Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0188/20.4BELLE
Data do Acordão:04/29/2021
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:CLÁUDIO RAMOS MONTEIRO
Descritores:CONTRATAÇÃO PÚBLICA
APRESENTAÇÃO DAS PROPOSTAS
PROCURAÇÃO
INTERPRETAÇÃO
PROCEDIMENTO
Sumário:I - O número 4 do artigo 57.º do Código dos Contratos Públicos não exige que os poderes de assinatura da proposta sejam especificados na procuração conferida ao seu signatário, limitando-se a exigir que a mesma seja assinada por quem tenha poderes para obrigar o concorrente
II - Situando-se a questão no âmbito da interpretação do sentido da declaração contida na procuração junta pelo concorrente com a proposta, é suficiente, convocando as regras de interpretação dos negócios jurídicos estabelecidas nos números 1 dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, que aqueles poderes tenham um mínimo de correspondência no seu enunciado escrito e que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir esse sentido daquele enunciado.
III - No domínio da contratação pública, deve observar-se o princípio do favor participationis, ou do favor do procedimento, que impõe que, em caso de dúvida, se privilegie a interpretação da norma que favoreça a admissão do concorrente, ou da sua proposta.
Nº Convencional:JSTA00071130
Nº do Documento:SA1202104290188/20
Data de Entrada:03/18/2021
Recorrente:A.........- AVIAÇÃO, LDA E OUTROS
Recorrido 1:B......... - HELICÓPTEROS, OPERAÇÕES, ACTIVIDADES E SERVIÇO AÉREO, LDA
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:REC REVISTA EXCEPC
Objecto:AC TCAS
Decisão:NEGAR PROVIMENTO
Área Temática 1:CONTRATO
Área Temática 2:CONTRATAÇÃO PÚBLICA
Legislação Nacional:COD CONT PUBLICA ART 57.º, 4
CCIVIL66 ART 236.º, 1
CCIVIL66 ART 238.º, 1
Jurisprudência Nacional:AC STA 19/11/2019 PROC 185/19.2BEPDL
Aditamento:
Texto Integral: ACORDAM NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO ADMINISTRATIVO DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO


I. Relatório

1. MINISTÉRIO DA DEFESA NACIONAL - FORÇA ÁREA PORTUGUESA e A…….. - AVIAÇÃO, LDA. - identificados nos autos – recorreram para este Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do artigo 150.º do CPTA, do Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), de 17 de dezembro de 2020, que negou provimento ao recurso que interpuseram da Sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Loulé, de 8 de agosto de 2020, que julgou parcialmente procedente a ação proposta contra si por B….. - HELICÓPTEROS, OPERAÇÕES, ACTIVIDADES E SERVIÇO AÉREO, LDA., confirmando a anulação do «ato praticado pelo Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, datado de 12/03/2020, de exclusão da proposta da Autora e de adjudicação do Lote 1, a favor da proposta da A……, Lda., praticado no âmbito do procedimento de concurso público para a formação do contrato de aquisição de serviços de disponibilização e locação dos meios aéreos que constituem o dispositivo aéreo complementar do DECIR de 2020 a 2023 » e revogando-a «na parte em que determinou o convite ao esclarecimento da proposta apresentada pela Autora», decidindo «em substituição, pela admissão da proposta da Autora, com as respetivas consequências legais a extrair em sede de execução do julgado ».

2. Nas suas alegações, o Recorrente MINISTÉRIO DA DEFESA NACIONAL - FORÇA ÁREA PORTUGUESA formulou as seguintes conclusões:

«A) O presente recurso excepcional de revista é interposto nos termos e ao abrigo do n.º 1 do artigo 143.º e do artigo 150.º ambos do CPTA, tem por objecto o resultado interpretativo dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, alcançado pelo Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 17 de Dezembro de 2020, com apelo aos critérios da materialidade e da razoabilidade aplicados no Acórdão desse Supremo Tribunal, de 19 de Novembro de 2020, e fundamenta-se na violação dos critérios legais impostos pelos citados artigos 236.º e 238.º e do n.º 4 do artigo 57.º do CCP para a definição do sentido da procuração da Gerente da B........, datada de 10 de Dezembro de 2013, face aos factos concretamente apurados pelas instâncias.

B) A coberto da aplicação dos critérios da materialidade e da razoabilidade mobilizados no Acórdão de 19 de Novembro de 2020 desse Supremo Tribunal, o Acórdão em crise considerou que «a procuração outorgada ao referir-se aos poderes de submissão de propostas nas plataformas eletrónicas, comporta um mínimo de correspondência literal, ainda que imperfeitamente expresso, no sentido de atribuição de poderes ao representante para apresentar propostas, em nome da Autora, no âmbito de procedimentos pré-contratuais como o ora em apreço e, para através delas, obrigar ou vincular a sociedade para com (ou perante) as entidades adjudicantes, mediante a aposição da sua assinatura aos documentos que as integram.» (sublinhado nosso)

C) Tal resultado de interpretação e aplicação do Direito – maxime dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil –, foi alcançado pelo Acórdão recorrido através da convocação, para preenchimento dos mencionados critérios de materialidade e razoabilidade, da nacionalidade (não portuguesa/espanhola) da Gerente da B........ e do procurador em causa, da complexidade do sistema normativo português da contratação pública e ainda (erroneamente) dos factos assentes sob as alíneas p) e q), dos quais, porém, consta que o documento apresentado foi assinado eletronicamente por C……………., não tendo sido junta qualquer declaração da Gerente da B........!

D) No domínio da contratação pública a vinculação perante a entidade adjudicante tem lugar na fase do procedimento pré-contratual, com a apresentação da proposta e respetivos documentos, ocorrendo aqui um dos momentos críticos e determinantes da aplicação do princípio da concorrência na vertente da igualdade de tratamento dos operadores económicos.

E) No presente recurso está em causa, inequivocamente, uma questão de direito substantivo do âmbito da contratação pública que se interliga com o Direito Civil e cuja dilucidação é essencial para uma melhor aplicação do Direito, uma vez que se trata de delimitar o alcance e o sentido da aplicação dos princípios da boa-fé e da concorrência e dos critérios da materialidade e da razoabilidade na interpretação e aplicação dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil no âmbito de procedimento pré-contratual de contratação pública, tendo presente o n.º 4 do artigo 57.º do CCP e a centralidade da assinatura da proposta no âmbito daquele procedimento.

F) A intervenção do Supremo Tribunal Administrativo impõe-se como «válvula de segurança do sistema» e, consequentemente, a admissão do presente recurso de revista é, desde logo, indispensável para uma melhor aplicação do Direito.

G) A questão de direito substantivo que está em causa, pelos distintos regimes jurídicos que convoca, dotados de especificidade relevante nas áreas do Direito em que se integram – contratação pública e interpretação da declaração negocial –, pela complexidade que envolve em matéria de articulação de princípios e normas de Direito Público e de Direito Privado, pela concatenação de regimes jurídicos que envolve e pela importância da matéria que constitui o seu objecto para entidades adjudicantes e adjudicatárias, é uma questão de manifesta relevância jurídica que, in casu, torna indispensável a intervenção do Supremo Tribunal Administrativo.

H) A questão jurídica em discussão tem uma utilidade social e económica que extravasa em muito os limites do caso concreto e que certamente tenderá a surgir num número indeterminado de casos futuros, sendo indispensável para os operadores públicos e privados uma orientação de sentido, no que se refere aos critérios de interpretação e aplicação dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil no quadro do ordenamento jurídico e do procedimento pré-contratual da contratação pública.

I) Nos termos dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, nos negócios formais a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, a não ser que esse sentido corresponda à vontade real das partes, sendo o sentido da declaração determinado através da aplicação dos critérios gerais de interpretação previstos no n.º 1 do artigo 236º do Código Civil (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.11.2019, 6. Secção, Proc. n.º 598/11.8T2STC.E1.S1).

J) Não ficaram provados nas instâncias quaisquer elementos relacionados com ou exteriores ao contexto da procuração, especificamente a nacionalidade estrangeira da Gerente da B........ e do procurador C…………. e o seu não conhecimento bastante, por não serem nacionais portugueses, da “complexa regulamentação nacional em matéria de contratação pública”.

