sim, a regra de repartição do ónus probatório. Mais concretamente, a interpretação da repartição desse ónus perfilhada no julgamento, o que nos determina a concluir que a questão colocada em recurso é exclusivamente uma questão de direito. E, em conformidade, que é este Supremo Tribunal Administrativo que detém a competência para apreciar e decidir o mérito do presente recurso.

3. FUNDAMENTAÇÃO

3.1. Fundamentação de facto

Em 1ª instância foram dados como provados e como não provados os seguintes factos:

1) A B..., SA está enquadrada no regime normal de IVA, com periodicidade normal, realizando operações tributadas, operações isentas e operações isentas que não conferem direito à dedução, utilizando o método de afectação real no leasing mobiliário e o método pro rata para os gastos comuns.

2) Em 30.12.2005 a B..., SA incorporou, por fusão a C..., SA, com efeitos contabilísticos reportados a 1.01.2005 – cfr. fls. 35 a 38 do processo físico.

3) A B..., SA tinha como objecto social o financiamento de aquisições a crédito de bens de consumo e equipamentos, passando a realizar a actividade de concessão de novos financiamentos de novos produtos, como o aluguer de longa duração de veículos automóveis, após a fusão a que se alude em 2).

4) Em sede de IVA e anteriormente à incorporação da C… por fusão, o tratamento conferido pela B... quanto à dedução do imposto suportado na aquisição de bens e serviços relacionados com a sua actividade era a seguinte: - Dedução integral do imposto suportado com os bens e serviços directa e exclusivamente relacionados com a actividade de locação financeira (leasing) – dedução do imposto correspondente à percentagem de dedução, pro rata, suportado na aquisição de bens e serviços afectos simultaneamente às atividades de leasing e crédito – cfr. artigo 8.º da PI.

5) A C..., SA, anteriormente à sua extinção por fusão, deduzia integralmente o IVA suportado com os custos diretamente relacionados com a actividade de leasing e de ALD – cfr. artigo 9.º da PI.

6) No cumprimento da Ordem de Serviço n.º ...55 os Serviços da Inspecção Tributária da Direcção de Finanças do Porto efectuaram procedimento inspectivo à B..., SA, com incidência no exercício de 2005, tendo apurado IVA em falta no período de 0512 no montante de €717.629,80 – cfr. fls. 25 a 113 do processo administrativo (PA) junto aos autos.

7) Em 30.06.2009 foi elaborado o relatório do procedimento inspectivo a que se alude em 6) – cfr. fls. 25 a 113 do PA junto aos autos.

8) Do relatório do procedimento inspectivo a que se alude em 7) faz partem integrante os Anexos 1 a 131 – cfr. fls. 114 a 348 do PA junto aos autos.

9) Foi emitida a liquidação adicional de IVA n.º ...88 do período de 0512 no montante de €717.629,80 e respectiva liquidação de juros compensatórios n.º ...89 no montante de €97.204,43 - cfr. fls. 33 e 34 do processo físico.

10) Foi elaborado quadro identificando valores respeitantes a Contas, Operações Tributáveis, Operações isentas com direito a dedução, Total do numerador, Operações isentas sem direito à dedução e Denominador – cfr. fls. 131 do processo físico.

11) Foi elaborado quadro onde é descrita a Conta, a Descrição, a Taxa de IVA e o Valor tributável dos recursos comuns – cfr. fls. 470 do SITAF.

12) O B... SA outorgou em 27.01.2005, 26.07.2005 contrato de locação financeira – cfr. fls. 471 do SITAF.

13) Os locatários dos contratos de locação financeira a que se alude em 12) pagaram comissão de abertura de contrato - cfr. fls. 471 do SITAF.

14) Foi elaborado quadro identificando valores respeitantes a Contas, Operações Tributáveis, Operações isentas com direito a dedução, Total do numerador, Operações isentas sem direito à dedução e Denominador – cfr. documento junto aos autos a fls. 130 do processo físico.