K) Não constando tais factos da matéria de facto dada como assente, não podem os mesmos constituir elemento interpretativo para apurar o sentido da declaração que consta da procuração da Gerente B........, de 10 de Dezembro de 2013 e não se pode – como fez o Acórdão recorrido –, com base neles, extrair um qualquer sentido, ainda que imperfeitamente expresso, a atribuir à declaração constante da procuração em causa.

L) O único facto provado exterior ao contexto do documento – facto assente sob a alínea q) – foi a «procuração (com apostilha) outorgada em Ayamonte, perante notário, em 27 de Março de 2018, escrita em língua espanhola e com tradução para língua portuguesa devidamente legalizada, mediante a qual a B........, Lda. concedeu poderes especiais a C……………. para, entre o mais, “outorgar quaisquer garantias, escrituras, acordos, contratos, pactos e documentos similares, incluindo contratos públicos, candidaturas e licitações com autoridades de aviação civil, governos, ministérios, agências, administradores e entidades similares (…)” e “representar a sociedade em todos os assuntos relacionados com a apresentação de propostas para qualquer tipo de licitação pública ou privada na Espanha” (cfr. fls. 3584 a 3647 do processo administrativo)», à luz do qual a Gerente da B........ e o procurador em causa têm perfeito conhecimento das regras da contratação pública e dos poderes de representação necessários, sendo ainda evidente que quando quis conferir poderes de vinculação ao procurador, a Gerente da B........ fê-lo expressamente.

M) O Acórdão em crise convoca factos não provados nas instâncias e invoca os critérios da materialidade, da razoabilidade e da prevalência da substância sobre a forma para justificar que «se deve interpretar o sentido da declaração emitida pela gerente da sociedade Autora, como tendo mandatado o representante dos poderes para vincular a sociedade ao teor da proposta submetida e à futura celebração do contrato.»

N) Os critérios da materialidade, da razoabilidade e da prevalência da substância sobre a forma são critérios normativos, que exigem conhecimento, demonstração e avaliação das razões materiais adequadas à sua aplicação, como resulta, com toda a clareza, da motivação do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 19 de Novembro de 2020.

O) No caso vertente, não há qualquer sustentação para a convocação daqueles critérios, porque os factos assentes e dados como provados não comportam, nem permitem mobilizar os elementos exteriores ao contexto da procuração em que se fundamenta a Decisão em crise e os comportamentos do procurador que são convocados são comportamentos concretizados sem intervenção da Gerente da B........

P) Estando em causa apurar o conteúdo e o alcance dos poderes representativos que foram atribuídos ao procurador impunha-se a intervenção da Gerente da B........ – o que não aconteceu –, não sendo admissível utilizar os actos praticados pelo procurador para justificar a titularidade dos poderes cuja existência se pretende demonstrar, como, aliás, bem entendeu a Sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé de 08 de Agosto de 2020.

Q) À luz do n.º 1 do artigo 236.º do Código Civil, o apuramento do sentido da declaração, que decorre dos factos assentes, é que para um declaratário normal colocado na posição do real declaratário – posição do real declaratário que é a de Júri do Concurso Público n.º GCMIR/5019019297/2019, para a aquisição de serviços de disponibilização e locação dos meios aéreos que constituem o dispositivo aéreo complementar do DECIR de 2020 a 2023 – os poderes conferidos pela Sócia Gerente da B........ ao senhor C………… na procuração de 10 de Dezembro de 2013 são, apenas e só, poderes gerais de representação para «submeter propostas nas plataformas eletrónicas e assinar contratos em geral e contratos de prestação de serviços», não estando abrangidos os «poderes para vincular a sociedade ao teor da proposta submetida».

R) O sentido apurado pelo Acórdão recorrido «de atribuição de poderes ao representante para apresentar propostas, em nome da Autora, no âmbito de procedimentos pré-contratuais como o ora em apreço e, para através delas, obrigar ou vincular a sociedade para com (ou perante) as entidades adjudicantes, mediante a aposição da sua assinatura aos documentos que a integram» não tem qualquer correspondência com o texto da procuração de 10 de Dezembro de 2013, ainda que imperfeitamente expresso - como é exigido pelo n.º 1 do artigo 238.º do Código Civil –, uma vez que deste texto constam liminarmente poderes para “submeter propostas nas plataformas eletrónicas e assinar contratos em geral e contratos de prestação de serviços”.

S) Não enfrentando a total dissonância entre o sentido alcançado na aplicação que fez do n.º 1 do artigo 236.º do Código Civil e o texto da procuração, o Acórdão recorrido entendeu que, mediante um exercício interpretativo, a vontade real da Gerente da B........ resulta da procuração e, ainda, que não se pode entender que esta vontade real não fosse conhecida do Júri do procedimento.

T) O conhecimento da vontade real do declarante pelo Júri do procedimento é matéria de facto e significa conhecer efectivamente e, não (também) poder ou dever conhecer.

U) A Sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, de 08 de Agosto de 2020, não deu como provado que o Júri do concurso conhecesse a vontade real da Gerente da B........ relativamente ao sentido dos poderes outorgados ao seu representante na procuração de 10 de Dezembro de 2013, tendo mesmo imposto ao Júri do procedimento que pedisse esclarecimentos para o apuramento da vontade real da Gerente da B........ «quanto ao âmbito e extensão dos poderes de representação conferidos a C………. e concretamente quanto à suficiência dos mesmos para obrigar a concorrente nos termos exigidos pelo artigo 57.º, n.º 4 do CCP».

V) O Acórdão recorrido funda a afirmação que «não se pode entender que a entidade adjudicante não conhecia perfeitamente a vontade real de contratar da Autora» na proposta de conteúdo vinculativo apresentada pelo procurador e nas declarações prestadas no procedimento, sendo que a proposta só tem conteúdo vinculativo se o representante detiver poderes de vinculação, que é, precisamente, o que está em discussão.

W) E, para além disso, as declarações prestadas pelo procurador no procedimento foram declarações prestadas em momento posterior à apresentação da proposta.

X) Não indicando o n.º 2 do artigo 236.º do Código Civil o momento relevante a que se reporta o conhecimento da vontade real do declarante, o disposto no n.º 4 do artigo 57.º do CCP e o interesse material fundamental consubstanciado na assinatura da proposta impõem que o momento relevante para conhecimento da vontade real do declarante seja o momento da entrega definitiva da proposta, isto é, o momento em que é exteriorizada a declaração de vontade do concorrente, tal como, aliás, entendeu esse Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão de 03.12.2015 (Processo 01028/15).

Y) Assim, o entendimento manifestado no Acórdão recorrido, fundando-se em factos posteriores ao momento da apresentação da proposta – factos provados sob as alíneas p) e q) –, padece de manifesta violação do n.º 4 do artigo 57.º do CCP na interpretação dada ao n.º 2 do artigo 236.º do Código Civil.

Z) O Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 17 de Dezembro de 2020, alcançou um resultado interpretativo da declaração da Gerente da B........ na procuração, datada de 10 de Dezembro de 2013, que não tem um mínimo de correspondência no texto da mesma procuração, ainda que imperfeitamente expresso, que não coincide com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento do declarante, que não é susceptível de ser afirmado como correspondendo à vontade real da declarante por manifesta falta de prova e cujo conhecimento pelo Júri do procedimento carece de qualquer suporte factual.

AA) E, em consequência, incorreu em violação dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, do n.º 4 do artigo 74.º do CCP e dos princípios da concorrência, da imparcialidade, da tutela da confiança, da transparência e da igualdade de tratamento e não-discriminação no âmbito da contratação pública.»

3. A Recorrente A……. - AVIAÇÃO, LDA., por seu turno, formulou as seguintes conclusões:

«1) É pacificamente aceite pela jurisprudência a distinção entre “poderes para submeter documentos na plataforma eletrónica” na qual se desenrola o processo de contração pública e “poderes para vincular a sociedade” numa fase pré-contratual do concurso;

2) Não constando na procuração, outorgada pela Gerência ao seu representante, expressa a menção relativa à concessão de poderes para vincular a sociedade na fase pré-contratual de plataforma para procedimento contratual publico, há necessidade de recurso às regras de interpretação, mas sem nunca deixar de ter que ter correspondência mínima com o que se acha escrito, ainda que imperfeitamente;

3) Nesta medida, veio o Tribunal a quo sufragar o entendimento de que a expressão “submeter propostas” encerra um sentido literal mínimo que permite concluir que, através daquele instrumento, foram conferidos poderes para a submissão de documentos e assinatura dos mesmos, vinculando desta forma a sociedade;

4) O que contraria a distinção, de resto sufragada pela jurisprudência maioritária e pela doutrina;

5) Atentando ainda contra o princípio da autonomia privada e da segurança jurídica ao admitir que da menção expressa de um poder se presume um outro acerca do qual o texto não faz qualquer alusão;

6) O Tribunal incorre ainda num erro material de apreciação dos documentos juntos aos autos e que usa para sustentar a interpretação feita sobre a procuração e suficiência do que se acha escrito ou omisso ao afirmar que a Recorrente é uma sociedade espanhola;

7) Pois, consta dos próprios autos e da certidão permanente junta à Petição Inicial da Autora que a sua sede é em Almancil, Portugal;

8) Com fundamento nesta circunstância (errada) o Tribunal a quo conclui que existe o mínimo de correspondência entre a expressão “submeter documentos” e a vontade outorga de poderes para obrigar a sociedade;

9) Pois, no seu entender, é de conceder o facto de a sociedade ser espanhola e de a Gerência não dominar a língua e muito menos a legislação portuguesa de contratação pública, que o Tribunal classificou de complexa e dispersa;

10) Considerações desta natureza não possuem qualquer sustentação legal, violando flagrantemente o disposto no artigo 1-A CCP, no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 6.º do CC que estabelece a regra básica de que o desconhecimento da lei a ninguém aproveita;

11) A sentença em crise discrimina flagrantemente – e de forma inconstitucional concorrentes portugueses e configura um atentado aos princípios da igualdade e da concorrência ao afirmar que critérios como a lei aplicável a uma sociedade, a língua materna dos Gerentes e a forma de positivação das regras de contratação pública em Portugal constituem critérios atendíveis à interpretação da letra de um documento;

12) O artigo 238.º CC é expresso ao mencionar que deve existir um mínimo de correspondência entre o texto interpretado e o sentido que se pretende atribuir à declaração;

13) Se a procuração refere expressamente o poder para “submeter propostas”, não pode tal expressão albergar outro sentido que não aquele de que o de entrega material de documentos nas plataformas eletrónica na qual de desenrola o procedimento concursal;

14) Não raras vezes em procedimentos que correm termos em plataformas eletrónicas, há intervenientes credenciados que têm poderes para submeter documentos e até receber avisos da plataforma, mas que não são sequer idóneos para vincular os usuários legais representantes legais num procedimento a uma proposta, assinando-a;

15) E muito menos se pode afirmar que, segundo as regras de experiência comum, a exclusão do poder para obrigar a sociedade deve estar expressamente no texto da procuração, pois tal seria admitir a outorga de poderes por via de presunções e, dessa forma, desvirtuar todos os princípios inerentes ao instituto da representação e à própria autonomia;

16) Acresce que, a fundamentação apresentada pelo Tribunal a quo não permite afirmar em que circunstância é que o intérprete deve concluir que, de facto, o representante apenas possui poderes para submeter documentos nas plataformas eletrónicas pois considera que a locução “submeter propostas” encerra em si o mínimo sentido literal de outorga de poderes para obrigar;

17) Por outro lado, a procuração outorgada pela Gerência da sociedade reporta-se a um período anterior ao da existência da Lei n.º 96/2015 que regula de disponibilização e a utilização das plataformas eletrónicas de contratação pública, pelo que é no mínimo anacrónico afirmar que a procuração foi passada nos termos e para os efeitos do artigo 54.º n.º 7da Lei 96/2015 de 17 de agosto;

18) A fundamentação jurídica apresentada pelo Tribunal a quo, além de ilegal é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade e padece de ostensivos erros de Direito que não podem subsistir numa ordem jurídica democrática como é a ordem jurídica portuguesa;

19) Padecendo, ademais, de um manifesto erro material acerca da lei aplicável à Recorrida, sendo tal erro um dos alicerces da decisão proferida pelo Tribunal a quo;

20) Face a uma decisão desta natureza, fundada em argumentos ilegais à luz das regras fundamentais, do Direito Civil, do Direito dos Contratos Públicos, da Constituição da República Portuguesa e do Direito da União Europeia em matéria de contratação pública, a não admissão e negação de apreciação do caso vertido nos autos configuraria uma verdadeira violação do princípio da tutela efetiva e a negação das instituições judiciais à aplicação do Direito e da Lei.

21) Pelo que se roga a este Supremo Tribunal Administrativo que seja feita justiça, aplicando-se a Lei e respeitando-se os princípios fundamentais da ordem jurídica portuguesa,

22) Revogando-se por isso as decisões recorridas e substituindo-as por outra que, em conformidade com a Lei, mantenha o ato de adjudicação do Lote 1 nos precisos termos consubstanciados no Despacho do General Chefe do Estado-Maior da Força Aérea de 12MAR2020.

23) Em suma, que o Douto Aresto de Novembro passado do STA citado pela decisão recorrida não seja, erradamente, usado como uma pretensa abordagem a uma menor rigorosa apreciação do conteúdo do documento em causa, ou que o juízo de razoabilidade e materialidade do seu conteúdo possa ser substituído por perceções subjetivas assentes em factos que não provém do documento.

24) O Rigor da interpretação não foi aligeirado pelo STA com o seu acórdão de 19 de Novembro de 2020, pelo contrário, foi balizado, e a decisão recorrida constitui um exercício que nem à barra ou ao poste se pode dizer ter ido, outrossim, foi uma oportunidade desperdiçada de a justiça de adiantar no marcador dérbi com a injustiça.»

4. A Recorrida contra-alegou nos seguintes termos:

«1ª- O texto da procuração “submeter propostas nas plataformas electrónicas” e que corresponde exactamente ao conceito vertido nos arts. 2º g) e 70 da Lei 96/2015, tem o mínimo de correspondência literal para efeitos do art. 238º nº 1 do Cod. Civil, como concluiu o Acordão recorrido.

2ª- A procuração outorgada, tendo como finalidade o negócio jurídico de contratação publica e a proposta apresentada pelo procurador, que nos termos do art. 56 nº 1 do CCP consubstancia a vontade de contratar, interpretados segundo as regras dos arts. 236 e 238 do Cod. Civil valem com o sentido pretendido pela Autora em conferir ao seu procurador os poderes necessários e bastantes para a representar e obrigar em todos os actos do procedimento, como concluiu o Acordão recorrido.

3ª – Um declaratário normal colocado na posição do Júri do concurso perante o texto da procuração e perante o comportamento da Autora, não podia deixar de entender que a Autora pretendeu mandatar o seu procurador para a representar no procedimento concursal em causa e para em nome dela negociar e contratar as prestações de serviço em concurso, bem como, apresentar as competentes propostas para o efeito preparando-as e assinando-as e bem assim assinar os contratos que para tal se mostrassem necessários, pois só deste modo a declarante atingiria o propósito pretendido, que era o de lhe ser adjudicada a prestação de serviços em concurso.

4ª- O Júri conhecia perfeitamente vontade real de contratar da Autora, manifestada através da proposta de conteúdo vinculativo apresentada pelo procurador e pela pronuncias de 05-02-2020 e 28-02-2020 apresentadas no procedimento.

5ª- Como conta das alíneas e), f), g), h), i) e j) ficou provado nos autos, que o procurador conhecia a vontade real da declarante e o seu desígnio em contratar e se obrigar no procedimento, sendo de acordo com ela que vale a declaração emitida pela mandante, art. 236 nº 2 do Cod. Civil.

6ª- A recorrente Força Aérea conhecia também perfeitamente que a vontade real da Autora, expressa na procuração em causa, era a de mandatar o seu procurador para a representar nos procedimentos concursais, como o presente, e para em seu nome negociar e contratar as prestações de serviço em concurso, bem como para o efeito apresentar e assinar as respectivas propostas e o contrato final se fosse caso disso pois assim o tinha já entendido concurso anteriormente por ela lançado em 23-01-2019 com o nº 5019000372 em que a mesma procuração foi apresentada, analisada com esclarecimentos da mesma Autora e, a final verificados como suficientes os poderes conferidos pela mandante.

7ª- A vontade real da declarante, por imperativo legal, prevalece sobre o sentido objectivo da interpretação da declaração negocial do júri como normal declaratário, art. 236 nº 2 do Cod. Civil.