15) Em 24.09.2021, a Fazenda Pública remeteu aos autos resposta ao despacho proferido em 28.07.2021 pelo Tribunal de onde decorre o seguinte: “(…) A representante da Fazenda Pública junto deste Tribunal, nos autos em referência, face ao douto despacho de fls. …, “para pronúncia sobre elementos que esclareçam se a utilização de bens ou serviços de utilização mista por parte do Impugnante foi sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes, ou, ao invés, pela disponibilização dos veículos” Vem oferecer como segue: A FP pediu alargamento do prazo a fim de averiguar se, no âmbito do procedimento inspetivo, se encontravam elementos que permitissem aferir qual a parcela de custos afeta, respetivamente, à disponibilização de veículos e ao financiamento e gestão de contratos de locação financeira. Essa averiguação foi, no entanto, infrutífera. Com efeito, não existe nenhum elemento que permita validar ou fazer prova dessa matéria, até porque reportado àquela data, não havia instruções nem legislação nem jurisprudência nesse sentido. (…)” – cfr. fls. 490 do SITAF.

Factos não provados

a) A partir do momento em que a C..., SA se extingue em virtude da fusão, que produz efeitos retroactivos, gerou custos comuns ao nível da B..., SA.

3.2. Fundamentação de direito

3.2.1. O presente recurso vem interposto pela Autoridade Tributária e Aduaneira, inconformada com o julgamento proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que concluiu pela procedência da Impugnação Judicial na parte relativa à correcção respeitante à desconsideração da amortização financeira no cálculo do pro rata, com fundamento em que, nos termos conjugados dos artigos 23.º do CIVA e 74.º e 75.º da LGT, é sobre a Recorrente que recai o ónus de provar que a utilização de bens e serviços de utilização mista foi sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos.

3.2.2. Como deixámos esclarecido na delimitação do objecto do recurso, as partes não discutem a factualidade apurada, aceitando que não ficou provado que a utilização dos bens e serviços de utilização mista foi sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão. Tudo quanto as partes discutem é, pois, se o Tribunal a quo errou de direito ao concluir que é sobre a Administração Tributária que recaia esse dever probatório e, consequentemente, sobre si devem recair as consequências dessa omissão de prova.

3.2.3. Adiantamos, desde já, que a sentença recorrida não se pode manter na ordem jurídica, por nela ter ficado acolhido entendimento contrário ao que reiteradamente vem sendo perfilhado por este Supremo Tribunal Administrativo, incluindo em arestos do Pleno desta Secção de Contencioso Tributário.

3.2.4. Efectivamente, para concluir nos termos em que o fez, aduziu-se na sentença recorrida o seguinte discurso fundamentador:

«importa analisar para a justa composição do litígio se o cálculo do pro rata relativo ao exercício de 2005 não poderia ter em conta a amortização financeira resultante dos contratos de locação financeira realizados pela Impugnante, na medida em que esta defende que a inclusão do quantitativo das rendas de locação financeira e de ALD no pro rata de dedução é a única solução legalmente admissível.

Vejamos.

O IVA, é um imposto geral que, incidindo sobre todas as despesas, é aplicado a todas as fases do circuito económico (plurifásico). Como tal, é pago por todos os operadores que intervêm no circuito de produção, transformação e comercialização, incidindo sobre o valor acrescentado em cada fase, não produzindo assim, em regra, qualquer efeito cumulativo.

A faculdade do contribuinte poder deduzir o imposto que suportou nas aquisições, cujo princípio se encontra consagrado nos artigos 19.° e seguintes do Código do IVA (CIVA), constitui o chamado direito à dedução, elemento nuclear à volta do qual gravita todo o funcionamento do IVA.

Este direito consubstancia-se no direito atribuído a cada sujeito passivo de, no momento em que apure o imposto por si devido, relativo às suas vendas e prestações de serviços, poder deduzir o imposto que suportou nas aquisições de bens e serviços necessários à sua actividade, entregando apenas a diferença entre os dois montantes considerados.

No entanto, para que se verifique o exercício do direito à dedução é necessário o preenchimento dos pressupostos por lei designados, assim como a não verificação de qualquer isenção.