8ª- Na contratação publica o ato de submissão da proposta está associado à vontade de contratar da concorrente, (art. 7 nº 1 b) DL 290D/99 e art. 56 nº 1 do CCP) e o seu sentido como declaração negocial está sujeita aos critérios interpretativos dos negócios formais dos arts. 236 e 238 do Cod. Civil.

9ª- O poder para obrigar a concorrente é indissociável do ato jurídico praticado pelo procurador com a submissão da proposta, daí decorrendo como consequência directa e necessária a vinculação da mandante à proposta, por força dos arts. 7 nº 1 b) do DL 290-D/99, 56 nº 1 do CCP e 258 do Cod. Civil.

10ª - A procuração, tendo como finalidade um negócio jurídico de contratação pública e a proposta apresentada pelo procurador, que nos termos do art. 56 nº 1 do CCP consubstancia a vontade de contratar, interpretados segundo as regras dos arts. 236 e 238 do CC valem para um declaratário normal, com o sentido de a Autora pretender conferir ao seu procurador os poderes necessários e bastantes para a representar e obrigar em todos os atos do procedimento.

11ª- O Acórdão recorrido aplicou corretamente as regras interpretativas dos arts. 362 e 368 do C.C. ao conteúdo da procuração, apresentada com a proposta em sede de contratação pública, e concluiu que conferia os poderes suficientes para vincular a Autora.

12ª - O Acórdão recorrido adotou corretamente, no quadro dos negócios jurídicos, os meios e procedimentos interpretativos dos arts. 362 e 368 do C.C. para o apuramento com segurança da vontade real da declarante.

13ª - Os documentos que integram a proposta foram assinados pelo procurador com assinatura digital certificada e com poderes para obrigar a Autora, pelo que não se verifica a imputada violação do art. 57 nº 4 do CCP imputada pelas recorrentes.

14ª- Improcedem todas as conclusões apresentadas pelas recorrentes.»

5. O recurso de revista foi admitido por Acórdão da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo, em formação de apreciação preliminar, de 25 de fevereiro de 2021, por se reconhecer, não obstante a existência de uma pronúncia no mesmo sentido em que decidiu o acórdão recorrido, «a necessidade de intervenção clarificadora deste Tribunal».

6. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, «revogando-se parcialmente o acórdão recorrido e mantendo-se a sentença proferida na 1ª instância».

7. Sem vistos, dada a natureza urgente do processo, nos termos da alínea c) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 36.º do CPTA.


II. Matéria de facto

7. As instâncias consideraram como provados os seguintes factos relevantes para a decisão, tendo em atenção a prova documental produzida e as alegações das partes:

«a) Em Outubro de 2019, mediante anúncio publicado no Diário da República e no Jornal Oficial da União Europeia, foi publicitada a abertura de um procedimento de concurso público, por despacho do Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, para formação de um contrato de aquisição de serviços de disponibilização e locação dos meios aéreos que constituem o dispositivo aéreo complementar do DECIR de 2020 a 2023, a adjudicar por lotes (cfr. fls. 141 a 154 do processo administrativo);

b) O Programa do Procedimento estabelecia, no artigo 5.º, n.º 2, que os documentos constitutivos das propostas deveriam ser apresentados na plataforma eletrónica utilizada pela entidade adjudicante, disponível em https://www.acingov.pt (acinGov), e assinados eletronicamente, mediante a utilização de certificados de assinatura eletrónica;

c) O Programa do Procedimento estabelecia, no artigo 8.º, n.º 1, o seguinte:

«(…)

1. A proposta do concorrente é constituída pelos seguintes documentos:

a) Documento Europeu Único de concorrente;

Contratação Pública (DEUCP) do

b) Documento elaborado, preferencialmente, em conformidade com a minuta de resposta constante do ANEXO I ao Programa do Procedimento contendo a seguinte informação para cada um dos lotes a que apresenta proposta:

i. Preço Diário da Disponibilidade Operacional por Aeronave;

ii. Preço total da Disponibilidade Operacional [para a totalidade das aeronaves e para totalidade do(s) Período(s) Operacional(ais) Anual(ais)];

iii. Preço da HORA DE VOO;

iv. Preço total das HORAS DE VOO.

c) Documento elaborado pelo concorrente, que evidencie o cumprimento dos requisitos técnicos elencados no Anexo A1 do Caderno de Encargos. A demonstração de como as aeronaves propostas cumprem os referidos requisitos deve ser sustentada através de referências a informação do fabricante ou de entidade detentora do respetivo certificado de tipo da aeronave, de equipamentos e modificações;

d) Os manuais ou documentos técnicos dos fabricantes e entidades responsáveis pelas modificações, referidos na alínea anterior, devem ser disponibilizados, completos, em formato digital.

(…)»;

d) Apresentaram propostas no procedimento, em relação ao lote 1, a B......., Lda. (autora), a………., Lda., a A…….., Lda. e a ………, S.A. (cfr. fls. 317 a 3286 do processo administrativo);

e) A proposta da autora era constituída, entre o mais, pelo Documento Europeu Único de Contratação Pública (DEUCP), por um documento elaborado em conformidade com a minuta de resposta constante do Anexo I do Programa do Procedimento e por um documento destinado a evidenciar o cumprimento dos requisitos técnicos elencados no Anexo A1 do Caderno de Encargos (cfr. fls. 2213 e seguintes do processo administrativo);

f) Do Documento Europeu Único de Contratação Pública (DEUCP) que integrava a proposta da autora constava, no que ora interessa, na Parte II, o seguinte:

«(…)

B: Informações sobre os representantes do operador económico # 1

- Se aplicável, indicar o(s) nome(s) e endereço(s) da(s) pessoa(s) habilitada(s) a representar o operador económico para efeitos do presente procedimento de contratação:

Nome próprio

C…….

Apelido

C……….

(..)

Cargo/Agindo na qualidade de:

director/procurador

Caso necessário, fornecer informações pormenorizadas sobre a representação (forma assumida, dimensão, efeito...):

-

(…)»

(cfr. fls. 2214 a 2229 do processo administrativo, especificamente a fls. 2217);

g) Do documento elaborado em conformidade com a minuta de resposta constante do Anexo I do Programa do Procedimento que integrava a proposta da autora constava, entre o mais, o seguinte:

«(…)

Programa Anexo I Resposta da Proposta

1 – B........ HELICÓPTEROS – OPERAÇÕES ACTIVIDADES E SERVIÇO AÉREO LDA, NIPC n.º …….. com sede em ……… ……., Estrada ……., 8135-… Almancil, neste ano [ato] representada pelo seu procurador, Sr. C………….., portador do cartão de cidadão espanhol Nº …….., residente em …………. ….. A, 8150-….. São Brás de Alportel, tendo tomado inteiro e perfeito conhecimento do caderno de encargos relativo à execução do contrato a celebrar na sequência do procedimento de concurso público n.º GCMIR/5019019297/2019 “Aquisição de Serviços de Disponibilização e Locação dos Meios Aéreos que constituem o Dispositivo Aéreo Complementar do DECIR DE 2020 A 2023”, declara, sob compromisso de honra, que se obriga a executar o referido contrato em conformidade com o conteúdo do mencionado caderno de encargos, relativamente ao qual declara aceitar, sem reservas, todas as suas cláusulas.

2 - Declara ainda que se obriga a cumprir o conteúdo do mencionado caderno de encargos, por lote, com atributos de preço e com custos propostos e constantes da tabela seguinte:

(…)

3 - Declara também que se submete, em tudo o que respeitar à execução do CONTRATO, ao que se achar prescrito na legislação portuguesa em vigor.

(…)»

(cfr. fls. 2213 do processo administrativo);

h) Do documento destinado a evidenciar o cumprimento dos requisitos técnicos elencados no Anexo A1 do Caderno de Encargos que integrava a proposta da autora constava, entre o mais, o seguinte:

«(…)

B........ HELICÓPTEROS – OPERAÇÕES ACTIVIDADES E SERVIÇO AÉREO LDA, NIPC n.º …….. com sede em ……… ……, Estrada ……., 8135-… Almancil, representada pelo seu procurador, Sr. C………., portador do cartão de cidadão espanhol Nº ……….., residente em ……….. …….A, 8150-…… São Brás de Alportel, vem por este meio evidenciar o cumprimento dos requisitos técnicos elencados no Anexo A1 do Caderno de Encargos.

(…)»

(cfr. fls. 2230 do processo administrativo);

i) Com a proposta da autora foi junta uma procuração autenticada por advogado, datada de 10 de Dezembro de 2013, da qual consta o seguinte:

“B…….. HELICÓPTEROS OPERAÇÕES ACTIVIDADES E SERVIÇO AÉREO, LDA, representada pela sócia Gerente D………….., com poderes para o acto, constitui seu procurador o Sr. Cmdt. C……………, casado, titular do B.I. n.º………., residente no ……….. ….. A 8150-….. São Brás de Alportel, a quem confere os necessários poderes para em nome da mandante submeter propostas nas plataformas eletrónicas e assinar contratos em geral e contratos de prestação de serviços.”

(cfr. fls. 2307 do processo administrativo);

j) Os documentos que constituíam a proposta da autora, contidos em ficheiros individualizados, foram assinados de forma digital por C……….., titular da assinatura electrónica qualificada que lhes foi aposta, e com recurso a um certificado de assinatura electrónica emitido para o próprio (pessoa singular), que o identificava como “director de operações” da B........, Lda. (cfr. fls. 2214 a 2230 do processo administrativo);

k) Em 22 de Janeiro de 2020, o júri do procedimento elaborou o relatório preliminar, no qual propôs, entre o mais, a admissão da proposta da autora e a ordenação da mesma em primeiro lugar, com a consequente adjudicação do lote 1 a favor da mesma (cfr. fls. 3349 a 3368 do processo administrativo);

l) No âmbito da sua pronúncia para efeitos de audiência prévia, a concorrente A…..., Lda. sustentou a exclusão da proposta apresentada pela B........, Lda. para o lote 1, com fundamento, entre o mais, no seguinte: “Que a assinatura dos documentos que a constituem foi efetuada por um representante sem poderes suficientes para obrigar a B........ em procedimentos de contratação pública – em violação clara dos artigos 57.º/1 e 57.º/4 do CCP” (cfr. fls. 3389 a 3423 do processo administrativo);

m) No âmbito da sua pronúncia para efeitos de audiência prévia, a ……………, S.A. sustentou a exclusão da proposta apresentada pela B........, Lda. para o lote 1, por “violação do disposto artigo 57.º n.º 4 CCP, o que determina a sua exclusão nos termos do artigo 146.º n.º 2 alínea e) e nos termos do artigo 146.º n.º 2 alínea d), articulado com o preceituado no artigo 57.º n.º 1 alínea b)” (cfr. fls. 3438 a 3471 do processo administrativo);

n) Em 5 de Fevereiro de 2020, em resposta às pronúncias apresentadas pela A……., Lda. e pela ………., S.A., foi apresentado um documento assinado electronicamente por C…….., no qual consta, entre o mais, que “a B........ quis mandatar e mandatou o seu mandatário C…… para praticar todos os actos necessários para se apresentar ao concurso, intervir nele e por fim assinar os contratos, conferindo-lhe, para o efeito, os necessários poderes, mediante procuração, formal”, acompanhado de um exemplar da certidão de registo comercial permanente da autora (cfr. fls. 3487 a 3507 do processo administrativo);

o) Em 21 de Fevereiro de 2020, o júri do procedimento elaborou um relatório final, que designou, em relação ao lote 1, como “Relatório Final – 1”, no qual propôs a exclusão da proposta da autora, “nos termos do artigo 57.º, n.º 4, com o artigo 146.º, n.º 2, alínea e) do CCP”, com a consequente adjudicação a favor da proposta apresentada pela A…….., Lda., do qual consta, entre o mais, o seguinte:

«(…)

47. Finalmente cumpre apreciar das alegadas ilegitimidade e inexistência de poderes para obrigar as concorrentes, B........- Helicópteros - Operações, Actividades e Serviços Aéreos, Lda., …….. “AIM AIR” S.R.L. e ………Mission Critical Services Portugal, Unipessoal, Lda., invocadas pelas concorrentes A……..-Aviação, Lda. e ………. - Trabalhos e Transporte Aéreo, Representações, Importação e Exportações, S.A..

48. Relativamente a esta matéria cumpre apreciar o seguinte:

a. Dispõe o artigo 57.º, n.º 4 do CCP que “Os documentos referidos nos n.ºs 1 [Documentos com os atributos] e 2 [Documentos contendo os termos ou condições a que entidade adjudicante pretende que o concorrente se vincule] devem ser assinados pelo concorrente ou por representante que tenha poderes para o obrigar”, sancionando com a exclusão da proposta caso tal não se verifique, de acordo com o artigo 146.º, n.º 2 alínea e) do CCP.

b. Ainda quanto à matéria das assinaturas, e já não dos poderes para obrigar, cumpre atentar no artigo 54.° da Lei n.º 96/2015, de 17 de agosto, que estatui no n.º 1 “Os documentos submetidos na plataforma eletrónica, pelas entidades adjudicantes e pelos operadores económicos, devem ser assinados com recurso a assinatura eletrónica qualificada, nos termos dos n.ºs 2 a 6.” e no seu n.º 7 que “Nos casos em que o certificado digital não possa relacionar o assinante com a sua função e poder de assinatura, deve a entidade interessada submeter à plataforma eletrónica um documento eletrónico oficial indicando o poder de representação e a assinatura do assinante.”.

c. Em face do que antecede, constata-se ser pacífico na doutrina e jurisprudência que quem tem poderes para obrigar não tem necessariamente que ser a mesma pessoa, que está na plataforma em representação do concorrente, podendo-o, no entanto, ser.

d. Assim, é aceite que quem tem poderes para obrigar e está na plataforma em nome do concorrente, vincula-o por esta via quando submete/carrega a proposta e, por outro lado, quem tem poderes para carregar, submeter a proposta na plataforma poderá não ter poderes para obrigar o concorrente.

e. Deste modo, é fundamental o sentido e alcance do conceito «poder para obrigar», enquadrado à luz do disposto no artigo 56.° do CCP quanto à definição de proposta “(…) declaração pela qual o concorrente manifesta à entidade adjudicante a sua vontade de contratar e o modo pelo qual se dispõe a fazê-lo”, ou seja a proposta é uma declaração negocial quanto à qual, em face de norma administrativa especial, são aplicáveis o disposto nos artigos 217.° e seguintes do Código Civil e nos artigos 67.° e 160.° e 163.° do Código Civil respetivamente quanto às pessoas singulares ou coletivas.

f. No que respeita às pessoas coletivas presentes no presente procedimento, importa ainda atentar, quanto a cada uma delas em particular, ao respetivo regime previsto no Código das Sociedades Comerciais para o tipo de sociedade, quando aplicável.

g. Regressando ao «poder de obrigar» e ao conteúdo da forma sobre como se pode manifestar esse poder, importa atentar que formalidade essencial exigida no CCP é que os documentos constantes no seu artigo 57.º, n.º 1 sejam assinados por quem tem poder para obrigar, daqui não resultando uma qualquer forma, ou formalidade específica a não ser a de assinar estes documentos.

h. Ora, a assinatura destes documentos para que obriguem uma pessoa coletiva, carece de ser aposta por quem tenha os poderes para a representar, decorrentes da lei, ou do ato constitutivo da sociedade ou de instrumento específico que confira poderes para o ato.

i. Neste último grupo de situações inclui-se a faculdade de os representantes legais ou convencionais da sociedade nomearem “(…) mandatários ou procuradores da sociedade para a prática de determinados atos ou categorias de atos, sem necessidade de cláusula contratual expressa.” (negrito nosso), conforme dispõem os artigos 252.º, n.º 6 e 391.º, n.º 6 do Código das Sociedades Comerciais.

j. Quanto à procuração dispõe o artigo 262.º do Código Civil que esta é “(…) o ato pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos.”, dispondo o seu n.º 2 que “Salvo disposição legal em contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar.”.

k. Nesta sequência e conforme anteriormente referido, para efeitos do disposto no artigo 57.º, n.º 4 do CCP, basta a assinatura do concorrente ou de representante que tenha poderes para obrigar, pelo que é suficiente para este efeito a procuração particular com poderes específicos.

l. Por fim, importa recordar que nos termos do artigo 258.º do Código Civil, “O negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último.”, pelo que sendo a procuração uma forma de representação, a declaração negocial emitida pelo procurador (representante) produz efeitos jurídicos na esfera do representado.