Ora, sabendo-se que as normas internas de cada Estado membro onde reger-se pelo estabelecido pelas normas comunitárias, nomeadamente a Directiva n.° 77/388/CEE de 17.05.1977, (vulgo Sexta Directiva do Conselho), que veio harmonizar as legislações dos EM quanto aos impostos sobre o volume de negócios, sistema comum do IVA, de forma a suprimir a tributação nas trocas comerciais entre os EM e a garantir a neutralidade do sistema comum de impostos, de modo a instituir, a prazo, um mercado comum à CEE e uma concorrência sã, conducentes à prossecução de um verdadeiro mercado interno, impõe-se aferir o que decorre dessas mesmas normas.

Determina o n.° 1 do artigo 2.° da Sexta Directiva que “Estão sujeitas ao imposto sobre o valor acrescentado: 1 - As entregas de bens e as prestações de serviços, efectuadas a título oneroso, no território do país, por um sujeito passivo agindo nessa qualidade”

Estabelece o artigo 4.° n.° 1 da Sexta Directiva que “Por «sujeito passivo» entende-se qualquer pessoa que exerça, de modo independente, em qualquer lugar, uma das actividades económicas referidas no n.° 2, independentemente do fim ou do resultado dessa actividade”

Acresce que, dispunha o n.° 1 do artigo 23.° do CIVA, na redacção aplicável à data dos factos, que “Quando o sujeito passivo, no exercício da sua actividade, efectue transmissões de bens e prestações de serviços, parte das quais não confira direito à dedução, o imposto suportado nas aquisições é dedutível apenas na percentagem correspondente ao montante anual de operações que dêem lugar a dedução”.

O seu n.° 2 estatuía ainda que “Não obstante o disposto no número anterior, poderá o sujeito passivo efectuar a dedução segundo a afectação real de todos ou parte dos bens e serviços utilizados, sem prejuízo de a Direcção-Geral dos Impostos lhe vir a impor condições especiais ou a fazer cessar esse procedimento no caso de se verificarem distorções significativas na tributação”.

Assim e no que respeita ao exercício do direito de dedução podemos distinguir os sujeitos passivos com direito à dedução dos sujeitos passivos sem direito à dedução.

Ademais, os sujeitos passivos que efectuem simultaneamente operações tributáveis que conferem o direito à dedução e operações isentas que não conferem o direito à dedução são os designados sujeitos passivos mistos.

Tais sujeitos passivos mistos somente podem exercer o direito à dedução do imposto suportado nas aquisições (inputs) que se destinem às operações que conferem direito à dedução, isto é, operações tributáveis.

Na senda do estabelecido pela Sexta Directiva, o CIVA prevê o apuramento por recurso ao método da afectação real ou ao método da percentagem de dedução também denominado de pro-rata, conforme decorre do artigo 23.° do CIVA.

Quanto ao método de dedução denominado pro rata a Sexta Directiva estatui no seu artigo 19 ° que

“1. O pro rata de dedução, previsto no n ° 5, primeiro parágrafo, do artigo 17.°, resultará de uma fracção que inclui : - no numerador, o montante total do volume de negócios anual, liquido do imposto sobre o valor acrescentado, relativo às operações que conferem direito à dedução nos termos dos n ° 2 e 3 do artigo 17 ° ; - no denominador, o montante total do volume de negócios anual, liquido do imposto sobre o valor acrescentado, relativo às operações incluídas no numerador e às operações que não conferem direito à dedução. Os Estados-membros podem incluir, igualmente, no denominador o montante das subvenções que não sejam as referidas em A, 1, a), do artigo 11 °.

O pro rata é determinado numa base anual e fixado em percentagem arredondada para a unidade imediatamente superior.

2. Em derrogação do disposto no n ° 1, no cálculo de pro rata de dedução, não se toma em consideração o montante do volume de negócios relativo às entregas de bens de investimento utilizados pelo sujeito passivo na respectiva empresa. Não é igualmente tomado em consideração o montante do volume de negócios relativo às operações acessórias imobiliárias e financeiras ou às operações referidas em B, d), do artigo 13 ° quando se trate de operações acessórias. Sempre que os Estados-membros façam uso da faculdade prevista no n ° 5 do artigo 20 °, de não exigirem o ajustamento em relação aos bens de investimento, podem incluir o produto da cessão desses bens no cálculo do pro rata de dedução”.