(…)

51. No que respeita à proposta da concorrente B........- Helicópteros - Operações, Actividades e Serviços Aéreos, Lda., verifica-se que:

a. A concorrente B........- Helicópteros - Operações, Actividades e Serviços Aéreos, Lda. encontra-se registada na plataforma eletrónica acinGov.Academia de Informática, Lda.;

b. A proposta apresentada a este procedimento é constituída pelos seguintes documentos:

(…)

c. Cada um dos documentos supra indicados e que integram a proposta foram assinados através da aposição no documento e na plataforma do
Assinatura Digital
Data e Hora da Assinatura2019/12/16 12:23:19
Assinado PorC = PT O = B........ HELICÓPTEROS - OPERAÇÕES ACTIVIDADES E SERVIÇO AÉREO LDA OU = OPERAÇÕES; Certificado para pessoa singular - Assinatura Qualificada, title = DIRECTOR DE OPERAÇÕES - Informação confirmada pela Entidade de Certificação apenas na data de emissão e que não foi confirmada posteriormente a essa data SN = C……… GN = C……. serialNumber = IDCES-……….. CN = [Assinatura Qualificada] C……………
Emitido PorC = PT O = MULTICERT - Serviços de Certificação Electrónica S.A. OU = Certification Authority CN = MULTICERT Trust Services Certification Authority 002
Selo Temporal AssociadoGeneration time Mon Dec 16 12:23:19 WET 2019 Signer ID serial 6300876393966812252128789696296931143 Signer ID issuer CN=Global Tmsted Sign Certification Authority 01, OU=Global Tmsted Sign, 0=ACIN iCloud Solutions, Lda, C=PT
- Conforme Recibo de Submissão da Proposta (negrito nosso)

seguinte certificado de assinatura digital qualificada:

d. Quer no documento Anexo I, quer no DEUCP a concorrente indica C…………. como seu procurador, conforme resulta respetivamente das expressões “(…) neste a[t]no representada pelo seu procurador, Sr. C…………. (...)” (cfr. Anexo I) e “(...) B: Informações sobre os representantes do operador económico #1

• Se aplicável, indicar o(s) nome(s) e endereço(s) da(s) pessoa(s) habilitada(s) a representar o operador económico para efeitos do presente procedimento de contratação:

Nome próprio

C……..

Apelido

C……..

(...)

Cargo/Agindo na qualidade de:

director/procurador

(...)” (cfr. Página 3 e 4 DEUCP).

e. Estando a concorrente representada por procurador integrou na proposta o documento «Procuração B........», com o seguinte conteúdo “ B……. HELICÓPTEROS OPERAÇÕES ACTIVIDADES E SERVIÇO AÉREO, LDA, representada pela sócia Gerente D……….., com poderes para o acto, constitui seu procurador o Sr. Cmdt.C………, (...) a quem confere os necessários poderes para em nome da mandante submeter propostas nas plataformas eletrónicas e assinar contratos em geral e contratos de prestação de serviços.”.

f. Ora, no caso em concreto apenas está em causa a validade do documento «Procuração B........», porquanto da validade deste documento resulta quer a existência de poderes para obrigar, quer a submissão à plataforma de documento eletrónico oficial com indicação do poder de representação.

g. Em sede de pronúncias foi arguido pela A………-Aviação, Lda. que a expressão “(…) submeter propostas (...)” deve ser interpretada em sentido restritivo, como não conferindo poderes ao procurador para obrigar a concorrente, suportando-se tal argumento no já referido princípio da pessoalidade da gerência cujo corolário resulta do artigo 252.º, n.º 6 do Código das Sociedades Comerciais (CSC), e na evocação de alguma da jurisprudência administrativa.

h. Ora, atentos ao sentido da jurisprudência, em particular o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 04/09/2014, no processo n.º 040/14, efetivamente conclui-se pelo procedência do alegado, já que da expressão “(…) confere os necessários poderes para em nome da mandante submeter propostas nas plataformas eletrónicas (...)”, não pode ser outra a interpretação do Júri, quando colocado na posição do destinatário numa relação jurídico-administrativa e tendo sido suscitada a questão nos termos em que o foi, de que a gerência da sociedade ao emitir uma declaração negocial naquele sentido e com aquele conteúdo, ao registar-se na plataforma e adquirir uma assinatura «eletrónica de qualidade» (conforme acima verificámos a assinatura é pessoal, mas pertença da organização) para o seu procurador e não «de representação», objetivou apenas conferir a este seu procurador os poderes para a representar para efeitos da interação com as Entidades Adjudicantes na plataforma eletrónica.

i. Interação esta que não abrange os poderes para por si delimitar o sentido e alcance da vontade de contratar, detendo antes e apenas os poderes para comunicar nas plataformas eletrónicas essa vontade, pelo que se têm por não assinados por quem tem poderes para obrigar os documentos da proposta violando-se assim o disposto no artigo 57.º, n.º 4 do CCP.

j. Quanto à procuração é ainda arguida a sua nulidade com fundamento na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º do Código do Notariado (CN), porquanto do ato notarial não consta “A menção dos documentos apenas exibidos com indicação da sua natureza, data de emissão e entidade emitente e, ainda, tratando-se de certidões de registo, a indicação do respetivo número de ordem ou, no caso de certidão permanente, do respetivo código de acesso;” (Cfr. alínea g) do n.º 1 do artigo 46.º ex vi artigo 151.°, todos do CN por remissão do artigo 38.° do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março).

k. Quanto a esta última questão, importa atentar no n.º 2 do artigo 70.° do CN que dispõe “As nulidades previstas nas alíneas (...) g) do número anterior consideram-se sanadas, conforme os caso:” prosseguindo na respetiva alínea f) “Se em face da inobservância do disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 46.°, ou da incorreta menção dos requisitos nele exigidos, for comprovado, mediante exibição da certidão de registo ou do correspondente código de acesso, que a mesma já existia à data da celebração do ato.”.

l. Daqui resulta não estarmos perante uma nulidade insanável que opere de forma automática, mas sim perante uma nulidade que admite prova em contrário, prova essa que se traduz na “(…) apresentação de documento[s] que se limite[m] a comprovar factos ou qualidades anteriores à data de apresentação da proposta (...)”, o que nos termos do n.º 3 do artigo 72.° do CCP constitui o Júri no dever de solicitar à concorrente e permitir a apresentação da respetiva Certidão Permanente ou outro documento idóneo para efeitos do disposto no referido artigo 70.°, n.º 2 alínea f) do CN.

m. Ora, quanto a esta questão importa recordar que neste procedimento a Certidão Permanente é um documento exigido na fase de habilitação, pelo que aquele documento sempre viria a ser obrigatoriamente junto ao procedimento, caso o sentido da decisão de adjudicação constante do relatório preliminar se mantivesse e viesse a ser acolhido pelo órgão competente para a decisão de contratar.

n. Contudo, e como referimos anteriormente, tendo sido suscitada a questão, independentemente da fase do procedimento porquanto se trata de matéria que carece de comprovação e ainda não apreciada, incumbia ao Júri proceder a esse pedido de exibição.

o. Ocorre porém, como vimos no parágrafo 38 supra, que a concorrente B........- Helicópteros - Operações, Actividades e Serviços Aéreos, Lda. veio juntar cópia da Certidão Permanente com o seguinte código de acesso 5477-4121-6337, tomando tal ato do Júri inútil, e tendo-se assim por sanada a alegada nulidade.

p. No entanto, conforme anteriormente concluído na subalínea i. e com os pressupostos ali expendidos, a proposta deve ser excluída nos termos conjugados do artigo 57.º, n.º 4, com o artigo 146.º, n.º 2, alínea e) do CCP.

52. Em face do que antecede delibera o Júri:

(…)

b. Quanto ao Lote 1:

(1) Excluir a proposta da concorrente B........ – Helicópteros – Operações, Actividades e Serviços Aéreos, Lda., com os fundamentos anteriormente aduzidos e nos termos do artigo 57.º, n.º 4, com o artigo 146.º, n.º 2, alínea e) do CCP:

(2) Ordenar as propostas de acordo com a tabela seguinte:

(…)»

(cfr. fls. 3508 a 3552 do processo administrativo);

p) Em 28 de Fevereiro de 2020, foi apresentada a pronúncia da autora no exercício do direito de audiência prévia, em documento assinado electronicamente por C………., no qual consta, entre o mais, que o “mandatário” da autora tem “manifestamente poderes para a representar em todos os atos do procedimento concursal, designadamente assinar documentos que fazem parte da proposta e que integram o contrato final” (cfr. fls. 3584 a 3647 do processo administrativo);

q) Nessa pronúncia consta, entre o mais, que “a vontade real da mandante era e sempre foi conferir ao seu procurador C………. os poderes necessários para em nome da mandante, não só submeter propostas nas plataformas eletrónicas, como também representar a mandante em todo o procedimento concursal, bem como na assinatura do contrato final praticando materialmente todos os demais atos necessários no aludido fim”, incluindo “todos os atos de que depende a formação da vontade de contratar, todos os procedimentos prévios ao contrato e por fim à assinatura do contrato que determina a perfeição da declaração negocial”; e com a mesma foi junta uma procuração (com apostilha) outorgada em Ayamonte, perante notário, em 27 de Março de 2018, escrita em língua espanhola e com tradução para língua portuguesa devidamente legalizada, mediante a qual a B........, Lda. concedeu poderes especiais a C……. para, entre o mais, “outorgar quaisquer garantias, escrituras, acordos, contratos, pactos e documentos similares, incluindo contratos públicos, candidaturas e licitações com autoridades de aviação civil, governos, ministérios, agências, administradores e entidades similares (…)” e “representar a sociedade em todos os assuntos relacionados com a apresentação de propostas para qualquer tipo de licitação pública ou privada na Espanha” (cfr. fls. 3584 a 3647 do processo administrativo);

r) Em 5 de Março de 2020, o júri do procedimento elaborou um segundo relatório final, que designou, em relação ao lote 1, como “Relatório Final 2”, mantendo o teor e as conclusões do primeiro relatório final e a proposta que nele havia sido feita quanto à exclusão da proposta da autora e à adjudicação da proposta da A……., Lda., do qual consta, entre o mais, o seguinte:

«(…)

55. O júri revisitou todo o procedimento, bem como as propostas em crise.

(…)

62. Ainda relativamente ao Lote 1 na pronúncia da concorrente B........ Helicópteros - Operações, Actividades e Serviços Aéreos, Lda. alega-se que o Júri na sua análise não atentou na segunda parte da fórmula “(...) a quem confere os necessários poderes para em nome da mandante submeter propostas nas plataformas eletrónicas e assinar contratos em geral e contratos de prestação de serviços.” (sublinhado e negrito nosso). Contudo, o Júri não só se deteve sobre esta expressão, até porque quer a concorrente a concorrente A…….. Aviação, Lda., quer a concorrente B........- Helicópteros - Operações, Actividades e Serviços Aéreos, Lda. o haviam invocado em sede de audiência prévia e de intervenção incidental, respetivamente, como se lhe assacaram os mesmos juízos de insuficiência, ou seja o procurador pode assinar o que o representado negociou, mas não está munido dos poderes para negociar os termos contratuais.

63. Na verdade, não obstante, se compreenda que através da junção da procuração outorgada no Cartório de Ayamonte (Espanha) em 22 de março de 2018, a concorrente pretende demonstrar o sentido real da vontade do declaratário, aquela procuração, que não confere poderes de representação em território nacional, vem sim reforçar a insuficiência suscitada por outra concorrente dos poderes conferidos na procuração junta a este procedimento.

64. Em face do que antecede perante os elementos constantes do procedimento administrativo delibera Júri manter o sentido da deliberação de exclusão da proposta, improcedendo o alegado em sede de audiência prévia.

(…)»

(cfr. fls. 3669 a 3720 do processo administrativo);

s) Em 12 de Março de 2020, por despacho proferido pelo Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, com remissão para o relatório final elaborado pelo júri, foi decidida a adjudicação do lote 1 a favor da proposta da A………, Lda. (cfr. fls. 3721 do processo administrativo);

t) Em 30 de Março de 2020, foi celebrado entre o Estado e a A……., Lda. o contrato de aquisição de serviços de disponibilização e locação dos meios aéreos que constituem o dispositivo aéreo complementar do DECIR de 2020 a 2023, tendo por objecto o lote 1 posto a concurso (cfr. fls. 3810 a 3856 do processo administrativo).»



III. Matéria de direito

8. O que se discute neste recurso é se o mandatário da A., ora Recorrida, tinha ou não poderes para assinar a respetiva proposta de contrato no concurso público sub judice e, em função da resposta a essa questão, se houve ou não erro de direito por violação do número 4 do artigo 57.º do Código dos Contratos Públicos (CCP).
O TCAS entendeu que a procuração apresentada lhe conferia poderes suficientes para o efeito.
No acórdão recorrido afirmou-se, a este propósito, que
«no caso da procuração outorgada pela sociedade concorrente, Autora, a favor do procurador C…….., tal como entendido na sentença recorrida, julgamos que o texto da procuração ao se referir aos poderes de submissão de propostas nas plataformas eletrónicas, comporta um mínimo de correspondência literal, ainda que imperfeitamente expresso, no sentido de atribuição de poderes ao representante para apresentar propostas, em nome da Autora, no âmbito de procedimentos pré-contratuais como o ora em apreço e, para através delas, obrigar ou vincular a sociedade para com (ou perante) as entidades adjudicantes, mediante a aposição da sua assinatura aos documentos que as integram.»
Os Recorrentes não se conformam com esse entendimento, alegando concretamente o Recorrente Ministério da Defesa Nacional – Força Aérea Portuguesa, em oposição, que
«o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 17 de Dezembro de 2020, alcança um resultado interpretativo que não tem um mínimo de correspondência no texto da procuração datada de 10 de Dezembro de 2013, ainda que imperfeitamente expresso, que não coincide com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento do declarante, que não é susceptível de ser afirmado como correspondendo à vontade real da declarante por manifesta falta de prova e cujo conhecimento pelo Júri do procedimento carece também totalmente de prova.
E, em consequência, incorre em violação dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil, do n.º 4 do artigo 57.º do CCP e dos princípios da concorrência, da imparcialidade, da tutela da confiança, da transparência e da igualdade de tratamento e não-discriminação no âmbito da contratação pública.»

9. Assim colocada, a questão controvertida neste recurso tem que ver única e exclusivamente com a interpretação do enunciado do texto da procuração junta pelo concorrente com a sua proposta, e não com o facto de a mesma ter sido submetida eletronicamente.
Na verdade, não está aqui em causa a qualificação da assinatura digital do mandatário, na medida em que a respetiva procuração foi junta com a proposta, permitindo assim «relacionar o assinante com a sua função e poder de assinatura», como exige o número 7 do artigo 54.º da Lei n.º 96/2015, de 17 de agosto – sobre a qualificação digital da assinatura, v. também o Decreto-Lei n.º 290-D/99, de 2 de agosto.
Também não está em causa, neste processo, a forma de carregamento da proposta, e as implicações que a mesma pode ter no modo de assinar digitalmente a proposta, nomeadamente quando seja adotada a modalidade denominada de «carregamento progressivo ou de ficheiro aberto».
Nem, em rigor, se discute nos autos a questão da submissão da proposta por terceiro credenciado, e legitimado, para o efeito pelo concorrente, na medida o mandatário da A., ora Recorrida, assinou a proposta e os documentos que a integram arrogando-se ter recebido dela, mandante, os poderes suficientes para a obrigar, nos termos exigidos pelo número 4 do artigo 57.º do CCP.