A par, decorria à data do n.° 4 do artigo 23.° do CIVA que “A percentagem de dedução referida no n° 1 resulta de uma fracção que comporta, no numerador, o montante anual, imposto excluído, das transmissões de bens e prestações de serviços que dão lugar a dedução nos termos do artigo 19° e n° 1 do artigo 20° e, no denominador, o montante anual, imposto excluído, de todas as operações efectuadas pelo sujeito passivo, incluindo as operações isentas ou fora do campo do imposto, designadamente as subvenções não tributadas que não sejam subsídios de equipamento”.

Assim, os sujeitos passivos mistos têm direito à dedução do IVA que suportaram nos seus inputs na percentagem correspondente ao peso relativo ou fracção que as operações sujeitas a IVA têm no conjunto das operações isentas e não isentas que praticam, calculada de acordo com o método pro rata (artigo 23.° do CIVA e artigo 17.° n.° 5 e artigo 19.° n.° 1 da Sexta Directiva).

Acresce que, decorria da alínea h) do n.° 2 do artigo 16.° do CIVA que “Nos casos das transmissões de bens e das prestações de serviços a seguir enumeradas, o valor tributável será: (...) h) Para as operações resultantes de um contrato de locação financeira, o valor da renda recebida ou a receber do locatário”.

Ora, o STA, no âmbito do recurso 1017/12 formulou a seguinte questão ao TJUE, questão que cumpre decidir nos presentes autos: “Num contrato de locação financeira, em que o cliente paga a renda, sendo esta composta pela amortização financeira, juros e outros encargos, essa renda paga deve ou não entrar, na sua aceção plena, para o denominador do pro rata, ou, ao invés, devem ser considerados unicamente os juros, pois estes, são a remuneração, o lucro que a atividade da banca obtém pelo contrato de locação?”.

Nessa senda, considerou o TJUE no Acórdão de 10.07.2014, proferido no processo C-183/13, que o artigo 23.° do CIVA reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada no artigo 17.° n° 5 terceiro parágrafo, alínea c) da 6a Directiva do IVA que determina que “No que diz respeito aos bens e aos serviços utilizados por um sujeito passivo, não só para operações com direito à dedução , previstas nos n ° 2 e 3 , como para operações sem direito à dedução , a dedução só é concedida relativamente à parte do imposto sobre o valor acrescentado proporcional ao montante respeitante à primeira categoria de operações. Este pro rata é determinado nos termos do artigo 19°, para o conjunto das operações efectuadas pelo sujeito passivo. Todavia, os Estados-membros podem: (...) c ) Autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços;”, constituindo por isso a transposição para o direito interno do Estado português do direito da EU.

Isto porque, considerou o TJUE que “o artigo 17.° n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva dispõe que um Estado Membro pode autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução do IVA com base na afectação da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços e pode prever um regime de dedução que tenha em conta a afectação especial da totalidade ou de parte dos bens e dos serviços em causa. Sendo que, na inexistência de qualquer outra indicação na Sexta Directiva quanto às regras que podem ser utilizadas nesta situação, incumbe aos Estados Membros estabelecê-las (v. parágrafos 21 a 24 do Acórdão). (...) Ora, nesta perspectiva a norma do art° 23° n° 2 do CIVA, ao permitir que Administração tributária imponha condições especiais no caso de se verificarem distorções significativas na tributação, reproduz, em substância, a regra de determinação do direito à dedução enunciada na Directiva do IVA - art° 17°, n°5, terceiro parágrafo, al. c) da sexta directiva, quando ali se estabelece que, «todavia, os Estados-membros podem: autorizar ou obrigar o sujeito passivo a efectuar a dedução com base na utilização da totalidade ou parte dos bens ou serviços». O Acórdão do TJUE sublinha ainda que, de acordo com o princípio da neutralidade fiscal, as modalidades do cálculo da dedução de IVA, devem reflectir, objectivamente, a parte real das despesas efectuadas com a aquisição de bens e serviços de utilização mista. E que, para este efeito, a Sexta Directiva não se opõe a que os Estados-membros apliquem, numa determinada operação, um método ou um critério de repartição diferente do método baseado no volume de negócios, desde que esse método garanta uma determinação do pro rata de dedução do IVA pago a montante mais precisa do que a resultante da aplicação do método do volume de negócios (v., neste sentido, acórdão BLC Baumarkt, EU:C:2012:689, n.° 24). - ponto 32 do Acórdão. A este propósito, o TJUE considera - ponto 33 do Acórdão - que, embora a realização, por um banco, de operações de locação financeira para o sector automóvel, como as que estão em causa no processo principal, possa implicar a utilização de certos bens ou serviços de utilização mista, como edifícios, consumo de electricidade ou certos serviços transversais, na maioria dos casos esta utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira celebrados com os seus clientes, e não pela disponibilização dos veículos, entendendo, contudo, que tal juízo incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio com referência ao caso no processo principal. E conclui que, nestas condições, o cálculo do direito à dedução em aplicação do método baseado no volume de negócios, que tem em conta os montantes relativos à parte das rendas que os clientes pagam e que servem para compensar a disponibilização dos veículos, leva a determinar um pro rata de dedução do IVA pago a montante menos preciso do que o resultante do método aplicado pela Fazenda Pública, baseado apenas na parte das rendas correspondente aos juros que constituem a contrapartida dos custos de financiamento e de gestão dos contratos suportados pelo locador financeiro, uma vez que estas duas actividades constituem o essencial da utilização dos bens e serviços de utilização mista destinada à realização das operações de locação financeira para o sector automóvel - ponto 34.

Assim, conclui o Tribunal de Justiça, respondendo à questão prejudicial suscitada, que o artigo 17.°, n.° 5, terceiro parágrafo, alínea c), da Sexta Directiva deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a que um Estado-membro, em circunstâncias como as do processo principal, obrigue um banco que exerce, nomeadamente, actividades de locação financeira a incluir, no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes, no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar.” - Cfr. Acórdão do STA de 27.11.2019, rec. 0977/07.5BELRS 0466/15 (sublinhado nosso).

Posteriormente, veio o STA por Acórdão do Pleno da Secção do CT de 04.03.2020 a confirmar os entendimentos que vinham a ser defendidos, tendo considerado que “Por Acórdão de 10.07.2014 proferido no processo C-183/13, o TJUE considerou que os Estados-Membros podem obrigar um banco que exerce actividades de locação financeira a incluir no numerador e no denominador da fracção que serve para estabelecer um único e mesmo pro rata de dedução para todos os seus bens e serviços de utilização mista, apenas a parte das rendas pagas pelos clientes no âmbito dos seus contratos de locação financeira, que corresponde aos juros, quando a utilização desses bens e serviços seja sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, o que incumbe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar. III - Em face da interpretação fornecida pelo Tribunal de Justiça sobre a questão, cuja doutrina é inteiramente aplicável ao caso em apreço, deve ser considerada a necessidade de apurar se nas operações de locação financeira para o sector automóvel que podem implicar a utilização de certos bens ou serviços de utilização mista, essa utilização é sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação e não pela disponibilização dos veículos”.

Assim, considerando o entendimento que aqui demos conta, impõe-se considerar que a determinação do pro rata de dedução previsto no n.° 8 e 9 do Ofício Circulado n.° ...08 podia ser decidida de forma generalizada, se se demonstrar que a utilização desses bens e serviços de utilização mista é, ou não, sobretudo determinada pelo financiamento e pela gestão desses contratos, de locação financeira.

Para tal, mostra-se necessário demonstrar que a utilização dos bens e serviços de utilização mista foi sobretudo influenciada pelo financiamento e pela gestão dos contratos.

Ora, como é consabido, é sobre a AT que recai o ónus da prova dos pressupostos dos direitos de tributação que invoca, como resulta do disposto no n.° 1 do artigo 74.° da LGT.

Retornando ao caso presente e como decorreu do ponto 14) da factualidade assente, não resultou comprovada da instrução dos autos que a utilização dos bens e serviços de utilização mista foi sobretudo determinado pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira.