10. A questão que aqui se discute não é nova na jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo, e já foi julgada pelo Acórdão da Secção do Contencioso Administrativo, de 19 de novembro de 2020, proferido no Processo n.º 185/19.2BEPDL, embora relativamente a uma procuração cujo teor não é idêntico ao da procuração em apreço nos autos.
Nesse acórdão se decidiu o seguinte:
«A respeito da verificação dos poderes para representar a sociedade no procedimento desmaterializado: i) do termo “negociação” conclui o TAF (...) que, ainda que imperfeitamente expresso, é possível retirar, enquanto declaratário normal, o sentido de que ao mandatário foram conferidos os “poderes necessários à realização de todos os atos preparatórios necessários à celebração dum [sic] determinado negócio jurídico, como sejam, a formulação de propostas contratuais, ou, no caso da contratação pública, a elaboração dos atributos da proposta”; ii) do termo “correspondente envio de propostas de contratos”, infere aquele tribunal que o mesmo “abrange a apresentação da proposta ao outro contraente e não à sua mera submissão eletrónica, a qual não tem qualquer suporte no texto da procuração, ou o seu envio postal, para o qual era absolutamente irrelevante”; e daí conclui que “[S]endo conferidos poderes de elaboração da proposta e poderes de apresentação da mesma, neles têm que se entender incluídos os poderes de assinatura da proposta”.
E este juízo não nos merece censura, seja na mobilização dos artigos 236.º e 238.º do C. Civ., uma vez que, estando em causa a interpretação de um documento que consubstancia um negócio jurídico privado, são aquelas as regras jurídicas que podem e devem ser utilizadas para a respectiva interpretação; seja no resultado da interpretação a que se chega e que é o adequado segundo as regras mobilizadas.
Acrescentamos ainda, segundo as mesmas regras (artigos 236.º e 238.º do C. Civ.), que também um declaratário normal terá de concluir das expressões [poder para] “outorga de contratos de prestação de serviços na área da informática jurídica” e “contratos estes que poderá outorgar, sejam a celebrar por instrumento público ou não e quer se tratem de entidades públicas, quer privadas, independentemente do valor do contrato e do seu tempo de duração”, que o gerente único mandatou o representante de poderes para vincular a sociedade ao teor da proposta submetida e à futura celebração do contrato.
O procedimento de contratação pública, sendo formal e as suas regras de teor vinculado para as entidades adjudicantes, ainda assim impõe que a interpretação das mesmas (das regras da contratação pública) se tenha de fazer em consonância com os princípios enunciados no artigo 1.º-A do CCP, pelo que a interpretação do teor da procuração nos termos do disposto nos artigos 236.º e 238.º do C. Civ – como resultou da decisão do TAF (...), que aqui se reitera – é também a solução que se alcança de uma interpretação do artigo 57.º, n.º 4 do CCP em conformidade com os princípios da boa-fé e da concorrência. Com efeito, importa ser rigoroso na verificação dos poderes do representante para submeter a proposta, mas essa verificação tem de obedecer a critérios de materialidade e de razoabilidade.»

11. Não obstante o diferente teor das procurações apresentadas nos dois concursos, não se encontram razões para censurar o acórdão recorrido, decidindo o presente recurso de forma diferente da decisão que foi proferida naquele outro processo.
O número 4 do artigo 57.º do CCP não exige que os poderes de assinatura da proposta sejam explicitamente especificados no respetivo mandato, limitando-se a exigir que a mesma seja assinada por quem tenha poderes para obrigar o concorrente.
Daí que, situando-se a questão no âmbito da interpretação do sentido da declaração contida na procuração junta pelo concorrente com a proposta, seja suficiente, convocando as regras de interpretação dos negócios jurídicos estabelecidas nos números 1 dos artigos 236.º e 238.º do Código Civil (CC), que aqueles poderes tenham um mínimo de correspondência no seu enunciado escrito e que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir esse sentido daquele enunciado.
E não nos oferece qualquer dúvida que, quem tem «poderes para em nome da mandante submeter propostas nas plataformas eletrónicas e assinar contratos em geral e contratos de prestação de serviços», tem também poderes para assinar a respetiva proposta. Assinar contratos envolve, necessariamente, um poder de disposição sobre o conteúdo dos mesmos que não pode ser dissociado do poder para formular a respetiva proposta.
O facto de a lei permitir que, em certos casos, se estabeleça uma distinção entre a «submissão» da proposta e a sua «assinatura» não significa que, quando a procuração refira expressamente a «submissão», queira necessariamente excluir o poder de «assinatura», ou que apenas reconheça a existência deste último quando o enunciado do texto o explicite.

12. Acresce ainda que, no domínio da contratação pública, ali onde a lei não faça exigências formais, deve observar-se o princípio do favor participationis, ou do favor do procedimento, que impõe que, em caso de dúvida, se privilegie a interpretação da norma que favoreça a admissão do concorrente, ou da sua proposta, em detrimento da sua exclusão – sobre o referido princípio, v. Rodrigo Esteves de Oliveira, Os princípios gerais da contratação pública, in Estudos de Contratação Pública, CEDIPRE, Coimbra, 2008, p. 113.
Como é evidente, não está em causa o igual respeito pelo princípio da adequação formal do procedimento, sempre que a lei estabeleça exigências formais que sejam essenciais, o que, como se sabe, é a regra em matéria de formalidades do procedimento. Mas no caso dos autos, ressalvada que esteja a garantia de que o concorrente se obriga plenamente à proposta apresentada, não há razões substantivas para excluir uma proposta cuja admissão apenas favorece a concorrência.
A função do procedimento não é dificultar a admissão dos concorrentes e suas propostas, mas antes assegurar que a Administração dispõe do maior leque de opções possíveis para satisfazer a necessidade pública que o objeto do concurso, direta ou indiretamente, visa concretizar, e que está em condições de fazer a escolha mais adequada a essa finalidade.

13. O Recorrente Ministério da Defesa Nacional – Força Aérea Portuguesa alega, no entanto, que o acórdão recorrido também incorreu em erro de julgamento ao invocar o número 2 do artigo 238.º do CC, por entender que «conhecer a vontade real do declarante é matéria de facto», não tendo ficado provado em primeira instância que a vontade real do A., ora recorrido, era de conferir ao seu mandatário poderes para obrigá-la, assinando a respetiva proposta.
Tem razão quando alega que não ficou provado em primeira instância que aquela fosse a vontade real do declarante, e que os factos efetivamente dados como provados nos autos são insuficientes para fundar um juízo conclusivo sobre essa matéria, mas essa não é, em rigor, a ratio decidendi do acórdão recorrido, pelo que a procedência do seu argumento não é suficiente para o invalidar.
Na verdade, ao considerar que «o texto da procuração ao se referir aos poderes de submissão de propostas nas plataformas eletrónicas, comporta um mínimo de correspondência literal, ainda que imperfeitamente expresso, no sentido de atribuição de poderes ao representante para apresentar propostas», o acórdão recorrido fundou o seu juízo, principalmente, no número 1 do artigo 238.º, e não no n.º 2, só o convocando para reforçar a sua decisão.
Determinante da fundamentação do acórdão recorrido é, pois, a conclusão – que não merece qualquer censura – de que um declaratário normal, colocado na posição da entidade adjudicante, podia deduzir os poderes do mandatário para obrigar o concorrente do teor da procuração apresentada com a proposta, e que esses poderes têm um mínimo de correspondência no seu enunciado escrito, nos termos conjugados do número 4 do artigo 57.º do CCP e dos números 1 dos artigos 236.º e 238.º do CC.

14. Pela mesma razão, também não procede a alegação feita por ambos os Recorrentes de que o acórdão recorrido violou os princípios da concorrência, da imparcialidade, da tutela da confiança, da transparência e da igualdade de tratamento e não-discriminação no âmbito da contratação pública, violação essa que assacam exclusivamente ao juízo feito pelo Tribunal a quo sobre a vontade real do declarante.
Não obstante, e ainda que se devesse atribuir relevância jurídica àquele juízo, não se vê em que medida o facto de se ter relevado a diferente nacionalidade do mandante e do mandatário na fixação do sentido da declaração possa consubstanciar uma violação daqueles princípios, porque a situação de facto é realmente distinta e pode justificar uma «diferenciação» no valor a atribuir à perceção que o declaratário tem do enunciado linguístico da procuração.
Acresce, ainda, que a relevância dada a esse facto na fixação do sentido da declaração não se projeta na interpretação do conteúdo das normas aplicadas na decisão recorrida, pelo que não configura uma inconstitucionalidade normativa passível de constituir uma questão autónoma em relação à interpretação das mesmas normas.

15. Assim, e em conclusão, entende-se que o acórdão recorrido não incorreu em erro de julgamento ao considerar que a procuração apresentada conferia ao mandatário da Recorrida poderes suficientes para o obrigar ao cumprimento da proposta apresentada, tendo por isso feito correta interpretação do número 4 do artigo 57.º do CCP, que não exige que os poderes de assinatura da proposta de contrato sejam explicitamente especificados na procuração.


IV. Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo, reunidos em conferência, em negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido.

Custas do processo pelos Recorrentes. Notifique-se


Lisboa, 29 de abril de 2021

O relator consigna e atesta que, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 1 de maio, tem voto de conformidade com o presente Acórdão de todos os restantes juízes que integram a presente formação julgamento, nomeadamente os Conselheiros José Veloso e Ana Paula Portela.
Cláudio Ramos Monteiro