Nesta senda, conclui-se que não está preenchido o requisito de que o STA faz depender para que se somente se considere os montantes correspondentes aos juros e outros encargos relativos à actividade de leasing, impondo-se considerar que a imposição à Impugnante da utilização do sistema específico de determinação do pro rata é incompatível com o Direito da União Europeia.

Atendendo ao ónus da prova que recaia sobre a AT, que aqui já demos conta, a situação de non liquet quanto à utilização pela Impugnante dos serviços de utilização mista no ano de 2005 tem de ser valorada processualmente contra a AT.

Ademais, na decorrência de não ter sido comprovado que a utilização dos bens e serviços de utilização mista foi sobretudo determinado pelo financiamento e pela gestão dos contratos de locação financeira, também não resultou comprovado da instrução dos autos que a utilização do método de determinação do pro rata de baseado no volume de negócios provoque ou possa provocar distorções significativas da tributação, nomeadamente que possa provocar vantagens ou prejuízos injustificados pela falta de coerência das variáveis nele utilizadas provocar vantagens ou prejuízos injustificados

Nesta senda, impõe-se concluir pela existência de erro sobre os pressupostos de facto, que justifica a anulação da liquidação impugnada no que contende com esta questão»

3.2.5. Ora, sem prejuízo de se realçar que é irrepreensível todo o discurso jurídico (e histórico-processual) subjacente à questão sub judice, a sentença errou ao julgar que o ónus da prova no caso em apreço recai sobre a Autoridade Tributária e Aduaneira, uma vez que, como o Pleno desta Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo já decidiu, «quando o ato de liquidação adicional do IVA se fundamente no não reconhecimento das deduções declaradas pelo sujeito passivo, cabe a este a prova dos factos constitutivos do direito à dedução». Mais aí se adiantando que, por essa razão cabe «por isso, ao sujeito passivo alegar e demonstrar que, no seu caso concreto, a utilização os bens ou serviços mistos não era sobretudo determinada pela gestão e financiamento dos contratos. Solução que reputamos adequada também porque o sujeito passivo, dada a sua proximidade com a fonte produtora, está mais bem posicionado para expor as especificidades do seu negócio (acórdão do Pleno de 20-1-2021, proferido no processo n.º 101/19.1BALSB e posteriormente reafirmada em vários outros arestos da Secção e do Pleno, designadamente nos acórdãos de 23-3-2022, proferidos nos processos n.º 74/21.0BALSB e 66/21.0BALSB, todos integralmente disponíveis para consulta em www.dgsi.pt).

3.2.6. Donde, acolhendo integralmente nestes autos a fundamentação aduzida nos identificados arestos, que, de resto, no mínimo, sempre se imporia por força do preceituado no artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil, concluímos pela procedência do recurso jurisdicional, o que determinará, ainda, a final, que a presente Impugnação Judicial seja julgada integralmente improcedente.

3.3. As custas, em 1ª e 2ª instância, serão suportadas pela Recorrida, integralmente vencida, nos termos do artigo 527.º, n.º 1 e 2 do CPC, ficando ambas as partes, desde já, dispensadas de pagamento com dispensa do remanescente da taxa de justiça, nos termos do artigo 6.º, n.º 7 do RCP, atento o valor da acção (€ 814.834,23), que o julgamento se revestiu de manifesta simplicidade, por ter sido realizado integralmente por remissão para acórdãos do Pleno desta Secção e Tribunal, e que o comportamento das partes, tal como se mostra processualmente revelado, não se nos afigura merecedor de juízo de censura.

4. DECISÃO

Termos em que, acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, concedendo provimento ao recuso jurisdicional, em revogar a sentença recorrida e, em conformidade, julgar integralmente improcedente a Impugnação Judicial.

Custas pela Recorrida em 1ª e nesta instância de recurso, com dispensa do remanescente da taxa de justiça na parte correspondente ao valor que excede os € 275.000,00.

Registe e notifique.

Lisboa, 6 de Março de 2024. - Anabela Ferreira Alves e Russo – José Gomes Correia – Aníbal Augusto Ruivo Ferraz.